Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5717/17.8T8VNF.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: HERANÇA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
DEVER DE ASSISTÊNCIA
AUXÍLIO AOS PAIS
OBRIGAÇÃO NATURAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pelo relator):

1- O dever de respeito, auxílio e assistência a que pais e filhos se encontram mutuamente sujeitos (art. 1874º, n.º 1 do CC), embora assentem em preceitos éticos e morais que o legislador reconheceu, aceitou e considerou aquando da regulamentação jurídica das relações familiares, configuram verdadeiros deveres jurídicos, deles emergindo verdadeiros direitos subjetivos dos pais em relação aos filhos e vice-versa.

2- O dever de auxílio importa a obrigação dos filhos de socorrerem e auxiliarem os pais em situações de crise, urgentes e anómalas, como é o caso de doença ou de vulnerabilidade decorrente da velhice e implica para os filhos um conjunto de obrigações, de conteúdo complexo, de assistência moral ou espiritual, de apoio físico e material, consoante as efetivas necessidades dos pais, da essencialidade/imprescindibilidade dos concretos serviços que os pais se encontrem carenciados para ultrapassar essa situação de dificuldade com que se vejam deparados e das efetivas possibilidades dos filhos em lhes prestar esses serviços essenciais.

3- O dever de auxílio, assim como o de assistência, não têm natureza incondicional, posto que o cumprimento desses deveres jurídicos depende das efetivas necessidades dos pais (ou dos filhos) de receberem esse auxílio e/ou assistência e das efetivas possibilidades do obrigado para os cumprir.

4- O dever de auxílio dos filhos em relação aos pais não obriga a que os filhos deixem de exercer a sua atividade profissional para passarem, em exclusivo, a dedicar-se a cuidar dos pais, face à idade avançada e/ou à situação de doença destes.

5- As obrigações naturais fundam-se num mero dever de ordem moral ou social, e não sendo o seu cumprimento judicialmente exigível, devem corresponder a um dever de justiça.

6- A filha que residindo no mesmo edifício em que habitam os pais, que acede ao pedido dos últimos no sentido de deixar a sua atividade profissional de empregada de balcão para passar a dedicar-se, exclusivamente, a cuidar dos pais face à idade avançada e aos problemas de saúde destes, age no cumprimento de uma obrigação natural e, como tal, não lhe assiste o direito a reclamar da herança aberta por óbito de seus pais o montante das retribuições que deixou de auferir durante o período de tempo em que deixou de exercer a sua atividade profissional para passar a cuidar exclusivamente dos pais, no cumprimento daquele pedido.
Decisão Texto Integral:
RELATÓRIO.

Joaquina, residente na Rua (...), Vila Nova de Famalicão, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Maria, residente na Rua (...), Vila Nova de Famalicão, pedindo que se reconheça que aquela tem sobre a herança de seus falecidos pais um direito de crédito no montante de 31.245,00 euros e se condene a Ré a reconhecer que lhe assiste o direito a reclamar da herança dos pais a referida quantia.

Para tanto alega, em síntese, que aquela e a Ré são as únicas herdeiras de M. J. e de Fernando, pais de ambas, falecidos, respetivamente, em 13/10/2010 e 09/07/2013, no estado de casados e em primeiras núpcias de ambos e no regime da comunhão geral de bens;

Aqueles falecidos pais deixaram bens móveis e imóveis, encontrando-se a correr termos processo de inventário sob o n.º 2400/13.7TJVNF, da Instância Local Cível de Vila Nova de Famalicão, Juiz 1;

Nesses autos de inventário, a Autora, que neles exerce a função de cabeça-de-casal, relacionou como passivo diversos valores de que se considera credora sobre a herança, o que não foi aceite pela Ré, tendo as partes sido remetidas para os meios comuns;

Desde 2009, por solicitação expressa de seus falecidos pais, a Autora deixou de trabalhar e/ou exercer qualquer atividade remunerada, para passar a cuidar exclusivamente daqueles;

Na altura, a Autora exercia as funções de empregada de balcão e auferia o salário mínimo nacional;

Desde o ano de 2009 e até à morte de seus pais, a Autora cuidou daqueles, sem que recebesse qualquer remuneração e deixando de auferir 31.245,00 euros que auferiria caso tivesse continuado a exercer a sua atividade profissional de empregada de balcão, sendo da mais elementar justiça que seja compensada pela herança por tal prejuízo;

A Ré recusa-se a reconhecer esse direito de crédito da Autora sobre a herança, valor esse que é muito inferior ao que os seus falecidos pais teriam de pagar se tivessem sido internados ou colocados num lar ou tivessem contratado pessoal especializado para deles cuidar;
Caso o valor em causa não seja reconhecido, tal facto traduz-se num inaceitável enriquecimento da herança à custa do empobrecimento da Autora e esse enriquecimento acaba por se traduzir num inaceitável enriquecimento da co-herdeira Ré à custa daquela.

A Ré contestou impugnando parte da factualidade alegada pela Autora, sustentando que esta, desde que casou, deixou de exercer atividade remunerada, passando a dedicar-se ao papel de esposa e mãe, além de que os falecidos pais de ambas sempre foram pessoas autónomas, pelo que se em 2009 e, bem assim nos anos anteriores e posteriores, aquela deixou de trabalhar fora da sua residência, foi porque quis;

Mais alegou que a Autora não foi contratada para prestar serviços de empregada doméstica aos pais, sequer com eles celebrou qualquer contrato de trabalho ou de prestação de serviços e que nenhum filho tem o direito de reclamar o pagamento do tempo que livremente despendeu com os seus pais;
Acresce que o falecido pai de ambas fez testamento a favor da Autora, no qual lhe legou o usufruto da herança e o remanescente da quota disponível para a compensar de qualquer cuidado que aquela tivesse prestado.
Conclui pedindo que a ação seja julgada improcedente e que a mesma seja absolvida do pedido.

Deduziu reconvenção, pedindo a condenação da Autora-reconvinda a:

a) trazer ao acervo hereditário a quantia de 55.200,00 euros, a título de rendas pela utilização do imóvel da herança;
b) trazer ao acervo hereditário todos os valores de reforma de seus pais, que recebeu desde 2009 até à data do falecimento daqueles, cujo montante se apurará logo que as entidades pagadoras venham informar os autos dos respetivos valores;
c) trazer ao acervo hereditário todos os valores levantados pela Autora das contas bancárias de seus pais; e
d) trazer ao acervo hereditário o veículo automóvel propriedade dos pais de ambas;

Para tanto alega, em síntese, que os seus pais eram donos e proprietários de um prédio urbano, em cujo rés-do-chão a Autora residiu desde que casou, em 13/05/1984;

O valor de arrendamento daquele espaço até à data do falecimento da mãe de ambas, ascende a pelo menos 100,00 euros mensais, e a partir de tal data e até à partilha ascende à quantia de pelo menos 300,00 euros mensais, num total de 30.000,00 euros até à data do óbito da mãe de ambas e de 25.200,00 euros, até ao presente momento;
Os falecidos pais de ambas recebiam várias reformas de França e de Portugal e era a Autora que as recebia e geria;
Foi com o valor dessas reformas que a Autora criou o filho e fez face a todas as despesas do seu agregado familiar, pese embora essas verbas não lhe pertencerem, mas sim aos pais, pelo que aquela terá de restituir à herança de seu pai tudo o que este recebeu mas não gastou;

Acresce que a Autora não trouxe à partilha o veículo automóvel de seus pais, com a matrícula QB, veículo esse que veio a ser registado, posteriormente à morte daqueles, em nome de um familiar da Autora, com o intuito de o furtar à partilha.

A Autora replicou impugnando a factualidade aduzida pela Ré em sede de reconvenção, concluindo pela improcedência da mesma.

Por despacho proferido em 11/12/2017, admitiu-se o pedido reconvencional, fixou-se o valor da ação em 86.445,00 euros e declarou-se o Juízo Local Cível incompetente, em função do valor, para o ulterior conhecimento dos autos, declarando-se competente para o efeito o Juízo Central Cível de Guimarães, para onde, após trânsito, ordenou-se a remessa dos autos e para onde os mesmos transitaram.

Realizou-se audiência prévia, onde uma vez frustrada a conciliação das partes, concedeu-se a palavra ao ilustre mandatário da Autora para se pronunciar, querendo, quanto à eventual manifesta improcedência do pedido, dado tratar-se de uma obrigação natural.
Concedeu-se ainda a palavra às partes para se pronunciarem, querendo, quanto à eventual cumulação ilegal de pedidos reconvencionais.

Proferiu-se despacho em que se julgou procedente a exceção da cumulação ilegal de pedidos reconvencionais e absolveu-se a Autora-reconvinda da instância quanto a todos os pedidos reconvencionais.
Proferiu-se saneador-sentença em que se conheceu do pedido, julgando-o manifestamente improcedente e, em consequência, absolveu-se a Ré do mesmo, constando a parte dispositiva desse saneador-sentença do seguinte:

Por tudo o exposto, julgo a pretensão da Autora manifestamente improcedente e, em consequência, absolvo a Ré do pedido.
Custas, nesta parte, a cargo da Autora (sem prejuízo do apoio judiciário)”.

Inconformada com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso de apelação, apresentando as seguintes conclusões:

- AO CONTRÁRIO DO QUE O TRIBUNAL A QUO ENTENDE, A QUESTÃO EM CAUSA EXIGIA A CONTINUAÇÃO DOS AUTOS COM A CONSEQUENTE INSTRUÇÃO E DISCUSSÃO DA CAUSA
- NÃO SÓ NÃO É MANIFESTAMENTE INVIÁVEL, COMO A PRETENSÃO DA RECORRENTE É MATERIALMENTE JUSTA
- É DE ÍNDOLE SOCIAL E CADA VEZ MAIS A ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA SE VAI DEFRONTAR COM O TEMA
- EXISTEM CASOS ANÁLOGOS NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA QUE COM O FIM VISADO PODEM E PODIAM SER APLICADOS POR EM NADA FERIREM O SISTEMA, NOMEADAMENTE O ART 1676 DO CC.
- A QUESTÃO VERTENTE, NÃO PODE SER ANALISADA Á LUZ DO DIREITO NATURAL OU MORAL;
- NEM MUITO MENOS Á LUZ DAS RELAÇÕES ENTRE PAIS E FILHOS;
- É EXCLUSIVAMENTE DO FORO DAS HERANÇAS, DIVIDAS DESTAS E RELAÇÕES ENTRE HERDEIROS
- CONSEQUENTEMENTE NÃO É LEGITIMO TRAZER Á COLAÇÃO O ART 1874º DO CC
- VERIFICAM-SE E DE MODO CLARO, TODOS OS REQUISITOS DO ENRIQUECIMENTO SEM JUSTA CAUSA
- PELO QUE A NÃO APLICABILIDADE DE TAL INSTITUTO IMPORTA A VIOLAÇÃO DO ART 479 DO CC
DEVE POIS A SENTENÇA RECORRIDA SER REVOGADA E EM CONSEQUÊNCIA PROFERIR-SE ACÓRDÃO A ORDENAR O PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS COM A CONSEQUENTE INSTRUÇÃO E DISCUSSÃO DA CAUSA.

A apelada contra-alegou pugnando pela improcedência da presente apelação com os seguintes fundamentos:

Vem o presente recurso interposto pela recorrida pelo facto de se ter insurgido contra a decisão de mérito proferida antes da realização da audiência de discussão e julgamento.

Parecendo assim que pretende o prosseguimento dos autos para que seja tomada uma decisão a favor do seu pedido.
Porém, para o efeito, não alega quaisquer factos que possam colocar em crise a douta decisão proferida, nem invoca quaisquer outras decisões judiciais ou jurisprudência que se tenham pronunciado no sentido da sua pretensão.

Mais parecendo que o que a recorrente pretende é apenas e só, algo que sabe não ser viável, mas com a qual não se conforma.
Pelo que, por alguma razão que tivesse, que não tem, não podia o douto Tribunal “ad quem” acolher a sua pretensão, por falta de invocação de factos que justifiquem a pretensão.
Por outro lado, a douta sentença ora em crise deixou claros todos os factos que levaram à tomada de decisão, nada havendo a apontar-se.
Pelo que, deve desde logo manter-se a douta decisão proferida.
Por tudo o exposto, se depreende que bem andou o Tribunal ao decidir como decidiu e, como tal, nenhum reparo, no que à matéria de direito diz respeito, há a fazer.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. muito doutamente suprirão, deve o presente recurso ser considerado improcedente, por não provado, mantendo-se na íntegra a decisão proferida.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
No seguimento desta orientação, a única questão que se encontra submetida à apreciação desta Relação resume-se em saber se o saneador-sentença padece de erro de direito ao ter julgado o pedido deduzido pela apelante manifestamente improcedente e ao dele ter absolvido a apelada.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para a decisão da presente apelação são os que constam do relatório acima elaborado, a que acrescem os seguintes factos, provados por documento autêntico ou por admissão das partes:

A- M. J. faleceu no dia 13 de outubro de 2010, no estado de casada com Fernando – cfr. doc. de fls. 46 verso.
B- Fernando faleceu no dia 09 de julho de 2013, no estado de viúvo de M. J. – cfr. doc. de fls. 46.
C- Fernando outorgou testamento em 06 de outubro de 2011, no Cartório Notarial sito na Rua (...), da freguesia e concelho de Vila Nova de Famalicão, em que declara o seguinte:

Que por este seu primeiro testamento lega, por conta da sua quota disponível, o usufruto vitalício de todos os seus bens a sua filha J. R., viúva, residente na referida Rua (...), e institui ainda a sua referida filha, J. R., única herdeira do remanescente da quota disponível da sua herança (…)” – cfr. doc. de fls. 16 a 17.
D- A Autora e a Ré são as únicas herdeiras de M. J. e de Fernando (factos assentes por admissão).
E- Das heranças abertas por óbito de M. J. e de Fernando fazem parte móveis e imóveis (factos assentes por admissão).
F- Corre termos processo de inventário por óbito de M. F. e de Fernando sob o n.º 2400/13.7TJVNF, do Juízo Local Cível de Vila Nova de Famalicão – Juiz 1, onde a Autora J. R. exerce as funções de cabeça de casal – cfr. doc. de fls. 6 e 7.
G- Por sentença homologatória da transação celebrada entre Autora e Ré nos autos de inventário identificados em F), proferida em 03 de abril de 2017, foi homologada a seguinte transação entre aquelas celebrada:

As interessadas J. R. e Maria acordam em discutir nos meios comuns as seguintes questões:

a) Propriedade da herança sobre o veículo automóvel de matrícula QB;
b) Crédito da herança sobre a interessada J. R. relativo à ocupação, por parte desta, do rés-do-chão do imóvel relacionado;
c) Crédito da interessada J. R. sobre a herança relacionado com os cuidados prestados aos inventariados, durante a vida destes; e
d) Valores integrantes da herança resultante de pagamentos efetuados pela Segurança Social” – cfr. doc. de fls. 6 a 7.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A apelante instaurou a presente ação contra a Ré, na qualidade de única herdeira, mais a primeira, da herança aberta por óbito dos pais de ambas, M. J. e Fernando, falecidos, respetivamente, em 13/10/2010 e 09/07/2013, pretendendo que se reconheça que aquela detém um direito de crédito sobre as referidas heranças, no montante de 31.245,00 euros, correspondente ao montante dos salários que deixou de auferir, desde 2009, até ao falecimento de seus pais, e se condene a Ré a reconhecer que aquela tem o direito a reclamar a referida quantia da herança aberta por óbito dos pais e fundamenta esta sua pretensão em duas causas de pedir, a saber: a) por solicitação expressa de seus pais, aquela deixou de exercer atividade remunerada, desde 2009, para deles cuidar, o que fez, desde 2009, até ao falecimento do último membro do casal de seus pais sobrevivo, ou seja, do pai, este falecido em 09/07/2013, com o que deixou de auferir a referida quantia que ora reclama das heranças daqueles; b) o enriquecimento sem justa causa das heranças abertas por óbito de seus pais, em detrimento daquela, enriquecimento esse que, na sua perspetiva, acaba por se traduzir num enriquecimento da co-herdeira apelada (Ré), à custa daquela, já que não fora o facto da mesma ter atendido ao pedido de seus pais, estes teriam de despender quantia superior àquela em prestações mensais a pagar a um lar onde tivessem sido internados ou na contratação de pessoal especializado para lhes prestar a assistência que a apelante lhes prestou e de que os mesmos se encontravam necessitados.

Considerou-se no saneador-sentença recorrido que não vindo alegado pela apelante a existência de qualquer contrato de trabalho ou de prestação de serviços ao abrigo do qual a apelante terá alegadamente prestado serviços de limpeza, cozinheira, enfermeira, criada, jardineira, gestora, mulher de limpeza e tudo o demais inerente aos cuidados que prestou a seus falecidos pais, desde 2009 até à morte destes, pese embora o preceituado no art. 1874º do CC., “em lugar algum, se encontra legalmente estipulada a obrigação de os filhos prestarem serviços domésticos, de jardinagem ou de enfermagem aos seus pais, sendo que, na doença ou em caso de provecta idade, evidente é de concluir que tal prestação de auxílio resulta dos próprios vínculos afetivos e das relações próprias da filiação. Ou seja, a prestação desses serviços resulta de meros deveres de ordem moral e ética e da própria consciência e vontade de cada um, não se reconduzindo, por conseguinte, ao quadro das puras obrigações civis, outrossim ao plano da mera obrigação natural”.

Continua-se naquele saneador-sentença escrevendo que: “(…) a pessoa que decidir assumir, em exclusivo, o encargo de acompanhar e cuidar dos seus pais na doença e na idade sénior fá-lo de acordo com a sua consciência, desinteressada e altruisticamente, em razão de louvável dever de ordem moral ou social, que corresponde a um dever de justiça, posto que tal não seja judicialmente exigível. Porém, tal disponibilidade, trabalho e amparo dados, exatamente por não serem judicialmente exigíveis, também não podem ser repetidos, atenta a natureza da relação instituída – cfr. artigos 402º a 404º do C. Civil – nem podem, (…) ser objeto de qualquer recompensa ou indemnização. De resto e ainda que assim não se entenda, sempre estaríamos perante uma mera liberalidade, posto que resultante do cumprimento de um simples dever de dedicação e de amor. Em suma, é manifestamente improcedente a pretensão da Autora, porquanto, mesmo que se viessem a provar todos os factos alegados na douta petição inicial, nunca a Autora poderia ver reconhecido o invocado crédito”.

Mais se sustenta ser “certo que, hodiernamente, se tem vindo a estabelecer formas de compensação do sacrifício ou renúncia, como é o caso, mais evidente, do disposto no artigo 1676º do C. Civil, segundo o qual: “2- Se a contribuição de um dos cônjuges para os encargos da vida familiar for consideravelmente superior ao previsto no número anterior, porque renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida comum, designadamente à sua vida profissional, com prejuízos patrimoniais importantes, esse cônjuge tem direito de exigir do outro a correspondente compensação. 3- O crédito referido no número anterior só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação”. Contudo, trata-se, nesses casos, de regras especiais, reguladoras de situações diversas, e que não contemplam aplicação analógica, pelo que só após eventual consagração legal será possível reconhecer um crédito a favor do cuidar do autor da herança, em situações como a dos autos”.

Sintetizando, conclui-se no saneador-sentença recorrido que o dever de auxílio dos filhos para com os pais é uma obrigação natural, pelo que a decisão da apelante, que decidiu alegadamente aderir ao pedido de seus falecidos pais em deixar de trabalhar para passar exclusivamente a cuidar daqueles face à idade avançada e aos problemas de saúde destes e os consequentes serviços de limpeza, cozinheira, enfermeira, etc., que lhes prestou, se inserem nesse dever de auxílio dos filhos para com os pais e, como tal, ancoram-se no cumprimento de uma obrigação natural, não conferindo àquela o direito a ser remunerada por tais serviços, nomeadamente, pelas retribuições que deixou de auferir durante esse período de tempo em que prestou esse auxílio, quer ao abrigo do disposto no art. 1874º do CC, quer ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.

É contra este entendimento que a apelante se insurge, sustentando que a questão em discussão nos autos é de índole social e que se traduz em saber se havendo bens da herança, é legitimo apenas a uma herdeira, filha ou qualquer outra pessoa, ser forçada a arcar com os cuidados a prestar aos pais ou a outros parentes até à morte destes, sem qualquer direito compensatório pelos prejuízos ou falta de rendimentos que tal situação lhe acarretou, enriquecendo os pais em detrimento de quem lhes presta esse auxílio e, por essa via, beneficiando os restantes co-herdeiros, em detrimento do cuidador.

Na perspetiva da apelante, não há que se avocar o preceituado no art. 1874º do CC, dado que nos autos não se discute a prestação de alimentos ou de assistência, mas trata-se de um assunto de partilha e de encargos da herança, sendo a esta luz que a questão tem de ser vista, analisada e resolvida.
Antecipe-se desde já não assistir razão à apelante quando se insurge quanto à invocação, no saneador-sentença recorrido, do preceituado no art. 1874º do Cód. Civil, quando se pondera que no sistema jurídico nacional o direito indemnizatório que se arroga titular tem de se fundar na lei ou no contrato.

Logo, não invocando a apelante, em sede de petição inicial, qualquer contrato que tivesse sido celebrado entre si e os seus falecidos pais, mediante o qual tivesse, alegadamente deixado de exercer a sua atividade profissional de empregada de balcão, desde 2009, pretensamente a pedido daqueles, para passar a cuidar exclusivamente dos mesmos, a pretensão da apelante em ver condenada a herança desses seus falecidos pais a pagar-lhe o montante das retribuições que alegadamente deixou de auferir durante o período de tempo em que deixou de exercer atividade profissional remunerada para, na satisfação desse pedido, cuidar desses seus pais, carece de assentar na lei, onde uma vez perscrutadas todas as fontes das obrigações legalmente previstas (contratos, negócios unilaterais, gestão de negócios, enriquecimento sem causa e gestão de negócios), a única fonte de constituição do direito indemnizatório de que se arroga titular perante a herança aberta por óbito de seus falecidos pais, correspondente ao montante das retribuições que deixou de auferir, apenas pode eventualmente assentar no instituto do enriquecimento sem causa.

No entanto, dada a natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa (art. 474º do CC) e do requisito que lhe é inerente de que ao enriquecimento obtido, alegadamente, à custa da apelante, “não pode ter causa justificativa” (n.º 1 do art. 473º do CC), é axiomático que na indagação do preenchimento ou não dos pressupostos legais deste concreto instituto há que se indagar se existe ou não qualquer obrigação legal, isto é, qualquer causa justificativa que impusesse à apelante a obrigação de atender àquele pedido de seus pais, deixando pretensamente de trabalhar para lhes prestar o auxílio de que se encontravam necessitados e, no caso positivo, se existe fundamento legal para obrigar a herança a pagar à apelante o montante das prestações salariais que a mesma deixou pretensamente de auferir durante o período de tempo em que terá prestado esse auxílio.

A existência dessa obrigação legal carece de ser apreciada à luz dos preceitos legais que regulam as relações entre pais e filhos e vice-versa e, no que ao caso presente interessa, especificamente, à luz do art. 1874º do CC., uma vez que a par dos arts. 2003º a 2014º do CC, que regulam a prestação de alimentos, são os únicos dispositivos legais que no ordenamento jurídico civil nacional regulam as obrigações dos filhos em relação aos pais.

Resulta do que se vem dizendo que contrariamente ao pretendido pela apelante, a questão que esta coloca à apreciação do tribunal passa justamente pela apreciação e aplicação ao caso em análise do regime legal enunciado no art. 1874º do CC., na medida em que é pela interpretação e aplicação do regime legal que se encontra enunciado neste normativo que se impõe aferir se a alegada satisfação por si do pedido de seus pais, no sentido de que deixasse de exercer a sua atividade profissional para deles cuidar, fez nascer na esfera jurídica desta a obrigação de seus pais de lhe pagarem o montante das retribuições que aquela deixou de auferir e se, não lhe tendo esses seus pais, pretensamente satisfeito essa obrigação/dívida que sobre eles pretensamente impendia, aquela detém um crédito sobre a herança aberta por óbito daqueles, correspondente ao montante dessas retribuições, conforme pretende acontecer.

Destarte, nenhuma censura nos merece o apelo que o tribunal a quo fez na decisão recorrida ao regime legal enunciado no art. 1874º do CC. e, bem assim de parte das aceções jurídicas que aquele tribunal extraiu do regime legal enunciado nesse preceito legal, nomeadamente quanto à conclusão final a que chegou, não obstante se imponha operar uma série de precisões que, a nosso ver, não foram devidamente consideradas por aquele tribunal naquela decisão.

Vejamos.

Antes de mais, impõe-se precisar que no sistema civil nacional o Direito da Família apresenta singularidades, que o individualizam dos restantes ramos do direito civil e que lhe conferem especialidades, nomeadamente ao nível do incumprimento das obrigações que explana, havendo autores que sustentam que no caso de incumprimento das obrigações familiares, atenta a natureza e a especialidade do vínculo obrigacional em causa neste ramo do direito, não há lugar a uma obrigação de indemnizar por parte do inadimplente perante o credor, devendo, nesse caso, o inadimplemento ser sancionado pelo incumprimento através de outro tipo de reações legais, como seja o divórcio ou a separação nas relações conjugais, a inibição do exercício do poder paternal, reações ao nível do direito sucessório, declarando o inadimplente inábil para suceder na herança aberta por óbito dos pais em relação aos quais incumpriu as obrigações que, enquanto filho, se encontravam adstritos e/ou reações penais, nomeadamente, fazendo o inadimplente incorrer na comissão do crime de violência doméstica ou noutro tipo de ilícito-penal (1).

Essas especialidades do Direito da Família e semelhante posição assenta essencialmente na circunstância deste ramo de direito, na ordem jurídica civil nacional, assentar na instituição familiar, que é uma realidade natural e social, pré-existente ao próprio Estado e, consequentemente, à própria institucionalização da ordem jurídica e em particular do Direito da Família.

Com efeito, conforme pondera Mota Pinto, sendo “a família uma realidade natural e social, cuja existência material, psicológica e moral se manifesta, desde logo, em planos ou domínios da vida estranhos – íamos a escrever anteriores – ao plano jurídico, o surgimento e vida da família realizam-se e assentam numa série de comportamentos pessoais e realidades psicológicas e morais, que o direito reconhece, aceita e considera, ao formular a sua regulamentação da instituição familiar”.

“Estão entre esses comportamentos e realidades o amor, a amizade, a consciência de se formar um grupo, a confiança, a lealdade, a vida em comum, a solidariedade, uma certa identificação com outros componentes do mesmo agregado (…), tudo (…) valores ou sentimentos que não são criados pelo Direito, que não existem por este determinar a sua existência – trata-se antes de consequências da realidade física e espiritual do homem e das conceções ético-sociais” (2).

O Direito da Família assenta assim, naquela realidade natural e social, pré-existente ao próprio Estado, que é a família, e as relações entre os familiares ancoram-se em laços de afeto, amizade, dedicação, solidariedade, etc.., que não são criadas pelo Direito, mas que antes são consequência da realidade física e espiritual do homem e das conceções ético-sociais vigentes em cada momento histórico numa determinada comunidade histórica, que o Direito da Família se limitou a reconhecer, aceitar e a considerar ao regulamentar juridicamente a instituição familiar.

A fonte natural e espontânea das relações familiares e o facto das realidades em que se ancoram as respetivas obrigações serem bens que, por natureza, são incoercíveis leva a que se discuta se as relações familiares não devem situar-se fora do Direito e, como referido, não falta quem conclua positivamente, sustentando que as relações familiares ainda que reguladas pelas normas que formam o Direito da Família não encerram verdadeiras normas jurídicas.
Outros autores, não obstante não negarem o caráter jurídico do Direito da Família sustentam que o incumprimento das obrigações familiares não devem dar lugar à obrigação de indemnizar, como é próprio das obrigações legais, mas antes dar origem a outro tipo de reacções/sanções jurídicas, designadamente, ao nível do direito sucessório e do Direito Penal.

A conceção de que as relações familiares normativizadas não configuram verdadeiras relações jurídicas é, a nosso ver, de rejeitar uma vez que assentam numa conceção segundo a qual o Direito de Família não é dotado de juridicidade, isto é, não se estaria perante um verdadeiro ramo de direito, na presença de normas jurídicas, geradoras de direitos e obrigações jurídicas, mas antes perante um conjunto de normas morais e sociais, em que os membros do agregado familiar cumprem com as obrigações emergentes das normas nele estabelecidas não por imposição legal, mas por imperativos de ordem moral ou social e por imperativos de justiça comutativa, posição esta que colide frontalmente com o facto do Código Civil consagrar, no seu Livro IV, o “Direito de Família”, onde regula os vários aspetos das relações familiares, pelo que é indiscutível que as normas que estatui são normas jurídicas, tanto assim que se encontram codificadas, isto é, explanadas em letra de lei e, por conseguinte, regulam relações jurídicas.

Para outros autores, embora o Direito da Família corresponda a um verdadeiro ramo de direito, gerador de direito e obrigações jurídicas, enfraquecem-no, ao negarem, em geral, a constituição do inadimplente em responsabilidade civil perante o credor da obrigação familiar incumprida, sabendo-se que a responsabilidade civil visa restituir à pessoa lesada os seus interesses ofendidos, fazendo uso da restituição específica, quando possível, ou por equivalente, por meio da obrigação de indemnização.

Precise-se que sendo a família uma realidade natural e social pré-existente ao Estado que se caracteriza, inclusivamente, pela sua forte permeabilidade às modificações das estruturas políticas, económicas e sociais, designadamente religiosas, assentando o Direito da Família nacional na instituição familiar, é um facto que se está perante um ramo de direito específico, decorrendo essa sua especificidade da circunstância de regular uma realidade social e natural – a família -, que é anterior ao Estado e à normatização das relações que se estabelecem entre os respetivos elementos.

Essa circunstância faz com que se assista a um natural retraimento do legislador na regulamentação jurídica das relações familiares, reconhecendo-se que o caráter espontâneo e natural dessas relações e o facto das mesmas assentarem em valores, como o afeto, a amizade, a dedicação, a solidariedade, o sentimento de pertença a um determinado grupo, etc., são sentimentos naturais, pré-existentes ao próprio direito e que o transcendem, pelo que se deve privilegiar a autorregulação pela família das relações estabelecidas entre os respetivos elementos.
Por outro lado, quando o Estado procede à regulamentação jurídica dessas regras, em regra, segrega as normas jurídicas que estatui da própria realidade sociológica e familiar, reconhecendo, aceitando e considerando essa realidade.

Ao assim proceder, sem dúvida alguma que o legislador reconhece que a família é uma realidade natural, que transcende o próprio Direito e que é pré-existente ao último, não podendo, consequentemente, aquele ter a veleidade de regular as relações familiares nas suas múltiplas e variadas dimensões, sob pena de subverter o caráter natural e mais profundo deste tipo de relações e de jamais ser capaz de regular as suas múltiplas facetas.

Como tal, exige-se que o Direito reconheça a dimensão natural e social da instituição familiar, reconhecendo-a, aceitando-a e considerando-a na codificação do Direito de Família, segregando as normas jurídicas que estatui da ordem concreta, espontânea e natural, que é a família, e deva retrair-se na normatização desse tipo de relações, em que o caráter natural, privado e intimista destas exige que este tipo de relações fiquem sujeitas primordialmente a uma autorregulamentação pela instituição familiar, sob pena de postergar o caráter natural e social dessa instituição e o verdadeiro e mais profundo dos bens em que assenta, que são, como já referido, o amor, o respeito, a dedicação, a solidariedade, etc..

No entanto, o papel primordial da família, enquanto “pilar fundamental para qualquer pessoa”, sendo a “primeira unidade social onde ela se insere e também a primeira instituição que contribui para o seu desenvolvimento e socialização” (3) e, consequentemente, a célula estaminal do tecido social e, inclusivamente, a necessidade de, por vezes, influir no conteúdo dessas relações, alterando-o por o «direito vivido» e espontaneamente nascido na realidade social já não se coadunar com a realidade política, económica, social e religiosa que o legislador pretende imprimir às relações familiares em determinado momento histórico, não se compadece com o facto deste se manter à margem das relações familiares.

Pelo contrário, exige-se que o legislador regulamente essas relações familiares, normativizando-as, estabelecendo o conteúdo mínimo das obrigações e deveres que devem presidir à instituição familiar e a que todos ficam sujeitos, sob pena de incumprirem verdadeiros deveres legais e de ficarem sujeitos às reações específicas do Direito.

Essas reações não passam necessariamente por consequências indemnizatórias, podendo antes passar por outro tipo de tipo de reações legais, como seja, a concessão à parte que viu o seus direitos conjugais infringidos pelo outro membro da relação conjugal do direito a peticionar o divórcio, a separação de pessoas e/ou bens; no âmbito do poder paternal, a inibição do infrator do poder paternal em relação aos filhos em relação aos quais incumpriu as obrigações jurídicas que regulam o poder paternal, consequências a nível sucessório e/ou penal, sem que daqui derive que as obrigações incumpridas não sejam verdadeiras obrigações legais, antes pelo contrário, as reações gravosas que a lei liga ao incumprimento dessas obrigações legais mínimas significa apenas que nos casos em que à ordem jurídica repugna o recurso à indemnização, se está perante verdadeiras obrigações jurídicas, tão fundamentais para a ordem jurídica, que esta reage contra o respetivo incumprimento, reservando a esses inadimplementos sanções, as mais das vezes, mais gravosas que o habitual dever indemnizatório.

Neste sentido, pronuncia-se Antunes Varela, ao escrever que “as principais diferenças entre as obrigações e as relações de família provêm essencialmente do facto, de estas se integrarem numa instituição social (família), cujos fins exercem uma vincada influência no seu regime jurídico. Essa é mesmo a única distinção existente entre os deveres de prestar abrangidos pelas obrigações e as obrigações de caráter patrimonial nascidas no âmbito das relações familiares (dívidas dos cônjuges a terceiros, dívidas dos cônjuges entre si, dever de administrar os bens dos filhos, obrigação alimentar, etc.). Quanto aos deveres de caráter pessoal, as diferenças são mais profundas. Por um lado, os deveres dessa natureza (relações pessoais entre os cônjuges; poder paternal; tutela) não podem ser objeto de qualquer relação obrigacional, fora do círculo de pessoas ligadas pelo respetivo vínculo familiar. São deveres exclusivos da instituição familiar que não pertencem ao comércio jurídico. Por outro lado, os deveres pessoais familiares, não são, como o dever de prestar, próprio das obrigações, prescritos no exclusivo interesse da outra parte; são verdadeiros deveres morais impostos também, se não principalmente, no interesse da próprio pessoa vinculada e ainda no interesse superior da sociedade conjugal ou da comunidade familiar. Daí que os direitos correspondentes (dos pais em relação aos filhos; do marido em relação à mulher; do tutor quanto ao incapaz) chamem alguns autores, com alguma propriedade, poderes-deveres ou deveres funcionais. E a diferença de natureza entre os direitos pessoais familiares e os deveres de prestar característicos das obrigações não está apenas na diferente função de uns e outros; reside também na distinta estrutura de alguns daquele, como por exemplo o débito conjugal. Consequência prática da diversidade de natureza entre os dois grupos distintos de relações é o facto de a violação dos deveres pessoais familiares não determinar uma simples obrigação de indemnização a outra parte. Como os interesses lesados são de outra ordem e bastante mais amplos, são muito diferentes os efeitos que a lei extrai da infração”, e continua, ponderando: “a obrigação de indemnizar parece repugnar ao espírito do nosso sistema, pelo menos quanto à violação de certos deveres conjugais e dos deveres compreendidos no poder paternal. Embora a lei preveja a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais no capítulo da responsabilidade extracontratual, há no domínio das relações familiares certos institutos, como o dever de assistência e a obrigação de alimentos, que tornam dispensável o recurso a medidas que, pela sua expressão material e egoísta, colidem com as exigências morais dos altos valores em jogo, quer na sociedade conjugal, quer no poder paternal(4).

Reconhecendo o caráter jurídico das relações familiares reguladas pelo Direito da Família e, consequentemente, que as normas jurídicas que institui são geradoras de verdadeiros direitos e deveres jurídicos, e apontando como razões para a necessidade dessa normatização, não obstante o caráter natural e social dessas relações, Mota Pinto escreve: “Apesar de a família na sua concreta e natural existência no seio da vida social conter, desde logo, uma ordenação íntima, não pode a lei deixar de considerar essa realidade e esse mundo de relações, estabelecendo sobre este o manto de uma disciplina, tanto quanto possível, completa. A disciplina legislativa da instituição familiar impõe-se atentas as seguintes razões, algumas das quais correspondem a justificações de caráter geral do direito legislado: a) a ordenação concreta e institucional da família, mesmo que aceite pelo legislador, não contém uma disciplina de todos os problemas respetivos em termos acabados e categóricos, tornando-se necessária uma formulação certa, precisa e completa do regime jurídico correspondente ou uma opção entre sentidos e conceções divergentes revelados na vida da instituição familiar; b) a consagração legislativa de um regime, mesmo que coincidente com a disciplina institucional da família, vinca mais vivamente o sentimento dos deveres e direitos dos membros da família, facilita o fluente curso da vida familiar e permite, em situações de crise, disciplinar com justiça e certeza a posição dos sujeitos; e c) pode o Estado visar uma modificação da disciplina da família para um sentido diverso do correspondente a «direito» vivido espontaneamente na realidade social” (5).

Resulta do que se vem dizendo, que não obstante o caráter específico do Direito da Família, decorrente do seu caráter institucional, que as normas que consagra são verdadeiras normas legais, não constituindo, por isso, este ramo de direito um repositório de normas morais ou éticas, mas antes de preceitos éticos e morais que o legislador converteu em normas jurídicas por os interesses em jogo transcenderem os interesses estritamente individuais dos sujeitos da relação familiar e onde, inclusivamente, aquele, mediante a normatização de determinadas relações familiares, intervêm no sentido de alterar essas relações naturais e espontaneamente nascidas no seio familiar, por forma a torná-las conformes aos valores políticos, económicos e/ou sociais que propugna em determinado momento histórico, como foi o caso da consagração, na sequência da revolução de 1974, do princípio da igualdade entre os cônjuges (art. 1671º do CC) e, em data mais recente, ao permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo (art. 1577º do CC, na redação introduzida pela Lei n.º 9/2010, de 31/05).

O Direito da Família contem, assim, a regulação do núcleo fundamental da constituição da sociedade, que é família, nele estabelecendo e regulando o conteúdo mínimo dessas relações familiares, mediante o qual o legislador disciplina, precisa e completa o regime jurídico mínimo a que os sujeitos da relação familiar ficam sujeitos, de modo a fixar os direitos e os deveres de cada um dos sujeitos da relação familiar por forma a legitimar a intervenção do Estado em situações de crise familiar, mormente, quando os obrigados não cumpram com os deveres jurídicos que legalmente lhe são prescritos, impondo aos inadimplentes coercivamente o cumprimento dessas obrigações legais infringidas.

Essas reações, como referido, não passam necessariamente pela reação específica do direito civil, que é a obrigação de indemnizar por parte do inadimplente ao credor do direito infringido, havendo, inclusivamente, situações em que essa sanção indemnizatória parece repugnar ao espírito do direito civil nacional, mas daqui não resulta que as obrigações incumpridas não sejam verdadeiras obrigações legais e como tal incoercíveis, mas apenas que atentos o caráter primordial dos bens jurídicos infringidos, a lei reserva-lhes outro tipo de reações jurídicas específicas, as quais, em regra, são, inclusivamente, mais gravosas para o infrator que a habitual reação indemnizatória, como seja, o divórcio, a separação, a inibição do poder paternal, reações ao nível sucessório e até penal (6).

Deste modo é que, salvo o devido respeito por entendimento contrário, não podemos subscrever a decisão recorrida quando, se bem interpretamos essa decisão, nela se sufraga o entendimento segundo o qual o art. 1874º do CC., consagra obrigações meramente naturais, não judicialmente exigíveis, e quando, inclusivamente, se sustenta, sem mais, que “em lugar algum, se encontra legalmente estipulada a obrigação de os filhos prestarem serviços domésticos, de jardinagem ou de enfermagem aos pais, sendo que, na doença ou em caso de provecta idade, evidente é de concluir que tal prestação de auxílio resulta dos próprios vínculos afetivos e das relações próprias da filiação. Ou seja, a prestação desses serviços resulta de meros deveres de ordem moral e ética e da própria consciência e vontade de cada um, não se reconduzindo, por conseguinte, ao quadro das puras obrigações civis, outrossim ao plano da mera obrigação natural”.

Na verdade, estabelece o art. 1874º do CC., que “1- Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência”. “2- O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e de contribuir, durante a vida em comum de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar”.

Como referido, este normativo, a par dos arts. 2001º a 2014º do CC., são os únicos que na ordem jurídica civil nacional regulam a relação familiar dos filhos para com os pais. Ou seja, o Código Civil nacional contém um conjunto de normas que regulam a relação dos pais para com os filhos, mas já no que concerne à relação dos filhos em relação aos pais, apenas contém aquela disposição legal geral enunciada no referido art. 1874º, a par dos arts. 2001º a 2014º, estes em sede de alimentos, pelo que, ao contrário do que acontece noutros ordenamentos jurídicos, em que existem normas específicas dirigidas à proteção das pessoas idosas, na ausência desse regime específico na ordem jurídica nacional, essa proteção jurídica dos pais em relação aos filhos carece de ser alcançada por recurso àqueles escassos dispositivos legais.

Os deveres de respeito, auxilio e assistência a que pais e filhos se encontram mutuamente vinculados encontram-se normativamente consagrados pelo que os direitos e obrigações que emergem desses deveres são verdadeiras obrigações jurídicas e não meras obrigações naturais, decorrentes de meros deveres de ordem moral e ética a que os filhos se encontram vinculados em relação aos pais e que estes cumprem por dever de justiça comutativa.

Deste modo, sempre que os filhos incumpram com os enunciados deveres de respeito, auxílio e/ou assistência para com os pais, incorrem no incumprimento de verdadeiras obrigações jurídicas, incumprimento esse que, inclusivamente, os pode tornar indignos para efeitos sucessório (art. 2034º do CC), fazê-los incorrer noutras consequências civis, como a inabilitação sucessória ou em responsabilidade criminal.

Jorge Duarte Pinheiro caracteriza a vida dos deveres familiares do seguinte modo: “os deveres paternofiliais perduram ao longo de toda a relação de filiação, não cessando com a maioridade ou a emancipação do filho. Contudo, a sua projeção não é uniforme. Estão «encobertos» durante a menoridade do filho pelo poder paternal. Evidenciam-se na altura da «segunda adolescência». Perdem intensidade quando o filho sai de casa dos pais para organizar a sua própria vida de um modo independente. E ressurgem, com força, sobretudo ao serviço dos pais, quando estes envelhecem” (7).

No caso dos autos, importa chamar à colação os deveres de auxílio e de assistência, que o n.º 1 do art. 1874º do CC. é expresso em declarar estarem pais e filhos mutuamente obrigados a tais deveres.
O dever de auxílio é parte integrante do conceito de cooperação, na aceção dada pelo art. 1672º do CC.

No que se refere aos dever de auxílio dos filhos para com os pais, esse dever compreende as “obrigações de ajuda e proteção, relativos quer à pessoa quer ao património dos pais” (8), sendo um dever com especial importância na doença e velhice.

O dever de auxílio importa a obrigação dos filhos de socorrerem e auxiliarem os pais em situações de crise, urgentes e anómalas, como é o caso de situações de doença ou de vulnerabilidade decorrente da velhice e implica para os filhos uma obrigação de conteúdo complexo de assistência moral ou espiritual, de apoio físico e material, consoante as necessidades dos pais e a possibilidades dos filhos em prestar-lhos.

Já o dever de assistência dos filhos para com os pais, encontra-se igualmente explanado no n.º 1 do art. 1874º, onde se estabelece que “pais e filhos devem-se mutuamente (…) assistência”, acrescentando o seu n.º 2, que “o dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar”.

A formulação jurídica deste dever, tal como se encontra consagrado no art. 1675º e 1874º do CC., revela a natureza profundamente patrimonial do mesmo, por contraposição ao dever de auxílio, onde o que releva é a natureza maioritariamente imaterial deste dever.

O dever de assistência compreende duas obrigações, a saber: a obrigação de prestar alimentos e a obrigação de contribuir para os encargos da vida familiar.

O dever de contribuir para os encargos da vida familiar também engloba a obrigação de alimentos, mas durante a vida em comum, a obrigação de alimentos é absorvida pelo dever de contribuição de pais e filhos para os encargos da vida familiar de acordo com os recursos próprios, isto é, em função das suas possibilidades.

A obrigação de prestar alimentos só adquire autonomia e relevância quando pais e filhos não moram juntos, caso contrário essa obrigação integra-se e é absorvida na obrigação de contribuição para os encargos da vida familiar.

Deixando os pais de morar com os filhos e encontrando-se uns ou outros necessitados de alimentos, a obrigação de contribuir para os encargos da vida familiar converte-se na obrigação de prestar alimentos dos filhos para com os pais, ou vice-versa (9).

Não obstante o n.º 1 do art. 2003º estatua entender-se por alimentos tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário, entende-se que o conceito de “alimentos” deve ser interpretado em sentido lato, abrangendo tudo “o que é indispensável à satisfação das necessidades da vida segundo a situação social do alimentando”, nele estando abrangidas as despesas de tratamentos médicos, de deslocação e outras (10).

Nos termos do arts. 1874º ex vi 2009º, al. b) do CC, os filhos encontram-se obrigados a prestar alimentos aos pais que deles se encontram necessitados, obrigação esta que não é incondicional, na medida em que a respetiva medida há-se ter em conta o binómio necessidades do alimentando e possibilidades do obrigado a prestá-los (art. 2004º, n.º 1 do CC).

Deste modo, apesar da proximidade do dever de auxílio com o dever/obrigação de prestar alimentos e de ambos prosseguirem finalidades análogas, o conteúdo de ambos os enunciados deveres não é coincidente, na medida em que a obrigação de alimentos visa ocorrer às necessidades de natureza económica do alimentando, enquanto o dever de auxílio também respeita a um crédito, mas de natureza diferente, não necessariamente económica, mas antes e preponderantemente de natureza imaterial.

Acresce que o leque dos obrigados a prestar alimentos é mais amplo (art. 2009º do CC) que aquele que vincula os que estão obrigados a prestar o dever de auxílio, posto que nos termos do art. 1874º, n.º 1 do CC, este último impõe-se mutuamente entre pais e filhos.

Note-se que apesar do art. 1874º, n.º 1 do CC, apenas estabelecer o dever de auxilio mútuo entre pais e filhos, segundo Pires de Lima e Antunes Varela este dever estende-se igualmente à nora e ao genro em relação aos progenitores do respetivo cônjuge quando estes residam com o casal, ao ponderarem em relação à segunda parte do dever de cooperação enunciado no art. 1874º do CC, que o dever “de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram”, deve ter “especialmente em vista os deveres de caráter pessoal que não aproveitam aos cônjuges, como (…) os deveres de assistência para com os parentes de um ou outro que estejam a seu cargo” (11).

O dever de auxílio e a obrigação de alimentos são, reafirma-se, obrigações jurídicas que se impõem mutuamente a pais e filhos, tratando-se de obrigações que se impõem a ambos os pais em relação ao filhos e a todos os filhos em relações aos respetivos pais, tratando-se de deveres paternofiliais que, no que tange aos pais, atingem a sua maior plenitude na velhice ou na incapacidade destes.
Esses deveres paternofiliais não são incondicionais na medida em que quer a obrigação de prestar alimentos, quer a de lhes prestar auxílio, para além de estarem dependentes da pessoa carecida de alimentos e/ou da obtenção de auxílio ter necessidade objetiva e efetiva dessas prestações, depende igualmente do outro elemento da equação, qual seja, a possibilidade do obrigado a prestar alimentos e/ou a prestar auxilio ter efetivas possibilidades em os prestar.

No caso dos autos, a pretensão indemnizatória de que a apelante se arroga titular perante a herança aberta por óbito de seus pais, corresponde às retribuições que aquela pretensamente deixou de auferir desde 2009, altura em que terá deixado de exercer a sua atividade profissional remunerada de empregada de balcão para, a pedido dos pais, deles passar a cuidar face à avançada idade destes e à situação de doença com que então se encontrariam afetados, até à morte do último progenitor em 09/07/2013, de onde resulta que o dever que está em causa nos autos é o dever de auxílio.

O dever de auxílio, tal como o dever dos filhos de prestar alimentos aos pais de que deles se encontram necessitados, embora tenha a sua raiz na realidade natural, biológica e social, que é a família, configura um verdadeiro dever jurídico dos filhos em relação aos pais, tal como decorre expressamente do enunciado n.º 1 do art. 1874º do CC.

Como referido, esse dever impõe aos filhos a obrigação jurídica de prestar socorro aos pais nas adversidades quotidianas nas situações de crise, urgentes e anómalas, como as situações de doença ou de vulnerabilidade decorrente da velhice, onde se insere o dever dos filhos contribuírem ativamente para zelar pela vida, saúde e bem-estar daqueles.

Trata-se de uma obrigação que impende sobre todos os filhos, e não apenas sobre um filho específico e daí que se trate de uma obrigação conjunta e não uma obrigação indivisível e solidária, porque o devedor só responde na medida das suas possibilidades.
É um dever de conteúdo complexo, posto que abrange a assistência moral e/ou espiritual, de apoio físico e material dos filhos em relação aos pais, consoante as necessidade destes e as possibilidades de quem os presta.

Destarte, contrariamente ao sustentado pelo tribunal a quo, o dever dos filhos de prestarem auxílio aos pais poderá envolver a obrigação destes de lhe efetuarem serviços de limpeza da habitação em que residam, de lhe confecionar as respetivas refeições, prestar-lhes serviços de enfermagem, cuidarem do jardim da habitação em que residam e de lhes prestar toda uma outra panóplia de serviços de apoio físico, material e imaterial de que se encontrem necessitados na sua vida quotidiana, tudo dependendo dos pais se encontrarem num momento de efetiva dificuldade geradora da sua necessidade de receberem auxílio do filhos, da essencialidade/imprescindibilidade do concreto auxilio de que se encontram necessitados para ultrapassarem esse momento de dificuldade com que se viram confrontados e da efetiva possibilidade dos filhos em lhes prestarem esses serviços essenciais, inserindo-se todos estes serviços no dever de socorro e de auxílio dos filhos em relação aos pais a que alude o art. 1874º, n.º 1 do CC.

Deste modo, não se subscreve a decisão recorrida quendo nela se sustenta, sem mais, que “em lugar algum, se encontra legalmente estipulada a obrigação de os filhos prestarem serviços domésticos, de jardinagem ou de enfermagem aos pais, sendo que, na doença ou em caso de provecta idade, evidente é de concluir que tal prestação de auxílio resulta dos próprios vínculos afetivos e das relações próprias da filiação. Ou seja, a prestação desses serviços resulta de meros deveres de ordem moral e ética e da própria consciência e vontade de cada um, não se reconduzindo, por conseguinte, ao quadro das puras obrigações civis, outrossim, ao plano da mera obrigação natural”.

Com efeito, salvo o devido respeito por entendimento contrário, ao assim propender, sem dúvida alguma que o tribunal a quo olvida que embora o Direito da Família assente na realidade institucional, sociológica e natural, que é a família, e como tal, embora a maioria das suas normas assentem em certos deveres de ordem ética e moral pré-existentes ao Direito e que este é insuscetível de abarcar na sua plenitude, que a lei concedeu relevância jurídica a essas relações que normativizou, convertendo esses deveres éticos e morais em autênticos deveres jurídicos, em virtude da sua relevância social, explanando-os em letra de lei - o Direito da Família -, pelo que as relações assim normativizadas configuram verdadeiras relações jurídicas, geradoras de direitos e deveres jurídicos para os sujeitos dessas relações.

Consequentemente, ao consagrar no art. 1874º, n.º 1 do CC, que pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência, o legislador criou os direitos e as obrigações que emergem desses concretos deveres paternofiliais, cujo incumprimento traduz a postergação de verdadeiras obrigações jurídicas, ao qual a lei liga consequências jurídicas, que vão desde reações civis até reações penais.
Como referido, estando nos autos em causa o dever de auxílio dos filhos em relação aos pais, embora esse dever tenha um conteúdo complexo de assistência moral e/ou espiritual, de apoio físico, material e imaterial dos filhos em relação aos pais, consoante as efetivas necessidades destes, a essencialidade desses serviços para os pais suprirem essas necessidades e as possibilidades reais dos filhos em lhos prestar, este dever não tem natureza incondicional.

Na verdade, no passado, no quadro da grande família, a alta natalidade garantia que o cuidado dos poucos que atingiam idades avançadas se repartisse pelos numerosos filhos. Em tais casos, não era difícil desenvolver e conservar normas que tornassem obrigatória a prestação de cuidados aos pais por parte dos filhos, normalmente através da coabitação.

No presente, as possibilidades da família em prestarem cuidados, nomeadamente recebendo em casa os pais idosos, são menores (12).

Com efeito, a baixa natalidade, conectada com o progressivo aumento da esperança de vida da população, a inserção do elemento feminino do casal no mercado de trabalho, aliado às contingências da vida hodierna, que criam contingências em termos de horários, geográficas e de habitabilidade, além de outras, geram dificuldades acrescidas no cumprimento dessas obrigações legais por parte dos filhos em relação aos pais, podendo implicar a impossibilidade destes de cumprirem, na sua plenitude, com o dever de auxílio em relação aos pais que deles se encontram necessitados.

A questão que se coloca nos autos é a de saber se independentemente da apelante, tal como a apelada, sua irmã, se encontrarem vinculadas legalmente à obrigação de socorro e de auxílio de que os seus pais se encontravam alegadamente necessitados, por via da idade avançadas daqueles e da situação de doença em que se encontravam, se aquela apelante se encontrava legalmente vinculada a aderir à solicitação expressa pelos seus pais para que deixasse de prestar trabalho e/ou exercer qualquer atividade remunerada para passar exclusivamente a cuidar daqueles.
A resposta a esta questão carece de ser frontalmente negativa.
Na verdade, embora o dever de socorro e auxílio seja uma obrigação legal dos filhos em relação aos pais, essa obrigação não é incondicional, na medida em que está dependente das efetivas e reais possibilidades dos filhos em lhes prestar esse apoio.

Deste modo, se os filhos trabalham não se pode exigir que os mesmos abandonem a sua atividade profissional para cuidar dos pais, posto que se é direito dos pais que os filhos os auxiliam e deles cuidem nas situações de provação e de necessidade, nomeadamente por via das limitações com que se vejam confrontados devido à idade avançada e/ou situação de doença, também é direito dos filhos de trabalharem para proverem às suas próprias necessidades económicas e do respetivo agregado familiar nuclear, além que o trabalho é fator de realização pessoal e social dos filhos, e como tal um direito de personalidade destes, tutelado pelo art. 70º, n.º 1 do CC.

Aliás, porque assim é, é que os próprios pais se vêem na contingência de legitimamente, incluindo, durante a tenra idade dos filhos, colocarem os mesmos em instituições, designadamente, infantários, ATL e outras instituições para que possam desempenhar a sua atividade profissional, sem que daí decorra qualquer infração dos mesmos em relação aos deveres parentais a que se encontram juridicamente vinculados para com os filhos.

Ora, se assim é, por maioria de razão, a nenhum pai assiste o direito a exigir que os filhos deixem de prestar a sua atividade profissional para se dedicar exclusivamente a prestar o socorro e o auxílio de que se encontrem necessitados e que constitui um verdadeiro direito dos pais em relação aos filhos e, por conseguinte, uma verdadeira obrigação jurídica dos filhos para com os pais.

Note-se que não se discute que os filhos se encontrem obrigados juridicamente ao dever de socorro e do auxílio para com os pais nos momentos de provação destes, em especial durante a velhice.
Também não se discute que a família é o local privilegiado para os idosos envelhecerem e receber cuidados, especialmente quando deles necessitem devido às limitações quotidianas com que se vêem confrontados decorrentes do avançar da idade e/ou de situações de doença.

Igualmente não se discute que os filhos são, em regra, a melhor opção para cuidar dos pais do que a contratação de terceiras pessoas ou a acomodação dos pais num lar, com o consequente desenraizamento social e familiar destes do meio familiar, social e físico em que se inserem.

Entre pais e filhos existem laços biológicos e uma história de vida comum, geradores de especiais vínculos de respeito, gratidão, solidariedade, entreajuda, reciprocidade, experiências de vida e modus vivendi comuns, etc., até porque, até se autonomizarem, os filhos viveram com os pais e, consequentemente, partilham de um quadro de valores, experiências de vida, referenciais e sociais comuns.

Na verdade, como referido, a obrigação dos filhos em socorrer e auxiliar os pais nos momentos de provação, constitui além de um dever ético e moral, um dever jurídico, que lhes é legalmente imposto.

A velhice, como é sabido, porque é um dado da experiência comum, está relacionada com perdas físicas, em termos de desgaste, perdas afetivas, emocionais, de espaço, sociais, enfim, perdas totais.
O “idoso tem necessidade de um espaço próprio, vive na busca da realização de um sonho enquanto a vida pulsar. A sua inserção no seio da família de um dos seus descendentes é para ele testemunho do respeito por uma vida digna na velhice e dignidade na morte” (13).

Pais e filhos encontram-se, assim, numa posição única de dadores de assistência e auxílio mútuo, como nenhuma outra pessoa ou instituição pode fornecer, constituindo a família, sem dúvida alguma o pilar fundamental de segurança, desenvolvimento, socialização, bem-estar físico e mental do ser humano e, consequentemente, condição da sua dignificação enquanto ser humano.

É desta forma que se justifica que a família seja a primeira e principal fonte assistencial do idoso, em que o Estado se limita a assumir um mero papel subsidiário, destinado a suprir as impossibilidades da família em prestar essa assistência ao idoso ou a suprir as situações de abandono, conforme decorre das disposições conjugadas dos arts. 67º e 72º da CRP e do art. 3º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 391/91, de 10/10, que aprovou o acolhimento familiar, e onde se reconhece que esta medida de intervenção estadual se destina a suprir a “ausência da família ou quando esta não reúna condições mínimas para assegurar o seu acompanhamento”.

A obrigação de prestar o socorro e o auxilio aos pais idosos é assim, sem dúvida alguma, uma obrigação jurídica que impende, em primeira linha, sobre os filhos e em relação ao qual o Estado assume um papel meramente subsidiário, adotando medidas sociais “para apoiar aqueles que, pela sua idade ou por falta de autonomia, vivem numa situação de isolamento, agravada pela insuficiência ou inexistência de respostas que satisfaçam as suas necessidades” e que constituem “grupos de risco que exigem um atendimento que ultrapassa muitas vezes as possibilidades reais da família”, tendo sido nesse âmbito que foi criado o acolhimento familiar que, “como alternativa ao meio familiar, constitui a resposta mais humana e personalizada ao atendimento daqueles grupos, evitando ou retardando o mais possível o recurso à resposta institucional” – cfr. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 391/91, de 10/10.
O que está em causa e se discute nos autos são os limites da obrigação de socorro e auxilio que impende sobre os filhos, no caso, sobre a apelante em relação aos seus pais.

Como referido, os limites da obrigação jurídica da apelante em prestar o socorro e o auxílio de que os seus progenitores se encontravam necessitados, não lhe impunha que aquela atendesse, conforme pretensamente atendeu, ao pedido de seus pais para que deixasse de exercer a sua atividade remunerada de empregada de balcão para passar a dedicar-se exclusivamente a cuidar daqueles.

Na verdade, reafirma-se, o dever de socorro e auxílio dos filhos para com os pais (e vice-versa) está condicionado não só as necessidades de quem os recebe, como pelas possibilidades de quem os presta, pelo que essa obrigação legal nunca poderá implicar a obrigação dos filhos de deixarem de exercer a sua atividade profissional, sob pena de poderem colocar em crise a sua própria sobrevivência económica e a do seu agregado familiar nuclear e, bem assim se recusar aos filhos a concretização do seu direito de personalidade de prosseguirem uma atividade profissional remunerada como fator de realização pessoal e social.

Acresce precisar que a referida obrigação legal da apelante de socorrer e auxiliar os seus progenitores não impendia, no caso, exclusivamente sobre aquela, mas sim, também, sobre a apelada, dado que os deveres paternofiliais impendem sobre todos os filhos, sem que se verifique que a apelante alegue (e, consequentemente, não o poderá provar), em sede de petição inicial, qualquer recusa da apelada em prestar a sua quota-parte da obrigação de socorro e auxilio de que os pais de ambas se encontravam alegadamente necessitados ou de impossibilidade ou inconveniência (decorrente de um eventual mau relacionamento entre apelada e os respetivos progenitores) desta em cumprir com essa quota-parte da sua obrigação jurídica.

Acresce ainda precisar que caso os pais da apelante se encontrassem efetivamente necessitados de socorro e do auxilio das filhas, por via da sua provecta idade e da situação de doença, na impossibilidade da apelante e/ou da apelada em lhes prestar esse socorro e auxilio de forma plena, por via de exercerem atividade profissional, ou da apelada não se dispor a cumprir com a sua quota-parte dessa sua obrigação legal ou da inconveniência em esta lha prestar devido a um eventual mau relacionamento existente entre aquela e os pais (factos esses que, reafirma-se, nem sequer vêm alegados pela apelante), ou os progenitores dispunham de meios económicos, como aparentemente dispunham (cfr. factos alegados no art. 2º da p.i.), para que esse socorro e auxilio de que se encontravam necessitados lhes fosse prestado por terceira pessoa nos impedimentos de apelante e de apelada decorrentes da atividade profissional destas e, bem assim para eventualmente substituir a apelada face à eventual recusa desta ou à inconveniência da mesma em prestar a sua quota-parte daquela sua obrigação legal ou, em alternativa, contratavam a própria apelante para que esta lhes prestasse esse apoio e auxílio em exclusivo, mediante o pagamento de um salário, acordando com a apelante no sentido daquela deixar o seu emprego e celebrando com ela um contrato de trabalho ou de prestação de serviços, o que, evidentemente, dependia da disponibilidade da apelante em aceitar esta solução uma vez que, reafirma-se, os pais não podiam exigir à apelante (e/ou à apelada) que esta deixasse o seu emprego para deles cuidar, mesmo mediante celebração com aquela de contrato de trabalho ou de prestação de serviços.

Caso os progenitores não dispusessem desses meios económicos, perante aquelas impossibilidades das filhas em lhe prestar aquele apoio e auxílio em pleno ou da recusa ou inconveniência da apelada em lhes prestar a sua quota-parte desse apoio e auxílio, os mesmos teriam de acionar a apelante e/ou apelada para que estas fossem obrigadas a prestar-lhe a quantia necessária ao suprimento da respetiva quota-parte do auxílio por terceira pessoa ou pela apelante (nos termos atrás enunciados), caso estas não se dispusessem voluntariamente a entregar-lhes os meios necessários para o efeito.
Acontece que analisada a petição inicial, verifica-se que nela a apelante não alega a existência de qualquer recusa da apelada em prestar a obrigação de socorro e auxilio de que os seus pais se encontravam alegadamente necessitados por parte da apelada.

A apelante não alega qualquer situação de conflito entre os seus falecidos pais e a apelada que tornasse legitimamente inconveniente a prestação daquela obrigação de socorro e de auxilio pela apelada aos pais.

A apelante limita-se a alegar que desde 2009, por solicitação expressa de seus pais, deixou de exercer a sua atividade profissional de empregada de balcão, que lhe proporcionava quantia correspondente ao salário mínimo nacional, para passar exclusivamente a dedicar-se a cuidar daqueles, face à idade avançada destes (mais de 70 anos) e à situação de doença que os afetava, deixando de receber a respetiva remuneração, cujo montante reclama da herança aberta por óbito de seus pais.

Acontece que como dito, a obrigação de socorro e de auxílio que impendia sobre a apelante, não era uma obrigação exclusivamente sua, mas impendia igualmente sobre a apelada, sem que a primeira alegue qualquer recusa desta em cumprir com essa obrigação ou qualquer facto que tornasse inconveniente que a apelada a cumprisse.

Essa obrigação de socorro e de auxilio não ia ao ponto de impor à apelante, sequer à apelada, a obrigação de deixarem de exercer as respetivas atividades profissionais.

Deste modo, com as precisões acima enunciadas, não podemos deixar de concluir que se a apelante deixou de exercer a sua atividade profissional, a pedido dos seus progenitores, para se dedicar exclusivamente a cuidar daqueles, fê-lo por sua iniciativa e sem dúvida alguma, no cumprimento de um dever de ordem moral ou social a que a mesma, enquanto filha, se achava vinculada e por um dever de justiça.

Com efeito, residindo a apelante no mesmo edifício em que residiam os seus pais (vide teor do testamento de fls. 16 a 17, onde se vê que o testador tem a mesma morada da apelante e certidão do assento de óbito dos falecidos pais desta, junta aos autos a fls. 46, onde se vê que estes residiam nessa mesma morada à data do respetivo óbito), segundo o sentimento prevalecente no meio social em que se inseria a apelante e os seus falecidos pais, impendia sobre aquela a obrigação de deixar de trabalhar para cuidar dos pais face à provecta idade e à situação de doença destes, atentos os laços de sangue que intercediam entre aquela e os pais e às relações de proximidade, convívio e entreajuda que entre eles necessária e naturalmente se estabeleceram decorrente de todos residirem no mesmo edifício.

Deste modo, não obstante sobre a apelante não existir nenhum dever jurídico de aceder ao pretenso pedido de seus pais para que deixasse de exercer a sua atividade profissional, para passar a cuidar exclusivamente daqueles, até porque, reafirma-se, a obrigação de socorro e de auxílio dos filhos em relação aos pais, não impendia exclusivamente sobre a apelante, mas também sobre a apelada, além de que essa obrigação não podia ir ao ponto de impor aos filhos a obrigação de deixarem de exercer a sua atividade profissional para passarem a cuidar dos pais, é indiscutível que, a ser certa a factualidade que vem alegada pela apelante em sede de petição inicial, esta acedeu a esse pretenso pedido de seus pais e assumiu o encargo de lhes prestar exclusivamente o auxilio de que se encontravam necessitados por se achar vinculada a um dever moral e social de satisfazer-lhes esse pedido e assumiu semelhante encargo, cujo cumprimento apesar de não lhe poder ser judicialmente exigido, por, em função das conceções sociais predominantes do meio em que se inseria, tal corresponder a um imperativo de justiça atenta a sua condição de filha e de residir no mesmo edifício onde residiam os pais e das consequentes relações de proximidade, convívio, solidariedade e entreajuda que essa circunstância, natural e espontaneamente, proporcionou e necessariamente fomentou.

Tal significa que se a apelante deixou de trabalhar a pedido de seus pais e assumiu o encargo exclusivo de lhes prestar o socorro e o auxílio de que os mesmos se encontravam necessitados, fê-lo no cumprimento de uma obrigação natural (art. 402º do CC).

Com efeito, “o art. 402º do CC consagra a obrigação natural como uma figura de caráter geral, estendendo o seu domínio a todos os deveres de ordem moral e social, cujo cumprimento não seja judicialmente exigível, mas corresponda a um dever de justiça” (14)

Para que exista uma obrigação natural, subsumível à previsão legal daquele art. 402º, como é sabido, importa averiguar se existe um dever moral ou social específico entre pessoas determinadas, o qual não é definido por lei, incumbindo ao tribunal e independentemente do juízo que a autora da prestação faça acerca da existência do dever, a determinação casuística sobre se existe ou não um dever que justifique a qualificação da obrigação como natural, e seguidamente, exige-se que esse dever moral ou social seja tão importante que o seu cumprimento envolve um dever de justiça (15).
Esse dever moral ou social afirmar-se-á quando subjacente ao cumprimento da obrigação está um dever moral ou social específico entre pessoas determinadas, cujo cumprimento seja imposto por uma reta composição de interesses (ditames de justiça). A existência desse dever moral ou social pode depender de circunstâncias subjetivas (as relações entre as pessoas, a situação económica de uma delas ou de ambas, a sua condição social, etc.), mas não o juízo que o autor da prestação faça acerca dele, posto que quem decide sobre a existência objetivo do dever, no caso de controvérsia, é o julgador, baseado na consciência colectiva (16).

Procurando exemplificar casos de efetivas obrigações naturais, direta ou indiretamente previstas na lei, Antunes Varela aponta como exemplo, além de outros, o regime fixado no n.º 3 do art. 495º do CC. em sede de alimentos, quando estes sejam prestados a favor de certas pessoas que não tenham o direito de exigi-los, pugnando que “são abrangidos pela previsão legal os parentes próximos (não compreendidos no art. 2009º) que tenham vivido com o lesado ou que este tenha auxiliado, a mulher com quem ele tenha vivido maritalmente, o criado que envelheceu ou se inutilizou ao serviço do patrão, etc.”, concluindo que “haverá obrigação natural na prestação de alimentos quando os laços de sangue, as relações de convívio ou os serviços prestados ao lesado imponham como um dever de justiça o encargo da sustentação, habitação e vestuário da pessoa a quem são facultados” (17).

Julga-se que este juízo formulado pelo autor acabado de identificar em relação à obrigação de alimentos, pode ser transposto para o caso dos autos, em que se está perante uma situação em que a apelante, na qualidade de filha, e residindo no mesmo edifício onde residiam os seus pais, decidiu pretensamente aderir ao pedido que estes expressamente lhe formularam no sentido de que deixasse de exercer a sua atividade profissional de empregada de balcão para, face à provecta idade e os problemas de saúde que os afetavam, passar exclusivamente a dedicar-se a cuidar destes, assumindo, em exclusivo, essa obrigação, não obstante não impender sobre si qualquer obrigação jurídica de deixar de exercer a sua atividade profissional para cumprir com a obrigação legal de prestar o socorro e o auxilio de que os pais se encontravam eventualmente necessitados, sequer desta obrigação legal impender exclusivamente sobre si, mas sobre aquela e a apelada, sua irmã.

Na verdade, julga-se que os laços de sangue e as relações de proximidade, convívio, solidariedade e entreajuda que necessária, natural e espontaneamente se estabeleceram entre a apelante e os seus pais, decorrentes desses laços de sangue e de todos viverem no mesmo edifício, ainda que eventualmente em partes separadas desse edifício, justifica plenamente que segundo o sentimento prevalecente no meio social em que se inseria a apelante e aqueles seus pais, a primeira tenha satisfeito aquele pedido dos progenitores, deixando de exercer a sua atividade profissional e dedicando-se exclusivamente a prestar-lhes o socorro e o auxílio de que os mesmos se encontravam alegadamente necessitados, assumindo sozinha essa obrigação, no cumprimento de um dever moral ou social e no cumprimento de uma ideia de justiça comutativa, não obstante, reafirma-se, inexistir qualquer obrigação legal daquela de abandonar a sua atividade profissional para cuidar dos pais, sequer de assumir sozinha essa obrigação de cuidar dos pais.

Um dos traços característicos das obrigações naturais é o do seu cumprimento não ser judicialmente exigível e da impossibilidade de repetir o indevido (art. 403º do CC).
Destarte, tendo a apelante cumprido aquela obrigação natural, de forma espontânea, livre de qualquer coação, para com os seus progenitores, deixando de exercer a sua atividade profissional, a pedido destes, para deles cuidar, quando a isso não se encontrava juridicamente obrigada, e assumindo o encargo de sozinha se dedicar à prestar-lhe a obrigação de socorro e de auxílio de que aqueles se encontravam necessitados, não obstante essa obrigação legal impender sobre si e sobre a sua irmã (a apelada), sem que se encontre alegado que tivesse alguma vez reclamado dos seus pais que estes lhe pagassem qualquer contributo por via da perda salarial em que incorreu por via de lhes ter satisfeito aquele pedido ou que esses seus pais ou a própria apelante reclamasse junto da apelada para que esta assumisse a essa quota-parte de obrigação de prestar aquela obrigação de apoio e auxílio aos pais, não lhe assiste, nos termos do disposto no art. 403º do CC., o direito de agora pretender ser credora dos montantes das retribuições que deixou de auferir por via daquela sua decisão e que a mesma cumpriu, reafirma-se, no cumprimento de uma obrigação natural.

A título subsidiário, a apelante pretende que lhe seja reconhecido o direito a receber o montante das retribuições que deixou de auferir da herança aberta por óbito de seus pais, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, sustentando que ao não contratarem pessoas para deles cuidar, apesar de terem posses, os pais (não a herança destes, que, como é bom de ver, apenas se abriu com a morte daqueles) enriqueceram-se à custa daquela, revertendo esse enriquecimento para a herança e, consequentemente, para a apelada que, em sede de partilhas, vai beneficiar desse enriquecimento da herança à custa do empobrecimento daquela, mas antecipe-se, desde já, com manifesta falta de razão.

Com efeito, o instituto do enriquecimento sem causa encontra-se regulado nos arts. 473º a 482º do CC. e traduz-se num instituto subsidiário a que, consequentemente, o empobrecido apenas pode recorrer quando a lei não lhe faculte outros meios de reação (art. 474º do CC), destinado a solucionar situações de “enriquecimento sem causa, de enriquecimento injusto ou de locupletamento à custa alheia” (18).

Assim é que o art. 473º, n.º 1 do CC. estatui que aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou, concretizando o seu n.º 2, que a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.

Como é entendimento pacífico, são requisitos cumulativos deste instituto: a) que haja um enriquecimento patrimonial de alguém; b) que esse enriquecimento careça de causa justificativa; e c) que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição (19).

Quanto ao primeiro requisito, o enriquecimento patrimonial consiste na obtenção de uma vantagem de caráter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista.

Deste modo, essa vantagem pode traduzir-se num aumento do ativo patrimonial do enriquecido, numa diminuição do respetivo passivo, no uso ou consumo pelo mesmo de coisa alheia ou no exercício por aquele de direito alheio ou, ainda, a poupança de despesas (20).

Já no que respeita ao segundo requisito, exige-se que o enriquecimento criado esteja em desarmonia “com a ordenação dos bens aceites pelo sistema” jurídico, isto é, se o enriquecimento está de acordo com o sistema jurídico, então a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, “por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa”. Dito por outras palavras, haverá uma situação de enriquecimento sem causa quando à luz dos princípios aceites no sistema jurídico, não exista uma relação ou um facto que legitime esse enriquecimento, quer porque essa relação ou facto que legitima o enriquecimento (a causa) nunca existiu, ou porque, entretanto, desapareceu (21).

Quanto ao último requisito exige-se que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga o direito à restituição, isto é, que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa, isto é, a expensas da pessoa que exige a restituição, sem que exista de permeio, entre o ato gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro ato jurídico (22). Logo, tem de se afirmar um nexo causal entre o enriquecimento do enriquecido e o empobrecimento da pessoa que exige a restituição.

Como é bom de ver, tendo a apelante acedido ao pedido de seus pais, deixando de trabalhar para se dedicar exclusivamente a prestar-lhes o socorro e o auxílio de que os mesmos se encontravam pretensamente necessitados, no cumprimento de uma obrigação natural, o alegado empobrecimento da apelante e o consequente enriquecimento de seus pais (ou da herança destes), tem causa justificativa, o qual seja, o facto da mesma ter acedido a esse pedido dos pais, deixando de exercer a sua atividade profissional e passando a deles cuidar sozinha no cumprimento de uma obrigação natural.

Neste sentido pronuncia-se Antunes Varela, ao ponderar judiciosamente que “além de não poder ser repetida, a prestação do naturaliter obligatus não dá lugar à obrigação de restituir nos termos do enriquecimento sem causa” (23).

Por último e para descanso da apelante, sempre se dirá que, no caso, é bastante discutível que tivesse ocorrido um efetivo empobrecimento daquela por via da sua decisão em aceder ao pedido de seus pais, deixando de exercer a sua atividade profissional de empregada de balcão para se dedicar exclusivamente e sozinha a cuidar destes, quando, conforme se vê do testamento outorgado pelo seu falecido pai, Fernando, este legou a favor da apelante, por conta da sua quota disponível, o usufruto vitalício de todos os seus bens e instituiu-a como única herdeira do remanescente da quota disponível da sua herança (cfr. fls. 16 a 17), disposição testamentária esta a que certamente não foi alheio o sacrifício que aquela apelante fez em benefício de seus falecidos pais no cumprimento da sobredita obrigação natural a que se sujeitou.
Resulta do que se vem dizendo que nenhuma censura nos merece a decisão recorrida, quando julgou a pretensão da apelante manifestamente improcedente e, em consequência, absolveu a apelada do pedido, que assim se impõe ser confirmada.
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Decisão:

Nestes termos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação totalmente improcedente e, em consequência,

- confirmam o saneador-sentença recorrido.
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Custas pela apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
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Guimarães, 20 de setembro de 2018

José Alberto Moreira Dias
António José Saúde Barroca Penha
Eugénia Maria Marinho da Cunha



1. Andreia Joana Morris Mendes, tese de mestrado “Direito ao Envelhecimento, Perspetiva Jurídica dos Deveres Familiares” – Universidade do Minho, Escola de Direito, pág. 72.
2. Carlos Alberto Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed., Coimbra Editora, págs. 146.
3. Mara Margarida Augusto, “Cuidar dos Idosos: Um Dever Familiar”, Universidade de Coimbra, 2013, 2º Ciclo de Estudos em Direito, pág. 17.
4. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª ed., Almedina, págs. 206 a 208.
5. Carlos Alberto da Mota Pinto, ob. cit., pág. 147.
6. Neste sentido Andreia Joana Morris Mendes, in ob. cit., pág. 71, onde escreve: “Por princípio todos os deveres familiares são gerais, universais, inalienáveis e irrenunciáveis, porquanto correspondem a direitos e deveres pessoais, no âmbito de relações profundamente cunhadas pela afectividade e reciprocidade moral. Dessa forma, a lei reconhece a relevância jurídica dessas posições, consagrando-as como preceitos normativos e conferindo-lhes força vinculativa, pelo que, muito embora o conteúdo desses deveres seja, na sua maioria, conformado pelos seus agentes, de acordo com a relação entre eles existente, esses apresentam-se como obrigações imperativas, cujo conteúdo mínimo é determinado pelo legislador, atendendo aos costumes e convenções sociais, o que fundamenta a natureza irrenunciável de tais obrigações. Tal característica reflecte a estrutura específica dos direitos pessoais familiares enquanto direitos-deveres, reciprocamente atribuídos a ambos os titulares. Estes deveres traduzem, portanto, verdadeiros direitos jurídicos e não apenas meros poderes de pretensão implicando a sua violação consequências civis e penais, dessa forma se garantindo a sua plena efetivação”.
7. Jorge Duarte Pinheiro, “O Direito da Família Contemporâneo – Lições” – Reimpressão revista da 3ª ed., Lisboa, AADDL, 2011, pág. 275.
8. Jorge Duarte Pinheiro, ob. cit., pág. 299.
9. Maria Margarida Augusto, ob. cit., págs. 35 e 36. Tomé d´Almeida Ramião, “O Divórcio e Questões Conexas – Regime Jurídico Atual”, Quid Juris, 2009, pág. 24. Ac. STJ. de 12/07/2007, Proc. 07A2476, in base de dados da DGSI, onde se lê: “O dever de assistência dos filhos aos pais idosos e fragilizados – não se confunde com o dever de prestar alimentos aos ascendentes – pode implicar certa coabitação para apoio no dia a dia e, embora possa representar incómodos e sacrifícios, não é indemnizável a título de dano patrimonial próprio dos descendentes. Mas o ascendente assistido deve contribuir, na medida das suas possibilidades, para criar condições que atenuem esses incómodos e para satisfazer despesas, não facilmente contabilizáveis que a sua presença implica.
10. Neste sentido Vaz Serra, RLJ, 102º, pág. 262. No mesmo sentido Ac. RL de 05/05/2016, Proc. 194-15.0T8MGD.L1-8, in base de dados da DGSI, onde se lê que; “no conceito de alimentos, quer no âmbito do art. 384º do CPC (…), quer no âmbito do art. 2033º do CC, não cabe apenas aquilo que é indispensável para o sustento, habitação e vestuário, podendo tal expressão abranger outras necessidades imperiosas do alimentando, que terão de ser apreciadas caso a caso”.
11. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. IV, 2ª ed, Coimbra Editora, 1992, pág. 263.
12. Paula Távora Vítor, “O Dever Familiar de Cuidar dos Mais Velhos” Lex Familiae, Ano 5, n.º 10, 2008, pág. 53.
13. Ac. RL. de 05/052016, Proc. 194-15.0T8MGD.L1-8, in base de dados da DGSI.
14. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª ed., Almedina, pág. 747.
15. Ac. RG. de 11/02/2016, Proc. 1307/07.1TBFAF.G2, in base de dados da DGSI.
16. Antunes Varela, ob. cit., pág. 749.
17. Antunes Varela, ob. cit., pág. 751.
18. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª ed., Almedina, págs. 484 e 485.
19. Antunes Varela, ob. ct., vol. I, pág. 495.
20. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 454.
21. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 455 e 456. Acs. STJ. de 04/07/2007, Proc. 04/10/2007, Proc. 07B2772,in base de dados da DGSI; RC. 11/05/2004, CJ, 2004, t. 3º, pág. 8. No mesmo sentido Menezes Cordeiro, “Direito das Obrigações”, 2º, vol., 1990, AAFDL, pág. 56: “A ausência de causa emerge (…) da inexistência de normas jurídicas que, a título permissivo ou de obrigação, levem a considerar o enriquecimento como coisa estatuída, isto é, tolerada ou querida pelo Direito”.
22. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 457 e 458.
23. Antunes Varela, ob. cit., pág. 745.