Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1525/22.2PCSNT.L1-9
Relator: ANA MARISA ARNÊDO
Descritores: REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
REENVIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I. A aplicação do Regime Especial para Jovens e a decisão de não suspensão de execução da pena podem coexistir na mesma decisão e a respeito do mesmo agente, mas a fundamentação subjacente não suportará inconciliabilidades.
II. A afirmação em simultâneo das duas realidades - por um lado, a interiorização do desvalor da conduta e, por outro, a não interiorização verdadeira das consequências dos seus actos e fraco juízo critico - redunda, inexoravelmente, no vício de contradição insanável da fundamentação, já que, nos seus próprios termos, intrinsecamente, evidencia valorações antagónicas e até excludentes.
III. Estando em causa situação em que, notoriamente, não é possível discernir o verdadeiro pensamento e vontade das Sra. Juízas e do Sr. Juiz, (e não sendo a verificada contradição susceptível de correcção pelo Tribunal ad quem, arredado que se mostra tratar-se de erro ou lapso), impõe-se o reenvio do processo para renovação parcial do julgamento, limitado às declarações do arguido/recorrente, nos termos do disposto nos artigos 426.º, n.º 1, e 426.º-A do C.P.P., a que se seguirá a prolação de novo acórdão em que, suprindo-se o aludido vício, se decida em conformidade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Nos autos em referência, precedendo audiência de julgamento, as Senhoras Juízas e o Sr. Juiz do Tribunal a quo, por acórdão de 13 de Novembro de 2023, para o que agora releva, decidiram:
«Condenar o Arguido AA, pela prática de 1 (um) crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos art.ºs 22º, 23º, 73º e 131º do Código Penal e 1º e 4º do DL n.º 401/82, de 23.09, na pena de 5 (cinco) anos de prisão (efetiva)»
2. O arguido AA interpôs recurso do acórdão condenatório. Aparta da motivação as seguintes conclusões:
«1. Do excesso de pronúncia:
O douto acórdão a pag. 27 e segs espraia-se em tecer considerações elogiosas à personalidade do recorrente (numa aplicação “ipsis verbis” da matéria de facto “maxime” a registada no Relatório Social do arguido.
2. Assim, o acórdão considera como grandes atenuantes do “iter ilícito” do arguido os seguintes factores: a extrema juventude à data dos factos (18 anos), item 43 da MFP: aluno regular, motivado, interessado a nível desportivo, um atleta empenhado, assíduo, educado e responsável (SIC).
3. No item 44 da Matéria de Facto Provada (MFP): nas funções laborais trabalhava em part-time. Item 45 integrado no agregado familiar do pai e do filho da madrasta/Mãe, a residir em habitação própria.
4. Item 46: dinâmica familiar integrada “a BB não sendo mãe biológica considera o AA como filho, coabitando há mais de sete anos, é harmoniosa (a relação) e de entreajuda de todos os elementos. (SIC)
5. Item 47: em termos escolares /formativos, AA mantém-se a frequentar o 12.º ano do Curso Profissional de ….
6. em Julho de 2023 com classificação positiva, “o bom desempenho obtido na prova de aptidão profissional com 17 valores. Item 49. Sem registo criminal.
7. Mais: na determinação da medida da pena e na ponderação da aplicação da Lei 401/82 de 23 Setembro (Jovens delinquentes), o Acórdão recorrido considera que essa aplicação depende “da existência de razões sérias para crer que da atenuação da atenuação resultarão vantagens para a reinserção” SIC).
8. Ou seja, caso “seja possível realizar um juízo de prognose à sua reinserção social”…e pág 28 prossegue o douto acórdão que “a juventude do arguido, a confissão parcial dos factos, demonstrando ter assimilado o desvalor da sua conduta (sublinhado nosso), e consequente sinal de ressocialização, sinal de interiorização do desvalor da conduta praticada,…que permitem que o juízo de prognose favorável à aplicação do regime penal mais favorável ( Lei 401/82 de 23 Setembro.
9. Todavia, mais adiante, a pág 31 /32 já a conclusão tirada no douto acórdão para a não suspensão da pena de prisão é a de que “havendo razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a sua suspensão negada” (SIC).
10. E como fundamento para se tirar conclusão tão díspar e contraditória com o anteriormente alegado quanto à personalidade do arguido, a conclusão (tirada pelo Tribunal e não assente em qualquer matéria de facto provada) de que “o arrependimento do arguido o que revela é que está não arrependido pelo que fez (?) mas sim pelo facto de se encontrar privado de liberdade…
11. Ou seja, a pág. 27 e segs com base em matéria de facto provada conclui-se poder fazer-se um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido (dadas as suas qualidades positivas de personalidade e de bom percurso escolar, profissional, familiar, resultante da prova efectuada nos autos, nomeadamente o conteúdo do Relatório Social) e depois a pág. 31 conclui-se que em relação ao mesmo arguido esse juízo de prognose favorável é inadmissível. Nisso constituindo nítido excesso de pronúncia, até porque esta última conclusão não é alicerçada em qualquer meio de prova válido ou resultante de matéria de facto provada anteriormente nesta sede.
12. Pelo que a instância cometeu “hoc et nunc” e pelos motivos elencados, a nulidade de excesso de pronúncia (art.º 379.º 1 c) do CPP ao conhecer do que não podia - ou não devia - conhecer, o que torna nulo o decidido.
13. Quanto ao vício da contradição insanável (art.º 410.º n.º 2 alínea b) do CPP) entre a fundamentação e a decisão: Pelas razões já elencadas, este vício resulta da constatação, por um lado, da verificação do juízo de prognose favorável, para depois, sem sede decisória se concluir precisamente o contrário, para se justificar una pena de prisão efectiva.
Pelo que Vossas Excelências – não tanto pelo ora alegado como pelo que doutamente hão-de suprir – revogando o douto acórdão recorrido nos termos peticionados e:
A) Dando como provados os apontados vícios e nulidades reduzir a pena aplicada ao arguido AA para uma pena que se situe entre os 3 e os 4 anos.
B) Proceder à desqualificação do crime ofensa à integridade física qualificada, mantendo a aplicação do regime para jovens.
C) Suspender a pena aplicada ao arguido, mesmo que sujeita a regime de prova. Decidindo como foi peticionado V.Exas. exercerão a melhor e mais costumada. JUSTIÇA!»
3. O recurso foi admitido, por despacho de 18 de Dezembro de 2023.
4. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público em 1.ª instância propugna pela confirmação do julgado. Extrai da motivação as seguintes conclusões:
«1. O Arguido/Recorrente AA foi condenado pela prática de 1 (um) crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos art.ºs 22.º, 23.º, 73.º e 131.º do Código Penal e 1.º e 4.º do DL n.º 401/82, de 23.09, na pena de 5 (cinco) anos de prisão (efetiva).
2. Da motivação do recurso apresentado parece que o Recorrente alega o vicio de excesso de pronúncia quando a argumentação por si avançada mais não traduz do que a sua discordância relativamente à avaliação que o tribunal a quo fez da prova produzida, valoração esta porém devidamente fundamentada, e olvidando que a convicção do tribunal é a do julgador e não a das partes.
3. Ou seja, vem impugnar a matéria de facto dada como provada.
4. No entanto, não obedeceu ao disposto no art.º 412.º, nº 4 do Código de Processo Penal ao não fazer referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do art.º 364.º, não indicando as concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
5. O preceituado no referido art.º 412.º tem carácter imperativo para o Recorrente e a sanção, em qualquer dos casos aí previstos, é ou a rejeição total do recurso (nos nºs 1 e 2) ou o não conhecimento da matéria em questão (nos nºs 3, 4 e 5).
6. Assim, nos termos das normas citadas o recurso é de rejeitar liminarmente na parte em que impugnou a matéria de facto, devendo prosseguir quanto às demais questões suscitadas.
7. Porém, sempre se dirá que da mera leitura do acórdão recorrido não resulta por demais evidente a “conclusão contrária” àquela a que chegou o tribunal; pelo contrário é assertiva a fundamentação esplanada, permitindo compreender o raciocínio lógico que presidiu à sua prolação, não resultando do seu texto que tivesse que ser outra a decisão do tribunal a quo, mesmo quando os factos ali assentes são conjugados com as regras da experiência.
8. Da factualidade dada como provada resultou que “Quando o Arguido ia atrás da CC e da DD, no que era seguido pelo Assistente, abriu a bolsa que levava consigo e retirou, do seu interior, um canivete suíço, que habitualmente trazia consigo (ponto 13). Após se virar em direção ao Assistente EE, dirigiu-se a este e, com tal objeto na mão, com o punho fechado, golpeou o peito de EE, como se o esmurrasse, por cima do blusão preto, tipo kispo, que este envergava”.
9. O canivete suíço, pelas suas características - lâmina afiada - e pela forma como foi utilizado – com o canivete na mão, com o punho fechado, golpeou o peito do Assistente, como se o esmurrasse – é um instrumento capaz de provocar a morte.
10. De salientar a força utilizada – como se fosse um murro – e a zona do corpo atingida – o peito, onde se alojam órgãos vitais -.
11. Por outro lado, “Como consequência direta e necessária da descrita conduta do Arguido EE sofreu laceração com cerca de 1cm na parede anterior do ventrículo direito, perfuração na parede torácica direita, hemorragia na veia / artéria mamária direita, choque por tamponamento cardíaco e hemotórax bilateral, foi submetido a cirurgia para rafia de incisão do ventrículo direito e da artéria mamária direita e ficou com uma cicatriz linear no quadrante superomedial da mama direita, horizontal, que mede 1cm de comprimento, bem como com cicatriz pós-operatória, vertical e mediana, na face anterior do tórax com 17cm de comprimento…”.
12. Logo, há que concluir, necessariamente, que tendo em consideração a zona atingida e a gravidade das lesões, que é esclarecedora sobre a violência do “murro” desferido, da agressão sofrida poderia ter resultado a morte.
13. Resulta igualmente evidente que quem actua do modo como o arguido actuou, pretendia que daí resultasse a morte do Assistente, a qual só não ocorreu por circunstâncias a que foi alheio, e não um mero ferimento, mesmo que grave.
14. Assim, bem andou o tribunal a quo ao subsumir a atuação do arguido à prática de um homicídio com dolo directo.
15. O crime de homicídio, na forma tentada, com a atenuação especial resultante dos arts.º 1.º e 4.º do Dec-Lei n.º 401/82, de 23.09 e dos arts.º 73.º, n.º 1, als. a) e b) e 41º, n.º 1, do CP, é punível em abstracto, com de prisão de 1 mês a 7 anos, 1 mês e 10 dias.
16. Na determinação da medida da pena há que ter em consideração: o dolo, directo; o grau de ilicitude dos factos que será elevado; as necessidades de prevenção geral, que são muito elevadas nos tipos criminais em causa; as necessidades de prevenção especial atentos os actos que cometeu e a personalidade que revela quem assim procede; que não regista antecedentes criminais; que confessou os factos (em parte), mas não revelou arrependimento; a sua inserção social e familiar.
17. Tudo ponderado, entendeu o tribunal a quo por adequada a aplicação da pena de 5 anos de prisão.
18. A suspensão de uma pena depende da verificação de um pressuposto formal – pena não superior a 5 anos – e de um pressuposto material, qual seja, a prognose de que a censura de facto e ameaça da prisão bastam para que as finalidades da punição sejam alcançadas.
19. No vertente caso, o pressuposto formal não oferece dúvida.
20. Quanto ao pressuposto material, como ensina o Professor F. Dias F. Dias, in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, página 340,“apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização a suspensão não deverá ser decretada se a ela se opuserem “as necessidades de reprovação e prevenção do crime. (…) estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.”
21. Assim, pese embora o Recorrente não registe antecedentes criminais e se encontre familiar e socialmente integrado, são prementes as exigências de reprovação do crime, que se vem verificando cada vez mais, em que jovens, utilizando armas brancas, entram em conflito, sem qualquer razão que o possa justificar, o qual acabam em agressões e, não raras vezes, em perda de vidas.
22. Aos tribunais compete dar à sociedade um sinal claro de que a agressão não é o caminho, nem sequer um dos caminhos possíveis, para a resolução de conflitos, ou, como defende o recorrente, de ciúmes. É e será sempre a forma mais primitiva de resolver problemas. Quando a agressão ultrapassa limites socialmente intoleráveis e se perpetua na saúde do ofendido, a suspensão da pena acaba por refletir menosprezo pelo valor da vida e/ou integridade física, valores estes que são e terão sempre de ser, numa sociedade sadia, irrenunciáveis (neste sentido vd. Ac TRG 25.03.2019, disponível em dgsi.pt).
23. De notar, também, que não obstante o Recorrente ter manifestado arrependimento em audiência de discussão e julgamento, este (arrependimento) deve ser, uma atitude de alma traduzível num mea culpa sincero. Não raro anda acompanhado de um pedido de desculpas, de reparação dos danos, não se fica só por palavras. E quando assim não ocorre e é verbalizado e genuíno é, muitas vezes, acompanhado de uma atitude corporal reveladora de contrição que não deixa dúvidas sobre a sentida reflexão que o precedeu.
24. Ora, o Recorrente abandonou o ofendido à sua sorte, tendo abandonado o local logo após o ter atingido com a navalha.
25. E, não obstante ter tido conhecimento, posteriormente, do estado de saúde do ofendido, não procurou entrar em contacto com o mesmo a fim de se inteirar do seu estado a conselho da sua defensora, segundo alegou.
26. Nesta perspetiva a pena não poderá ser suspensa na sua execução.
27. Pelo que bem andou o tribunal a quo ao não suspender a execução da pena aplicada.
28. No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito»
5. O assistente EE propugna, também, pela confirmação do julgado. Aparta da motivação as seguintes conclusões:
«I. O recorrente AA, não se conformando com o douto acórdão proferido que o condenou, pela prática de 1 (um) crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 73º e 131º, todos do Código Penal, e 1º e 4º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro, na pena de 5 (cinco) anos de prisão (efetiva), bem como no pagamento ao assistente da quantia de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) e no pagamento ao ... da quantia de €8.215,77 (oito mil duzentos e quinze euros e setenta e sete cêntimos), ambos relativamente a pedidos de indemnização civil, vem requerer a revogação do mesmo, alegando, em síntese: A. Que o acórdão enferma de nulidade processual ou de algum dos vícios previstos no artigo 410º do Código de Processo Penal; B. Que o crime deve ser desqualificado de homicídio, na forma tentada, para ofensa à integridade física qualificada; C. Que a pena aplicada deve ser reduzida para uma pena que se situe entre os 3 (três) e os 4 (quatro) anos; e D. Que a pena aplicada ao arguido seja suspensa, mesmo que sujeita a regime de prova.
II. Para o assistente, o douto acórdão proferido não merece qualquer reparo.
III. O arguido confessou parcialmente os factos, mas só confessou aqueles cuja prova garantidamente seria feita através das declarações do assistente, do depoimento das demais testemunhas e dos documentos junto aos autos.
IV. E diferentemente do que pretende demonstrar o recorrente, o mesmo assumiu uma conduta desculpabilizante e tentou culpar o próprio assistente pelo sucedido. Tal facto, por si só, demonstra a ausência de autocensura e de arrependimento por parte do arguido.
V. O recorrente assim questiona: “Como é que o ciúme não foi dado como provado? (p. 9 do recurso), facto que não se percebe.
VI. O Tribunal a quo não considerou provado “k) Que ao golpear o peito de EE o Arguido tenha agido por sentimento de ciúme; (…)” (p. 10 do acórdão) Ocorre que o CIÚME consta no artigo 24 do libelo acusatório como característica de um motivo fútil, circunstância suscetível de revelar especial perversidade ou censurabilidade, que conduziria ao agravamento da pena.
VII. De referir que o arguido só não foi condenado pela prática de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, porque o motivo fútil – CIÚME – não foi considerado provado pelo coletivo de juízes. Com a devida vénia, na nossa modesta opinião, deveria ter sido.
VIII. Alega, também, o recorrente não compreender porque o Tribunal a quo fez um juízo de prognose favorável relativamente à aplicação do regime previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro (Regime Penal Aplicável à Jovens Delinquentes), e posteriormente não fez este mesmo juízo para suspender a execução da pena de prisão, razão pela qual entende que há uma contradição entre a fundamentação e a decisão proferida. Não lhe assiste razão!
IX. Ao proferir o douto acórdão, o coletivo de juízes fundamentou, e bem, porque decidiu aplicar aquele Regime e porque entendeu não suspender a execução da pena de prisão.
X. Tendo em consideração o previsto no nº 1 do artigo 50º do Código Penal e no artigo 127º do Código de Processo Penal, é importante observar que o valor da prova não depende tanto da sua natureza, mas sobretudo da sua credibilidade, aferida pelo julgador que, tendo contato direto com o arguido e com as testemunhas, apercebe-se do modo e da convicção como depuseram, nomeadamente a convicção com que o fizeram, o tom de voz e a forma de resposta, os gestos, os olhares, a postura e as reações.
XI. Ora, diante das declarações prestadas pelo arguido, restou claro que o arrependimento que demonstrou refletia, não uma preocupação com o assistente, mas unicamente com si próprio. Se o arguido pretendesse demonstrar total arrependimento, não só por si, mas também pelas drásticas consequências que a prática do crime acarretaram ao assistente, teria assumido os factos na sua totalidade. Não o fez! Muito pelo contrário, diferentemente do que alega no seu recurso, assumiu uma postura desculpabilizante e tentou culpar o próprio assistente pelo sucedido.
XII. Portanto, o acórdão é bastante claro quanto às razões pelas quais o arguido foi condenado numa pena de prisão efetiva, não lhe tendo sido concedida a suspensão da execução da mesma, sendo que o assistente acompanha aquele entendimento, não merecendo provimento a questão aqui suscitada.
XIII. Alega, ainda, o recorrente que deveria ter sido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualifica, ao invés de condenado pela prática de um homicídio, na forma tentada, uma vez que “NUNCA o arguido pretendeu com a sua atuação tirar a vida ao EE…”
XIV. Ora, quem pretende simplesmente afastar uma pessoa, conforme quis fazer crer o arguido, não utiliza um canivete. Por outro lado, é bastante claro que ao atingir o assistente no tórax, bastante próximo do coração, o arguido tinha indubitavelmente o objetivo de matar aquele. Importa referir que o arguido só não alcançou o seu intento, porque o assistente, munido de um extremo bom senso e equilíbrio, ligou para o número das urgências e foi recebendo conselhos, até alcançar ajuda.
XV. Portanto, muito bem decidiu o Tribunal a quo quando condenou o arguido pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 73º e 131º, todos do Código Penal, não merecendo a pena que lhe foi atribuída, de 5 (cinco) anos de prisão (efetiva), qualquer reparo.
XVI. Por todo o exposto, entende o assistente que o douto acórdão proferido pelo egrégio Tribunal a quo não merece qualquer censura, tendo aplicado uma pena justa, adequada e proporcional à situação do arguido e à gravidade dos factos.
Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo recorrente AA, mantendo-se in totum a decisão proferida.»
6. Nesta instância, o Ex.mo Magistrado do Ministério Público, louvado na resposta, é de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente. Pondera, ademais e em síntese, nos seguintes termos: «O âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal.
Ora, no que a estes se refere, verifico que do texto da decisão não se evidenciam vícios, que a mesma se mostra suficiente e devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e sem contradição insanável. Ademais, interpretou corretamente a prova produzida em audiência, fundamentou de forma adequada os concretos motivos de apreciação da mesma e procedeu à correta determinação da medida das penas aplicadas.
Ademais; Não obstante na sua motivação o recorrente suscitar a pretensão de impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, certo é que não verteu tal pretensão, pelo menos de forma expressa, nas conclusões formuladas e tão-pouco deu cumprimento ao disposto no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
As conclusões do recurso cingem-se, pois, às questões já devida e corretamente identificadas na resposta do Ministério Público, sendo que as mesmas se mostram ali já devidamente apreciadas e escalpelizadas sem carecer de aditamentos.
Por conseguinte, e acompanhando a bem elaborada resposta do Ministério Público em 1.ª instância, sou de parecer que ao recurso interposto pelo arguido AA deve ser negado provimento, julgando-o improcedente e confirmando-se a douta decisão impugnada»
7. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do C.P.P. responderam o recorrente e o assistente.
8. O recorrente AA aduz que:
«1.º Tanto a Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância, como o Procurador-Geral Adjunto junto da 2.ª instância, responderam ao recurso do ora arguido manifestando que o mesmo deve ser julgado improcedente.
Ora, muito nos custa tal posição,
Vejamos,
2.º A douta Magistrada do Ministério Público nas suas alegações em julgamento não pediu pena efectiva para o arguido.
3.º Nem a tal fez menção. Mas fez menção ao arrependimento do arguido.
4.º O que é certo é que as últimas declarações do arguido não foram sábias, mas sim irrefletidas de um miúdo de 19 anos, que se viu “atacado” pela advogada do assistente e tentou se defender.
5.º O arguido pecou aos olhos do tribunal por não ter pedido desculpa em audiência ao ofendido.
6.ºMas não beneficia por ter pedido, antes da entrada dos Exmos. Juízes e da Digníssima Procuradora, desculpa ao ofendido e à sua mãe.
7.º O arguido encontra-se arrependido e disso não há dúvidas (como se pode verificar pela gravação do julgamento).
8.º O relatório social do arguido espelha o que foi e o que pode vir a ser a vida do arguido.
9.º Não se entende a posição do douto tribunal à quo, nem dos digníssimos procuradores nem a insistência em mandar o arguido para uma prisão.
10.º O arguido não nega a prática do crime.
11.º Mas pede a V.Exas. uma oportunidade de se reabilitar na sociedade.
12.º Aliás reitera-se o que já se expôs no recurso em crise, em que ficou patente no douto acórdão que , caso “seja possível realizar um juízo de prognose à sua reinserção social”…e pág 28 prossegue o douto acórdão que “a juventude do arguido, a confissão parcial dos factos, demonstrando ter assimilado o desvalor da sua conduta (sublinhado nosso), e consequente sinal de ressocialização, sinal de interiorização do desvalor da conduta praticada, (…) que permitem que o juízo de prognose favorável à aplicação do regime penal mais favorável ( Lei 401/82 de 23 Setembro).
13.º Mantém o arguido que existem vícios no douto acórdão nos termos já enunciados no recurso, reiterando que V.Exas. Exmos. Juízes Desembargadores, dando provimento ao mesmo, farão como sempre A acostumada justiça!».
9. O assistente EE invoca que:
«1º Inicialmente, ratifica-se todo o alegado na resposta do assistente ao recurso do arguido.
2º Relativamente àquele recurso, o ilustre procurador-adjunto, “(…) acompanhando a bem elaborada resposta do Ministério Público em 1ª instância, (…)”, emitiu parecer no sentido de que, ao mesmo, “(…) deve ser negado provimento, julgando-o improcedente e confirmando-se a douta decisão impugnada.”
3º Esta também é a opinião do assistente.
4º Diferentemente do que alega o arguido, o acórdão proferido pelo Coletivo de Juízes não enferma de nulidade processual ou de algum dos vícios previstos no artigo 410º do Código de Processo Penal.
5º Além disso, restou bastante claro que o crime cometido pelo arguido foi o de homicídio na forma tentada, uma vez que, ao atingir o assistente no tórax, muito próximo do coração, o arguido tinha indubitavelmente o objetivo de o matar, resultado que só não alcançou porque o assistente, munido de um extremo bom senso e equilíbrio, ligou para o número das urgências e foi recebendo conselhos, até alcançar ajuda.
6º Razão pela qual a pena que lhe foi aplicada, de 5 (cinco) anos de prisão (efetiva), é adequada e proporcional, garantindo, ao caso concreto, as razões de prevenção geral e especial, bem como a reintegração do agente na sociedade.
7º Relativamente à execução da pena, a mesma não deverá ser suspensa porque, dentre outros, ficou bastante claro em sede de julgamento que o arrependimento que o arguido demonstrou refletia, não uma preocupação com o assistente, mas unicamente com si próprio. Se o arguido pretendesse demonstrar total arrependimento, não só por si, mas também pelas drásticas consequências que a prática do crime acarretaram ao assistente, teria assumido os factos na sua totalidade. Não o fez! Muito pelo contrário, diferentemente do que alega no seu recurso, assumiu uma postura desculpabilizante e tentou culpar o próprio assistente pelo sucedido.
8º Por último, importa esclarecer que esta signatária não “atacou” o arguido. Limitou-se, apenas, a proferir as suas alegações. O arguido, utilizando-se de direito que lhe assiste, decidiu responder a uma determinada menção que não gostou, facto que, em nada, o ajudou. Muito pelo contrário! Em suma, entende o assistente que o douto acórdão proferido pelo egrégio Tribunal a quo não merece qualquer censura, tendo aplicado uma pena justa, adequada e proporcional à situação do arguido e à gravidade dos factos.
Nestes termos, o assistente mantém a opinião de que deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo recorrente AA, mantendo-se in totum a decisão proferida. Só assim se fará JUSTIÇA!»
10. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto do recurso
Atento o teor das conclusões da motivação do recurso, importa fazer exame das questões (alinhadas segundo um critério de lógica e cronologia e, eventualmente, preclusivas) atinentes às invocadas: nulidade do acórdão por excesso de pronúncia, contradição insanável a que alude o art.º 410º, n.º 2, al. b) do C.P.P., ao erro do Colectivo a quo no julgamento da matéria de facto e ao erro do julgamento da matéria de direito, seja em sede subsuntiva, seja na matéria relativa à escolha e medida da pena.
2. A decisão levada, na instância, sobre a matéria de facto, é do seguinte teor:
« 3.1. Matéria de facto provada
Realizado o julgamento, mostram-se exclusivamente provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:
A – Da Acusação:
1) O Arguido AA e CC mantiveram uma relação de namoro;
2) O Arguido começou a suspeitar que CC mantinha um relacionamento de cariz amoroso com o Assistente EE;
3) No dia 19 de outubro de 2022, no final das aulas, CC dirigiu-se a casa de EE, sita na ..., com quem tinha combinado ver um filme;
4) Pelas 15h00 desse dia 19.10.2022, o Arguido, por desconfiar que CC estava em casa de EE, dirigiu-se à referida ..., em ..., local onde sabia que este residia;
5) Por não saber qual o andar e fração em que EE residia, o Arguido, em voz alta, chamou pelo nome daquele;
6) Ao ouvir a voz do Arguido, CC pediu a EE que confirmasse se era mesmo ele que se encontrava no exterior do prédio;
7) Depois de EE ter confirmado que era o Arguido que ali se encontrava, a chamar por si, deslocou-se até ao exterior, permanecendo CC no interior do prédio, com receio da reação do Arguido;
8) Assim que EE chegou junto do Arguido, este iniciou uma discussão com o mesmo e, em tom alto e sério, disse-lhe que ia rebentar com o prédio;
9) Quando EE se apercebeu que o Arguido sabia que CC estava na sua residência enviou-lhe uma SMS, para que esta saísse do interior do prédio, o que esta fez;
10) Antes de sair da dita residência CC telefonou a DD, sua amiga e residente em local próximo, e pediu-lhe que fosse ter consigo;
11) Ao abandonar a residência de EE, CC cruzou-se com o Arguido;
12) Como, entretanto, a referida DD chegou junto de CC e dos demais, saíram ambas dali;
13) Quando o Arguido ia atrás da CC e da DD, no que era seguido pelo Assistente, abriu a bolsa que levava consigo e retirou, do seu interior, um canivete suíço, que habitualmente trazia consigo;
14) Após se virar em direção ao Assistente EE, dirigiu-se a este e, com tal objeto na mão, com o punho fechado, golpeou o peito de EE, como se o esmurrasse, por cima do blusão preto, tipo kispo, que este envergava;
15) De seguida, o Arguido colocou-se em fuga;
16) Ao ver que sangrava do peito, EE ligou para o 911 e dirigiu-se ao Jardim de Infância denominado …, sito nas imediações, onde pediu toalhas a FF e GG, para estancar a hemorragia, e, passados instantes, ficou inanimado;
17) EE foi assistido no local pela médica da Viatura Médica de Emergência de... e transportado pelos ... ao ...;
18) Depois de assistido no ..., EE foi transportado ao ..., onde foi sujeito a cirurgia e onde esteve nos cuidados intensivos, em risco de vida;
19) Como consequência direta e necessária da descrita conduta do Arguido EE sofreu laceração com cerca de 1cm na parede anterior do ventrículo direito, perfuração na parede torácica direita, hemorragia na veia / artéria mamária direita, choque por tamponamento cardíaco e hemotórax bilateral, foi submetido a cirurgia para rafia de incisão do ventrículo direito e da artéria mamária direita e ficou com uma cicatriz linear no quadrante superomedial da mama direita, horizontal, que mede 1cm de comprimento, bem como com cicatriz pós-operatória, vertical e mediana, na face anterior do tórax com 17cm de comprimento;
20) Tais lesões determinaram 37 (trinta e sete) dias para consolidação médico legal, com igual afetação da capacidade para o trabalho geral e 7 (sete) dias de afetação da capacidade para o trabalho profissional;
21) A descrita conduta do Arguido colocou em perigo a vida do Assistente EE;
22) Atenta a zona do corpo de EE a que o Arguido direcionou o canivete, concretamente o tórax, onde se alojam órgãos vitais como o coração e os pulmões, a natureza do instrumento por si utilizado e a violência empregue, traduzida nas lesões provocadas e na necessidade de submissão a cirurgia, agiu o Arguido com a intenção, não concretizada, de provocar a morte do Assistente EE,
23)sendo que a morte do Assistente só não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do Arguido, designadamente, por aquele ter sido prontamente assistido pelos ..., pela médica da ... e nos ... e do ...;
24) O Arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
(…) Do Pedido de Indemnização Civil deduzido pelo Assistente EE:
27) Antes dos factos objeto dos presentes autos o Assistente era alegre e divertido, gostando de sair de casa e não verbalizando qualquer receio em sair de casa;
28) Atualmente, quando sai de casa prefere não o fazer sozinho e fica insistentemente a olhar à sua volta, com receio de que algo lhe aconteça;
29) As lembranças do dia em que foi golpeado pelo Arguido deixam o Assistente abalado, nervoso e perturbado;
30) Por vergonha, o Assistente evita mostrar as cicatrizes supra descritas, com que ficou em virtude dos factos objeto dos autos;
31) Em virtude da lesão causada pelo Arguido, o Assistente sofreu dores, teve dificuldade em dormir e pesadelos;
32) Por ordem médica não pôde voltar à escola, terminando o ano letivo, a realizar os trabalhos que lhe eram solicitados pelos professores;
33) Perdeu a convivência com os amigos e deixou de ter uma rotina escolar normal;
34) Ficou, por período não concretamente apurado, proibido de praticar atividade física, sobretudo futebol, que adora;
35) O Assistente vive, desde os factos dos autos, em constante sobressalto, com medo e receio pela sua vida e saúde;
36) O Assistente teve acompanhamento psicológico em virtude do medo e ansiedade provocados pelos factos dos autos;
D - Das Condições Pessoais do Arguido:
37) AA, nasceu a ........2004, fruto da relação conjugal dos progenitores, sendo o mais novo de uma fratria de dois irmãos;
38) Aos quatro anos de idade, na sequência da cessação da relação marital dos progenitores, o Arguido e o irmão ficaram integrados no agregado do pai;
39) A relação afetiva com o pai sempre se pautou pela afetividade e apoio, ao contrário da relação com a mãe, a qual é caracterizada como figura completamente ausente, tendo o Arguido criado um crescente sentimento de rejeição, o qual, no entanto, foi também, progressivamente, atenuado pelo afeto e apoio de BB, companheira do pai, com a qual o Arguido estabeleceu uma relação muito positiva;
40) A infância e adolescência do Arguido foram felizes, com laços afetivos coesos e com uma situação social e económica positiva, dado quer o pai, quer a companheira deste disporem de ocupação laboral estável;
41) Em termos de escolaridade, AA frequentou e concluiu o primeiro ciclo, com ausência de registos disciplinares e com uma reprovação no 2º ano, na sequência de perturbação de aprendizagem, nomeadamente baixo desempenho na leitura, provocada pela dislexia diagnosticada;
42) Durante a frequência e conclusão do 2º e 3º ciclo, verificou-se um percurso sem incidentes escolares e / ou disciplinares, tendo, por vontade própria, optado pela via profissional, na área do desporto, área do seu interesse, e por, desde cedo, ter sido praticante de futsal, nomeadamente no ... e nos ...;
43) O Arguido foi um aluno regular, motivado, interessado e a nível desportivo um atleta empenhado, assíduo, educado e responsável;
44) Paralelamente quer à atividade escolar, quer à atividade desportiva, o Arguido desempenhou funções laborais, em regime de part time, nomeadamente coadjuvando o pai em trabalhos de …, demonstrando proatividade, responsabilidade e disciplina;
45) AA mantém-se integrado no agregado familiar do pai e do filho da madrasta/mãe, a residir em habitação própria;
46) A dinâmica familiar, inclusivamente com o irmão germano, com BB, a qual não sendo mãe biológica considera o AA como seu filho, coabitando há mais de sete anos, quer ainda pelo filho desta, é harmoniosa e de entreajuda de todos os elementos;
47) Em termos escolares/formativos AA mantém-se a frequentar o 12º ano do Curso Profissional de …, tendo em julho/2023 obtido classificação positiva, realçando a HH o bom desempenho obtido na prova de aptidão profissional, na qual obteve a classificação de 17 valores;
48) Para conclusão do ciclo formativo 2020/2023 AA terá de concluir dois módulos referentes ao 10º ano de escolaridade;
49) O Arguido não tem antecedentes criminais registados.
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3.2. Matéria de facto não provada
a) Que a relação de namoro do Arguido e CC tenha durado cerca de um ano e três meses, entre junho de 2021 e finais do mês de setembro de 2022;
b) Que o Arguido não tenha aceite o fim do relacionamento com CC;
c) Que, na última semana de setembro de 2022, o Arguido tenha dito a II, na presença de CC, que um dia daria um tiro em EE, por este conviver com a sua namorada;
d) Que CC se tenha dirigido a casa de EE pelas 13:10 horas;
e) Que na ocasião descrita no ponto 7) dos Factos Provados, CC tenha permanecido no interior da residência do Assistente, junto à janela;
f) Que na ocasião descrita no ponto 8) dos Factos Provados, o Arguido tenha dito ao Assistente que o ia matar;
g) Que na ocasião descrita no ponto 11) dos Factos Provados, CC tenha trocado breves palavras com o Arguido;
h) Que na ocasião descrita no ponto 13) dos Factos Provados, o Arguido e o Assistente se tenham empurrado mutuamente;
i) Que o Arguido tenha retirado o canivete suíço do bolso;
j) Que na ocasião descrita no ponto 16) dos Factos Provados, o Assistente tenha ligado para o 112;
k) Que ao golpear o peito de EE o Arguido tenha agido por sentimento de ciúme;
l) Que o Assistente tenha receio que o Arguido, quando restituído à liberdade, atente, novamente contra a sua vida;
m) Que, por conta das dores e lesões sofridas, EE, durante vários meses, não tenha conseguido encontrar posição para dormir, sentindo falta de ar e estando sempre cansado;
n) Que o Assistente tenha ficado proibido de praticar atividade física durante meses.
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De resto, não se logrou provar quaisquer outros factos relevantes, alegados ou não, resultantes da discussão da causa, e/ou que estivessem em oposição com os factos atrás referidos, sempre se salientando que não selecionámos matéria conclusiva ou de direito constante do libelo acusatório proferido nos autos, bem como do pedido de indemnização civil deduzido nos autos.
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3.3. Motivação da decisão de facto
Serviram de base para formar a convicção do Tribunal a análise critica e conjugada dos vários elementos probatórios abaixo discriminados, apreciados segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador, nos termos do art.º 127º do Código de Processo Penal:
- no teor do auto de notícia constante de fls. 92 a 94, no que respeita à data, hora e local onde os factos objeto dos presentes autos tiveram lugar;
- no teor do auto de apreensão e auto de exame e avaliação do casaco do Assistente, constantes de fls. 95 e 96 dos presentes autos;
- no teor das fotografias constantes de fls. 14 e 15 dos presentes autos, ao casaco do Assistente (onde é visível o buraco neste deixado), que nos permitem ter a perceção, quer da zona atingida, quer do tamanho do buraco deixado no casaco;
- no teor das fotografias do Arguido, constantes de fls. 16 a 18 dos presentes autos, onde não são visíveis ferimentos ou marcas de agressão no rosto, braços e mãos do Arguido;
- no teor da informação clínica referente ao Assistente, constante de fls. 104 a 130, 140 a 144 e 199 a 201 dos presentes autos;
- nas fotografias constantes de fls. 201 dos presentes autos, onde é visível a lesão provocada pelo golpe infligido ao Assistente e as cicatrizes com que este ficou após as cirurgias a que foi submetido em virtude dessa mesma lesão;
- no teor do relatório da perícia de avaliação do dano corporal, atinente ao Assistente, constante de fls. 202 a 204 (e 226, verso, a 227, verso) dos presentes autos, que concatenado com a anterior enunciada documentação clínica do Assistente, se mostrou determinante para prova da factualidade constante dos pontos 17) a 21) dos Factos Provados, nos exatos termos aí descritos;
- nas declarações prestadas pelo Arguido em sede de audiência de julgamento, em que este, de forma contida e notoriamente preocupada, descreveu o circunstancialismo em que ocorreram os factos objeto dos presentes autos. Declarou que recebeu um telefonema de uma amiga da CC (de nome DD) a dizer-lhe que esta estava com o EE, a ir com o mesmo para casa deste. Esclareceu que a CC era, à data, sua namorada, tendo começado a namorar com esta em 2021, terminado e recomeçado tal relacionamento. Referiu que, como tinha duas horas de almoço, pediu ao pai para o levar a ..., não lhe tendo transmitido o que ia fazer. Aí chegado, dirigiu-se à zona onde sabia residir o Assistente e começou a tocar às campainhas, bem como a chamar pelo nome deste. Precisou que queria falar com a CC, a quem telefonou várias vezes, sem que esta o atendesse. Afirmou que quando o EE desceu o apelidou de “Cabrão, “Filho da Puta”. Mencionou que a CC desceu de seguida, mas que se afastou destes, seguindo com a DD, que, entretanto, aí surgiu, em direção à casa desta última. Foi, então, atrás destas. O EE seguiu atrás do Declarante, dizendo-lhe que não tinha medo do mesmo, ficando com a ideia que o EE lhe queria bater, tendo tirado o canivete suíço (que descreveu como tendo chave de estrelas, tesoura, abre latas e lâmina de, pelo menos, quatro dedos, e que afirmar trazer sempre consigo, utilizando-o, aos fins de semana, para ajudar o pai, a descarnar fios) da bolsa, que levava ao tiracolo, apenas para o afastar. Reconheceu ter impulsionado o canivete para a frente, com o punho fechado, estando o EE a um metro de si. Declarou não ter tido a perceção da zona em que atingiu o EE, que era mais alto do que o Declarante, cerca de um palmo, e trajava um blusão. Relatou que, logo de seguida, foi para casa de um primo, pois estava com medo do que lhe podia acontecer. Depois de falar com o pai, entregou-se às autoridades. Afirmou estar arrependido, sabendo ser incorreto o que fez, só não tendo, até ao momento, pedido desculpa ao EE por conselho da sua advogada, mas tendo tido notícias do estado de saúde deste, por amigos comuns. Contou ter, entretanto, concluído o 11º e o 12º ano de escolaridade, em casa, precisando que se tratava de um curso técnico profissional, de gestão desportiva. Frisou pretender ir para a faculdade, para um curso na área do desporto, e trabalhar, pois, pretende pagar ao EE a indemnização e assumir as consequências do que fez. As declarações prestadas pelo Arguido em sede de audiência de julgamento, no seu essencial, mostram-se consentâneas com as prestadas em sede de Primeiro Interrogatório de Arguido Detido(onde foi dado cumprimento ao preceituado no art.º 141º, n.º 4, al. b), do Código de Processo Penal), cujo conteúdo este declarou, em sede de audiência de julgamento, ter presente e que pela Digna Magistrada do Ministério Público, pela ilustre mandatária do Assistente e pela ilustre mandatária do Arguido foi declarado aí darem por reproduzidas, frisando-se, no entanto, ter sido alegado, em tal ocasião, pelo Arguido, que o “EE foi até si, para cima de si. Parecia que o queria agredir. Não o queria magoar. Só se queria proteger. Estava com medo dele. Para se proteger meteu a faca, na zona do peito”, reforçando que o Assistente “tentou agredi-lo, com as mãos. Ia dar-lhe um soco, com a mão direita. Tinha a mão fechada.”;
- nas declarações prestadas pelo Assistente, que, de forma emotiva e sincera, evidenciando o desconforto que ainda sente em recordar o por si vivenciado, descreveu o circunstancialismo em que foi esfaqueado pelo Arguido, no dia 19 de outubro de 2022, depois do almoço, em ..., à frente da sua residência. Afirmou que se encontrava, em sua casa, com a CC, a ver filmes, quando esta lhe referiu ter ouvido a voz do Arguido. Pese embora inicialmente tenha ignorado tal afirmação, a solicitação desta, acabou por ir à janela do seu quarto, ocasião em que avistou o Arguido, à porta do seu prédio. Disse à CC para aguardar no interior do prédio (para não haver discussões) e saiu deste sozinho. Relatou que, nessa ocasião, o Arguido lhe disse que ia matar o irmão do Declarante e explodir o prédio deste, sabendo que a CC aí se encontrava. Como o Arguido sabia da presença desta, enviou uma mensagem à CC a dar-lhe disso conhecimento, para que esta descesse. Tendo surgido, entretanto, no local a DD, a CC foi ter com esta, e, sem falar com o Arguido, afastaram-se ambas de tal local. Narrou que, após o Arguido lhe dizer para abandonar o local e que “Eu não espeto aqui porque tenho os teus vizinhos lá em cima a olhar para mim”, dirigiram-se, todos, para a ..., seguindo a CC e a DD à frente, depois o AA e, atrás deste, o Declarante. Explicitou que apenas foi atrás do Arguido, mantendo, ainda assim, alguma distância, por ter receio que o Arguido fizesse alguma coisa à CC, pois este estava exaltado. Afirmou ter ouvido, entretanto, quando estava a cerca de 4 metros de distância do Arguido, o fecho da bolsa deste a abrir-se, após o que o Arguido se virou e veio em direção do Declarante, espetando-lhe algo, que não visualizou, mas pensa ter-se tratado de uma faca, no peito. Realçou ter sido um único golpe, tendo sentido uma espécie de um soco, de mão fechada. Frisou ter olhado para o seu casaco e visto algodão a sair para fora, o que motivou que abrisse o casaco e visualizasse a sua camisola cheia de sangue. Declarou ter ligado para o “911”, e, ao avistar uma funcionária do infantário, terá esta pedido ajuda. Referiu que, enquanto lhe foi prestado auxílio, acabou por desmaiar, só voltando a recuperar os sentidos já no Hospital. Descreveu a operação a que foi submetido, bem como o período em que esteve internado no Hospital. Relatou a forma como decorreu a sua recuperação e as sequelas com que ficou frisando que, quando sai à rua, tem tendência a olhar para todo o lado, tendo receio em passar por locais frequentados por amigos do Arguido (e que anteriormente frequentava, designadamente a zona do antigo ... e da ...). Salientou que, quando sai do trabalho, envia mensagem a dizer que o está a fazer, pois a família fica preocupada quando não está com ele. Frisou que continua a ter pesadelos com a facada. Mencionou que teve acompanhamento com psicólogo, nas ... (quatro ou cinco sessões), tendo indicação para marcar novas sessões se voltar a sentir-se mal. O irmão, de nove anos de idade, também está a ter acompanhamento psicológico na Escola. Frisou que a cicatriz com que ficou (e que exibiu ao Tribunal) ainda é bem visível, tendo receio de a mostrar, pois as pessoas começam logo a perguntar-lhe o que é que lhe aconteceu e falar sobre esse assunto deixa-o mal psicologicamente. Por esse motivo quando vai à praia demora a tirar a camisola. Narrou que uma / duas semanas antes dos factos objeto dos autos, quando se encontrava numa esplanada próxima da ..., com a CC e um amigo, a jogar às cartas, o Arguido chamou a CC à parte, para falar com esta, e, de seguida, dirigindo-se ao Assistente, disse-lhe que “quem se mete com a namorada dos outros está fodido”, ou algo do género;
- no testemunho prestado por CC, que prestou um testemunho imaturo e insensível, demonstrando não ter a menor noção da gravidade dos factos objeto dos presentes autos e do contributo que teve para a sua ocorrência. Afirmou ter começado a namorar com o Arguido em junho de 2021, terem terminado o namoro e reatado de seguida. Precisou que, à data dos factos em apreço nos autos, tinha terminado com o Arguido há uma semana, pese embora, depois disso, tenha dormido com o Arguido. Relatou que, após terem saído de casa do EE, o Arguido e este começaram a discutir, não se recordando do que diziam, mas recordando-se de os ver a gesticular. Viu, entretanto, o Arguido (que, batendo com a mão no peito, apelidou de “o meu AA”) ir à bolsa (sendo do seu conhecimento que este habitualmente aí costumava guardar um canivete) e, depois, com a mão em direção ao peito do EE. Precisou ter visto o Assistente, que viu ser auxiliado, com sangue, tendo seguido para casa da prima do Arguido, por ter considerado que este último estaria triste;
- no testemunho prestado por DD, amiga da anterior testemunha, que, de relevante, afirmou ter visto o Arguido a dar uma facada no EE, após, a solicitação da sua amiga CC, ter ido ter com esta, ao pé do prédio onde o EE reside, de onde esta saiu, para ir ter consigo. Afirmou ter estado com o Arguido e a CC, em casa da prima do primeiro, depois do Assistente ter sido socorrido, precisando que o Arguido aí se encontrava a chorar, estando muito revoltado. Reconheceu ter contado ao Arguido que a CC não estava em sua casa, mas sim em casa do EE, antes deste ter ido procurar a CC a casa do EE. Foi perentória ao afirmar não ter presenciado qualquer gesto do Assistente EE que a levasse a pensar que este iria agredir o Arguido, tendo, pelo contrário, temido pelo que iria suceder quando viu o Arguido a colocar a mão na bolsa que levava. Declarou ter ideia que à data destes factos o Arguido e a CC namoravam, embora estes terminassem e reatassem o relacionamento que mantinham algumas vezes, desconhecendo se a CC tinha algum relacionamento com o Assistente;
- no testemunho prestado por FF, que, tendo, com a colega GG, prestado auxílio ao Arguido, se mostrou esclarecedora quanto ao facto deste lhes ter solicitado um pano para colocar no peito e lhes ter contado que levou uma facada; - no testemunho prestado por JJ, inspetor da Polícia Judiciária, da Seção de Homicídios, que, de forma clara, segura e coerente, descreveu o circunstancialismo em que tomou conhecimento dos factos em apreço, após o órgão de polícia criminal lhes ter comunicado uma situação de agressão, com arma branca, em que o agressor se apresentou na esquadra, a assumir a sua autoria. Precisou que tentaram localizar a arma do crime, mas sem sucesso, mostrando-se o Arguido colaborante com tal procura. Instando quanto ao estado em que o Arguido se apresentava, referiu que este estava muito contido, não exteriorizando emoções, mas evidenciando algum nervosismo. Mencionou não se recordar de ter visto marcas de agressão no corpo ou mãos do Arguido, sendo perentório ao afirmar que não era visível neste qualquer ferida ou traumatismo;
- no testemunho prestado por II, que afirmou ser amigo do Arguido e do Assistente, embora conheça este último há menos tempo que o primeiro, e conhecer a CC, por ser namorada do primeiro e amiga do segundo. Reconheceu terem existido “bate bocas” entre o Arguido e o Assistente, um deles numa ocasião em que a testemunha estava num café, com o Assistente e a CC, a jogar às cartas, o que justificou com o facto da CC estar mais próxima do grupo (e do Assistente) e menos próxima do namorado;
- no testemunho prestado por KK, pai do Assistente, que prestou um testemunho claro, seguro e coerente, descrevendo o filho como uma pessoa calma e tranquila, sem problemas de maior, antes de ter levado a facada. Narrou a forma como tomou conhecimento que o filho estava ferido, por uma funcionária do ATL frequentado pelo filho mais novo, local onde o Assistente pediu auxílio. Relatou que nesse dia já só viu o filho no Hospital. Precisou que os primeiros dias do Assistente em casa, após ter alta do Hospital, foram muito complicados, resguardando-se este em casa, de onde nunca saía sozinho e evitando passar no local onde foi esfaqueado. Frisou que, pese embora este agora já saia de casa sozinho, a mãe continua a ter que o ir buscar à estação, quando regressa do trabalho. O Assistente tem vergonha em despir a roupa e dificuldade em relatar o sucedido. Afirmou que o filho deixou de frequentar um café e as ruas próximas deste, por se sentir ameaçado. Narrou os efeitos do sucedido na família, especialmente no irmão mais novo do Assistente, que se encontra a ser acompanhado por psicólogo. Foi categórico ao afirmar nunca o Arguido ou alguém a sua solicitação lhe ter perguntado pelo estado de saúde do filho;
- no testemunho prestado por LL, madrinha de batismo do Arguido, que o descreveu como um menino responsável, amável, afetuoso, carente, que luta por aquilo em que acredita, desconhecendo que este andasse com canivetes ou facas. Afirmou que o dia a dia do Arguido se caracterizava por ir à escola e, ao fim do dia, aos treinos de futsal, nos ..., três vezes por semana. Salientou que, atualmente, sente o Arguido triste e arrependido. Frisou que o pai do Arguido, com quem trabalha diariamente, foi tentado ter notícias do estado de saúde do Assistente, desconhecendo como o fazia. Mencionou que o Arguido pretende ir trabalhar. Declarou não conhecer a CC, sabendo, no entanto, que esta foi a primeira namorada do Arguido;
- no testemunho prestado por MM, que tendo sido treinador do Arguido, nos ..., na época 2020 / 2021, descreveu o Arguido como um atleta cumpridor e que mantinha bom relacionamento com os colegas. Contou que, em 2021, o convidou para integrar a equipa técnica, como treinador adjunto. Frisou nunca ter presenciado qualquer comportamento inadequado por parte do Arguido. Não tendo sido explicitado o contexto em que foram captadas as fotografias constantes de fls. 55 a 61 dos presentes autos, não foram estas valoradas pelo Tribunal.
Em suma, da prova produzida, designadamente das declarações prestadas pelo Arguido em sede de audiência de julgamento, dúvidas não há que foi o Arguido que esfaqueou o Assistente, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no libelo acusatório.
O Arguido justifica o seu comportamento com o facto de ter pensado que o Assistente o ia molestar, afirmando ter querido apenas afastá-lo de si.
E, nesta sede, as declarações prestadas pelo Arguido não se nos afiguram convincentes.
Com efeito, não só as testemunhas aí presentes (DD e CC) esclareceram ter inexistido tal tentativa de agressão por parte do Assistente, como as próprias regras da experiência, concatenadas com as declarações prestadas pelo Assistente, testemunho prestado por DD e documentação clinica referente ao Assistente junta aos autos, permitem ao Tribunal chegar à inevitável conclusão de que o Arguido não quis apenas afastar o Assistente, tendo, pelo contrário querido atingi-lo com o canivete, de que se fazia acompanhar e de que decidiu fazer uso.
A zona visada pelo golpe – tórax -, onde se alojam órgãos vitais como o coração e os pulmões, a natureza do instrumento por si utilizado e a violência empregue, traduzida nas lesões provocadas e na necessidade de submissão a cirurgia– igualmente não deixam dúvidas quanto ao facto do Arguido pretender provocar a morte do Assistente. A versão dos factos apresentada pelo Arguido, de que apenas pretendia afastar o Assistente, não se mostra consentânea com a dinâmica dos factos resultante da prova produzida, e com a forma como este retirou da bolsa o canivete, cuja perigosidade conhecia, e, com este na mão, com o punho fechado, golpeou o peito de EE, como se o esmurrasse.
Da prova produzida resulta inequivocamente que o Arguido, ao direcionar o canivete para o tórax do Assistente, onde se alojam órgãos vitais como o coração e os pulmões (e não em outra zona no corpo menos nociva, designadamente um braço) procurava tirar-lhe a vida, o que apenas não sucedeu por razões alheias à vontade do Arguido, designadamente, por aquele ter sido prontamente assistido.
As declarações prestadas pelo Arguido e pelo Assistente, testemunhos prestados por CC e DD, elementos documentais e relatório pericial carreados para os autos, supra elencados, articulados entre si, bem como com as regras da experiência, permitem, assim, ao tribunal chegar à inevitável conclusão de que os factos objeto dos autos decorreram nos termos e com a dinâmica descrita nos pontos 3) a 24) dos Factos Provados.
Para prova da factualidade constante do ponto 1) dos Factos Provados ativemo-nos às declarações prestadas pelo Arguido e testemunho prestado por CC, de onde resulta claramente que o Arguido e CC tiveram entre si uma relação de namoro.
Não lográmos, no entanto, apurar, com a certeza que se impunha, nem a data em que tal relacionamento se iniciou, nem a data em que este terminou, razão pela qual considerámos como não provada a factualidade constante das alíneas a) e b) dos Factos Não Provados.
Das declarações prestadas pelo Arguido ficou evidente as suspeitas que este tinha relativamente ao relacionamento existente entre o Assistente e CC, o que foi valorado para prova da factualidade constante do ponto 2) dos Factos Provados.
- no teor da fatura hospitalar junta a fls. 324 dos presentes autos, concatenada com os elementos clínicos do Assistente supra elencados, para prova da factualidade constante dos pontos 25) e 26) dos Factos Provados;
Para prova da factualidade constante dos pontos 27) a 36) dos Factos Provados ativemo-nos às declarações prestadas pelo Assistente, concatenadas com o testemunho prestado pelo pai deste (KK), que, pela forma espontânea, clara e convincente com que depuseram, se mostraram totalmente esclarecedores quanto aos efeitos decorrentes dos factos objeto dos autos para a vida do Assistente;
- no teor do relatório social referente ao Arguido, junto aos autos em 29.09.2023, completado pelo teor de fls. 268 a 277 dos presentes autos, no que respeita às condições pessoais do Arguido (pontos 37) a 48) dos Factos Provados);
- no teor do certificado de registo criminal atinente ao Arguido, emitido em 25.09.2023, no que respeita à ausência de antecedentes criminais registados por parte do Arguido (ponto 49) dos Factos Provados).
Quando à demais factualidade considerada como não provada tratou-se de factualidade não demonstrada nos autos (als. c), d), f), g), h), k), l), m) e n) dos Factos Não Provados) ou relativamente à qual foi demonstrada factualidade inversa à aí exarada (als. e), i) e j) dos Factos Não Provados).
Não podemos, ainda, deixar de salientar que parte da convicção que se forma em relação aos testemunhos prestados alavanca-se precisamente na imediação da inquirição, ou seja, pela avaliação dos gestos, tom de voz, atitude corporal, forma como os depoentes se referem aos factos, permitindo-nos percecionar a verosimilhança dos depoimentos e testemunhos de forma diferente do que aconteceria se esta fosse descrita sem a mencionada imediação. E tais fatores adicionais reforçam a nossa convicção sobre a matéria de facto considerada provada nos termos supra exarados e a credibilidade que as declarações e os testemunhos prestados nos mereceram para prova dessa mesma factualidade»
3. Do recurso interposto
3.1. Da invocada nulidade do acórdão
Neste segmento recursivo, o arguido invoca, em suma, que o acórdão prolatado é nulo, porquanto «(…) a pág. 27 e segs com base em matéria de facto provada conclui-se poder fazer-se um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido (dadas as suas qualidades positivas de personalidade e de bom percurso escolar, profissional, familiar, resultante da prova efectuada nos autos, nomeadamente o conteúdo do Relatório Social) e depois a pág. 31 conclui-se que em relação ao mesmo arguido esse juízo de prognose favorável é inadmissível. Nisso constituindo nítido excesso de pronúncia, até porque esta última conclusão não é alicerçada em qualquer meio de prova válido ou resultante de matéria de facto provada anteriormente nesta sede. Pelo que a instância cometeu “hoc et nunc” e pelos motivos elencados, a nulidade de excesso de pronúncia art.º 379.º 1 c) do CPP ao conhecer do que não podia - ou não devia - conhecer, o que torna nulo o decidido».
Vejamos.
O artigo 379º do C.P.P. determina que é nula a sentença:
«a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»
As elencadas nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em sede de recurso e o tribunal de recurso deverá, por regra, supri-las.
No caso de impossibilidade de suprimento, caberá ao tribunal declarar a nulidade total ou parcial da sentença, com o decorrente regresso dos autos ao tribunal recorrido para que seja lavrada nova sentença, expurgada da nulidade.
Especificamente, a nulidade por omissão de pronúncia, ínsita na al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do C.P.P., respeita às situações em que tribunal deixa de se pronunciar sobre questão cujo conhecimento é imposto legalmente, seja porque é de conhecimento oficioso ou porque foi suscitada pelos sujeitos processuais. A par, e em jeito de binómio, o excesso de pronúncia reconduz-se ao conhecimento pelo tribunal de questão que não foi suscitada pelos sujeitos processuais nem é de conhecimento oficioso.
«I. A omissão e o excesso de pronúncia reconduzem-se à inobservância dos estritos limites do poder cognitivo do tribunal.
II - A decisão queda-se aquém ou foi além do thema decidendum ao qual o tribunal estava adstrito, consubstanciando-se no uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se ter deixado por tratar de questões que deveria conhecer (no caso da omissão de pronúncia) ou por se ter abordado e decidido questões de que não se podia conhecer (no caso de excesso de pronúncia).
III – Os fundamentos (de facto ou direito) apresentados pelas partes para defender a sua posição, os raciocínios, argumentos, razões, considerações ou pressupostos - que, podem, na terminologia corrente, ser tidos como "questões" - não integram matéria que deva ser objeto de pronúncia judicial»1
E assim sendo, urge, desde logo, esclarecer que a alegação do recorrente não traduz, por definição, a pretextada nulidade da sentença.
Com efeito, não se vislumbra que as Sras. Juízas e o Sr. Juiz do Tribunal a quo tenham, de algum modo, extrapolado os seus poderes de cognição ao pronunciarem-se, na parte atinente à suspensão ou não da execução da pena, pela inexistência de um juízo de prognose favorável.
Muito pelo contrário, cumpria-lhes, atenta a concreta pena fixada, indagar se existiam (ou não) circunstâncias que amparassem um juízo de prognose capaz de sustentar a suspensão de execução da pena.
Se se verifica ou não uma contradição insanável na fundamentação ou se a decisão tomada pelo Colectivo a este respeito (de não suspensão de execução da pena) se mostra ou não conforme, são questões diversas, cuja sindicância será adiante, pelo menos parcialmente, efectuada.
Tanto basta para se concluir que não pode, nesta parte, proceder o recurso interposto.
3.2. Do invocado vício de procedimento
No âmbito daquilo que o recorrente (erroneamente, como resulta do já decidido em 3.1.) denominou de excesso de pronúncia, verdadeiramente o que se mostra invocada é uma contradição insanável da fundamentação, nos termos do art.º 410º, n.º 2, al. b) do C.P.P.
Na verdade, como descreveu nas conclusões recursivas: «1. O douto acórdão a pag. 27 e segs espraia-se em tecer considerações elogiosas à personalidade do recorrente (numa aplicação “ipsis verbis” da matéria de facto “maxime” a registada no Relatório Social do arguido.
2. Assim, o acórdão considera como grandes atenuantes do “iter ilícito” do arguido os seguintes factores: a extrema juventude à data dos factos (18 anos), item 43 da MFP: aluno regular, motivado, interessado a nível desportivo, um atleta empenhado, assíduo, educado e responsável (SIC).
3. No item 44 da Matéria de Facto Provada (MFP): nas funções laborais trabalhava em part-time. Item 45 integrado no agregado familiar do pai e do filho da madrasta/Mãe, a residir em habitação própria.
4. Item 46: dinâmica familiar integrada “a BB não sendo mãe biológica considera o AA como filho, coabitando há mais de sete anos, é harmoniosa (a relação) e de entreajuda de todos os elementos. (SIC)
5. Item 47: em termos escolares /formativos, AA mantém-se a frequentar o 12.º ano do Curso Profissional de Desporto Técnico.
6. em Julho de 2023 com classificação positiva, “o bom desempenho obtiso na prova de aptidão profissional com 17 valores. Item 49. Sem registo criminal.
7. Mais: na determinação da medida da pena e na ponderação da aplicação da Lei 401/82 de 23 Setembro (Jovens delinquentes), o Acórdão recorrido considera que essa aplicação depende “da existência de razões sérias para crer que da atenuação da atenuação resultarão vantagens para a reinserção” SIC).
8. Ou seja, caso “seja possível realizar um juízo de prognose à sua reinserção social”…e pág 28 prossegue o douto acórdão que “a juventude do arguido, a confissão parcial dos factos, demonstrando ter assimilado o desvalor da sua conduta (sublinhado nosso), e consequente sinal de ressocialização, sinal de interiorização do desvalor da conduta praticada,…que permitem que o juízo de prognose favorável à aplicação do regime penal mais favorável ( Lei 401/82 de 23 Setembro.
9. Todavia, mais adiante, a pág 31 /32 já a conclusão tirada no douto acórdão para a não suspensão da pena de prisão é a de que “havendo razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a sua suspensão negada” (SIC).
10. E como fundamento para se tirar conclusão tão díspar e contraditória com o anteriormente alegado quanto à personalidade do arguido, a conclusão (tirada pelo Tribunal e não assente em qualquer matéria de facto provada) de que “o arrependimento do arguido o que revela é que está não arrependido pelo que fez (?) mas sim pelo facto de se encontrar privado de liberdade…
11. Ou seja, a pág. 27 e segs com base em matéria de facto provada conclui-se poder fazer-se um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido (dadas as suas qualidades positivas de personalidade e de bom percurso escolar, profissional, familiar, resultante da prova efectuada nos autos, nomeadamente o conteúdo do Relatório Social) e depois a pág. 31 conclui-se que em relação ao mesmo arguido esse juízo de prognose favorável é inadmissível»
Vejamos, pois, antes de mais, os trechos do acórdão revidendo a que o recorrente faz alusão.
Na página 27, a respeito da ponderação quanto à aplicabilidade do Regime Especial para Jovens, consta do acórdão o seguinte:
«In casu, para além da respetiva juventude – subjacente à aplicabilidade deste regime -, e da ausência de antecedentes criminais, importa salientar que o mesmo confessou parte dos factos que lhe são imputados, demonstrando ter assimilado o desvalor da sua conduta, sobretudo tendo presente as consequências desta decorrentes para o próprio, o que se nos afigura um sinal de interiorização do desvalor da conduta praticada e, consequentemente, de ressocialização2, fatores que, todos conjugados, pese embora a gravidade dos factos praticados e das suas consequências, permitem a realização do juízo de prognose favorável à aplicação do regime penal mais favorável, o que se decide»
Ao passo que, na página 31, na parte respeitante à suspensão ou não da execução da pena aplicada, o Colectivo consignou: «No caso presente, pese embora o Arguido não registe antecedentes criminais, não nos podemos alhear da gravidade dos factos praticados, das consequências destes decorrentes para o Assistente e da postura quanto a estes assumida pelo Arguido. E, se é certo que o Arguido em audiência de julgamento, verbalizou estar arrependido dos factos praticados e justificou não ter procurado inteirar-se do estado de saúde do Assistente, por conselho da sua ilustre mandatária, a verdade é que, ao longo do julgamento, foi evidente que o Arguido está efetivamente arrependido dos factos praticados, mas não pelas consequências destes decorrentes para o Assistente, mas sim pelo facto de se encontrar privado da liberdade e preocupado com as consequências e repercussões que poderão para si advir com o desfecho dos autos. E, nesta sede, não podemos deixar de trazer à colação as últimas declarações do Arguido, em que a preocupação deste foi transmitir ao Tribunal que o fecho da sua bolsa não funcionava e que a teve que vender, para, com o dinheiro obtido, ajudar os pais.
Em face do exposto, entendemos que o Arguido ainda não interiorizou verdadeiramente as consequências dos seus atos, que poderiam ter sido bem mais graves caso o Assistente não tivesse logrado ligar para o 911 (correspondente ao 112 nacional) e ser prontamente assistido. Por força do ato irresponsável do Arguido o Assistente viu a sua vida toda alterada e ficou com marcas que o vão acompanhar para o resto da vida. A isto acresce que o Arguido continua a revelar fraco juízo critico3 relativamente a trazer consigo um canivete, quando, como ficou claro dos factos em apreço nos autos, se não fosse a existência de tal canivete, ainda que o Arguido se desentendesse com o Assistente, as consequências dos seus atos dificilmente teriam tido os contornos e gravidade da situação em apreço.
Em face do exposto, entendemos que a simples censura do facto e a ameaça de prisão não se mostram suficientes à satisfação dos fins das penas, razão pela qual a pena de prisão imposta ao Arguido será efetiva»
«Os vícios da decisão – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos, por esta ordem, nas três alíneas do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, constituem fundamento para recurso da matéria de facto (e isto, independentemente de a lei o restringir à matéria de direito) e são de conhecimento oficioso, conforme jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro (DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995).
Estamos perante defeitos estruturais da própria decisão penal, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum. No âmbito da revista alargada – comum designação do regime – o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova –, antes limita a sua actuação à detecção dos vícios que a sentença, por si só e nos seus precisos termos, evidencia e, não podendo saná-los, determina o reenvio do processo para novo julgamento.
(…) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste, basicamente, numa oposição na matéria de facto provada (v.g., dão-se como provados dois ou mais que dois factos que estão entre si, em oposição sendo, por isso, logicamente incompatíveis), numa oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada (v.g., dá-se como provado e como não provado o mesmo facto), numa incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto (v.g., quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correcta), ou ainda quando existe oposição entre a fundamentação e a decisão (v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso)»4
Como refere Francisco Mota Ribeiro, Processo e Decisão Penal Textos, CEJ, 2019, p. 48 «A contradição pode por sua vez resultar da fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica ou da argumentação usada na aplicação do direito aos factos.
– À partida “não existe incompatibilidade substancial entre a aplicação de uma pena especialmente atenuada a um jovem adulto e a não suspensão da execução da mesma, não só porque nem todas as penas daquela categoria são suscetíveis de serem suspensas na sua execução, como porque, em diversos casos concretos, se pode chegar à conclusão de que, não obstante o arguido dever ser punido de forma especialmente atenuada, outros fatores desaconselham o recurso à medida de suspensão de execução da pena.”
– Mas o Supremo Tribunal de Justiça, num determinado caso, considerou haver “incompatibilidade entre o dizer-se que um arguido maior de 16 anos mas menor de 21 anos, deve ser sujeito a uma pena especialmente atenuada por haver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado (artigo 4.º do DL n.º 401/82), e o afirmar-se, ao mesmo tempo, que se não pode formular um juízo de prognose positivo quanto ao seu comportamento futuro, para se poder considerar a hipótese da suspensão da pena de prisão que lhe é imposta.”5
Por vezes a contradição é aparente, ou devida a lapso ou erro manifesto. A sua correção será então possível, ao abrigo do disposto no artigo 380.º, n.º 1, al. b), do CPP. Mas uma tal correção, ao abrigo de tal disposição normativa, já não será possível nas situações em que a contradição da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão não seja, no texto da decisão, configurável como um erro ou lapso cuja eliminação não importe uma modificação essencial. Nestes casos a contradição registada torna-se insanável, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do CPP.
– Na contradição insanável o que se pode dizer, é que, no texto da própria decisão não é possível descortinar claramente o pensamento e a real vontade do julgador. Um e outro, nos termos em que foram declarados na sentença, não permitem afirmar qual a vontade declarada ou expressa na decisão que deverá prevalecer, porquanto correlativamente a ela ou a um determinado pensamento nela expresso, existe um outro pensamento ou uma outra vontade que a anulam ou contradizem»
Volvendo ao caso, tal como sustenta o recorrente, afigura-se que estamos, claramente, perante uma contradição insanável na fundamentação aduzida nos dois trechos transcritos.
Na verdade, o Tribunal a quo sustenta que o arguido demonstrou ter assimilado o desvalor da sua conduta e interiorizado o desvalor da conduta praticada (concluindo, assim, pela aplicação do Regime Especial para Jovens) e, concomitantemente, assegura que aquele ainda não interiorizou verdadeiramente as consequências dos seus atos e que continua a revelar fraco juízo critico (afastando, com esta argumentação, a suspensão de execução da pena aplicada).
Ora, como nos parece compreensível:
- Ou o arguido interiorizou o desvalor da sua conduta, assimilando-o, o que exteriorizou com o arrependimento verbalizado em audiência e com a confissão que fez dos factos;
- Ou, afinal, a confissão e arrependimento verbalizados em audiência não foram suficientes para demonstrar e dar como comprovada tal interiorização.
Vale por dizer que, a afirmação em simultâneo das duas realidades - por um lado, a interiorização do desvalor da conduta e, por outro, a não interiorização verdadeira das consequências dos seus actos e fraco juízo critico - redunda, inexoravelmente, no vício de contradição insanável da fundamentação, já que, nos seus próprios termos, intrinsecamente, evidencia valorações antagónicas e até excludentes.
Neste mesmo sentido, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22 de Novembro de 2022, processo n.º 43/20.8GAPRL.E1, in www.dgsi.pt., consignou-se que: «I – A inclusão na sentença da afirmação de uma realidade e do seu contrário (…) como se ambos pudessem coexistir na mesma decisão, encerra em si mesma uma contradição lógica da fundamentação, uma vez que evidencia a valoração de premissas antagónicas e, portanto, inconciliáveis, redundando, incontornavelmente, no vício de contradição insanável da fundamentação da sentença previsto no artigo 410º, nº2, alínea c) do CPP.»
É que, pese embora, por princípio, a aplicação do Regime Especial para Jovens e a decisão de não suspensão de execução da pena possam coexistir na mesma decisão e a respeito do mesmo agente, afigura-se inequívoco que a fundamentação subjacente não suportará as apontadas inconciliabilidades.
Assim sendo, e estando em causa situação em que, notoriamente, não é possível discernir o verdadeiro pensamento e vontade das Sra. Juízas e do Sr. Juiz, (e não sendo a verificada contradição susceptível de correcção pelo Tribunal ad quem, arredado que se mostra tratar-se de erro ou lapso), impõe-se o reenvio do processo para renovação parcial do julgamento, limitado às declarações do arguido/recorrente, nos termos do disposto nos artigos 426.º, n.º 1, e 426.º-A do C.P.P., a que se seguirá a prolação de novo acórdão em que, suprindo-se o aludido vício, se decida em conformidade.
*
A decisão de reenvio parcial prejudica o conhecimento das demais questões colocadas no recurso.
III – DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
a) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA;
b) Declarar que o acórdão proferido enferma do vício de contradição insanável da fundamentação, previsto no artigo 410.º, nº 2.º, al. b) do C.P.P.;
c) Determinar o reenvio dos autos ao tribunal recorrido para novo julgamento, limitado às declarações do arguido/recorrente, e prolação de novo acórdão com vista à sanação de tal vício, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 426º, n.º 1 do C.P.P.
Notifique e comunique de imediato à primeira instância.

Lisboa, 21 de Março de 2024
Ana Marisa Arnêdo
Paula Albuquerque
Carla Carecho
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1. Acórdão do S.T.J. de 30/5/2023, processo n.º 45/18.4YFLSB, in www.dgsi.pt.
2. Negritos nossos.
3. Negritos nossos.
4. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/5/2016, processo n.º 1/14.1GBMDA.C1, in www.dgsi.pt.
5. Ac. do STJ, de 25/05/95, CJ, 1995, II, p. 217 e 218; e Ac. do STJ, de 07/11/2007, P.º 07P3214.