Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6132/08.0TBBRG.G1
Relator: MANSO RAINHO
Descritores: CIRE
INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O nº 1 do art. 146º do CIRE, no segmento em que determina a citação dos credores por éditos na acção de verificação ulterior de créditos, quando interpretado no sentido da respectiva aplicabilidade ao credor hipotecário em caso de invocação de direito de retenção pelo autor da acção, não padece de inconstitucionalidade.
II - Tendo o administrador da insolvência optado por não cumprir a promessa de venda, o beneficiário da promessa que passou sinal não goza sobre a massa falida de crédito ao dobro do que prestou.
III - Tão pouco goza de direito de retenção, apesar do imóvel prometido vender lhe ter sido traditado.
IV - O direito de retenção, apesar de ter sido constituído ulteriormente ao registo da hipoteca, prevalece sobre a hipoteca, não sendo inconstitucional nesta interpretação o nº 2 do art. 759º do CCivil.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 1ª Secção Cível da Relação de Guimarães:

A, Ldª intentou acção sumária, ao abrigo do art. 146º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e por apenso aos autos da insolvência de J, correntes pelo 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Braga, contra Massa Insolvente de J, Credores da Massa Insolvente e J e mulher M, peticionando que fosse verificado a seu favor, para ser graduado no lugar devido, o crédito de €60.000,00, bem como que fosse reconhecido direito de retenção sobre o prédio que indica.
Alegou para o efeito, em síntese, que o insolvente e mulher lhe prometeram vender a fracção autónoma que especificam, cuja posse lhes foi conferida, tendo sido passado o sinal de €30.000,00. Sucede que o promitente vendedor veio a ser declarado insolvente e o administrador da insolvência decidiu não cumprir o contrato. O incumprimento da promessa implica a devolução à Autora do dobro da quantia do sinal prestado e confere direito de retenção sobre a coisa.
Os demandados foram citados, sendo os credores por via edital conforme o estabelecido no nº 1 do art. 146º do CIRE.
Não foi apresentada qualquer oposição.
Foi de seguida proferida sentença que julgou procedente o pedido.

Inconformada com o assim decidido, apela a credora C, S.A.

Da sua alegação extrai as seguintes conclusões:

1ª. O contrato-promessa de compra e venda relativa à identificada fracção é de natureza meramente obrigacional, porquanto não foi celebrado por escritura pública nem sujeito a registo.
2ª.A discussão dos autos prende-se com a disciplina legal a aplicar aos negócios em curso à data dessa declaração, cujo cumprimento foi recusado pelo Administrador de Insolvência.
3ª. Tais contratos estão sujeitos à disciplina legal específica, consagrada nos artºs 102º a 119º do CIRE.
4ª. O actual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), que sucedeu ao revogado Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), veio instituir uma nova filosofia (“autónoma e distinta”) que visa, fundamentalmente, garantir os direitos dos credores na sua globalidade, razão pela qual estes passam a ter um papel absolutamente preponderante e definitivo nas decisões a tomar em sede insolvencial, mormente no que concerne aos destino dos negócios em curso, o que justifica que o Administrador de Insolvência surja com poderes reforçados relativamente aos seus anteriores congéneres (Administrador Judicial e Liquidatário Judicial).
5ª. No que concerne aos negócios em curso à data da declaração de insolvência, foi introduzido um princípio geral no artº 102º do CIRE segundo o qual cabe ao Administrador de Insolvência optar pelo cumprimento ou recusa do cumprimento dos contratos.
6ª. Em caso de recusa do cumprimento por parte do Administrador, a indemnização à contraparte está limitada “ao valor da prestação do devedor, abatido do valor da contraprestação de que a outra parte ficou exonerada…”, pelo que, e citando Menezes Leitão, “a denominada recusa de cumprimento gera uma indemnização por incumprimento, em que o legislador manda aplicar integralmente a teoria da diferença”.
7ª. Em sede de princípio geral, optando o Administrador de Insolvência pela recusa do cumprimento do negócio em curso, por assim entender ser mais vantajoso para a pluralidade de credores, o valor da indemnização à contraparte fica limitado ao dano provocado, ainda que com significativas restrições.
8ª. Para além disso, o crédito indemnizatório resultante da opção pelo não cumprimento do contrato é um crédito sobre a insolvência (artº 102º, nº 3, alínea d), iii)), de natureza comum, como, aliás, expressamente o referem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda em CIRE Anotado, nota 10 ao artº 102º.
9ª. Para além do princípio geral postulado pelo artº 102º do CIRE, o artº 119º do mesmo diploma vem atribuir carácter absolutamente imperativo às disposições constantes dos artºs 102º a 118º, sendo nula qualquer convenção ou cláusula que exclua ou limite o seu âmbito de aplicação.
10ª. Esta expressa menção a cláusulas ou convenções é necessariamente extensível a disposições de carácter legal, constantes de lei geral, que postulem regimes indemnizatórios diversos do estabelecido nesta especial lei do regime insolvencial, em obediência ao princípio da derrogação da lei geral por lei especial.
11ª. O tratamento legal a dar aos negócios em curso à data da declaração de insolvência obedece ao princípio geral constante do artº 102º do CIRE, com as excepções previstas nos artigos subsequentes e só com essas excepções, por força da limitação imposta pelo artº 119º.
12ª. O contrato-promessa de compra e venda que motiva o presente recurso é de natureza meramente obrigacional (ou seja, sem eficácia real), com tradição da coisa prometida vender (in casu, as fracções prediais), em que o insolvente ocupa a posição de promitente vendedor.
13ª. O anterior CPEREF abordava as promessas de contrato no seu artº 164º-A, introduzido pelo DL 315/98, que estabelecia dois específicos regimes para os casos de promessa com eficácia real (nº 2 do artº 164º-A) e para os casos de promessa sem eficácia real (nº 1 do mesmo artigo).
14ª. No caso de promessa com eficácia real, o legislador do CPEREF consignou o direito do promitente-comprador à celebração do contrato ou à respectiva execução específica, mantendo o falido promitente alienante vinculado à celebração do negócio. Esta norma do nº 2 do artº 164º-A do CPEREF foi adoptada pelo legislador do CIRE que, com a introdução do requisito da tradição, a consagrou no artº 106º, atribuindo assim ao contrato-promessa de compra e venda com eficácia real e com traditio um tratamento especial (o do artº 106º) e diferenciado (por referência à regra geral do artº 102º).
15ª. No caso de promessa sem eficácia real, o CPEREF, no seu artº 164º-A, nº 1, postulava a regra da respectiva extinção ipso iure com a declaração de falência, com restituição ao promitente-comprador do dobro do sinal prestado.
16ª. Optou o legislador de então (o do CPEREF) pela manutenção do regime geral constante do art 442º do Código Civil, razão pela qual tem vindo a ser dominante (mas não unânime) o entendimento segundo o qual, na vigência do CPEREF, o beneficiário da promessa (sem eficácia real) que obteve a tradição da coisa goza do direito de retenção que lhe é conferido pela alínea f), do nº 1, do artº 755º do Código Civil, exactamente enquanto medida de protecção do direito ao crédito resultante do artº 442º.
17ª. Sucede que esta norma do nº 1,do art 164º-A do CPEREF não foi transposta para o CIRE. Por isso, tendo o legislador do CIRE fixado um regime geral para os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso ao qual atribui natureza imperativa (salvo as excepções consagradas no próprio CIRE) e tendo tomado a opção expressa de não consignar qualquer regime especial ou de excepção (de entre os elencados nos artº 103º a 118º) para o contrato-promessa sem eficácia real (com ou sem traditio), é-lhe aplicável (ao contrato-promessa sem eficácia real) o regime geral do artº 102º.
18ª. Regulando-se o direito de crédito do promitente-comprador sem eficácia real pelos termos consignados no artº 102º do CIRE, este tem, como crédito indemnizatório de natureza comum, o direito ao recebimento do sinal por si prestado, em singelo, e sem qualquer tipo de garantia ou privilégio, mormente direito de retenção.
19ª. Para além disso, o poder discricionário que o legislador do CIRE conferiu ao administrador da insolvência de cumprir ou recusar o cumprimento de contratos em vigor à data da declaração de insolvência em conformidade como seu Juízo próprio e na perspectiva da solução mais equitativa para uma pluralidade de credores (e não necessariamente para o contraente do contrato em concreto) leva a que a recusa do cumprimento não seja imputável ao insolvente ou por culpa deste.
20ª. Inexistindo, em caso de recusa do cumprimento por parte do administrador de insolvência, culpa do insolvente nesse incumprimento e direito à devolução do sinal em dobro nos termos do artº 442º CCivil, encontra-se afastada a possibilidade de aplicação do disposto na alínea f), do nº 1, do artº 755º do CCivil, porquanto o direito de retenção (com as consequências constantes do nº 2 do artº 759º do mesmo diploma legal) ali conferido ao beneficiário da promessa de transmissão que obteve tradição da coisa tem por requisitos cumulativos a existência de crédito decorrente do artº 442º e o não cumprimento imputável à contra-parte.
21ª. No âmbito do processo dos autos e relativamente à fracção predial objecto do presente recurso, o promitente-comprador prestou sinal do montante global de € 30.000,00, sendo este, por isso, o valor do seu prejuízo.
22ª. A decisão do Administrador de Insolvência de não cumprir o contrato em curso não poderá converter automaticamente um crédito de € 30.000,00 num crédito garantido de € 60.000,00. A ser assim, o promitente-comprador passaria a constituir o único credor com lucro na declaração de insolvência, lucro esse pago à custa de um aumento do prejuízo dos restantes credores e em manifesta violação do princípio da igualdade entre credores e da teoria da diferença no que à indemnização pelo não cumprimento dos negócios em curso concerne.
23ª. À pergunta “No domínio dos negócios em curso à data da declaração de insolvência, um promitente-comprador de fracção de edifício, com traditio, cujo contrato-promessa (com eficácia meramente obrigacional) não foi cumprido pelo administrador da insolvência, goza do direito ao recebimento do sinal em dobro e da qualificação do seu crédito como garantido por via do direito de retenção (sendo assim graduado acima do credor hipotecário)?” deverá responder-se, inequivocamente, não!
24ª. No domínio dos negócios em curso à data da declaração de insolvência, o promitente-comprador de fracção de edifício, com traditio, cujo contrato promessa (com eficácia meramente obrigacional) não foi cumprido pelo administrador da insolvência não tem direito ao recebimento do dobro do sinal previsto no artº 442º do CCivil.
25ª. O mesmo promitente-comprador também não goza do direito de retenção a que se refere a alínea f), do nº 1, do artº 755º do C.Civil.
26ª. O crédito do promitente-comprador é de natureza comum e o seu montante corresponde ao valor do sinal prestado acrescido da diferença (se positiva) entre o preço convencionado e o valor da fracção à data da recusa do cumprimento do contrato, inexistindo, nestes autos, tal diferença positiva.
27ª. A sentença recorrida, ao reconhecer o crédito reclamado pelo valor relativo ao dobro do sinal prestado e com a garantia resultante do exercício do direito de retenção, violou as disposições constantes dos artº 102º, 103º, 104. 106º e 119º do CIRE.
Da(s) inconstitucionalidade(s)
28ª. O direito de retenção do beneficiário de promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo DL nº 236/80, de 18 de Julho (que modificou a redacção dos artºs 410º, 442º e 830º do Código Civil) e definitivamente consagrado pelo DL nº 379/86, de 11 de Novembro (que aditou a actual alínea f) ao nº 1 do artº 755º do Código Civil).
29ª. A consagração deste direito de retenção constituiu uma excepcional medida de protecção do direito à habitação e à família, em circunstâncias sociais e económicas muito específicas, em que, com uma inflação galopante e uma forte especulação imobiliária, o construtor ou promotor imobiliário não raras vezes obtinha vantagem patrimonial no não cumprimento dos contratos-promessa de compra e venda, ainda que devolvendo em dobro o sinal ao promitente-comprador, que assim se via despojado da habitação que já ocupava.
30ª. Este excepcional contexto económico e social está há muito ultrapassado, razão pela qual vem sendo cada vez mais pacífico de entre a doutrina a necessidade de remover do nosso ordenamento jurídico um instituto cuja ratio se esvaneceu, constituindo hoje não só uma subversão às regras de publicidade e proibição de ónus ocultos nos direitos reais, como também uma poderosa arma destinada ao exercício da fraude, a coberto da lei, uma vez que a preferência conferida ao direito de retenção sobre a hipoteca é frequentemente utilizada pelos construtores promitentes vendedores (com dificuldades na solvência dos seus encargos) como um meio de pressão sobre a entidade financiadora garantida, mediante a permissão da ocupação de fracções em vias de acabamento pelos respectivos promitentes-compradores.
31ª. As generalizadas reservas doutrinais ao direito de retenção do promitente-comprador com traditio e a sua prevalência sobre outros direitos de natureza real anteriormente constituídos e sujeitos a registo, mormente a hipoteca, decorrem exactamente da circunstância da aplicação da norma constante da alínea f), do nº 1, do artº 755º do Código Civil resultar na introdução no comércio jurídico de um ónus oculto e incontrolável, que de modo inopinado posterga para segundo plano garantia real anteriormente constituída e a que foi dada a competente publicidade por via registral.
32ª. Descendo ao plano dos autos, temos que a CGD emprestou ao insolvente € 300.000,00 (trezentos mil euros), quantia cujo pagamento este garantiu com a constituição de uma hipoteca voluntária sobre o prédio descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº 519/Sequeira.
33ª. À primazia conferida ao banco financiador através da constituição de hipoteca sobre o prédio é dada a competente publicidade por via registral, de modo a que qualquer pessoa ou entidade que possua qualquer interesse sobre aquele bem em concreto considerado possa tomar conhecimento do ónus que sobre o mesmo impende, formando assim, com certeza e segurança jurídicas, a sua vontade em contratar.
34ª. O princípio da tipicidade dos direitos reais e a sua necessária subsunção às regras do registo predial visam exactamente impedir, no âmbito do comércio jurídico imobiliário, o aparecimento direitos atípicos e inopinados, que perturbem a segurança e a fiabilidade das operações sobre imóveis.
35ª. Excepção à regra da presunção registral e do trato sucessivo são as situações de facto públicas, pacíficas, duradouras e de boa fé, que pela sua natureza ostensiva e de perduração no tempo legitimam a constituição de direitos reais com quebra do trato sucessivo. É manifestamente o caso da aquisição do direito de propriedade por usucapião.
36ª. O direito de retenção tem na sua génese essa componente de publicidade e de latitude temporal, por referência ao negócio jurídico a que serve de garantia. Existe uma correspectividade temporal entre a detenção da coisa retida e o negócio jurídico que origina e legitima o direito de retenção, o que confere ao direito de retenção um elemento de publicidade de facto, que o torna perceptível por (e oponível a) terceiros.
37ª. E é nesta medida que deverá ser interpretado o conteúdo do artº 759º, nº 2 do Código Civil, quando refere que o direito de retenção sobre imóvel prevalece sobre hipoteca, ainda que esta tenha sido constituída anteriormente.
38ª. Quando o direito de retenção é exercido por promitente-comprador com traditio, nos termos preceituados na alínea f), do nº 1, do artº 755º, ele (direito de retenção) nasce com o não cumprimento imputável à contraparte, mas alicerça-se numa situação de facto (a detenção) a montante desse incumprimento e que, publicamente, à vista de toda a gente e de boa fé, perdura desde a traditio.
39ª. Se credor hipotecário registar a sua hipoteca sobre determinado prédio (ou fracção dele) antes de consubstanciado o direito de retenção de promitente-comprador desse prédio (ou fracção) mas já depois de verificada a traditio (no âmbito de uma promessa em cumprimento), o seu direito hipotecário de garantia terá necessariamente de sucumbir perante o posterior direito do retentor.
40ª. Porém, no caso dos autos a constituição da hipoteca em benefício da CGD ocorre muito antes da celebração do contrato-promessa sobre a fracção identificada neste recurso, bem como (e obviamente) muito antes da respectiva traditio. Por isso, a situação de facto (tradição da coisa) que legitima o promitente-comprador a exercer direito de retenção é substancialmente posterior à constituição e registo das garantias hipotecárias da CGD.
41ª. É esta ideia de certeza e fiabilidade dos institutos jurídicos que, por violação do princípio da segurança e protecção da confiança jurídicas, ínsito no princípio do Estado e Direito Democrático, consagrado pelo artº 2º da CRP, leva à inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artº 759º do Código Civil, conjugada com a norma constante da alínea f), do nº 1, do artº 755º do mesmo diploma legal, quando interpretada no sentido de que o direito de retenção do promitente-comprador com traditio prefere ao credor hipotecário mesmo quando essa traditio seja comprovadamente posterior à constituição e registo da hipoteca.
42ª. Nos termos do preceituado na última parte do nº 1 do artº 146º do CIRE, a citação dos credores em sede de acção de verificação ulterior de créditos é efectuada por via de éditos de 10 dias, sendo apenas pessoalmente citados a massa insolvente e o devedor.
43ª. A razão de ser da citação pessoal da massa insolvente e do devedor prende-se com a particular relevância que a acção de verificação ulterior assume para estas partes processuais.
44ª. O devedor é o primeiro e principal lesado com o reconhecimento de mais um crédito, pelo que, nessa medida, não só deverá figurar como réu como terá de ser pessoalmente citado por forma a que se assegure de modo pleno o princípio geral do contraditório.
45ª. A citação pessoal da massa insolvente decorre da especial posição conferida ao administrador de insolvência pelo CIRE.
46ª. As restantes partes rés na acção de verificação ulterior (os credores) são citados editalmente, porquanto, à partida, a acção em apreço apenas os atinge reflexamente, no âmbito do rateio a efectuar em sede de liquidação.
47ª. A invocação de direito de retenção sobre imóvel onerado com hipoteca contende directamente com o direito do respectivo credor hipotecário, fragilizando esse direito, na exacta medida da diminuição do valor da garantia hipotecária, em virtude da sobreposição do crédito que goze de retenção.
48ª. Quando em sede de acção de verificação ulterior de créditos seja requerido o reconhecimento de direito de retenção sobre imóvel onerado com hipoteca, o credor hipotecário deve, para esse efeito, ser equiparado ao devedor, sendo pessoalmente citado, exercendo assim, de forma plena, a defesa dos seus interesses legalmente protegidos.
49ª. A norma constante da última parte do nº 1, do artº 146º do CIRE, que contempla a mera citação edital dos credores réus, contende com imperativos de ordem constitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade, da protecção jurídica, das garantias processuais e da tutela jurisdicional efectiva, consagrados pelos artºs 2º e 20º da CRP, quando interpretada no sentido da sua aplicabilidade ao réu credor hipotecário, nos casos em que a acção proposta contenda directamente com o direito desse credor, mormente quando ali se peticiona o reconhecimento ali se peticiona o reconhecimento de um direito de retenção que se sobrepõe à garantia hipotecária.

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A Autora contra-alegou, concluindo pela improcedência da apelação.

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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Ter-se-á em conta que o teor das conclusões define o âmbito do conhecimento deste tribunal ad quem.

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Quanto à matéria das conclusões 42ª a 49ª:

A primeira questão de que importa conhecer, atenta a natureza prejudicial que tem sobre o mais a decidir, é aquela a que se reportam as conclusões em destaque: a da alegada inconstitucionalidade da norma do nº 1 do art. 146º do CIRE quando interpretada no sentido da respectiva aplicabilidade ao credor hipotecário em caso de invocação de direito de retenção pelo autor da acção. (Esta questão, sem embargo, parece vir suscitada a título subsidiário, conforme decorre da parte final da alegação; mas dado que a subsidiariedade não desponta das próprias conclusões, vamos, à cautela, dela conhecer).
Pensamos que não pode ser dado provimento à pretensão recursiva em apreço.
É certo que a ora Apelante, credora hipotecária, foi citada por éditos e não pessoalmente, ao abrigo da supra citada norma legal.
Acontece que, e seguindo aqui o raciocínio exposto no Ac. do TC de 8 de Março de 2007 (disponível em www.tc/jur.pt), proferido numa espécie em que o thema decidendum era, mutatis mutandis, similar ao presente, é de entender que conquanto o processo judicial, por determinação constitucional, deva ser proporcionado, equitativo e propiciar uma tutela plena e efectiva, há-de o mesmo ser o adequado para a obtenção dos fins específicos que estiverem em causa. Deste modo, há-de reconhecer-se ao legislador ordinário uma margem de ponderação acerca do modo como deve ser desenhado o figurino processual adequado à efectivação jurisdicional da tutela própria dos específicos direitos ou interesses em questão, de sorte que não pode defender-se, sem mais, que certas regras concebidas para dar resposta às situações comuns (como é o caso da citação pessoal) devam ser igualmente adoptadas em outras formas ou espécies de processos diferentes, eles próprios estruturados para dar resposta a diferentes exigências dos direitos que neles se debatem.
Ora, a norma em causa insere-se no contexto processual de uma execução universal do património do devedor e, como assim, o leque de sujeitos envolvidos é normalmente muito diferente daquele que se encontraria numa comum acção ou execução, desenvolvendo-se o litígio aqui, não entre duas partes, mas entre um credor emergente e toda uma série de outros credores. Nesta medida, a específica natureza da tutela jurisdicional que é dispensada aos direitos e interesses no processo de insolvência não impede que o legislador tenha considerado, ao invés do juízo que faz em outros contextos processuais, que o meio mais adequado para propiciar, em relação aos credores, incluindo os hipotecários, a defesa dos seus interesses creditórios contra um qualquer credor emergente que possa beneficiar de uma garantia preferente (caso do direito de retenção) se faça mediante chamamento por éditos. Tal opção, dispensando as formalidades da citação pessoal, permite dar resposta às exigências de celeridade processual na obtenção da tutela jurisdicional, especialmente intensa no processo de insolvência. Consequentemente, também não pode dizer-se que é posto em causa o princípio da proporcionalidade, por isso que há uma razoável adequação das medidas aos fins, e aquelas não são excessivas ou incomportáveis para os credores, na certeza de que a citação por éditos no âmbito de uma insolvência já publicitada, e onde é expectável que possam surgir novas pretensões creditícias, assegura sempre aquele mínimo de chamamento ao processo que a citação visa propiciar.
Pelo exposto, sendo embora correcto o que se afirma nas conclusões 42ª a 47ª, improcede o que se diz nas conclusões 48ª e 49ª.

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Apreciemos agora as demais questões colocadas pela Apelante.
Para o efeito, importa recuperar aqui os factos essenciais que, com interesse para a decisão da causa, estão subentendidos (mas não especificados, aliás em violação da alínea b) do nº 1 do art. 668º do CPC) como provados na sentença recorrida, e que são os seguintes:

1. A A. celebrou em 17 de Novembro de 2007, através do escrito de fls. 12 e 13, um contrato com os R.R. J e M, nos termos do qual estes lhe prometeram vender um armazém com 600 m2, sito na Rua da Ribeira, rés-do-chão direito frente, correspondente à fracção “B” do prédio descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Braga, sob o nº 519/20010521, pelo preço de €160.000,00.
2. Tal preço era a pagar nas seguintes condições: €25.000,00 foram entregues no momento da outorga do contrato; o resto do preço seria pago na data de escritura de compra e venda.
3. Na mesma data os R.R. entregaram à A. a fracção, que imediatamente a tomou, passando a ocupar o referido imóvel pacífica e publicamente,
4. Desde então a A. passou a utilizar o armazém para guardar bens que lhe pertencem e que lá se encontram.
5. Foi acordado também que a escritura de compra e venda seria outorgada em dia, hora e cartório notarial a indicar pelos RR., logo que toda a documentação se encontrasse em ordem, devendo os RR. avisar a A. para tal outorga com dois dias de antecedência.
6. Entretanto, em 30 de Maio de 2008 a A. entregou aos RR. mais a quantia de €5.000,00 a título de sinal.
7. Em Maio de 2009, a A. tomou conhecimento de que o Réu fora declarado insolvente.
8. Por carta datada de 1 de Março de 2010 o Administrador comunicou à A. que não iria cumprir o contrato.
9. Em 23 de Dezembro de 2002 foi registada sobre o prédio de que faz agora parte a dita fracção autónoma hipoteca voluntária a favor de C, S. A..

Vejamos então:

Quanto à matéria das conclusões 1ª a 27ª:

Está aqui em causa saber se a Autora goza do crédito contra a Massa Falida pela quantia de €60.000,00, nos termos do nº 2 do art. 442º do CCivil, bem como de direito de retenção sobre a fracção que lhe foi prometida em venda.
A nosso ver, e sem prejuízo de reconhecermos a sustentabilidade da bem fundamentada sentença recorrida, não goza.
Justificando:
Como é sabido e consabido, o princípio geral quanto aos negócios ainda não cumpridos à data da declaração de insolvência é o de que o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento - artº 102º nº1 do CIRE (serão do CIRE as normas adiante indicadas, salvo menção em contrário). Tal opção resolve-se num direito potestativo (e não numa simples actuação ad libitum) do administrador, orientado pelo vector exclusivo do interesse da massa insolvente (e, em consequência, do interesse dos credores). Esta regra vale integralmente para o caso de se estar perante contrato-promessa com natureza meramente obrigacional, como é confirmado pelo teor do art. 106º.
Portanto, desde logo há a ter em conta que no contexto especial da insolvência a lei, tratando-se de promessa não dotada de eficácia real, como que transmuda os deveres que normalmente (isto é, não fora a declaração de insolvência) decorreriam para o promitente devedor, sem que o administrador possa ser visto como estando vinculado, como se fora um estrito sucessor do devedor (pelo contrário, o administrador funciona como um representante da massa insolvente e, como tal, defensor dos interesses desta), ao cumprimento da promessa. Isto traz consigo imediata e apodicticamente uma conclusão, qual seja, a de que a opção do administrador pelo não cumprimento não se traduz num facto ilícito gerador da obrigação de indemnização que normalmente sobreviria em caso de não cumprimento da promessa pelo devedor, antes produz apenas as consequências previstas no nº 5 do art. 104º (ex vi do nº 2 do art. 106º) e no nº 3 alínea c) do art. 102º (asserção esta que, aliás, deve ser vista como reforçada pelo teor do art. 119º, que estabelece a imperatividade das normas em causa).
Isto significa que está afastada a actuação do regime do sinal conforme vem disciplinado no art. 442º do CCivil, justamente porque não é compatível com o regime específico fixado em tais normas do CIRE.
E também significa que não se pode ter como configurada a existência de um direito de retenção a favor do promitente-comprador, tanto porque esse efeito não está consignado no citado art. 102º para a recusa do cumprimento por parte do administrador, como porque, contrariamente ao que se exige na al. f) do art. 755º do CCivil, não estamos perante um crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte contratante. E tudo isto tem toda a lógica, se se atentar no princípio par conditio creditorum que enforma o regime legal da insolvência.
Ora, aplicando estas regras ao caso vertente, não temos senão de concluir que a Autora, beneficiária de uma promessa de venda com natureza meramente obrigacional, não goza nem do direito à indemnização fixada no art. 442º do CCivil (recebimento de outro tanto do que prestou como sinal), nem do direito de retenção sobre a coisa traditada. Na realidade, face aos normativos citados, tem apenas direito a ser reintegrada no valor do sinal prestado, na certeza de que nada foi alegado ou está provado que mostre que há uma diferença positiva a seu favor entre o preço convencionado e o valor da coisa à data da recusa do cumprimento do contrato (cfr. o nº 5 do art. 104º, ex vi do nº 2 do art. 106º).
Procedem assim, no essencial, as conclusões em destaque.


Quanto à matéria das conclusões 28ª a 41ª:

Suscita aqui a Apelante a questão da inconstitucionalidade da norma do nº 2 do art. 759º do CCivil, sustentando que o direito de retenção quando de constituição ulterior ao registo da hipoteca é um ónus oculto e inopinado, violador do princípio da segurança jurídica.
A nosso ver carece de razão.
É certo que a hipoteca em causa é de constituição anterior ao suposto (mas já vimos que inexistente) direito de retenção.
Mas já o Tribunal Constitucional, designadamente pelo acórdão de 19 de Maio de 2004 (disponível em www.tc/jur.pt), entendeu pela inverificação de inconstitucionalidade nesta matéria. De facto, e parafraseando tal aresto, é de entender que a norma opera meramente uma ponderação adequada do interesse do detentor de créditos hipotecários na protecção da confiança inerente ao registo predial e do interesse dos consumidores na protecção da confiança relativa à consolidação de negócios jurídicos. Nesta perspectiva, também a contenção dos princípios da confiança e da segurança jurídica associados ao registo predial, que resulta da atribuição de preferência ao direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente, tem a sua justificação na prevalência para o legislador de outros valores constitucionais, como o direito dos consumidores à protecção dos seus específicos interesses económicos e o direito à reparação dos danos. Como assim, é a norma compatível com a CRP.
Também o Supremo Tribunal de Justiça (cfr. o Ac de 18 de Setembro de 2007, disponível em www.dgsi.jur/stj.pt, onde se menciona vasta jurisprudência em igual sentido), dentro do mesmo registo, se tem pronunciado pela constitucionalidade da norma
Improcedem, nesta base, as conclusões em destaque.

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Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em julgar procedente a apelação com os fundamentos acima expostos e, revogando correspectivamente a sentença recorrida, julgam apenas parcialmente procedente a acção, julgando verificado a favor da Autora o crédito de €30.000,00 sobre a Ré Massa Insolvente, a graduar oportunamente como crédito comum.

Regime de custas:

Custas da acção e da apelação pela Autora.

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Guimarães, 14 de Dezembro de 2010

José M. Rainho
Carlos C. Guerra
António Ribeiro