Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1327/23.9PSLSB.L1-9
Relator: MARIA ÂNGELA REGUENGO DA LUZ
Descritores: CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
REENVIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Existe contradição insanável da fundamentação, vício a que alude o art.º 410 n.º 2 al.ª b) do CPP. quando, “fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados...”.


(Sumário da responsabilidade da relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Senhores Juízes Desembargadores da nona secção do Tribunal da Relação de Lisboa


No âmbito do processo abreviado que, sob o nº 1327/23.9PSLSB, corre termos pelo Juízo de Pequena Criminalidade de Lisboa, foi o arguido AA absolvido prática de um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. c), e 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, e 152.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do Código da Estrada.

Inconformado com a decisão absolutória, dela interpôs recurso o MINISTÉRIO PÚBLICO para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respectiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:

III–Conclusões
1.Na sentença recorrida, o tribunal a quo absolveu o arguido AA da prática, no dia 19 de Julho de 2023, em autoria material e na forma consumada, do crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 348.º, n.º 1, al. a), e 69.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, e 152.º, n.os 1, al. a), e 3, do Código da Estrada, pelo qual vinha acusado.
2. O tribunal a quo absolveu o arguido por entender, em suma, que o art.º 4.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2007, de 17/05 (Regulamento de fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas) não faz qualquer referência a situações em que, propositadamente, o agente não expele ar suficiente, e que, nesses casos, após a realização de três tentativas, continuando estas a ter resultado de “amostra incorrecta”, não se deve logo advertir o agente da prática do crime de desobediência, mas sim, conduzi-lo a uma instituição hospitalar para realizar análise de sangue.
3.E mais, entende que após a realização das três tentativas a que alude o apontado o art.º 4.º, n.º 1, da referida lei, cessa a obrigação do condutor se submeter ao teste de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado, pelo que nesse sentido, a ordem que lhe foi dada – de realizar o teste após uma terceira tentativa - não é substancialmente legal.
4.Porém, o Ministério Público não se conforma com tal decisão, nem concorda com a interpretação que o tribunal a quo fez do quadro legal aplicável, devendo o arguido ser condenado pela prática, em 19 de Junho de 2023, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 348.º, n.º 1, al. a), e 69.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, e 152.º, n.os 1, al. a), e 3, do Código da Estrada.
5.Quando é efectuada uma fiscalização rodoviária e é ordenado ao condutor do veículo que realize teste de pesquisa de álcool no sangue, a regra é a de que a detecção e a quantificação do álcool respeitante à circulação rodoviária se fazem através de teste no ar expirado, e apenas em caso de impossibilidade de realização de teste no ar expirado em analisador quantitativo é de efectuar análise de sangue (sendo esta última situação, excepcional).
6.O art.º 4.º, n.º 1, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, visa situações de impossibilidade física, em que o examinando não consegue, por isso, expelir ar suficiente ou então as situações em que se encontra impossibilitado de realizar o teste e não as situações em que o examinando, deliberadamente, não expele ar suficiente, havendo, assim, que fazer a destrinça entre não conseguir e não querer (sendo este último o caso dos autos).
7.A não exalação voluntária de ar suficiente para a verificação da existência, ou não, de álcool no sangue é equiparada a uma “recusa” formal de realização do teste, para efeitos de preenchimento dos elementos objetivos do tipo legal do crime de desobediência; na verdade, tal “recusa” verifica-se não apenas quando o examinado o declara de forma expressa, mas também quando assume comportamentos de onde, em termos lógicos e em termos de homem médio, se logra extrair que o mesmo está a boicotar, e nessa medida recusar, o teste.
8.Caso assim não se entendesse, estaria encontrada a fórmula para contornar a lei, bastando, para tanto, que qualquer pessoa que fosse submetida ao teste quantitativo não exalasse ar suficiente, independentemente de qualquer impossibilidade de ordem física, para que não houvesse condenações pelo crime de condução sob o efeito do álcool ou pelo crime de desobediência.
9.É esse o caso dos autos, atenta a factualidade dada como provada, bem como o facto de se ter apurado que o arguido não padecia de qualquer deficiência orgânica ou fisiológica que o impedisse ou inibisse de efectuar o referido teste quantitativo, não havendo, portanto, razões objectivas para que não exalasse ar suficiente.
10.Destarte, não existiam fundamentos legais para sujeitar o arguido a análise sanguínea em estabelecimento de saúde, dado que a realização do teste era possível, o arguido que é que não o quis fazer (de forma correcta, tal como fora advertido), a fim de obstar a que se viesse a apurar qual a taxa de alcoolemia com que exercia a condução (não sendo de desconsiderar que o arguido já conta com uma condenação pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e, consequentemente, de saber quais as consequências de tal conduta no caso de o resultado ser positivo).
11.Conclui-se, assim, que o arguido, ao actuar da forma descrita, “boicotou” o teste cuja realização lhe foi ordenada pelos agentes da PSP, donde se extrai, com segurança, à luz da lógica e das regras da experiência, que o mesmo impossibilitou e, nessa medida, recusou-se a realizar o teste em causa (tanto mais que, momentos antes, havia realizado o primeiro teste, qualitativo, sem qualquer dificuldade).
12.E, conclui-se, outrossim, que tal ordem, que lhe foi pessoalmente comunicada e cujo sentido e alcance percebeu, foi legitima, proveio de autoridade com competência para a proferir, e o arguido sabia que devia obediência à mesma, sob pena de cometer uma infracção penal e, não obstante, não deixou de actuar da forma descrita no despacho de acusação, com dolo directo.
13.Do exposto deflui que, no caso sub judice, estão preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 348.º, nº 1, al. a), e 69.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, e 152.º, n.os 1, al. a), 3, do Código da Estrada, pelo que deveria o arguido ter sido condenado por tal crime.
14.Por isso, salvo melhor opinião em contrário, o tribunal a quo fez uma errada interpretação jurídica do disposto no art.º 4.º, n.º 1, do Regulamento de fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas.
15.Deste modo, deverá a sentença em crise ser revogada e substituída por outra que condene o arguido crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 348.º, nº 1, al. a), do Código Penal, e 152.º, n.os 1, al. a), 3, do Código da Estrada, numa pena de prisão não inferior a 6 (seis) meses, que deverá ser suspensa na sua execução por um período não inferior a 18 (dezoito) meses, acompanhada de regime de prova, nos termos do disposto no art.º 53.º, n.º 1, do Código Penal, e, bem assim, na correspondente pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período não inferior a 7 (sete) meses, por se entender ser essa a pena adequada e proporcional face às elevadas exigências de prevenção geral e especial que, no caso, se fazem sentir, e que acautela as finalidades da punição.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a sentença proferida nos autos e substituída por outra que condene o arguido AA pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 348.º, n.º 1, al. a), e 69.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, e 152.º, n.os 1, al. a), e 3, do Código da Estrada, numa pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 (dezoito) meses, em conformidade com o previsto no art.º 50.º, do Código Penal, acompanhada de regime de prova, nos termos do disposto no art.º 53.º, n.º 1, do Código Penal, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período não inferior a 7 (sete) meses, assim se fazendo a INTEIRA E ACOSTUMADA JUSTIÇA!”.
*

O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito devolutivo.
*

O arguido AA, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a manutenção da decisão recorrida, formulando as seguintes:

“III–CONCLUSÕES:
1.Um dos elementos objetivos do tipo de ilícito imputado ao arguido é, desde logo, a legitimidade da ordem emanada.
2.O Tribunal recorrido considerou provado (e o Ministério Público não impugnou a decisão quanto à matéria de facto) que “8. O arguido realizou, pelo menos, 3 (três) tentativas de realização do teste em apreço nos presentes autos (quantitativo), tendo todos ostentado o resultado “amostra incorreta”.
3. O Ministério Público sustenta que o arguido não exalou ar suficiente e que a não exalação de ar suficiente é, formalmente, um ato de recusa/sabotagem/boicote do teste. E, portanto, parece implicitamente abandonar a ideia de que a desobediência ocorre quando o arguido recusa a realização do 4º (quarto) teste, já na esquadra da PSP (facto provado n.º 5).
4. No entanto, ainda que eventualmente se concorde com esta asserção e atendendo à imutabilidade do elenco de factos provados, a procedência do recurso e a condenação do arguido é legalmente inadmissível, na medida em que não se demonstrou que o arguido não exalou ar suficiente, não constando do elenco de factos provados.
5. A acusação é, em si mesma, lacónica e insuficiente para sustentar a condenação do arguido, precisamente porque não se imputou ao arguido a não exalação voluntária de ar suficiente tendo em vista a inviabilização do teste de ar expirado.
6.É, apenas, referido que o arguido aceitou a ordem, que realizou o teste (pelo menos três vezes) e que o resultado foi “amostra incorreta”… Mas porquê? Porque o arguido não exalou ar suficiente? Porque não exalou sequer? Porque inspirou em vez de expirar? Objetivamente, da transcrição do facto provado n.º 4 não vislumbramos qualquer desobediência…
7.A existir desobediência, terá sido a partir da realização do quarto teste na esquadra da PSP, tal como consta do facto provado n.º 5. Porém, aqui, a ordem é ilegítima e, como tal, não lhe era devida obediência, tal como entendeu – aliás – o tribunal recorrido.
8.As normas aplicáveis contêm na sua previsão imposições dirigidas aos órgãos de polícia criminal perante a impossibilidade de realização do teste, seja ela qual for… Sempre que – por qualquer motivo – o teste não seja efetivamente realizado, é realizada análise de sangue… É essa a ratio legis dos preceitos e, ainda, a única conclusão possível depois de analisar conjugadamente os arts. 153º, n.º 8 do Código da Estrada e os arts. 1º, n.º 3 e 4º, n.º 1 da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio.
9.E, portanto, “se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado” (seja por deficiência do aparelho, inexistência de aparelho, sabotagem do teste, deficiência física ou por qualquer outro motivo), a imposição legal é a de condução do examinando a um estabelecimento oficial de saúde. A ordem para que o examinando (neste caso o Recorrente) continue sucessivamente e indefinidamente a realizar testes ao ar expirado é, pura e simplesmente, ilegítima por não encontrar suporte legal.
10.Entende o Ministério Público que o arguido não exalou ar suficiente de forma propositada, para inviabilizar a realização do teste e que a absolvição do arguido seria extraordinariamente perigosa para os bens jurídicos em apreço porque “caso contrário estaria encontrada a fórmula para contornar a lei. Bastaria para tanto que toda e qualquer pessoa que fosse submetida ao teste quantitativo não exalasse ar suficiente, independentemente de qualquer impossibilidade de ordem física, para que não houvesse condenações pelo crime de condução sob o efeito de álcool ou pelo crime de desobediência”.
11.No entanto, os factos provados na acusação não seriam, sequer, suficientes para sustentar a condenação do arguido [ainda que se sufragasse a tese do Ministério Público], na justa medida em que não se encontra provado que o arguido não exalou ar suficiente, mas apenas que o arguido acedeu à realização dos três testes, mas todos eles ostentaram o resultado de “amostra incorreta”.
12.Mas se a acusação tivesse vertido que o arguido não exalou ar suficiente a consideração anteriormente efetuada também não corresponderia à verdade. Em primeiro lugar, porque existe crime de desobediência se o arguido se recusa realizar os três primeiros testes; em segundo lugar, porque seria possível apurar a taxa de álcool no sangue, desde que os órgãos de polícia criminal cumprissem as normas legais e regulamentares aplicáveis; em terceiro lugar, nem sequer é dito e/ou provado que o arguido não exalou ar suficiente… O facto provado esclarece que “(…) ao que o mesmo acedeu, tendo sido realizadas várias tentativas, contudo, todas elas com resultado “amostra incorreta””.
13.Em suma, o Ministério Público não fez constar do despacho de acusação que o arguido não exalou ar suficiente na realização dos primeiros testes (o que inviabiliza a condenação pelo crime de desobediência, num primeiro momento, em função da inexistência de elementos que permitam concluir que o arguido sabotou a realização do teste).
14.Por outro lado, os órgãos de polícia criminal não conduziram – como era sua obrigação – o examinando a uma instituição de saúde, tendo inversamente (e de forma completamente arbitrária e inopinada) ordenado ao arguido que permanecesse na esquadra a realizar o teste de ar expirado sucessiva e indefinidamente, não sendo essa, todavia, a solução legal.
15.Resumindo e concluindo: o Ministério Público proferiu um despacho de acusação insuficiente para sustentar a condenação pretendida (porque não fez constar que o arguido não exalou ar suficiente e, consequentemente, não se provou [nem se poderia provar] esse facto) e a Polícia de Segurança Pública não cumpriu as suas obrigações legais, tendo arbitrariamente ordenado o arguido que soprasse o balão quando a lei expressamente determina a condução do examinando a estabelecimento de saúde, o que determina a ilegitimidade da ordem e a desnecessidade de lhe dever obediência.
Termos em que se requer a V. Exas. que se dignem confirmar a sentença recorrida.”
*

O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu PARECER com a redacção que se segue:

“Acompanham-se os fundamentos aduzidos no recurso do MºPº junto do tribunal de 1ª instância, o qual se encontra corretamente fundamentado, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, pouco mais tendo a acrescentar.

Com efeito, foi dado como provado que:
1.–No dia 19 de Junho de 2023, pelas 3h25, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula AJ-..-LO, no..., em Lisboa, quando lhe foi dada ordem de paragem por agentes da PSP, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções de patrulhamento.
2.–No âmbito da aludida fiscalização, o arguido recebeu ordens daqueles agentes da PSP para realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue através do método de ar expirado, à qual o mesmo acedeu, tendo apresentado uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 2,54g/l.
3.–Em face de tal resultado, foi o arguido informado de que teria que se deslocar às instalações da Divisão de Trânsito da PSP, a fim de ser submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo.
4.–Já naquela Divisão de Trânsito, os agentes da PSP ordenaram ao arguido que se submetesse a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, ao que o mesmo acedeu, tendo sido realizadas várias tentativas, contudo, todas elas com resultado “amostra incorrecta”.
5.–Perante tal situação, foi ordenado ao arguido que realizasse de forma correcta o teste em analisador quantitativo, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, tendo o mesmo recusado realizar qualquer outro teste.
6.–Pese embora reiteradamente advertido da sua obrigação de realizar o sobredito exame para pesquisa de álcool, sob pena de cometer o crime de desobediência, o arguido manteve a recusa em efectuar tal teste.
7.–O arguido compreendeu o teor da comunicação que lhe foi efectuada, e sabia que a ordem para se submeter a exame para pesquisa de álcool no ar expirado, que lhe foi pessoalmente comunicada e cujo sentido e alcance percebera, provinha de autoridade com competência para a proferir e (…) e, não obstante, não deixou de actuar da forma descrita (sublinhado nosso).
Mais foi objecto de comunicação, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a seguinte factualidade, consubstanciadora de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação:
8.–Da prova produzida em audiência, é de equacionar que, o arguido realizou, pelo menos, 3 (três) tentativas de realização do teste em apreço nos presentes autos (quantitativo), tendo todos ostentado o resultado “amostra incorreta”.

E, como não provados, os seguintes factos:
1.–Que o arguido sabia que devia obediência à mesma, sob pena de cometer uma infracção penal;
2.–O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal (sublinhado nosso).
Entendeu o Exmº juiz “a quo” que o arguido deveria ter sido submetido a análise ao sangue, face aos resultados da pesquisa (amostra incorrecta), por mais de três vezes, de álcool no ar expirado.
Efectivamente, nos termos do art 4º do Decreto Regulamentar nº 24 /98 de 30.10 (vigente à data da prática dos factos) “quando o examinando declarar que não pode, por motivo de saúde, ser submetido ao teste de álcool no ar expirado, este pode ser substituído por análise de sangue (….). O disposto no número anterior é aplicável aos casos em que , após três tentativas sucessivas, o examinando demonstre não expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo.
Porém, contrariamente ao que se sustenta na decisão recorrida, a impossibilidade física de o examinando conseguir expelir ar suficiente nada tem a ver com a situação em que o mesmo, deliberadamente, não expele ar suficiente, como sucedeu no caso vertente.
Ora, o que resulta da matéria de facto provada não é qualquer impossibilidade física do arguido, mas sim que este, nas três tentativas que efetuou, não quis, propositadamente, expirar ar suficiente para a realização do teste, impossibilitando, assim, a quantificação da taxa de álcool que apresentava (cf. pontos 4º a 6º, dessa factualidade).
Pelo exposto, a não exalação voluntária de ar suficiente para a verificação da presença, ou não, de álcool no sangue, não pode deixar de ser equiparada a “recusa” para efeitos de preenchimento dos elementos objetivos do tipo legal do crime de desobediência, na medida em que quer a impossibilidade de realização do teste de pesquisa de álcool resulte da recusa pura em simples do examinando, quer se deva à não expiração, deliberada, de ar suficiente para a realização do exame, são idênticos o desvalor da ação e o resultado conseguido (a impossibilidade de realização do teste).
Como, a este respeito, foi decidido no acórdão da Relação do Porto de 20-01-2010 [15], «Verifica-se a recusa à efetivação do teste de deteção de álcool sempre que o agente assume comportamentos de onde em termos lógicos e em termos de homem médio se poderá extrair que o mesmo está a boicotar o teste quantitativo».
A lei prevê detalhadamente o modo como pode fazer-se a demonstração da alcoolemia e do seu grau, no âmbito do direito estradal. O modus de obtenção da taxa de alcoolemia para o processo traduz-se, pois, numa atividade vinculada e subtraída ao critério livre da autoridade policial ou judiciária.
O arguido praticou o crime de desobediência pois inviabilizou a realização do teste quantitativo para deteção de álcool no sangue ao ter efetuado, deliberadamente, três sopros quase inexistentes que não permitiram a quantificação da taxa de alcoolemia, apesar de ter sido, várias vezes, advertido de que incorreria num crime de desobediência se não efetuasse o teste quantitativo corretamente.
Os militares da GNR deram, dessa forma, estrito cumprimento ao estabelecido no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas.
Por conseguinte, contrariamente ao defendido na sentença, tendo-se o arguido recusado a efetuar o teste de quantificação da taxa de álcool no sangue através de teste no ar expirado sem estar impedido de o fazer, dado que nada se provou nesse sentido, designadamente qualquer problema de saúde, não havia qualquer fundamento para o sujeitar a análise sanguínea.
Com efeito, este outro procedimento de realização do exame para deteção do estado de influenciado pelo álcool é reservado para as situações de incapacidade física na realização do teste através do ar expirado, as quais se podem apurar, nos termos legalmente previstos, de duas formas: quando após três tentativas consecutivas de expelição de ar não se conseguir obter um resultado válido ou quando as condições físicas do agente não lhe permitem a realização do dito teste.
Como vimos, não integra a referida impossibilidade a conduta do arguido que, voluntariamente, não exala um sopro suficiente para permitir a leitura do resultado pelo aparelho, como sucedeu no caso vertente.
Em síntese, mesmo sem ter havido uma recusa formal do arguido em realizar o teste de pesquisa de álcool no ar expirado através do analisador quantitativo, conclui-se estarem preenchidos todos os elementos constitutivos do tipo legal do crime de desobediência.

Revertendo à questão dos factos não provados (1 e 2) e provados (7), que oportunamente sublinhámos:
1.–Que o arguido sabia que devia obediência à mesma, sob pena de cometer uma infracção penal;
2.–O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal (não provados).
7.–O arguido compreendeu o teor da comunicação que lhe foi efectuada, e sabia que a ordem para se submeter a exame para pesquisa de álcool no ar expirado, que lhe foi pessoalmente comunicada e cujo sentido e alcance percebera, provinha de autoridade com competência para a proferir e (…) e, não obstante, não deixou de actuar da forma descrita. (facto provado).
Verifica-se, a nosso ver, contradição entre os referidos factos, provado e não provados.

Com efeito, o Exmº juiz “a quo”, na sentença, não efectuou o raciocínio que lhe permitisse concluir daquele modo, quanto aos factos não provados.

Caso o tivesse feito diria na sua decisão, algo como: “…É certo que a entidade policial advertiu o arguido sobre a forma adequada de realizar o sopro. Mas há que perceber que não é, necessariamente, pelo facto de lhe terem sido dadas instruções que se pode ter por adquirido que delas o alcoolizado tenha tido a necessária consciência ou compreensão e/ou que sempre se tenha mantido no perfeito controlo das suas faculdades intelectuais e motoras, de forma a dispor delas para a produção de um sopro, adequadamente forte e contínuo, suscetível de ser objeto de medição naquela precisa máquina…” E aí concluiria, necessariamente por forma a considerar não provados os factos supra elencados sob os nºs 1 e 2.

Mas diversamente, o Exmº juiz “a quo” considerou, no facto provado nº7, que: O arguido compreendeu o teor da comunicação que lhe foi efectuada, e sabia que a ordem para se submeter a exame para pesquisa de álcool no ar expirado, que lhe foi pessoalmente comunicada e cujo sentido e alcance percebera, provinha de autoridade com competência para a proferir e (…) e, não obstante, não deixou de actuar da forma descrita. (facto provado).

Consequentemente, se o arguido compreendeu o teor da comunicação (sopro de ar no aparelho), sabendo a que se destinava (pesquisa de álcool no sangue), tendo recebido a ordem de uma autoridade competente para o efeito, percebendo tudo o que lhe foi transmitido e mesmo assim não lhe obedeceu, não poderia o julgador ter concluído como o fez, dando por não provado que o arguido soubesse que devia obediência à ordem recebida, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência e ainda que agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Quanto a esta questão, a mesma encontra-se prevista no artº 410º, nº2, al. b) do CPP “… A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, que consiste tanto na contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, como também entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou até mesmo entre a fundamentação e a decisão. Ou seja; uma situação em que, seguindo o fio condutor do raciocínio lógico do julgador, os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si ou uns com os outros ou, ainda, com a fundamentação da decisão.

Do exposto se conclui que a forma como nos surgem equacionadas as matérias supra-referidas na sentença recorrida constituem um atropelo às regras da lógica e da experiência, consubstanciando situações subsumíveis ao disposto na al. b) do nº.2 do art. 410º. CPP.

O apontado vício impede que este Tribunal possa decidir da causa, pelo que se torna necessário o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do objecto do processo, no qual cumprirá diligenciar pelo cabal esclarecimento dos factos pertinentes, de modo a colmatarem-se as anomalias detectadas (arts.426º., nº.1 e 426º.-A, nºs.1 e 2 CPP).
Pelo exposto, somos do parecer de conceder parcial provimento ao recurso, ordenando o reenvio do processo para novo julgamento.”
*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo o recorrente apresentado resposta ao parecer, dizendo, em suma, que a sentença recorrida deve ser confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, mantendo-se nos seus precisos termos.
*

Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
*

II–Fundamentação

1.–É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art. 412.º, n.º 1 e 417º, nº 3, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art. 410º, nº 2 ou o art. 379º, nº 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).

Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
1.–Se existe contradição insanável entre a matéria de facto provada e a não provada – art.º410 n.º2 b) do C.P.Penal;
2.–Do erro de julgamento face à errada interpretação por parte do juiz “ a quo” na aplicação do art.º 4.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2007, de 17/05 (Regulamento de fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas
*

2.–Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida, razão pela qual se regista infra a decisão revidenda (transcrição dos factos provados e não provados que se afiguram relevantes para decisão do recurso)

1.No dia 19 de Junho de 2023, pelas 3h25, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula AJ-..-LO, no ..., em Lisboa, quando lhe foi dada ordem de paragem por agentes da PSP, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções de patrulhamento.
2.No âmbito da aludida fiscalização, o arguido recebeu ordens daqueles agentes da PSP para realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue através do método de ar expirado, à qual o mesmo acedeu, tendo apresentado uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 2,54g/l.
3. Em face de tal resultado, foi o arguido informado de que teria que se deslocar às instalações da Divisão de Trânsito da PSP, a fim de ser submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo.
4.Já naquela Divisão de Trânsito, os agentes da PSP ordenaram ao arguido que se submetesse a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, ao que o mesmo acedeu, tendo sido realizadas várias tentativas, contudo, todas elas com resultado “amostra incorrecta”.
5.Perante tal situação, foi ordenado ao arguido que realizasse de forma correcta o teste em analisador quantitativo, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, tendo o mesmo recusado realizar qualquer outro teste.
6.Pese embora reiteradamente advertido da sua obrigação de realizar o sobredito exame para pesquisa de álcool, sob pena de cometer o crime de desobediência, o arguido manteve a recusa em efectuar tal teste.
7.O arguido compreendeu o teor da comunicação que lhe foi efectuada, e sabia que a ordem para se submeter a exame para pesquisa de álcool no ar expirado, que lhe foi pessoalmente comunicada e cujo sentido e alcance percebera, provinha de autoridade com competência para a proferir e (…) e, não obstante, não deixou de actuar da forma descrita.
8. Da prova produzida em audiência, é de equacionar que, o arguido realizou, pelo menos, 3 (três) tentativas de realização do teste em apreço nos presentes autos (quantitativo), tendo todos ostentado o resultado “amostra incorreta”.

Factos Não Provados:
1.Que o arguido sabia que devia obediência à mesma, sob pena de cometer uma infracção penal;
2.O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”.
*

3.Do vício previsto na al.b) do n. º2 do art. º410 do C.P.Penal
Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cfr. art.º 428.º do Código Processo Penal).
A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:
- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- na impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova.

Veio o Exmo. Sr. Procurador Geral adjunto, aquando do seu Parecer, invocar a existência do vício da contradição insanável da fundamentação pois que quando se dá por provado que7.- O arguido compreendeu o teor da comunicação que lhe foi efectuada, e sabia que a ordem para se submeter a exame para pesquisa de álcool no ar expirado, que lhe foi pessoalmente comunicada e cujo sentido e alcance percebera, provinha de autoridade com competência para a proferir e (…) e, não obstante, não deixou de actuar da forma descrita.”, está em contradição com os factos não provados, a saber:
“(…) 1.- Que o arguido sabia que devia obediência à mesma, sob pena de cometer uma infracção penal;
2.-O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”.

Na verdade, a partir do momento em que se assume que o arguido compreendeu o teor da comunicação, seu sentido e alcance, assim como sabia que provinha de autoridade com competência para a proferir, haveria que se dar necessariamente também por provado que o arguido sabia que devia obediência à mesma e que ao não o fazer agiu livre voluntária e conscientemente. Ou o inverso, dar-se como não provados todos os factos acima enunciados e em contradição.

Encontramo-nos, assim, perante uma contradição insanável da fundamentação, vício a que alude o art.º 410 n.º 2 al.ª b) do CPP.

Tal vício verificar-se-á quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados...” (Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, 4.ª edição, Rei dos Livros, 72 e 73) ou, como se escreveu no acórdão do STJ de 12.03.97, Proc. 902/96, citado pelos mesmos autores, in obra citada, 75, há contradição insanável da fundamentação da sentença quando esta assentou em factos ou motivos que se mostram como logicamente inconciliáveis, pondo à mostra a impossibilidade de os factos terem ocorrido nos termos em que são nela fixados.

No caso em apreço, analisada a decisão recorrida, do texto da mesma resulta, por um lado, uma incompatibilidade entre entre o facto provado acima descrito (ponto 7) e os facto não provados atrás mencionados.

E porque tais factos são essenciais para a decisão da causa, outra solução não resta senão anular o julgamento e determinar o reenvio dos autos a fim de, em novo julgamento, ser sanado tal vício, tornando-se despicienda a apreciação da segunda questão supra equacionada.

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Nona Secção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, anulando o julgamento, ordenam o reenvio do processo, nos termos dos art.ºs 410 n.º 2 al.ª b), 426 n.º 1 e 426-A, todos do CPP, a fim de, em novo julgamento, ser sanado o vício apontado.
Sem tributação.


(elaborado e integralmente revisto pela relatora).



Lisboa, ds



Maria Ângela Reguengo da Luz
Maria João Ferreira Lopes
Cristina Luísa da Encarnação Santana