Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3604/22.7YRLSB-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: RECUSA DE JUÍZ
PRESSUPOSTOS
INDEPENDÊNCIA JUDICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECUSA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/NÃO DECRETAMENTO
Sumário: I- Para salvaguarda do efectivo exercício da função judicial em independência e imparcialidade, o regime processual penal consagra, entre outros, o incidente de recusa de Juiz, regulado, no que ao caso interessa, pelos artigos 43º/1e 4 e 44º do CPP.
II- Subjacente ao instituto da recusa, encontra-se a necessidade de garantir a cada cidadão que a sua causa será julgada em legalidade e equidade, a preservação da dignidade profissional do Juiz e da imagem da Justiça em geral.
III- A remoção de um Juiz de determinado processo tem por pressuposto a existência de concretas circunstância objectivamente aptas a determinar suspeita sobre a imparcialidade do “julgamento” que lhe é submetido (o que tem que ser entendido dentro das competências atribuídas) e não evitar a probabilidade de ele vir a indeferir pretensões processuais determinadas, relativamente às quais estão pré-estabelecidas formas de reacção, entre as quais a interposição de recurso.
IV- A depreciação da actuação de um Juiz no âmbito de determinado processo, relativamente ao qual não foram encontrados indícios da prática de qualquer ilícito em processo movido pelo ora requerente, não é fundamento para decretar a recusa.
V- A independência de um Juiz é, antes de mais, uma questão de cultura judicial, que molda a personalidade do julgador vincadamente. O facto de ter exercido funções em outros processos em que o requerente foi interveniente não é, em termos de normalidade judiciária, impeditivo do exercício de funções de forma isenta e independente em novos processos em que aquele seja de novo interveniente. Este é, aliás, o tipo de acontecimento que se repete e repetirá em qualquer sistema judiciário.
VI- Estando a posição do ora requerente definida pela qualidade de assistente, ou seja, de coadjutor do Ministério Público enquanto órgão de promoção do processo penal, não se percebe em que concretos termos o exercício de funções pelo Juiz visado pudesse fazer perigar os interesses do mesmo, sendo que, caso se verifique qualquer irregularidade na sua actuação, este terá sempre ao seu dispor, em primeira linha, o amparo do Ministério Público e, sendo caso disso, o uso do recurso, instrumento cuja finalidade é precisamente a de reparar erros de julgamento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa:
***
I – Relatório:
JS, assistente nos autos, deduziu incidente de recusa do Exº Juiz de Direito, Dr. …, a exercer funções no Tribunal em epígrafe, ao abrigo do disposto no artigo 45º do Código de Processo Penal (CPP), com fundamento em que:
«1. O Senhor Juiz Requerido é Arguido no processo n.º ….  em que o ora Requerente tem a qualidade de Assistente e no âmbito do qual requereu Abertura de Instrução, contra o Senhor Juiz Requerido (…)
2. Foi, de resto, na sequência desse requerimento, que foi determinada a constituição do Senhor Juiz Requerido como Arguido (…)
3. Estes factos e a natureza e a gravidade das acusações que o ora Requerente imputa naquele processo criminal ao Senhor Juiz Requerido determinam que "a sua intervenção neste processo seja considerada suspeita", uma vez que consubstanciam manifestamente, no modo de ver do Requerente, "motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade", nomeadamente para apreciar e decidir o incidente de remoção do estatuto de Assistente promovido pelos Senhores Procuradores da República titulares do Inquérito contra o aqui Requerente (…)
Acresce que
4. O Senhor Juiz requerido prestou depoimento testemunhal na fase de inquérito do processo, que a seu pedido ficou gravado (…)
Ora,
5. Esse depoimento reforça muito essa desconfiança e essa suspeita — todo o depoimento, e nomeadamente o que ali afirmou nos minutos 00:54:03 a 00:54:12
***
Pronunciou-se o MMº Juiz:
- especificando a ordem pela qual foram praticados os actos que levaram à constituição do ora requerente como assistente e à sua remoção, a promoção do Ministério Público, no processo de que este incidente é apenso:
- respondendo aos cinco pontos do requerimento nos seguintes termos:
«Sob o ponto 1 é factualmente verdade o afirmado;
Sob o ponto 2 é factualmente verdade o afirmado, cumprindo, com inteireza referir, que, tal requerimento de abertura de instrução, do qual derivou "ope legis" a constituição do Juiz visado como arguido, já foi objecto de decisão instrutória, de não pronuncia nos idos de 06/05/2022 e, do mesmo passo, após várias vicissitudes, referentes à notificação do Senhor JS, também assistente nos referidos autos, após recurso para o STJ, por si feito distribuir, também é factualmente verdade que, por Acórdão de 07/12/2022, já notificado à Defesa do aqui Juiz visado, na mesma data, foi mantida a decisão de não pronuncia, prolatada pelo TRL.
Sob o ponto 4, é verdade que o visado prestou depoimento testemunhal, na fase de inquérito daquele processo 2773/21, que confirma.
Esse depoimento tem uma componente escrita e um registo áudio gravado.
Não sabe o aqui visado se o documento áudio oferecido é cópia fiel do gravado, porque não acedeu a ele.
Lida a transcrição, apresentada pelo Senhor JS, que não consta dos referidos autos, fácil é perceber que, em vários pontos, a mesma não é fidedigna, nem se coaduna com as locuções proferidas pelo aqui visado, mormente no período temporal a que se faz apelo. (…) Logo, continuamos a não vislumbrar em que segmento daquele depoimento de 28/06/2021, prestado perante Magistrada do M.º P.º do DIAP de Lisboa, se reforça a desconfiança que o cidadão aqui Assistente nutre perante o aqui visado quanto à sai imparcialidade para decidir o incidente.»;
- afirmando, entre o mais, que «Ora, a primeira intervenção do signatário nos presentes autos, foi feita em substituição do Juiz Titular, ao abrigo do decidido por despacho do Excelentíssimo Conselheiro Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, de 07/02/2020, ratificado pela deliberação da sessão de Plenário Ordinário daquele Conselho, realizada em 11/02/2020 e, o disposto no art.º 45.º-A, n.º 1, ai a) do Estatuto dos Magistrados Judiciais e art.º 86.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
Tal primeira intervenção cessou em 29/01/2021 e só foi retomada, como se disse supra, a partir de 06/12/2021, até 03/01/2022, novamente por ordem do Excelentíssimo Conselheiro Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura que, determinou que, o aqui visado, substituísse o Sr. Juiz 2 em todo o seu serviço, ficando o então titular do J2, em exclusividade a tramitar a instrução dos processos 122/13.8 TELSB, 324/14.0TELSB e 5432/15.7TDLSB, até à entrada em funções do novo quadro de magistrados do TCIC, o que veio a acontecer em 04/01/2022.
Pede-se licença para reiterar que, após redistribuição dos processos anteriormente da titularidade do J2, os presentes autos foram novamente distribuídos, em acto presidido, na sequência de escala que passou a existir neste Tribunal em Março de 2021, circunstancialmente, pela Exm.a Juíza Coordenadora deste TCIC Dr.ª Maria Antónia Andrade, em 21/01/2022, ao ora recusando.»;
- concluindo que «não reconhece, portanto, que estas histórias, estes "pedaços de vida", que no exercício da actividade judiciária, meticulosamente se foram recolher ad-nauseam sobre a sua vida e maneira de ser, tenham algo a ver ou possam ser interpretados ou concorrer para uma quebra de imparcialidade na análise dos factos constantes de um requerimento de remoção da qualidade de Assistente, a que faz referência no escrito, como também nada tem o visado a responder às afirmações e juízos de valor que se inferem do escrito do requerimento».
***
***
II- Fundamentação de facto:
1- O ora requerente, na qualidade de assistente, deduziu requerimento de abertura de instrução no processo que correu termos neste Tribunal sob o número  … contra o Sr. Juiz ora recusado, imputando-lhe a prática, em co-autoria, de:
- um crime de abuso de poder, p. e p. no artigo 382.º do CP;
- um crime de falsificação praticada por funcionário, p. e p. n artigo 257.º alínea b) do Código Penal - relativos à entrega do Processo … sem Distribuição e nos demais termos descritos em 9 de setembro e em 18 de novembro de 2014;
- e um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. no artigo 369.º, n.º 1, 2, 3 e 4, do CP.
2- O referido Sr. Juiz foi constituído arguido no referido processo, no seguimento de despacho aí proferido nos seguintes termos: «Considerando que Juiz (…) e MTS passaram a assumir a qualidade formal de arguidos, determino que se proceda à sua constituição formal como arguidos e à sua sujeição a TIR (art.º 58º, n.ºs 2 e 4 e 196º, n.º 1, do Código de Processo Penal».
3- No referido processo foi proferido despacho de não pronúncia do ora renunciado, confirmado em última instância de recurso ordinário pelo Supremo Tribunal de Justiça.
4- Foi proferido despacho de remoção do ora assistente em momento posterior à entrada em juízo do incidente, pelo Juiz ora recusado.
***
***
IIII- Fundamentos de direito:
Os Tribunais são os órgãos de soberania com competência exclusiva para administrar a justiça em nome do povo, em termos de exclusiva sujeição à Lei e ao Direito, com independência e isenção (cf. artigos 32º/1, 202.º e 203.º da Constituição da República Portuguesa) garantido a mesma CRP o direito ao acesso ao Direito e à tutela jurisprudencial efectiva (artigo 20º).
A independência e isenção dos Tribunais têm ao seu serviço instrumentos de garantia, como sejam o princípio do Juiz natural (artigo 32º/9, da CRP) - encontrado pelo funcionamento da aleatoriedade da distribuição - e a própria independência dos juízes.
Sendo os Tribunais no seu conjunto – e cada um dos Juízes de per se, seus representantes – órgãos de soberania e pertencendo-lhes, só a eles, a função jurisdicional, tem de concluir-se que a sua independência, condição irrenunciável da função de julgar, está intrinsecamente ligada à dos Juízes -  ou seja, a independência material (objectiva) dos Tribunais só existe na medida em que os Juízes gozem de efectiva independência pessoal (subjectiva) porque são eles os garantes de uma actuação do poder judicial efectivamente livre de pressões. Refere Germano Marques da Silva: «A organização judiciária está estruturada na busca da independência dos juízes e tutela do direito de defesa em ordem a assegurar as máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição» ([1]).
Na perspectiva das partes, as garantias de independência e isenção reflectem-se na imparcialidade do juiz e na sua equanimidade perante o objecto da causa.
Perante a concreta possibilidade de ocorrência de efeitos perversos decorrentes do princípio da escolha aleatória, o sistema processual estabeleceu a possibilidade de afastamento do Juiz, sempre que se evidencie que o Juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção, no exercício do seu “munus”.
A imparcialidade do Juiz - conceito que a lei não define expressamente – é exigência consagrada no art.º 6º/1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (de 04/11/1950, aprovada para ratificação pela Lei nº 65/78, de 13/10, publicada no DR, I Série, nº 236/78), que refere que «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei» ([2]). No mesmo sentido se expressa a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), no artigo 14.º, n. º1, o art.º 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias nº364, de 18/12/2000) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP).
O conceito vem sendo definido, a nível jurisprudencial, sobretudo pelo Tribunal Constitucional, em termos consonantes com os do acórdão 135/88 ([3]): «A garantia de um julgamento independente e imparcial é, de resto, também uma dimensão — e dimensão importante — do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, para o processo criminal, pois este tem que ser sempre a due process of law.
Para que haja um julgamento independente e imparcial, necessário é que o juiz que a ele proceda possa julgar com independência e imparcia­lidade.
Ora, a independência do juiz «é, acima de tudo, um dever — um dever ético-social. A “independência vocacional”, ou seja, a decisão de cada juiz de, ao ‘dizer o Direito’, o fazer sempre esforçando-se por se man­ter alheio — e acima — de influências exteriores é, assim, o seu punctum saliens. A independência, nessa perspectiva, é, sobretudo, uma responsabilidade que terá a ‘dimensão’ ou a ‘densidade’ da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz.
Com sublinhar estes pontos, não pode, porém, esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que «promova» e facilite aquela «independência vocacional».
Com interesse, veja-se também o acórdão do mesmo Tribunal, 124/90, de 19/04 ([4]), que refere que: «Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de «administrar justiça». Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar — deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis.
Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência e imparcialidade. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que, a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tri­bunais, ao «administrar a justiça», actuem, de facto, «em nome do povo» (cfr. artigo 205.º, n.º 1, da Constituição)».
Para salvaguarda do efectivo exercício da função judicial em independência e imparcialidade o regime processual penal consagra, entre outros, o incidente de recusa de Juiz, regulado, no que ao caso interessa, pelos artigos 43º/1e 4 e 44º.
Subjacente ao instituto da recusa, encontra-se a premente necessidade de preservar a dignidade profissional do Juiz e a imagem da Justiça em geral. O instituto constitui uma garantia essencial, para o cidadão, que a sua causa será julgada em legalidade e equidade.
***
A imparcialidade do Juiz desdobra-se, no entanto, em duas vertentes: uma subjectiva e outra objectiva.
No plano subjectivo, a imparcialidade, que se presume até prova em contrário, tem a ver com a posição pessoal do Juiz, com a sua predisposição para o favorecimento de certo sujeito processual, em detrimento de outro.
No plano objectivo são relevantes as aparências, que podem afectar, não a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça, como tem sido realçado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Nesta perspectiva, impõem-se sobretudo considerações formais (orgânicas e funcionais) que possam, por si mesmas, independentemente do plano subjectivo do foro íntimo do Juiz, fazer suscitar dúvidas, apreensão ou receio, razoavelmente fundados sobre a imparcialidade do Juiz.
Visa-se proteger não só a imparcialidade como também a aparência de imparcialidade. «A imparcialidade da jurisdição não é só a imparcialidade subjectiva. É também a imparcialidade objectiva que deve ser assegurada. Afinal, trata-se da confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar às partes» ([5]).
***
São pressupostos da recusa, face aos normativos contidos nos artigos 43º e 45 do CPP:
- Que a intervenção do recusado, naquele concreto processo, corra o risco de ser considerada suspeita;
- Por se verificar motivo sério e grave, que legitime a suspeição, ou seja, que o motivo seja apto a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do recusado quer em termos de favorecimento quer de detrimento, de um qualquer sujeito processual.
O motivo sério e grave será apenas aquele que fora adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, o que implica uma análise casuística e ponderada de cada situação, mediante a valoração objectiva das circunstâncias concretas, a partir do senso e da experiência do homem médio, pressupostos pelo Direito.
A este propósito lê-se no acórdão do STJ, de 13/04/2005, ([6]): «A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vista pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, de estreita confiança com interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão».
Veja-se ainda, o acórdão do STJ, de 26/02/2004 ([7]): «Esse padrão de exame terá de ser objectivo, enfim, passar pela avaliação da situação e seus efeitos em face do interesse geral da comunidade.
Ou, o que é outra maneira de dizer, a gravidade e seriedade do motivo de que fala a lei, hão-de ser aferidas em função dos interesses colectivos, mormente do bom funcionamento das instituições em geral e da Justiça em particular, não bastando que uma avaliação pessoal de quem quer, mormente do arguido, o leve a não confiar na actuação concreta do magistrado ou magistrados recusados.
E então, medidas essa gravidade e seriedade sem apoio em seguros critérios de objectividade, teríamos o juiz, a cada passo, sujeito aos interesses processuais das partes, a todo o momento objecto de suspeições reais ou imaginárias, com a inerente paralisia do sistema».
 Seguindo orientação uniforme, com a supra enunciada, podem-se consultar os acs do STJ de 27/4/2005, no proc. 05P090; de 7/12/2005, no proc. 2799/05-5ª; de 28/6/2006, no proc. 06P1937 e de 17/1/2007, no proc. 06P4597, entre outros.
Com efeito, circunstâncias específicas há que podem colidir quer com o comportamento isento e independente do julgador, pondo em causa a sua imparcialidade, quer com a confiança das «partes» e do público em geral (comunidade), entendendo-se que nos casos em que tais circunstâncias ocorrem há que afastar o julgador, substituindo-o por outro, isento de tais dificuldades.
***
Analisando o caso sub judice, verifica-se que o requerente, enquanto dotado da qualidade de assistente à data do pedido, tem legitimidade para a formulação do pedido de recusa, que é tempestivo.
Quanto aos fundamentos invocados verifica-se, no entanto, que eles não são aptos a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do exercício de funções do requerido, nem quando considerados na vertente subjectiva nem quando considerados na vertente objectiva, dessa mesma imparcialidade.
Os fundamentos invocados pelo requerente prendem-se com uma dupla razão: a manifestada intensão de obstar a que o ora Juiz do processo decida o incidente de remoção de assistente que foi promovido pelo Ministério Público e a existência de um processo crime por si impetrado contra o ora Juiz do processo, onde o mesmo foi constituído arguido em face da dedução de requerimento de abertura de instrução, aliado à natureza e gravidade das imputações feitas no referido requerimento.
No que se refere ao primeiro fundamento, dir-se-á que remoção de um Juiz de determinado processo tem por pressuposto a existência de concretas circunstância objectivamente aptas a determinar suspeita sobre a imparcialidade do “julgamento” que lhe é submetido (o que tem que se entendido dentro das competências atribuídas, no caso de Juiz de instrução) e não a probabilidade de ele vir a deferir ou indeferir pretensões processuais determinadas, relativamente às quais estão pré-estabelecidas formas de reacção, entre as quais a interposição de recurso.
Ora, o que o requerente pretendeu, explicitamente, foi obviar a que fosse o ora Juiz titular a decidir o incidente de remoção de assistente que lhe foi submetido, decisão essa que, aliás, já se mostra proferida nos autos. A par da manifesta inaptidão do incidente de recusa para obviar à prática de determinado acto processual ocorre que, tendo ele sido praticado, se verifica uma verdadeira inutilidade superveniente do incidente em causa para os efeitos pretendidos.
No que ao segundo grupo de fundamentos se refere, o que se verifica é que não é a imparcialidade do Juiz que é o fundamento invocado mas sim a depreciação que o requerente fez da actuação daquele no âmbito de determinado processo crime em que lhe imputou, em sede de requerimento de abertura de instrução, uma série de crimes, o que se veio a revelar ausente de fundamento. Não tendo sido encontrados indícios da prática de qualquer ilícito por parte do ora recusado no âmbito do largo conjunto de factos que o requerente lhe imputou no referido processo, nem se revelando, pela resposta do mesmo agora dada a este incidente, quaisquer indícios de animosidade ou menor capacidade de objectividade no exercício da função, no respeito devido à lei e ao Direito, não tem este Tribunal fundamento para decretar a recusa.
 A independência de um Juiz é, antes de mais, uma questão de cultura judicial, que molda a personalidade do julgador vincadamente. O facto de ter exercido funções em outros processos em que o requerente foi interveniente não é, em termos de normalidade judiciária, impeditivo do exercício de funções de forma isenta e independente em novos processos em que aquele seja de novo interveniente. Este é, aliás, o tipo de acontecimento que se repete e repetirá em qualquer sistema judiciário.
Para além do mais, estando a posição do ora requerente definida pela qualidade de assistente, ou seja, de coadjuvador do Ministério Público enquanto órgão de promoção do processo penal, não se consegue vislumbrar em que concretos termos o exercício de funções pelo Juiz visado pudesse fazer perigar os interesses do mesmo, a manter-se essa qualidade.
Não há os menores indícios de que o Magistrado em causa tenha qualquer dificuldade quanto à postura adequada ao exercício do seu munus pelo facto de o requerente ter adquirido a qualidade de assistente, sendo que, caso se verifique qualquer irregularidade na sua actuação, este terá sempre ao seu dispor, em primeira linha, o amparo do Ministério Público e, sendo caso disso, o uso do recurso, instrumento cuja finalidade é precisamente a de reparar erros de julgamento. 
Os fundamentos exarados para a recusa não têm aptidão para que publicamente se considere suspeita a prática judicial do Juiz recusado nem tão pouco constituem motivo que legitime essa suspeição quer em termos de favorecimento quer de detrimento da posição processual do requerente. Não se mostram afectadas nem a imagem da imparcialidade nem as concretas exigências de imparcialidade do Juiz, no caso em análise.
Resta, pois, declarar a improcedência do pedido de recusa.
***
***
IV- Decisão:
Acorda-se, pois, em negar provimento ao incidente de recusa.
Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 4 ucs.
Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
Lisboa, 11/01/2023
Maria Graça dos Santos Silva
Maria Leonor Botelho
Ana Paula Grandveaux
_______________________________________________________
[1]  Cf. “Curso de Processo Penal”, Verbo, 1993, vol. I, a pág.157.
[2] «Este normativo estabelece garantias dos quais ressalta a “imparcialidade”, enquanto elemento “constitutivo e essencial” da noção de Tribunal. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a desenvolver jurisprudência concretizadora do conceito de “tribunal imparcial” que se impõe recordar: “XII. A imparcialidade do tribunal deve ser apreciada segundo uma dupla ordem de considerações; de uma perspectiva subjectiva, relativamente à convicção e ao pensamento do juiz numa dada situação concreta, não podendo o tribunal manifestar subjectivamente qualquer preconceito ou prejuízo pessoais, sendo que a imparcialidade pessoal do juiz se deve presumir até prova em contrário. XIII. A perspectiva objectiva da imparcialidade exige que seja assegurado que o tribunal ofereça garantias suficientes para excluir, a este respeito, qualquer dúvida legítima.” Acórdão Lavents v. Letónia de 28-11-2002». Cf ac. TRC de 2/2/2011, no proc. 13/11.7YRCBR, em dgsi.pt
[3] Publicado no DR, II Série, de 08.09.1988.
[4] Acessível em www.dgsi.pt.
[5] Cf. citação no ac. do TC, proc. n.º 52/92, DR, 1-A, de 14-3-92, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Hauschildt.
[6] Proc. nº.05P1138, em www.dgsi.pt.
[7] Proc. nº.03P4429, em www.dgsi.pt.