Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1153/16.1PCBRG-B.G1
Relator: FLORBELA SEBASTIÂO E SILVA
Descritores: PERDÃO DE PENA
ROUBO
EXCLUSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O condenado por crime de roubo p.e p. pelo artigo 210º, n.º1 do Código Penal, não estando em causa uma vítima especialmente vulnerável na definição dada pela al. b) do nº 1 do artigo 67º-A do CPP, beneficia da aplicação do perdão de pena previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto,

II- Quando o legislador, na al. g) do nº 1 do artigo 7º da Lei nº 38-A/2023, remete para o artigo 67º-A do CPP, fá-lo apenas e tão-só com o intuito de providenciar por uma definição legal (e consentânea com a ordem jurídico-penal no seu todo) de vítima especialmente vulnerável, em substituição da fórmula (menos rigorosa) constante da Proposta de Lei, e não a de fazer excluir, de forma indirecta, certos crimes do âmbito da aplicação daquela Lei.

III- A referida alínea g) serve de válvula de escape permitindo a negação do perdão (e amnistia) para crimes que, não estando previstos especificamente nas alíneas anteriores do nº 1 do artigo 7º da Lei nº 38-A/2023 possam ainda ser considerados fora do âmbito de aplicação da referida Lei de Amnistia desde que esteja em causa uma vítima especialmente vulnerável.

IV- Contudo, essa vulnerabilidade tem de resultar da definição dada pela al. b) do nº 1 do artº 67º-A do CPP, não sendo uma operação jurídica automática resultante da aplicação do nº 3 do mesmo artº 67º-A.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. No âmbito de Processo Comum com intervenção do Tribunal Colectivo, que corre termos pelo Juiz ... do Juízo Central Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob o nº 1153/16...., na sequência da entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023 de 02-08 (Lei de Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude), foi proferida decisão em 08-09-2023, com a refª ...77, relativamente ao arguido AA (e outro) através da qual se determinou o seguinte (transcrição):

 “Entrou em vigor no passado dia 1 de Setembro a Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, lei esta que estabelece um perdão de penas e amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
Importa assim verificar in casu com relação à eventual aplicação aos condenados do perdão/amnistia com a prevista entrada em vigor no próximo dia 1 de Setembro da Lei n.º n.º 38- A/2023, de 2 de Agosto – cfr. artigo 15.º.
Compulsados os autos, constata-se que:
1) o condenado BB nasceu a .../.../1977. Pelo acórdão cumulatório de 07/04/2022 foi o mesmo condenado nas penas únicas de 3 anos de prisão e 9 anos e 6 meses de prisão, estando em todos os processos aí incluídos crimes cometidos após o ano de 2007.
Ora, daqui decorre que o condenado tinha mais de 30 anos de idade à data da prática dos factos pelos quais foi condenado.
Pelo que se conclui que o mesmo não se encontra abrangido pelo âmbito da Lei n.º 38- A/2023, de 2 de agosto – cfr. artigo 2.º, n.1.
*
Já no que concerne ao condenado AA, constata-se que o mesmo nasceu a .../.../1986, tendo sido condenado nestes autos por crime de roubo simples praticado a 08-11-2016.
Pelo que ainda perfazia a idade de 30 anos na data em que praticou o crime pelo qual veio a ser condenado.
Contudo, o certo é que o crime em causa (um crime de roubo simples, p.p. pelo art.º 210º, nº 1 do C.Penal) integra o catálogo dos crimes não abrangidos pela amnistia e perdão previstos na lei – cfr. artigo 7.º, n.º1, alínea g) do referido diploma, porquanto se trata de crime cometido contra vítima especialmente vulnerável.
Nestes termos, conclui-se que a Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto não tem aplicação a nenhum dos condenados, devendo os autos continuar a aguardar a execução das respetivas penas.
*
Notifique, sendo o Il. Defensor e os condenados.
Dê conhecimento ao TEP, EP e DGRSP.”

II. Inconformado, veio o arguido interpor recurso em 06-10-2023, com a refª ...02 através do qual veio oferecer as seguintes conclusões:
           
“PRIMEIRA: No douto despacho proferido – documento sob a referência ...77 – o Tribunal a quo decidiu excluir o arguido AA, ora recorrente, da aplicação do regime especial previsto pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, no entanto, este foi condenado como coautor do crime de roubo, previsto e punido pelo n.º 1 do art. 210.º, do Código Penal (doravante C.P.), pela prática de factos em dia 8 de Novembro de 2016, portanto, antes das 00:00horas do dia 19 de junho de 2023, quando tinha 30 anos de idade.
SEGUNDA: Ora, no douto despacho proferido o Tribunal a quo entende que «o certo é que o crime em causa (um crime de roubo simples, p.p. pelo art.º 210º, nº 1 do C.Penal) integra o catálogo dos crimes não abrangidos pela amnistia e perdão previstos na lei – cfr. artigo 7.º, n.º1, alínea g) do referido diploma, porquanto se trata de crime cometido contra vítima especialmente vulnerável».
TERCEIRA: Acontece que, no artigo 7.º, n.º 1, al. b) e subalínea i), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, o Legislador previu que não beneficiam do perdão e amnistia os condenados «por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal», nada referindo em relação aos condenados por força do disposto no n.º 1 do mesmo dispositivo legal.
QUARTA: O Tribunal a quo fundamenta a sua decisão para não aplicar o perdão e amnistia ao arguido recorrente AA no disposto na al. g) do artigo 7.º da referida Lei n.º 38-A/2023 e que impede a aplicação destas prerrogativas – perão e amnistia - aos «condenados por crimes contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal».
QUINTA: Ora, com o devido respeito, não se pode ficcionar que qualquer vítima de criminalidade violenta se considere como particularmente vulnerável, devendo, isso sim, analisar a situação em concreto e os demais elementos vertidos no processo.
SEXTA: Com efeito, a al. b) do artigo 67.º-A do CPP começa por afirmar que para ser vítima considerada especialmente vulnerável tem de ser uma pessoa com especial grau de fragilidade, estabelecendo desde logo ali alguns dos critérios que devem ser ponderados pelo Julgador.
SÉTIMA: Pelo que, salvo melhor entendimento, para que a vítima de roubo (criminalidade violenta) seja reconhecida como vítima especialmente vulnerável, o tribunal deve aquilatar e considerar verificados, cumulativamente, que:
- se esteja perante uma vítima de criminalidade violenta, definida nos termos do artigo 1.º do CPP – condutas praticadas «contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal» e «forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos»; E,
- seja vítima especialmente frágil, em função «da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social», em conformidade com o vertido na al. b) do n.º 1 do artigo 67.º-A do CPP.
OITAVA: Caso assim não se entenda, nenhum sentido tem a distinção realizada pelo Legislador no artigo 7.º, n.º 1, al. b), subalínea i), da Lei n.º 38-A/2023, e no âmbito dos crimes contra o património, dos condenados pelos crimes de roubo previstos e punidos pelo n.º 2 do artigo 210.º do CP.
NONA: O legislador considerou expressamente os crimes contra o património e decidiu especificar a exclusão do beneficio do perdão e da amnistia dos condenados ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 210.º do CP, nada dizendo em relação aos condenados ao abrigo do número 1 do mesmo dispositivo.
DÉCIMA: Não se diga que pretendeu integrar estes crimes na alínea g) do artigo 7.º parte final da Lei n.º 38-A/2023, pois caso assim fosse não necessitava de ter diferenciado o n.º 2 do artigo 210.º do CP nos crimes contra o património, como fez, bastando a mera remissão para o disposto no artigo 67.º-A do CPP.
DÉCIMA PRIMEIRA: As regras interpretativas de Direito, vertidas no artigo 9.º, ns.º 1 e 3, do Código Civil estabelecem que o Legislador soube exprimir em termos adequados as suas intenções, pelo que, se presume que o legislador ao distinguir e destacar, como fez no caso concreto dos condenados «por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º» do CP, fê-lo conscientemente e com intenção clara de não incluir os condenados ao abrigo do número 1 do mesmo artigo 210.º do CP na exclusão do beneficio do perdão e amnistia.
DÉCIMA SEGUNDA: Pese embora o crime de roubo integre em termos objetivos a definição de vítimas especialmente vulneráveis, entende-se que não se pode considerar, automaticamente e sem mais, as vítimas de criminalidade violenta como vítimas especialmente vulneráveis, pois tal contraria a remissão que o legislador faz para o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 67.º-A do CPP, onde estabelece critérios para avaliar a especial fragilidade.
DÉCIMA TERCEIRA: A classificação como vítima especialmente vulnerável acarreta uma série de direitos e deveres, nos termos da Lei n.º 130/2015, seja para a própria seja para a autoridade, pelo que não é de aplicação automática, devendo o Julgador verificar o preenchimento dos respetivos requisitos ao longo do processo e inclui-la nas respetivas decisões finais, e não após este se encontrar findo e transitado em julgado, como o fez no despacho de 08.09.2023.
DÉCIMA QUARTA: Assim entendem os Exmos. Venerandos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, ao estabelecer que «Deste elenco normativo ressalta a ideia de que nos crimes de roubo simples não se coloca a convocação deste estatuto [da vítima], para todos e cada um dos casos ocorridos. Por outras palavras: por alguma vez se alavancará a concretização de alguma destas medidas à vítima de roubo que não seja efectivamente de definir como especialmente vulnerável, por portadora de especial fragilidade, em função da idade, do estado de saúde ou de deficiência? (…)» e «o princípio constitucional vertido no artigo 30.º, n. º 4, proíbe que a privação de direitos seja uma simples consequência – por via directa da lei – da condenação por infracções de qualquer tipo (Acórdão n.º 282/86, Diário da República, 1.ª série, de 11 de Novembro de 1986)» e « é de rejeitar a aplicação automática da proclamação das vítimas de casos de criminalidade violenta (…) como sendo sempre consideradas como vítimas especialmente vulneráveis»- vide, in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 1267/18.3JABRG.S1, www.dgsi.pt.
DÉCIMA QUINTA: Na matéria assente nos dispositivos condenatórios dos presentes autos, considerou-se apenas que houve «tom intimidatório» e «gesto intimidatório», tendo o Tribunal a quo concluído que «o meio empregue consistiu em violência psicológica e que o dinheiro subtraído é de pequeno valor, o grau de ilicitude não é muito elevado, assim se refletindo, moderando-as, nas necessidades de prevenção geral», inexistindo quaisquer elementos donde se retire estarmos perante um individuo frágil, seja em função da sua idade e/ou do seu estado de saúde ou outros; aliás, em momento algum do processo a vitima do roubo foi considerada especialmente vulnerável!
DÉCIMA SEXTA: Com o devido respeito, não se pode ficcionar, após o trânsito em julgados dos dispositivos condenatórios e sem qualquer elemento factual, que a vítima nos presentes autos era particularmente vulnerável/frágil, e dessa forma agora classifica-la, pois mediante esse entendimento, extremamente afastado da letra da lei e vontade do legislador, estar-se-ia a impedir a aplicação do beneficio do perdão e a limitar, de forma grosseira e injustificada e sem reflexo na lei, a liberdade do arguido recorrente.
DÉCIMA SÉTIMA: Pelo que, ao decidir o Tribunal a quo da forma como decidiu e por tudo o que antecede, entende o Arguido Recorrente que, foram violadas, entre outras, as disposições dos artigos 18.º, n.º 2, e 30.º, n.º 4, ambos da Constituição da República Portuguesa, do artigo 9.º do Código Civil, e do artigo 40.º do Código Penal, e dos artigos 2.º, 3.º e 7.º, todos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, por incorreta e imprecisa aplicação dos seus pressupostos e interpretação da lei.
DÉCIMA OITAVA: Assim, deve, o que se reclama, o despacho proferido pelo Tribunal a quo ser revogado, substituindo-o por outro que determine a aplicação ao arguido recorrente, AA, do perdão de um ano de prisão à pena a que foi condenado e se encontra a cumprir, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1, e 7.º a contrario, todos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto,
DÉCIMA NONA: ordenando, em resultado, a IMEDIATA LIBERTAÇÃO DO ARGUIDO RECORRENTE, com todas as inerentes consequências legais.
TERMOS EM QUE SE REQUER A VS. EXAS., PARA ALÉM DOS MELHORES DE DIREITO CUJO DOUTO SUPRIMENTO SE PEDE, SE DIGNEM DAR PROVIMENTO AO RECURSO, E, CONSEQUENTEMENTE, NA MEDIDA DAS ARTICULADAS CONCLUSÕES E PELO DOUTO SUPRIMENTO, REVOGAR O DESPACHO PROFERIDO NO QUE SE REFERE À EXCLUSÃO DO BENEFICIO DO PERDÃO AO ARGUIDO AA, SUBSITUINDO POR OUTRO QUE, AO ABRIGO DO DISPOSTO NA LEI N.º 38-A/2023, DE 2 DE AGOSTO, LHE CONCEDA O PERDÃO DE UM ANO DE PRISÃO À PENA A QUE FOI CONDENADO, ORDENANDO-SE A SUA PRONTA LIBERTAÇÃO, COM AS DEVIDAS E INERENTES CONSEQUÊNCIAS, ASSIM SE FAZENDO A ADEQUADA E SOBERANA JUSTIÇA!”

III. O recurso foi admitido por despacho de 20-10-2023, com a refª ...24, que lhe fixou efeito suspensivo, efeito esse que corrigimos para devolutivo nos termos do despacho de 15-01-2024 com a refª ...44.

IV. Respondeu o Ministério Público nos termos que constam das contra-alegações, juntas em 24-11-2023 com a refª ...03, através das quais pugna pela improcedência do recurso, não tendo oferecido conclusões.

 V. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo a Exmª Srª. Procuradora-Geral Adjunta proferido douto parecer, em 19-12-2023, com a refª ...77, através do qual também pugna pela improcedência do recurso interposto pelo arguido, acompanhando os argumentos do MºPº de 1ª instância.

VI. Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do Código de Processo Penal, nenhuma resposta foi oferecida.

VII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

VIII. Analisando e decidindo.

O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP.

O arguido entende que o Tribunal a quo efectuou uma interpretação errónea do artº 7º da Lei nº 38-A/2023 de 02-08 – doravante designada como Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude – LAJMJ – uma vez que não conjugou de forma correcta a subalínea i) da alínea b) do nº 1 do citado artº 7º com a al. g) deste mesmo preceito legal.
           
Vejamos.

O artº 7º da LAJMJ subordinado à epígrafe “excepções” diz o seguinte:
           
1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:
a) No âmbito dos crimes contra as pessoas, os condenados por:
i) Crimes de homicídio e infanticídio, previstos nos artigos 131.º a 133.º e 136.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro;
ii) Crimes de violência doméstica e de maus-tratos, previstos nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal;
iii) Crimes de ofensa à integridade física grave, de mutilação genital feminina, de tráfico de órgãos humanos e de ofensa à integridade física qualificada, previstos nos artigos 144.º, 144.º-A, 144.º-B e na alínea c) do n.º 1 do artigo 145.º do Código Penal;
iv) Crimes de coação, perseguição, casamento forçado, sequestro, escravidão, tráfico de pessoas, rapto e tomada de reféns, previstos nos artigos 154.º a 154.º-B e 158.º a 162.º do Código Penal;
v) Crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal;
b) No âmbito dos crimes contra o património, os condenados:
i) Por crimes de abuso de confiança ou burla, nos termos dos artigos 205.º, 217.º e 218.º do Código Penal, quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artigos 256.º a 258.º do Código Penal, e por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal;
ii) Por crime de extorsão, previsto no artigo 223.º do Código Penal;
c) No âmbito dos crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, os condenados por crimes de discriminação e incitamento ao ódio e à violência e de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, incluindo na forma grave, previstos nos artigos 240.º, 243.º e 244.º do Código Penal;
d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por:
i) Crimes de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, de incêndio florestal, danos contra a natureza e de poluição, previstos nos artigos 272.º, 274.º, 278.º e 279.º do Código Penal;
ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal;
iii) Crime de associação criminosa, previsto no artigo 299.º do Código Penal;
e) No âmbito dos crimes contra o Estado, os condenados por:
i) Crimes contra a soberania nacional e contra a realização do Estado de direito, previstos nas secções i e ii do capítulo i do título v do livro ii do Código Penal, incluindo o crime de tráfico de influência, previsto no artigo 335.º do Código Penal;
ii) Crimes de evasão e de motim de presos, previstos nos artigos 352.º e 354.º do Código Penal;
iii) Crime de branqueamento, previsto no artigo 368.º-A do Código Penal;
iv) Crimes de corrupção, previstos nos artigos 372.º a 374.º do Código Penal;
v) Crimes de peculato e de participação económica em negócio, previstos nos artigos 375.º e 377.º do Código Penal;
f) No âmbito dos crimes previstos em legislação avulsa, os condenados por:
i) Crimes de terrorismo, previstos na lei de combate ao terrorismo, aprovada pela Lei n.º 52/2003, de 22 de agosto;
ii) Crimes previstos nos artigos 7.º, 8.º e 9.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, que cria o novo regime penal de corrupção no comércio internacional e no setor privado, dando cumprimento à Decisão Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de julho de 2003;
iii) Crimes previstos nos artigos 8.º, 9.º, 10.º, 10.º-A, 11.º e 12.º da Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto, que estabelece um novo regime de responsabilidade penal por comportamentos suscetíveis de afetar a verdade, a lealdade e a correção da competição e do seu resultado na atividade desportiva;
iv) Crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado e de fraude na obtenção de crédito, previstos nos artigos 36.º, 37.º e 38.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, que altera o regime em vigor em matéria de infrações antieconómicas e contra a saúde pública;
v) Crimes previstos nos artigos 36.º e 37.º do Código de Justiça Militar, aprovado em anexo à Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro;
vi) Crime de tráfico e mediação de armas, previsto no artigo 87.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, que aprova o regime jurídico das armas e suas munições;
vii) Crimes previstos na Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Cibercrime;
viii) Crime de auxílio à imigração ilegal, previsto no artigo 183.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional;
ix) Crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;
x) Crimes previstos nos artigos 27.º a 34.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança;
g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro;
h) Os condenados por crimes praticados enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas, designadamente aqueles previstos na Lei n.º 34/87, de 16 de julho, que determina os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções;
i) Os condenados em pena relativamente indeterminada;
j) Os reincidentes;
k) Os membros das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários relativamente à prática, no exercício das suas funções, de infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena;
l) Os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.
2 - As medidas previstas na presente lei não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções.
3 - A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.” – sublinhado e negrito nossos

Vejamos mais de perto as duas alíneas deste artigo que se mostram em confronto e que estarão na base do recurso.

Por força do artº 7º da LAJMJ não beneficiam do perdão e da amnistia:

b) No âmbito dos crimes contra o património, os condenados: i) …por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal;

g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro;

Ora, se num primeiro momento resulta evidente que, nos termos da al. b)-i), o legislador retirou do leque de crimes, que não podem ser alvo de perdão/amnistia, o roubo simples – artº 210º nº 1 do Código Penal – isto é, o legislador revela que os condenados pela prática de um roubo simples podem beneficiar do perdão e amnistia previstos na LAJMJ, desde que os restantes requisitos também se verifiquem, já essa evidência se esbate, ou melhor dizendo, até se anula, com a análise da al. g) que, ao remeter para o artº 67º-A do Código de Processo Penal, afasta da aplicação da Lei de Amnistia de 2023 os condenados pela prática de crimes que integram os conceitos de criminalidade violenta e especialmente violenta, sendo que o roubo simples integra-se no conceito de criminalidade especialmente violenta.

            Assim será, num primeiro momento, porquanto o artº 67º-A do Código de Processo Penal subordinado à epígrafe “vítima” (que foi aditado pela Lei nº 130/2015 de 04-09) diz o seguinte:

“1 - Considera-se:
a) 'Vítima':
i) A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime;
ii) Os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido diretamente causada por um crime e que tenham sofrido um dano em consequência dessa morte;
iii) A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica;
b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;
c) 'Familiares', o cônjuge da vítima ou a pessoa que convivesse com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, os seus parentes em linha reta, os irmãos e as pessoas economicamente dependentes da vítima;
d) 'Criança ou jovem', uma pessoa singular com idade inferior a 18 anos.
2 - Para os efeitos previstos na subalínea ii) da alínea a) do n.º 1 integram o conceito de vítima, pela ordem e prevalência seguinte, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, ou a pessoa que convivesse com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e os ascendentes, na medida estrita em que tenham sofrido um dano com a morte, com exceção do autor dos factos que provocaram a morte.
3 - As vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.
4 - Assistem à vítima os direitos de informação, de assistência, de proteção e de participação ativa no processo penal, previstos neste Código e no Estatuto da Vítima.
5 - A vítima tem direito a colaborar com as autoridades policiais ou judiciárias competentes, prestando informações e facultando provas que se revelem necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.” – negrito nosso

Ora, nos termos do artº 1º do Código de Processo Penal considera-se: (…)
“j) 'Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos;
l) 'Criminalidade especialmente violenta' as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos; (…)”

            Uma vez que o roubo, mesmo na sua forma simples, implica a prática de actos que, embora visando a propriedade alheia, incluem sempre uma actuação violenta contra a vítima – é a violência que distingue o roubo do furto – quer directamente na pessoa (agressão física), quer por meio de ameaça (sem agressão mas com constrangimento), pelo que o roubo implica sempre um conduta dolosa dirigida, pelo menos, contra a liberdade pessoal da vítima, sendo ainda punível, na sua forma simples, com pena de prisão de 1 a 8 anos, conclui-se que toda e qualquer forma de roubo previsto no artº 210º do Código Penal integra o conceito de criminalidade especialmente violenta.

E, assim, surge toda a problemática que ora nos é dada a solucionar.

Porquanto, se por um lado, o legislador retira do leque de crimes não abrangidos pelo perdão previsto na LAJMJ, o roubo simples (artº 210º nº 1 Código Penal) – nº 1 b)-i) do artº 7º – pois apenas identifica o roubo previsto no nº 2 do artº 210º do Código Penal, por outro lado e, afinal, parece querer incluir na lista de crimes não abrangidos pelo perdão, todos os crimes de roubo, mesmo os cometidos na forma simples, por serem crimes que integram o conceito de criminalidade especialmente violenta e todas as vítimas de criminalidade violenta e especialmente violenta são, por força do nº 3 do artº 67º-A do CPP, vítimas especialmente vulneráveis – nº 1 al. g) do artº 7º.

Quid iuris?

Adiantando desde já a nossa convicção afigura-se-nos assistir razão ao arguido.

Vejamos porquê.

Antes de mais, de um ponto de vista meramente lógico, não faria qualquer sentido o legislador “perder tempo” a enumerar de forma quase exaustiva todos os crimes que entende não estarem abrangidos pelo perdão definido na LAJMJ quando todos esses crimes se enquadram na alínea g).

Repare-se que o legislador, na al. a) do nº 1 do artº 7º, que reserva para “crimes contra as pessoas” inclui um extenso leque de crimes – 29 ao todo – que só pelas respectivas molduras penais levam a que sejam enquadráveis, pelo menos, na criminalidade violenta.

Os únicos daqueles crimes que escapam ao enquadramento simultâneo na al. g) do nº 1 do artº 7º são os crimes previstos nos artºs 158º nº 1, 167º, 169º, 170º, 173º, 176º-A e 176º-B do Código Penal, ou seja, uns sete crimes, por as respectivas molduras penas serem inferiores a 5 anos.

Pelo que, o legislador, mantendo a al. g), só teria de incluir na al. a) apenas aqueles 7 crimes e não os 29 que elenca.

O mesmo se diga em relação à al. b) que versa sobre “crimes contra o património” através do qual o legislador identifica 5 crimes que, à excepção do nº 1 do artº 205º e do artº 217º do Código Penal, os restantes também são subsumíveis no conceito de criminalidade violenta e, portanto abrangidos pela al. g) do mesmo artº 7º.

Ou seja, bastaria incluir na al. b) apenas 2 dos 5 crimes aí elencados.

O mesmo se diga em relação à al. c) em que o legislador identifica 3 crimes que não são abrangidos pela LAJMJ (artºs 240º, 243º e 244º do Código Penal), contudo todos eles são enquadráveis no conceito de criminalidade violenta e, portanto, sempre seriam abrangidos pela al. g).

Ou seja, a al. c) poderia e, até, deveria então ser completamente suprimida por inútil, por os crimes aí contemplados já se integrarem na al. g).

E, se é verdade que nem todos os crimes previstos no nº 1 do artº 7º sejam  simultaneamente enquadráveis na al. g) pois, pese embora possam ter molduras penais que se adequam à criminalidade violenta e especialmente violenta, não terão, forçosamente, uma vítima (pensa-se nos crimes contra o Estado, por exemplo) a verdade é que as primeiras três alíneas (a, b) e c)), e ainda alguns crimes das als. d) e f) seguramente preenchem em simultâneo a al. g), especialmente todos os crimes contra as pessoas e património que terão sempre uma vítima associada.

Ora, há que perguntar porque motivo o legislador faz vários elencos longos – repare-se que, à excepção das als. g) a l), todas as outras alíneas contêm sub-alíneas – a identificar inúmeros crimes quando bastaria a al. g) para a esmagadora maioria daqueles crimes estarem abrangidos?

E porque motivo o legislador, que até identifica crimes pelos respectivos artigos na sua integralidade, muitos dos quais com sub-tipos, decide cirurgicamente retirar do artº 210º do Código Penal o roubo simples, correspondente ao nº 1, e mantém apenas o roubo agravado previsto no nº 2, quando em relação ao crime de burla, o legislador incluiu no leque de crimes não abrangidos pelo perdão precisamente a burla simples, prevista no artº 217º do Código Penal, a par da burla qualificada prevista no artº 218º do Código Penal?[1]

A repetição de crimes afigura-se-nos absolutamente desnecessária e até torna a leitura do respectivo texto legal confuso precisamente pela extensão de cada alínea, não se nos parecendo que o legislador estivesse distraído ou desatento quando elaborou o artº 7º da forma como o fez.

Aliás, sendo as Leis de Amnistia leis excepcionais, que integram o que, em tempos idos, se chamava de Direito de Graça, a sua interpretação não está sujeita a analogias, nem a exercícios que visam extender ou restringir o respectivo significado.

Tal como se afirma no Acórdão do STJ de 2/2023 de 01-02-2023[2] (que se pronunciou acerca do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril que estabeleceu o Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19):
“Os atos de graça abrangem, assim, a amnistia, o perdão genérico e o perdão individual ou particular, em que se integram o indulto e a comutação[3]. A distinção entre as várias medidas de graça efetua -se conforme o ato respeite ao facto praticado ou à pena concretamente aplicada, bem como consoante abranja um caso concreto ou um grupo de situações, em função das características do facto praticado ou do agente.
(…)
O direito de graça assume uma natureza excecional que, como tal, não comporta aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo as normas que o enformam «ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas»[4]. Nesta medida, «insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa [...]»[5].
Como tal, atendendo à excecionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação das mesmas deverá, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei[6], adotando-se uma interpretação declarativa em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo»[7].”

Assim, se o legislador deixou de fora, deliberadamente, o nº 1 do artº 210º do Código Penal, do rol de crimes que não cabem no âmbito de aplicação da LAJMJ, pois especificou o nº 2 do mesmo artº 210º, não podemos pressupor que quis incluir o roubo simples na al. g), fazendo entrar pela janela o que não deixou entrar pela porta.

Ora, partindo do pressuposto que, tal como se impõe no artº 9º nº 3 do Código Civil, “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” a explicação por tal técnica legislativa e a consequente interpretação que, em nosso muito modesto entendimento, deve ser dado ao artº 7º, terá de resultar da análise e compreensão quer da ratio legis, quer da sua inserção histórica e sistemática.
 
Ou, conforme dita o nº 1 do artº 9º do Código Civil:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.” – sublinhado nosso

A Lei de Amnistia nº 38-A/2023 de 02-08, foi elaborada tendo por base a visita do Papa Francisco a Portugal por ocasião da realização das Jornadas Mundiais da Juventude, sendo que, já no passado, outras leis de amnistia houve em função de uma visita papal.
           
Ora, há que olhar “o texto a partir do qual partiu o pensamento legislativo” que será a primeira indicação da intenção do legislador quando elaborou a Lei de Amnistia que ora nos ocupa.

Esse texto é a Proposta de Lei nº 97/XV/1ª.

E nessa Proposta de Lei nº 97/XV/1ª, o teor da norma sobre as excepções – que na proposta estavam integrados no artº 5º – era diferente da versão que resultou a final.

Vejamos.
           
Na Proposta de Lei, a al. b), dedicada aos crimes contra o património dizia o seguinte:
           
“b) No âmbito dos crimes contra o património:
i) Os condenados por crimes de abuso de confiança ou burla, nos termos dos
artigos 205.º, 217.º e 218.º do Código Penal, quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artigos 256.º a 258.º do Código Penal e por roubo em residências ou na via pública cometido com arma de fogo ou arma branca, previsto no artigo 210.º do Código Penal;
ii) Os condenados por crimes de extorsão, previsto no artigo 223.º do Código
Penal;”

Ou seja, o que se pretendia com a exclusão do crime de roubo era o roubo com particular violência e particular propensão para criar perigo para a vida e integridade física da vítima.

E a redacção que constava da al. g) na proposta de lei era a seguinte:

“g) Os condenados por crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, incluindo as crianças e os jovens, as mulheres grávidas e as pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes;”

Ou seja, na Proposta de Lei não se subsumiu o conceito de vítima no artº 67º-A do Código de Processo Penal.

E, daí, fazer total sentido o motivo pelo qual o legislador perde tanto tempo e tanta tinta a identificar cada crime, não abrangido pelo perdão, nas várias alíneas do nº 1 do artigo referente às excepções que, como referimos já, na Proposta de Lei constavam do artº 5º.

E, se olharmos a Exposição dos Motivos constante da Proposta de Lei nº 97/XV/1ª que viria a dar lugar, após aturada discussão e debate democráticos, à Lei nº 38-A/2023 facilmente apreendemos que:

“Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação.”

Ou seja, a ratio legis foi sempre a de excluir do âmbito do perdão e da amnistia a criminalidade muito grave e ainda a criminalidade contra vítimas especialmente vulneráveis vista do prisma da qualidade pessoal da vítima – crianças, jovens, mulheres grávidas, pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes – e não a partir do tipo legal ou moldura penal aplicável.

Só, assim, se entende que o legislador tenha destrinçado, em alíneas substancialmente diferentes, crimes objectivamente graves, portanto, assentes no respectivo tipo legal com molduras penais mais elevadas, dos comportamentos do condenado, onde já não se identifica um crime em particular mas a qualidade do condenado, qua tale ou seja, do autor do crime delineado em função da natureza pessoal da vítima.

Por outro lado, se o legislador quisesse assegurar uma exemplificação dos crimes que considerasse integráveis no conceito de vítima particularmente vulnerável, uma vez que todos os crimes contra as pessoas, contra o património, contra a liberdade sexual e contra a auto-determinação, quando praticadas nas pessoas identificadas na al. g) da Proposta de Lei, seriam sempre crimes contra vítimas particularmente vulneráveis, então o legislador teria utilizado o texto da al. g), que deslocaria para o nº 1 da respectiva norma, como princípio para, de seguida, enumerar, ainda que não taxativamente, todos os crimes que directamente pretendia abranger.

Note-se que o teor da al. g) da Proposta de Lei insere-se, na realidade, na definição que consta da al. b) do nº 1 do artº 67º-A do CPP que dá a seguinte definição de “vítima especialmente vulnerável”:
“a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;”

Contudo, ao passar para o texto final, não se teve o cuidado de remeter expressamente para a al. b) do nº 1 do artº 67º-A do CPP, pois, na realidade, era isso que se pretendia, e remeteu-se, em bloco, para todo o artº 67º-A do CPP, e é aqui que surge toda a problemática pois é no nº 3 do artº 67º-A que se equiparam as vítimas da criminalidade violenta (e especialmente violenta) a vítimas de especial vulnerabilidade.

Se olharmos o universo de vítimas que consta da al. g) da Proposta de Lei facilmente chegamos à conclusão que o que era pretendido era apenas a definição de vítima especialmente vulnerável nos termos da al. b) do nº 1 do artº 67º-A CPP e não, também, de acordo com o seu nº 3 que, como vimos, torna desnecessária a maioria das alíneas do nº 1 do artigo destinado às excepções (artº 5º na Proposta de Lei e artº 7º na Lei nº 38-A/2023), revelando um exercício inútil de repetição que, seguramente, o legislador não pretendeu.

E se dúvidas houvessem, basta olhar-se para o Parecer do MºPº [8] que, à semelhança de outras entidades, foi chamado a pronunciar-se acerca da Proposta de Lei nº 97/XV/1ª, no qual o mesmo expressa o seguinte acerca da redacção da al. g) do artº 5º da referida Proposta de Lei:

“Mantemos, também aqui, dificuldade em encontrar correspondência com o que deva entender-se por criança ou jovem, idoso ou pessoa doente, efetuando-se um apelo à utilização de normas processuais penais, nomeadamente, aos conceitos de vítima e de vítima especialmente vulnerável previstos no artigo 67º-A, do Código de Processo Penal e ainda de pessoa particularmente indefesa (artigo 152º, nº1, alínea d), do Código Penal).”

E, na sequência deste Parecer, a al. g) viu a sua redacção alterada nos termos propostos pelo MºPº.

Claramente o que se quis fazer, na versão final da al. g), com a remissão para o artº 67º-A do CPP era tão somente consagrar a definição legal de vítima e vítima especialmente vulnerável, e não remeter em bloco para tal norma, mormente, para o seu nº3, que por sua vez, obriga a que se remeta para as definições do artº 1º do mesmo CPP.

Ou seja, quando o legislador, na al. g) do nº 1 do artº 7º da Lei nº 38-A/2023, remete para o artº 67º-A do CPP fá-lo apenas e tão-só com o intuito de providenciar por uma definição legal (e consentânea com a ordem jurídico-penal no seu todo) de vítima especialmente vulnerável, em substituição da fórmula (menos rigorosa) constante da Proposta de Lei, e não a de fazer excluir, de forma indirecta, certos crimes do âmbito da aplicação da LAJMJ.

Estamos em crer que, a menos feliz versão que chegou ao estado de lei se deve, em grande parte, ao facto do processo legislativo ter-se desenvolvido muito rapidamente.

Como podemos ler no Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre o pedido de adoção de urgência na apreciação da iniciativa:[9]

“Por despacho do Sr. Presidente da Assembleia da República, datado de 21 de junho de 2023, foi remetido à Comissão  de  Assuntos  Constitucionais,  Direitos,  Liberdades  e  Garantias  o  requerimento  do  Governo, apresentado  na  mesma  data,  a  solicitar  que  a Proposta  de  Lei  n.º  97/XV/1.ª  (GOV)–Estabelece  perdão  de penas e amnistia de infrações praticadas por jovens, que deu entrada na Assembleia da República em 19 de junho de 2023, «seja adotada em processo de urgência ao abrigo do artigo 264.º do Regimento da Assembleia da República, considerando, neste contexto, a visita de Sua Santidade o Papa ao nosso País de 2 a 6 de agosto e a importância da referida iniciativa ser analisada pela Assembleia em tempo.»
O  pedido  de  declaração  de urgência  da  Proposta  de  Lei  n.º  96/XV/1.ª  (GOV)  funda-se  no  facto  de  esta iniciativa legislativa aprovar um regime de perdão de penas e de amnistia de infrações praticadas por jovens por ocasião  da  visita  a  Portugal,  no  âmbito  das  Jornadas  Mundiais  da  Juventude,  de  Sua  Santidade  o  Papa Francisco  e  a  importância  desta  iniciativa  ser  analisada  pela  Assembleia  da  República  a  tempo  do  referido evento. É precisamente por ser urgente, devido aos motivos invocados pelo Governo, que esta iniciativa legislativa, antes mesmo de ter sido admitida, já se encontra agendada para o Plenário de dia 4 de julho de 2023 –sob condição de esta Comissão se pronunciar a favor da urgência, conforme deliberado na Conferência de Líderes de dia 21 de junho de 2023, tendo-lhe sido atribuída, em termos de grelha de tempos, a Grelha D.Importa referir que já foram, anteriormente, por duas vezes, aprovadas pela Assembleia da República leis de amnistia  e  perdão  de  penas  por  ocasião  da  visita  a  Portugal  do  Sumo  Pontífice  e  os  respetivos  processos legislativos foram sempre bastante céleres e expeditos, mediando menos de um mês entre a data da respetiva entrada na Assembleia da República e a da votação final global por este órgão de soberania.”

Ou seja, tempus urgere, isto é, por a visita do Papa estar prevista para Agosto de 2023 e, por o Governo pretender coincidir a Lei de Amnistia com essa visita e com o início das Jornadas Mundiais da Juventude, o processo de elaboração de Proposta de Lei, a sua aprovação, na generalidade e na especialidade, obrigou a uma aceleração que talvez, no final, não permitiu uma lei absolutamente isenta de alguma incongruência do ponto de vista da técnica legislativa.

É importante compreender ainda que, no processo legislativo empreendido no caso em apreço, houve várias propostas de alterações pelos vários partidos, tendo também havido pareceres de certas entidades, tal como referimos já, pelo MºPº, bem como pelo CSM que, no ponto 3.5.3.1. do seu Parecer à proposta de Lei 97/XV – documento 2023/GAVPM de 30-06-2023[10] – afirmou o seguinte:

“Em relação aos crimes contra o património [art.º 5, n.º 1, al. b)], para além de se registar o número restrito de crimes excecionados neste âmbito, afigura-se que deveriam constar todos os condenados por crimes de roubo previsto e punido pelo artigo 210º do Código Penal e roubo qualificado, face à enorme expressão e gravidade deste tipo de crimes, consabidamente causadores de grande alarme social.”

Note-se, contudo, que na versão final, o nº 1 do artº 210º do Código Penal (roubo simples) foi cirurgicamente retirado, já após o alerta efectuado pelo CSM, pelo que, não foi por acaso, nem foi por distracção que na al. b)-i) do nº 1 do artº 7º da Lei nº 38-A/2023, o legislador não incluiu o roubo simples.

E se não o fez, quando podia tê-lo feito e no sítio onde, aliás, até seria mais lógico de um ponto de vista da sistemática da norma fazê-lo, em nosso modesto entendimento, não faz sentido afirmar-se que, afinal, o legislador até queria abranger o roubo simples na al. g), cuja interpretação obriga a que se saia do diploma legal onde se insere e se busca a leitura de dois artigos distintos do Código de Processo Penal.

Mas, se dúvidas ainda subsistissem, haveria, então, que perceber o percurso que a Proposta de Lei foi seguindo com as várias propostas de alteração apresentadas pelos vários grupos parlamentares até chegar à sua versão final de lei.

Dessas propostas, a mais importante para o que se discute nos autos é a do Grupo Parlamentar do PSD que, discordando da redacção original da proposta de lei do Governo – relembre-se dizia: (…) por roubo em residências ou na via pública cometido com arma de fogo ou arma branca, previsto no artigo 210.º do Código Penal – propôs o desaparecimento do referido segmento, substituído por uma nova alínea, cristalina e concreta, a excluir da aplicação do perdão «os condenados por crimes de roubo, previsto no 210º do Código Penal» [alínea ii)].[11]

E, é na sequência desta proposta de alteração por parte do Grupo Parlamentar do PSD, que o Governo viria a alterar a redacção para: «(…) por roubo, previsto no nº 2 do artigo 210º do Código Penal», que foi a versão que vingou, a final, na lei que veio a ser aprovada.

Ou seja, se o legislador quisesse mesmo incluir o nº 1 do artº 210º do Código Penal no cardápio dos crimes não abrangidos pelo perdão, teria a oportunidade ideal para o fazer, pois bastaria adoptar a proposta do Grupo Parlamentar do PSD, em vez de criar uma interpretação torcida e indirecta que obriga o intérprete a passar pela al. g) para, depois, procurar no Código de Processo Penal o artº 67º-A para, de seguida, consultar o artº 1º do mesmo Código de Processo Penal para determinar, afinal, que o roubo simples também está excluído do âmbito da aplicação da Lei da Amnistia.

Salvo o devido respeito, não faz qualquer sentido esta conclusão, atendendo à forma como a Lei nº 38-A/2023 foi aprovada, pois podendo o legislador ter simplesmente incluído uma nova sub-alínea na alínea b), a determinar a exclusão do crime de roubo previsto no artº 210º do Código Penal, tout court, conforme proposto do Grupo Parlamentar do PSD, em face desta proposta claramente opta por excluir do cardápio apenas o nº 2 do artº 210º do Código Penal (roubo agravado).

Por outro lado, da Exposição dos Motivos subjacentes à Lei de Amnistia claro se torna ver que a ratio ou a teleologia da lei era apenas a de afastar do seu âmbito de aplicação a criminalidade verdadeiramente grave.

É na motivação da Proposta de Lei e na análise do concreto processo legislativo seguido que se apreende que o legislador efectivamente quis excluir das excepções previstas no artº 7º nº 1 da Lei nº 38-A/2023 o roubo simples, previsto no artº 210º nº 1 do Código Penal, o qual não pretendeu fosse cair “por acaso” na al. g).

Ora, já existe, pelo menos, mais uma decisão no sentido desta nossa, proferida muito recentemente pela Relação de Lisboa em 06-12-2023, curiosamente, na sequência de recurso interposto pelo próprio MºPº que defendia a tese que ora propugnamos, isto é, de que o crime de roubo simples não está excluído do âmbito de aplicação da LAJMJ.

            Tal acórdão, consultável em https://jurisprudencia.pt/acordao/219913/ conclui o seguinte:
“Em face da redacção dada ao artº 7º, nº 1, al. b) e nº 1, al. g) da Lei de Amnistia nº 38-A/23 de 02.08, visto o processo de discussão política que esteve na base da referida opção legislativa, resulta que o legislador quis que os condenados por crime de roubo [simples], previsto e punido nos termos do disposto pelo nº 1 do artº 210º do Cód. Penal, beneficiassem da aplicação do perdão de pena ali previsto.”
  
Por fim, afigura-se-nos útil transcrever parte das conclusões com que o MºPº, recorrente no recurso da Relação de Lisboa acabado de citar, rematou o seu recurso, por as mesmas conterem de forma resumida, concisa e clara uma boa parte dos argumentos que, juntamente com a análise que ora efectuámos da ratio legis e das condições e percurso em que a LAJMJ foi aprovada, levam, forçosamente, à conclusão de que a interpretação efectuada pelo Tribunal a quo, in casu, é perfunctório e não consentâneo com o espírito subjacente ao respectivo diploma legal:

“2.ª Elemento interpretativo literal: do art. 7.º, n.º 1, al. b), i, da Lei n.º 38-A/2023, de 2/Ag., resulta que o roubo “simples” não foi expressamente excluído do perdão, ao contrário do roubo agravado.
3.ª Elemento interpretativo lógico: o art. 7.º, n.º 1, al. b), i., expressamente excluiu o roubo agravado, previsto pelo art. 210.º, n.º 2, do C.P., do âmbito do perdão; se o legislador excluiu o mais, o roubo agravado, não excluiu o menos, o roubo “simples”.
4.ª Elemento interpretativo sistemático: uma aplicação literal da al. g) esvaziará de sentido o n.º 1, al. b), em violação do princípio de perfeição legal do texto normativo, impondo-se uma rejeição do sentido literal estrito e exigindo-se uma harmonização interna da norma interpretada.
5.ª O art. 7.º, n.º 1, al. b), insere-se numa lista de exclusões formais, quais sejam determinados tipos objectivos de ilícito, considerados geradores de maior danosidade ou alarme social, enquanto a al. g), verdadeira “válvula de escape”, remete para conceitos exclusivamente substanciais, como sejam a especial vulnerabilidade de certos homens e mulheres e as suas circunstâncias.
6.ª De forma idêntica, já antes o legislador havia “construído” o complexo “edifício” do art. 67.º-A do C.P.P., ainda que com ordem inversa: no n.º 1, al. b), apresentou um conceito material de vítima especialmente vulnerável; ao invés, o n.º 3 fez uma remissão formal para os tipos de crime contidos no art. 1.º
7.ª Nas duas normas, a arquitectura legiferante é idêntica, devendo ser idêntica a interpretação, ou seja, com recurso aos critérios existenciais do n.º1 do art. 67.º-A: no art. 7.º, n.º 1, al. g), a vulnerabilidade que excluiu o perdão lançará raízes sobre uma “especial fragilidade”, um autêntico desequilíbrio, um radical risco existencial.
8.ª Só a interpretação teleológica, firmada numa prévia interpretação sistemática, saberá devolver ao texto normativo o seu verbo radical.”

Afigura-se-nos, assim, que a al. g), tal como referiu o MºPº acabado de citar, serve de válvula de escape permitindo a negação do perdão (e amnistia) para crimes que, não estando previstos especificamente nas alíneas anteriores do nº 1 do artº 7º da LAJMJ, possam ainda ser considerados fora do âmbito de aplicação da referida Lei de Amnistia desde que esteja em causa uma vítima especialmente vulnerável.

Contudo, essa vulnerabilidade tem de resultar da definição dada pela al. b) do nº 1 do artº 67º-A do CPP, não sendo uma operação jurídica automática resultante da aplicação do nº 3 do mesmo artº 67º-A CPP que, como vimos, não foi intenção do legislador.

Ora, no caso em apreço, se olharmos os concretos factos que foram dados por provados, apesar de estar em causa um crime de roubo, a verdade é que dos mesmos não se retira, em nosso modesto entendimento, qualquer juízo que permita concluir-se pela especial vulnerabilidade da vítima.

Relembremos a definição dada pelo artº 67º-A nº1 al. b) do CPP para vítima especialmente vulnerável:
“a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social”. – itálico nosso

Vejamos, agora, os factos concretamente dados por provados no acórdão de 28-11-2019 (refª ...37) em relação ao arguido, aqui recorrente:

“A – No 08 de Novembro de 2016, cerca das 00h55, os arguidos BB e AA, em comunhão de esforços e vontades formularam o propósito criminoso de se apoderam de bens e valores que encontrassem.
B - Em execução de tal desígnio deslocaram-se ao hotel denominado “EMP01...”, sito na Avenida ..., ..., onde entraram.
C - De imediato, fazendo uso de cachecóis a tapar a face e com o capuz do casaco a cabeça, dirigiram-se ao balcão de atendimento onde se encontrava CC, a quem o arguido AA, em tom intimidatório, exigiu a entrega de €20,00 (vinte euros) pois encontrava-se a ressacar.
D - Porque CC lhes respondeu negativamente e se aproximaram dali alguns clientes os arguidos afastaram-se alguns metros.
E - Volvidos alguns minutos, vendo que os clientes já tinham subido para os quartos o arguido BB dirigiu-se novamente para a parte lateral do balcão, mantendo a mão no bolso, em gesto intimidatório dirigido a CC e, simultaneamente, o arguido AA abriu a caixa registadora, retirou do seu interior a quantia de €270,00 (duzentos e setenta euros e, abandonaram de imediato aquele local, apropriando-se da referida quantia.
F - Os arguidos actuaram em comunhão de esforços e vontades de acordo com um plano previamente elaborado, de forma livre, deliberada e conscientemente com o propósito concretizado de coarctar a liberdade de acção do ofendido e de se apropriar do valor supra referido que, sabiam não lhes pertencer, actuando contra a vontade daquele, resultado que representaram, quiseram e obtiveram.
G - Não se inibiram de utilizar a ameaça descrita para concretizar os seus intentos, que sabiam ser apta a constranger o ofendido.
H - Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”
 
Como se retira, com facilidade, do menancial fáctico constante do acórdão que condenou o aqui arguido, a vítima, CC, num primeiro momento não se deixou sequer amedrontar e, apesar do tom intimidatório utilizado pelo arguido, aqui recorrente, recusou entregar qualquer dinheiro.

Num segundo momento, e apesar o co-arguido ter dado a entender que tinha uma arma no bolso, o aqui recorrente retirou da caixa registadora o dinheiro, sem que alguma acção física ou verbal tivesse sido lançada contra a vítima.

Sendo ainda de notar que na referida decisão condenatória não foi arbitrada qualquer indemnização à vítima nos termos do artº 82º-A do Código de Processo Penal.
Não se pode, assim, em boa consciência afirmar que a vítima do roubo pelo qual o arguido fora condenado é uma vítima especialmente vulnerável nos termos do artº 67º nº 1 al. b) do CPP.

E é precisamente por se constatar, na prática, que muitos dos crimes que poderiam integrar a criminalidade violenta, simplesmente devido à moldura penal, e que, por força do nº 3 do artº 67º-A CPP, levariam a uma atribuição automática do estatuto de vítima especialmente vulnerável, na realidade não produzem este tipo de vítima, cujas características carecem de cuidado e tutela especiais.
 
Assim, no caso em apreço, não só o crime pelo qual o arguido/recorrente fora condenado não está especificamente contemplado no artº 7º nº 1 al. b), como os seus concretos contornos não permitem a sua subsunção na al. g) do mesmo preceito legal.

Concluindo-se que o despacho recorrido violou o disposto no artº 9º do Código Civil, ao limitar-se a uma interpretação meramente literal que, contudo, em si mesma cria um paradoxo e, portanto, nem como elemento literal se mostra seguro, dúvidas não nos restam de que o presente recurso tem de proceder e o despacho recorrido tem de ser revogado.

Constatando-se que o arguido, nascido em .../.../1986, foi condenado, como co-autor material de um crime de roubo p. e p. pelo artº 210º nº 1 do Código Penal, praticado em .../.../2016, numa pena (em sede de recurso) de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses, que não foi condenado no pagamento de qualquer indemnização civil, e que ao tempo da prática dos factos tinha ainda 30 anos, ao abrigo do disposto nos artºs 2º e 3º nº 1 da Lei nº 38-A/2023 tem de lhe ser perdoado um ano de prisão, sujeito, nos termos do artº 8º nº 1, à condição resolutiva de o arguido não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da LAJMJ, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.

Considerando, ainda, que nos termos da liquidação da pena efectuada pelo respectivo MºPº, em 29-03-2022 (refª ...40), homologado por despacho judicial de 31-03-2022 (refª ...52), foi determinado o seguinte:

“Por decisão transitada em julgado, o arguido AA foi condenado na pena de 2 anos e 2 meses (cfr. fls. 610 a 660).
O arguido foi detido nos presente para cumprimento de pena em 15/2/2022 (cfr. 512 a 516).
O arguido não sofreu outros períodos de privação à ordem destes autos e de outro que importe descontar.
Face ao exposto, e nos termos do artigo 477.º, n.º 2 e 479.º do Cód. Proc. Penal, há que proceder à contagem da pena única que aqui lhe foi aplicada, o que se faz nos seguintes termos:
Termo Inicial----------- 15 de fevereiro de 2022
1/2 da pena-------------15 de março de 2023,
2/3 da pena-------------25 de julho de 2023
Fim da pena------------15 de abril de 2024.” – sublinhado nosso

Consequentemente, com a aplicação do perdão ora efectuado, ainda que condicionado ao termo resolutivo previsto no artº 8º nº 1 da Lei nº 38-A/2023, há que determinar a imediata libertação do arguido.

DECISÃO:

Em face do exposto, decidem os Juízes Desembargadores da Secção Penal da Relação de Guimarães em julgar PROCEDENTE o recurso interposto pelo arguido, e, em consequência, revogando a decisão recorrida determinam o seguinte:

A) Declarar o arguido AA abrangido pela Lei nº 38-A/2023, e, assim, nos termos do disposto nos artºs 2º nº 1, 3º nº 1 e 8º nº 1 desta mesma Lei, declaram perdoado um ano de prisão à pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses aplicada ao arguido sob a seguinte condição resolutiva:
i) não praticar infração dolosa até 01-09-2024, inclusive, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da parte da pena perdoada.
B) Consequentemente, determinam a imediata restituição do arguido à sua liberdade uma vez que o mesmo está em cumprimento da pena de prisão desde 15-02-2022.
C) Comunique ao respectivo Juízo Criminal da 1ª instância, bem como ao TEP, ao EP, e à DGRSP.
Sem Custas.                         
Guimarães, 23 de Janeiro de 2024.

Florbela Sebastião e Silva (Relatora)
Isilda Maria Correia de Pinho – Vota Vencida (1ª Adjunta)
Ana Teixeira (2ª Adjunta)

Declaração de voto:
Voto de vencida a decisão tomada no presente acórdão pelas seguintes razões:
Sendo incontestável que o crime de roubo pelo qual o arguido/recorrente se encontra aqui condenado é considerado pelo legislador como 'Criminalidade especialmente violenta' [artigo 1.º, alínea l) do Código de Processo Penal] e decorrendo do n.º 3, do artigo 67.º-A, do Código de Processo Penal que as vítimas de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.,  não descortino qualquer fundamento legal para, caso a caso, perante as circunstâncias concretas, se poder/dever averiguar se a vítima do roubo simples é ou não uma vítima especialmente vulnerável, à luz da alínea b), do n.º 1, do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, pois o legislador já disse que assim o é e quis que assim o fosse, ao introduzir no artigo 67.º-A do Código de Processo Penal o referido n.º 3.
Concluo, portanto, que a vítima da conduta do arguido/recorrente não pode deixar de ser considerada como uma vítima especialmente vulnerável, sob pena de se violar o preceituado no n.º 3, do artigo 67.ºA do Código de Processo Penal, aditado ao Código de Processo Penal pela Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro, já em vigor, portanto, na data da prática dos factos. Consequentemente, integrando o caso dos autos todos os pressupostos legais a que se reporta a exceção da aplicação do perdão contida no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto, não restava ao tribunal a quo qualquer possibilidade de decisão diversa daquela que tomou.
É verdade que o legislador, na subalínea i.), da alínea b), do n.º1 do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto, reportada aos crimes contra o património, exceciona expressamente o crime de roubo previsto e punido pelo n.º2 do artigo 210.º do Código Penal, nada dizendo quanto ao seu n.º1, porém não é menos verdade que na alínea g) do n.º1 do mesmo preceito legal, agora sob o prisma da vítima, exceciona os condenados por crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º -A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto -Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, e, como vimos, a situação dos autos integra tal exceção, não havendo qualquer fundamento legal para não a aplicar, tanto mais que, como se refere no acórdão, sendo as leis da amnistia excecionais a sua interpretação não está sujeita a exercícios que visem restringir o respetivo significado, não se podendo, portanto, fazer uma interpretação restritiva da alínea g) do n.º 1, do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto, excluindo desta o crime de roubo simples, quando o legislador não o referiu/excluiu.
Se interpretarmos a lei presumindo que o legislador consagrou as soluções mais acertadas [como nos indica a norma de interpretação da lei, consagrada no n.º3 do artigo 9.º do Código Civil], e que a intenção do legislador foi a de afastar do seu âmbito de aplicação a criminalidade verdadeiramente grave, não se compreenderia que tenha pretendido excluir do perdão os crimes menos graves, como o são os de coação e de burla simples [este quando cometido através de falsificação de documentos], previstos e punidos, respetivamente, pelos artigos 154.º e 217.º do Código Penal [como o fez constar, através da respetiva subalínea iv), da alínea a) e subalínea i.), da alínea b), ambas do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto], com penas de prisão que não ultrapassam os três anos ou apenas com penas de multa e deixasse de fora o crime de roubo simples, permitindo o perdão a um condenado que comete um crime que ele mesmo [legislador] colocou num patamar elevado de gravidade, catalogando-o como “criminalidade especialmente violenta”, nos termos do disposto no artigo 1.º, alínea l), do Código de Processo Penal, ou seja, criminalidade muito grave, para o qual previu uma moldura penal bem mais grave do que aquelas [note-se que nem sequer admite a aplicação da pena de multa em alternativa à pena de prisão e para esta previu uma moldura penal abstrata efetivamente mais gravosa, como o é a de 1 a 8 anos de prisão].
Na verdade, não cremos que tenha sido essa a intenção do legislador.
E para chegar a tal entendimento, não descurei os trabalhos parlamentares prévios à aprovação da referida Lei da Amnistia e do Perdão, de cuja análise se constata que não foi alterada apenas a citada subalínea i), da alínea b), do artigo 7.º mas também a sua alínea g) [quanto a esta alínea, a proposta inicial excluía do perdão “Os condenados por crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, incluindo as crianças e os jovens, as mulheres grávidas e as pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes”, mas a redação final que fez vencimento (e que resultou também de uma proposta de alteração apresentada pelo mesmo Grupo Parlamentar do PS) exclui do perdão e da amnistia “g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal”.] e que ambas as propostas de alteração que vieram a ser acolhidas na Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto resultaram de alterações provindas do mesmo Grupo Parlamentar, o que me leva a concluir que a menção expressa na alínea g) a “vítimas especialmente vulneráveis” não terá deixado de ser devidamente ponderada, designadamente no seu confronto com o constante da al. b) do mesmo artigo 7º, e fez-se constar da lei precisamente o que se quis fazer constar, ou seja, a sua remissão para a globalidade do artigo 67.-A do Código de Processo Penal e não apenas para o seu n.º 1, alínea b), pois o legislador não ressalvou um particular número ou alínea deste artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, concretamente, o seu n.º 3.
É este o entendimento que sufrago e igualmente expresso na presente data, no Acórdão deste TRG, do qual sou relatora, proferido no âmbito do Processo n.º 5310/19.0JAPRT-AI.G1. [no mesmo sentido, Pedro Brito, in Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, na Revista JULGAR Online, agosto de 2023, pág. 30., acessível em https://julgar.pt/notas-praticas-referentes-a-lei-n-o-38-a20023-de-2-de-agosto-que-estabelece-um-perdao-de-penas-e-uma-amnistia-de-infracoes-por-ocasiao-da-realizacao-em-portugal-da-jornada-mundial-da-juventude/ e Ac.s do TRL, datados de 14/12/2023, Proc. n.º 27/22.1PJLRS-B.L1-5, rel. Sandra Ferreira e de 28/11/2023, Proc. n.º 7102/18.5P8LSB-A.L1-5, rel. Luísa Alvoeiro, ambos consultáveis em www.dgsi.pt. ].
Concluo, portanto, que, tendo em conta que o crime de roubo simples, previsto e punível pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual o arguido/recorrente foi condenado, ofendeu uma vítima qualificada expressamente pela lei como “vítima especialmente vulnerável”, verifica-se a exceção constante da al. g) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 38º-A/2023, de 2 de agosto, pelo que não pode o arguido/recorrente beneficiar do propugnado perdão, relativamente à pena em que aqui foi condenado.
Julgaria, assim, improcedente o presente recurso, mantendo a decisão recorrida.

Juíza Desembargadora [1.ª adjunta]
Isilda Pinho


[1] Em relação aos crimes de burla – artºs 217º e 218º do CP – o legislador impôs um outro requisito: “quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artigos 256.º a 258.º do Código Penal.”
[2] Publicado no DR 1ª Série, nº 23, localizável em:
https://files.dre.pt/1s/2023/02/02300/0002200041.pdf
[3] GONÇALVES, Maia, As medidas de graça no Código Penal e no projecto de revisão, “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Aequitas/Editorial Notícias, Ano 4, Fasc. 1, janeiro -março 1994, p. 7.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de dezembro de 1977, in “Boletim do Ministério da Justiça”, n.º 272, citado no Assento n.º 2/2001, de 25 de outubro de 2001, proferido no âmbito do processo n.º 3209/00 -3.
[5] Assento n.º 2/2001, de 25 de outubro de 2001, proferido no âmbito do processo n.º 3209/00 -3.
[6] AGUILAR, Francisco, Amnistia e Constituição, Coimbra, Almedina, 2004, p. 119, n. 557
[7] FERRARA, Francesco, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, Arménio Amado, 3.ª edição, 1978, p. 147.
[8] Consultável em:
https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c63793959566b786c5a793944543030764d554e425130524d5279394562324e31625756756447397a5357357059326c6864476c3259554e7662576c7a633246764c32566c596d59774e5746694c544d3559324d744e4755774d6930355a4441794c54466d4e6a68694e47497a597a466b596935775a47593d&fich=eebf05ab-39cc-4e02-9d02-1f68b4b3c1db.pdf&Inline=true
[9] Consultável em:
https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/s2a/15/01/248/2023-06-23/62?pgs=62-63&org=PLC
[10] Consultável em:
https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c63793959566b786c5a793944543030764d554e425130524d5279394562324e31625756756447397a5357357059326c6864476c3259554e7662576c7a633246764c324935596d4a68597a426d4c546b774d6a63744e444135595330344e4755334c545934595755344e446c6c4e6a5930595335775a47593d&fich=b9bbac0f-9027-409a-84e7-68ae849e664a.pdf&Inline=true
[11] Consultável em:
www.parlamento.pt