Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4829/22.0T8OER.L1-8
Relator: MARIA CARLOS DUARTE DO VALE CALHEIROS
Descritores: VEÍCULO AUTOMÓVEL
CONTRATO DE ALUGUER
NULIDADE
ARGUIÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I- Independentemente do trânsito em julgado da decisão que envolva pronúncia sobre determinada questão jurídica esta torna-se irreversível em virtude do esgotamento do poder jurisdicional do tribunal, no sentido de que só poderá ser alterada por via de recurso, e nunca através de decisão de sentido contrário ou renegando a apreciação jurisdicional exarada na primeira decisão.
II- A ineficácia da decisão proferida depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal sobre essa matéria, e que se traduz na insusceptibilidade de produzir efeitos jurídicos, é aquela que melhor garante a indispensável segurança jurídica, e previne a arbitrariedade das decisões judiciais.
III- Constituiria abuso de direito permitir que o Recorrido beneficiasse da declaração da nulidade cuja manutenção assegurou, e da qual tirou proveito, usufruindo do gozo do veículo automóvel objecto do contrato durante mais de dois anos sem pagar a correspondente retribuição, e recebendo as correspondentes facturas sem manifestar qualquer oposição.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência   os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
A (…EQUIPAMENTOS MÓVEIS, LDA.) , identificada nos autos, instaurou acção declarativa com processo  comum contra B,  identificado nos autos, pedindo que fosse declarado resolvido o contrato de aluguer celebrado entre ambos e que o Réu seja condenado a proceder à entrega do automóvel objecto do referido contrato de aluguer e a pagar à Autora o valor de todas as prestações em dívida , no montante de €32.102,72, a título de capital, acrescidos dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Para tanto alegou ter celebrado com o Réu um contrato de aluguer tendo por objecto o veículo automóvel identificado nos autos, invocando o incumprimento da obrigação de pagamento da prestação mensal convencionada nesse contrato por parte deste, e reclamando a entrega do veículo em causa e a condenação do Réu no pagamento da quantia de €32.102,72 referente às prestações em dívida.
O Réu não contestou, e constituiu mandatário.
A 13.4.2023 foi proferido despacho no qual se lê:
“O réu regularmente citado para no prazo de 30 dias contestar os presentes autos, apresentou contestação extemporânea, que não foi aceite, pelo que se encontra em revelia.
Assim sendo, não se verificando nenhuma das excepções previstas no artigo 568.º do CPC, consideram-se confessados os factos articulados pela autora na petição inicial, o que se declara.
Dê cumprimento ao disposto no artigo 567.º, n.º 2, do CPC, facultando os autos nos termos aí prescritos, para exame aos Mandatários da Autora, e, sucessivamente, ao advogado do Réu, para efeitos de alegação. “
Foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente , decidindo-se  condenar o Réu a entregar à Autora o veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 3008, com a matrícula 57-..-54 bem como a  pagar-lhe o montante de €2.260,85 referente aos contratos de aluguer de veículo celebrados entre a Autora e o Réu com os números 016199 e 026856, acrescido de juros de mora vencidos desde a data da propositura da acção até integral pagamento, calculados à taxa de 4%  , e absolver o Réu do demais peticionado.
Inconformada com a decisão a Autora veio interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem na íntegra:
“ I. Vem o presente Recurso de Apelação interposto da douta Sentença de fls., que julgou parcialmente procedente a acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum interposta pela Recorrente e, em consequência, determinou a entrega do veículo em crise nos autos à Recorrente e o pagamento €2.260,85 (dois mil duzentos e sessenta euros e oitenta e cinco cêntimos), sendo que o pedido da Recorrente era de €32.102,72 (trinta e dois mil cento e dois euros e setenta e dois cêntimos), a título de facturas não pagas pelo Recorrido em virtude de um contrato de aluguer de veículo celebrado.
II. O Recorrido não contestou, pelo que, nos termos do artigo 567º nº do CPC, deveriam ter sido dados como provados, por confessados, todos os factos alegados pela Recorrente na sua petição inicial.
III. A Recorrente dá como integralmente reproduzida toda a matéria de facto dada como provada, não obstante a confissão, considerou o Tribunal que não estão provados os seguintes factos:
“a) Ao abrigo do acordo referido em 2 dos factos provados, o Recorrido ficou obrigado a pagar mensalmente à Recorrente a quantia de €1.070,08.
b) A Recorrente e o Recorrido estabeleceram que o acordo referido em 2 dos factos provados se renovaria automaticamente e sucessivamente por novos períodos de um mês.
c) Com reporte ao mesmo cliente, aquando da emissão de cada factura relativa ao referido acordo, é gerado um novo número de contrato.”
IV. Fundamenta tal decisão da matéria de facto não provada que os mesmos “não se podem considerar admitidos por confissão. Com efeito, o âmbito do  contrato e o acordado entre as partes deve constar dos documentos escritos que o suportam, sendo que o contrato de aluguer em causa exige forma escrita, como infra se explicitará. Do contrato inicial não consta que este se ia renovando automaticamente (antes resultando o contrário porque tem um dia de termo e um local e hora de entrega do veículo). Também não resulta (desse documento ou de outro) que o Recorrido ficou obrigado a pagar mensalmente uma quantia certa, sendo que dos documentos juntos (facturas e documentos com epigrafe de “contrato”) constam valores mensais diferentes”.
V. A Recorrente não pode concordar com tal fundamentação pelo que expressamente a impugna, bem como a matéria de facto da dada como não provada.
VI. Com efeito, andou mal o Tribunal a quo a concluir que, “o âmbito do contrato e o acordado entre as partes deve constar dos documentos escritos que o suportam, sendo que ocontratode aluguer emcausaexige formaescrita,como infra se explicitará. Do contrato inicial não consta que este se ia renovando automaticamente (antes resultando o contrário porque tem um dia de termo e um local e hora de entrega do veículo). Também não resulta (desse documento ou de outro) que o Recorrido ficou obrigadoa pagar mensalmente uma quantia certa, sendo que dos documentos juntos (facturas e documentos com epigrafe de "contrato") constam valores mensais diferentes.”.
VII. Mais entendeu o Tribunal que “Também não resultou provado que os números de contrato iam sendo criados à medida que as facturas iam sendo emitidas, nem tal se pode extrair da confissão do Recorrido, dado que o mesmo não tem como conhecer esse alegado "modus operandi" da Recorrente nem essa e a prática habitual. Acresce que na carta remetida 07/09/2022 a Recorrente faz referência a um número de contrato que não seria nem o primeiro nem o último, o que contraria a alegação da Recorrente de que estamos sempre perante o mesmo contrato (n.º 14295)”.
VIII. Consequentemente, o Tribunal a quo deu como não provado “A Recorrente e o Recorrido estabeleceram que o acordo referido em 2 dos factos provados se renovaria automaticamente e sucessivamente por novos períodos de um mês”.
IX. Porém, da prova documental que instrui os presentes autos, não resulta, s.m.o., qualquer facto que seja bastante para concluir o douto Tribunal nos termos que supra transcrevemos e, consequentemente, determinando a procedência apenas parcial da demanda da agora Recorrente.
X. Ora, na verdade, entende o aqui Recorrente que andou mal o Tribunal a quo ao considerar que, apesar da confissão, não poderá dar como provado o acordo entre as partes de que o contrato de aluguer de veículo se renovaria automaticamente por períodos iguais ao inicial, isto é, 1 mês e que, com o reporte ao cliente de cada factura mensal,se gera um novo número de contrato.
XI. Assim, entendem o Recorrente que a convicção criada pela Tribunal a quo se encontra baseada em factos mal interpretados e que, a final, não transparece a justiça necessária no tratamento do litígio aqui em crise pelo que nessa medida se impugna a decisão recorrida.
XII. Partindo da factualidade dada como provada, resulta que durante todo o tempo em que o contrato vigorou, a Recorrente emitiu facturas mensais relativas ao aluguer do veículo automóvel, que enviou sempre ao Recorrido.
XIII. Como se pode verificar os factos alegados na Petição Inicial, foram emitidas 30 facturas relativas ao aluguer do veículo alugado pelo Recorrido desde o início do seu incumprimento das prestações a que estava adstrito até à entrada da acção da qual agora se recorre da decisão.
XIV. O Recorrido tinha perfeita noção de que o contrato que celebrara com a Recorrente se renovaria automaticamente no final de todos os meses até à entrega efectiva do veículo que se encontrava – e se encontra até à data da propositura da presente acção – na sua posse para utilização do próprio.
XV. Factos estes todos confessados pelo Recorrido, pelo que, analisada a decisão em crise andou mal o Tribunal a quo, na medida em que veda à Recorrente a devolução dos valores que lhe são devidos pela prestação de um serviço que foi pelo Recorrido utilizado e do qual, como veremos de seguida, abusou.
XVI. De facto, o contrato vigorou durante todo o tempo até à interposição da acção declarativa de condenação, não tendo sido pagas quais prestações desde o mês de fevereiro de 2020.
XVII. Por último, o Recorrido recebendo as facturas identificadas nos autos não procedeu ao seu pagamento, não as contestou ou levantou qualquer suspeita perante as mesmas, sucedendo o mesmo o quando regularmente citado aos presentes autos não apresentando qualquer contestação à acção declarativa de condenação interposta pela Recorrente.
XVIII.   Ora, este comportamento do Recorrido – a revelia – tem como efeitos a confissão integral dos factos alegados pela Recorrente (Recorrente) no seu articulado, como se verifica por leitura do artigo 567.º do Código do Processo Civil.
XIX.   Com efeito, deveria ter sido dado como provado toda a matéria alegada pela Recorrente, nomeadamente a dada como não provada dos autos.
XX.     Na verdade, inexiste qualquer fundamento legal que afaste a prova por confissão quanto aos factos alegados pela Recorrente e dados como não provados pelo Tribunal a quo, isto é: a) que ao abrigo do acordo celebrado com a Recorrente, o Recorrido ficou obrigado a pagar mensalmente à Recorrente a quantia de €1.070,08; b) que a Recorrente e o Recorrido estabeleceram que o acordo celebrado se renovaria automaticamente e sucessivamente por novos períodos de um mês; c) e que por referência ao acordo celebrado com o Recorrido, aquando da emissão de cada factura relativa ao mesmo, é gerado um novo número de contrato.
XXI. Aliás se duvidas subsistissem ao Tribunal a quo, tais seriam sempre dissipadas com a produção da prova testemunhal apresentada pela Recorrente, porém, tal revelia e consequente decisão sem mais produção de prova fez com que não fosse possível à Recorrente fazer qualquer prova por recurso aos restantes meios de prova a indicar e outros que ainda pudesse lançar mão.
XXII. Com efeito, considerando a confissão do Réu, por efeitos da sua revelia, sempre deverá ser dado como provado que:
D. Ao abrigo do acordo celebrado com a Recorrente, o Recorrido ficou obrigado a pagar mensalmente à Recorrente a quantia de €1.070,08;
E. A Recorrente e o Recorrido estabeleceram que o acordo celebrado se renovaria automaticamente e sucessivamente por novos períodos de um mês;
F. Por referência ao acordo celebrado com o Recorrido, aquando da emissão de cada factura relativa ao mesmo, é gerado um novo número de contrato.
XXIII. Por outro lado, partindo da factualidade alegada e confessada pelo Recorrido, o mesmo claramente violou os princípios da boa-fé contratual, na medida em que simplesmente deixou de cumprir com a sua contraprestação, não tendo procedido a qualquer pagamento por conta do contrato de aluguer de veículos celebrado com a Recorrente durante mais de dois anos.
XXIV. Além do não pagamento das prestações, quando foi interpelado para o pagamento das mesmas e da devolução do veículo na sede da Recorrente, o mesmo nada fez, reiterando o seu incumprimento contratual.
XXV.  Parece claro e evidente para a agora Recorrente que o Recorrido cumpre todos os requisitos legais e formais do instituto do abuso de direito, sendo eles, e transcrevendo o texto da sentença proferida pelo Tribunal a quo “(i) situação de confiança :ie.,existir boa da pessoa que acredita numa conduta alheia(no factum proprium); (ii) justificação dessa confiança: ou seja, exige-se que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível; (III) investimento de confiança: na medida em que a parte a parte desenvolveu uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a cessação dessa actividade (através desta conduta de venire contra factum proprium) e o regresso a situação anterior se traduziriam numa injustiça clara; (iv) e uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada pela outra parte.”.

XXVI. Com efeito, não pode a Recorrente conceber que, por uma análise inquinada daquilo que são os documentos que baseiam o contrato de aluguer de veículos automóveis, venha entender o Tribunal a quo que, ainda que impute um abuso de direito evidente ao Recorrido, apenas considere que este se aplique a duas das facturas emitidas por conta do contrato celebrado.
XXVII. Ainda para mais quando o Recorrido, confessa, por efeitos da revelia, toda a factualidade que alega a Recorrente e que sustenta o seu pedido nos autos. À laia de remate, cumpre dizer que qualquer outra decisão que divirja da que a Recorrente pugna significa premiar um comportamento reiteradamente incumpridor do Recorrido, e, nas palavras do Tribunal a quo, um comportamento em notório abuso do direito.
XXIX. Tudo visto, considerando a confissão integral do Recorrido, por um lado, e a inexistência de qualquer facto ou norma que impeça que todos os factos alegados pela Recorrente se considerem como provados, deverá ser revogada a Sentença objecto do presente recurso e consequentemente deverá apresente acção ser julgada totalmente procedente e o Réu, ora Recorrido ser condenado na totalidade do pedido. “
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência cumpre decidir.
II – OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões formuladas pelo Recorrente na motivação do recurso em apreciação, estando vedado a este Tribunal conhecer de questões aí não contempladas, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se impõe (artigos 635º, nº 2, 639º, nº1 e nº 2, 663º, nº 2 e 608º, nº 2, do  C.P.C. )
Deste modo, e considerando as conclusões do recurso interposto, as questões que cumpre apreciar são as seguintes:
- face à ausência de contestação do Recorrido os factos descritos nas alíneas a), b) e c) do segmento “Não Provados” da decisão recorrida devem ser julgados provados;
- face aos factos alegados pela Recorrente, e confessados pelo Recorrido, impõe-se a condenação do mesmo na totalidade do pedido;
- o tribunal a quo errou quando considerou que o abuso de direito que imputou ao Recorrido se aplica apenas a duas das facturas emitidas por conta do contrato de aluguer celebrado com o mesmo.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
a)
O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à exploração da indústria de aluguer de automóveis com ou sem condutor, aluguer de embarcações, motociclos e veículos de mercadorias e ainda ao comércio de peças e acessórios de veículos automóveis ligeiros e motociclos.
2. No dia 12/10/2019, a Autora e o Réu assinaram um acordo escrito intitulado «contrato aluguer diário», com o número 014295, mediante o qual a Autora cedeu ao Réu o veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 3008 e de matrícula 57-..-54 pelo período de 1 mês, mediante a contrapartida de €1.034,41, a pagar pelo Réu àquela.
3. Ao abrigo do referido acordo, a Autora disponibilizou o aludido veículo ao Réu para que o mesmo o utilizasse, ficando este obrigado a entrega-lo na sede da Autora no dia 11/11/2019 às 13h00.
4. O Réu pagou à Autora o montante de €1.034,41, devido ao abrigo do acordo intitulado «contrato aluguer diário» com o número 014295, relativamente ao período de 12/10/2019 a 11/11/2019.
5. No dia 09/05/2020, o Réu assinou um acordo escrito intitulado «contrato aluguer diário», com o número 016199, mediante o qual a Autora cedeu ao Réu o veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 3008 e de matrícula 57-..-54 pelo período de 1 mês, mediante a contrapartida de €1.070,08, a pagar pelo Réu àquela.
6. Ao abrigo do referido acordo a Autora disponibilizou o veículo ao Réu, ficando este obrigado a entrega-lo no dia 08/06/2020 às 13h000, na loja da Autora em Benfica.
7. No dia 27/07/2022, o Réu assinou um acordo escrito intitulado «contrato aluguer diário», com o número 026856, mediante o qual a Autora cedeu ao Réu o veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 3008 e de matrícula 57-..-54 pelo período de 1 mês, mediante a contrapartida de €1.070,10, a pagar pelo Réu àquela.
8. Ao abrigo do referido acordo a Autora disponibilizou o veículo ao Réu, ficando este obrigado a entregá-lo no dia 27/08/2022 às 13h000, na loja da Autora em Benfica.
9. A Autora emitiu as seguintes facturas ao Réu, que as recepcionava:
a. Factura n.º S-017223 no valor de 1.070,08€, datada de 12-03-2020, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 15618, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
b. Factura n.º S-017655 no valor de 1.070,08€, datada de 13-05-2020, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 16073, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
c. Factura n.º S-017806 no valor de 1.070,08€, datada de 09-06-2020, a relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 16199, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
d. Factura n.º S-018072 no valor de 1.070,08€, datada de 09-07-2020, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 16412, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
e. Factura n.º S-018410 no valor de 1.070,08€, datada de 10-08-2020, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 16660, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
f. Factura n.º S-018796 no valor de 1.070,08€, datada de 08-09-2020, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 17013, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
g. Factura n.º S-019187 no valor de 1.070,08€, datada de 09-10-2020, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 17318, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
h. Factura n.º S-019605 no valor de 1.070,10€, datada de 06-11-2020, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 17692, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
i. Factura n.º S-20010 no valor de 1.070,08€, datada de 07-12-2020, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 18019, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
j. Factura n.º S-20404 no valor de 1.070,08€, datada de 07-01-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 18351, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
k. Factura n.º S-20789 no valor de 1.070,08€, datada de 08-02-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 18686, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
l. Factura n.º S-21039 no valor de 1.070,08€, datada de 05-03-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 18913, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
m. Factura n.º S-21365 no valor de 1.070,08€, datada de 09-04-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 19134, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
n. Factura n.º S-21663 no valor de 1.070,08€, datada de 07-05-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 19455, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
o. Factura n.º S-22248 no valor de 1.070,08€, vencida a 21-06-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 19731, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
p. Factura n.º S-22613 no valor de 1.070,10€, datada de 13-07-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 20482, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
q. Factura n.º S-22972 no valor de 1.070,10€, datada de 31-07-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 20649, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
r. Factura n.º S-23344 no valor de 1.070,10€, datada de 09-09-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 20975, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
s. Factura n.º S-23851 no valor de 1.070,10€, datada de 11-10-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 21372, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
t. Factura n.º S-24267 no valor de 1.070,10€, datada de 31-10-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 21906, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
u. Factura n.º S-24939 no valor de 1.070,10€, vencida a 03-12-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 22421, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
v. Factura n.º S-25443 no valor de 1.070,10€, datada de 31-12-2021, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 22876, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
w. Factura n.º S-25858 no valor de 1.070,10€, datada de 31-01-2022, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 23297, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
x. Factura n.º S-26287 no valor de 1.070,10€, datada de 28-02-2022, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 23644, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
y. Factura n.º S-26707 no valor de 1.070,10€, datada de 31-03-2022, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 24001, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
z. Factura n.º S-27251 no valor de 1.070,10€, datada de 29-04-2022, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 24422, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
aa. Factura n.º S-27806 no valor de 1.070,10€, datada de 30-05-2022, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 24950, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
bb. Factura n.º S-28436 no valor de 1.070,10€, datada de 28-06-2022, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 25523, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
cc. Factura n.º S-29116 no valor de 1.070,10€, datada de 28-07-2022, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 26207, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54;
dd. Factura n.º S-29820 no valor de 1.070,10€, datada de 29-08-2022, relativa ao «contrato aluguer diário» com o número 26856, referente ao veículo com a matrícula 57-..-54.
10. Em 07/09/2022, por intermédio de Mandatário, a Autora remeteu ao Réu uma carta registada, aí lhe comunicando que o Réu não cumpriu com a obrigação de pagamento assumida no contrato n.º15618 referente ao aluguer do veículo automóvel com a matrícula 57-..-54 e que, por esse motivo considerava o acordo resolvido, ficando a aguardar o prazo de 2 dias para a entrega do veículo e proceder ao pagamento de todas as quantias em dívida.
b)
O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
a) Ao abrigo do acordo referido em 2 dos factos provados, o Réu ficou obrigado a pagar mensalmente à Autora a quantia de €1.070,08.
b) A Autora e o Réu estabeleceram que o acordo referido em 2 dos factos provados se renovaria automaticamente e sucessivamente por novos períodos de um mês.
c) Com reporte ao mesmo cliente, aquando da emissão de cada factura relativa ao referido acordo, é gerado um novo número de contrato.
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A)  Sustenta a Recorrente que o tribunal a quo errou ao julgar não provados os factos:
a) Ao abrigo do acordo referido em 2 dos factos provados, o Réu ficou obrigado a pagar mensalmente à Autora a quantia de €1.070,08;
b) A Autora e o Réu estabeleceram que o acordo referido em 2 dos factos provados se renovaria automaticamente e sucessivamente por novos períodos de um mês;
c) Com reporte ao mesmo cliente, aquando da emissão de cada factura relativa ao referido acordo, é gerado um novo número de contrato.
A Recorrente pugna pela alteração da decisão recorrida no sentido dos referidos factos passarem a integrar o elenco dos factos provados, sustentando que dado que o Recorrido não apresentou contestação deveriam ter sido dados como provados todos os factos alegados na petição inicial, por força do disposto no artigo 567º, nº 1 , do C.P.C..
Mais alega que o tribunal a quo proferiu despacho a julgar verificada a revelia operante e confessados todos os factos alegados na petição inicial, e como tal não houve lugar à fase de produção de prova, não sendo assim dada oportunidade à Recorrente de fazer prova de tais factos.
Compulsados os autos verifica-se que anteriormente à prolação da sentença recorrida o tribunal proferira despacho no qual se lê:
- “não se verificando nenhuma das excepções previstas no artigo 568.º do CPC, consideram-se confessados os factos articulados pela autora na petição inicial”.
Na sequência deste despacho o tribunal a quo, apresentadas pelas partes as alegações escritas previstas pelo artigo 567º, nº 2, do C.P.C., proferiu de imediato sentença sem precedência de realização da fase de instrução.
Ora nesta sentença julgou não provados os factos descritos nas alíneas a). b)  e c) da Matéria de Facto Não Provada, contrariando o que já havia decidido por despacho anteriormente proferido nos autos, e no qual julgou provados por confissão todos os factos articulados pela Autora na petição inicial
Na verdade, o tribunal a quo já tinha emitido uma pronúncia jurisdicional sobre a questão de saber se se verificava alguma das excepções à confissão ficta previstas no artigo 568º do C.P.C., concluído negativamente, e julgados confessados todos os factos alegados na petição inicial.
Dispõe o artigo 613º, nº 1, do C.P.C., que proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, previsão igualmente aplicável aos despachos por força do disposto no º3 da mesma norma.
O princípio vertido na referida disposição legal significa que “o juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível. Ainda que, logo a seguir, ou passado algum tempo. o juiz se arrependa, por adquirir a convicção que errou, não pode emendar o seu suposto erro. Para ela a decisão fica sendo intangível “. (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V , 1984 , pág. 126 )
Deste modo o juiz não pode de mote próprio e a seu bel prazer alterar decisão anteriormente proferida, apenas lhe sendo permitido rectificar erros desta suprir nulidades arguidas pela parte interessada ou reformar a decisão a pedido de uma das partes (artigo 613º do C.P.C.).
O princípio do esgotamento do poder jurisdicional tem subjacente que “ o juiz quando decide , cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e defesa(…) e como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende , segue-se logicamente que , uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento , o poder extingue-se “ , tendo esse princípio como escopo “ assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional “ , a qual só poderá ser alterada na sua substância e alcance por via de recurso. (Alberto dos Reis, Código  de  Processo Civil Anotado, vol. V , 1984, pág. 127 )
Importa ter em conta que “da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem, assim, dois efeitos: um positivo – traduzido na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; um negativo – representado pela insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar “. (Acórdão da Relação de Guimarães de 20.3.2018, rel. Maria dos Anjos Nogueira, disponível em www.dgsi.pt )
Por outro lado, “o esgotamento de que trata o artigo, não depende de, nem se confunde com o caso julgado formal, regulado no artigo 620º. Assim, havendo decisão inequívoca no sentido da legitimidade dos autores, embora não se tenha formado ainda caso julgado formal sobre essa questão (…) obsta a que o tribunal, no despacho saneador, se pronuncie sobre a mesma “. (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código Civil Anotado, vol.2º, 3ª ed., pág. 731)
Dito de outra forma, independentemente do trânsito em julgado da decisão que envolva pronúncia sobre determinada questão jurídica esta torna-se irreversível em virtude do esgotamento do poder jurisdicional do tribunal, no sentido de que só poderá ser alterada por via de recurso, e nunca através de decisão de sentido contrário ou renegando a apreciação jurisdicional exarada na primeira decisão.
Importa pois, apurar as consequências que decorrem da prolação pelo tribunal a quo na sentença recorrida da decisão que julgou não provados os factos descritos nas alíneas a) a c), contrariando decisão anterior que julgara esses factos provados.
Não existindo uma posição unânime sobre esta questão na jurisprudência , o  entendimento maioritário tem sido no sentido da ineficácia da decisão que contrarie decisão anteriormente proferida sobre a mesma matéria (neste sentido ver Acórdão da Relação de Coimbra de 24.4.2018, rel. Moreira do Carmo e da Relação de Lisboa de 23.2.2023, rel. Cristina Lourenço, disponíveis em www.dgsi.pt ).
É também esse o entendimento perfilhado por este tribunal de recurso, concordando-se com a argumentação expendida a este respeito no Acórdão da Relação de Coimbra de 24.4.2018 , no sentido de que “ se a lei determina a ineficácia entre duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão , no referido art.º 625º do NCPC, paralisando a que transitou em segundo lugar, afigura-se-nos que semelhante raciocínio e consequência jurídica, pode ser feito e há-de ser tirada em relação à situação processual imediatamente antecedente , isto é , quando embora ainda não haja trânsito em julgado de nenhuma das decisões , tivessem sido proferidas duas , de seguida , de sinal contrário . Ou seja, perante a intangibilidade da primeira decisão a defesa da sua eficácia faz-se a montante, num momento anterior, em vez de se esperar que tal eficácia se produza a jusante, num momento posterior “. (rel. Moreira do Carmo, disponível em www.dgsi.pt ).
Efectivamente a ineficácia da decisão proferida depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal sobre essa matéria, e que se traduz na insusceptibilidade de produzir efeitos jurídicos , é aquela que melhor garante a indispensável segurança jurídica , e previne a arbitrariedade das decisões judiciais.
Fulcral é que o despacho proferido depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal, contrariando o anteriormente decidido , não subsista .
Deste modo a decisão do tribunal a quo que na sentença recorrida julgou não provados os factos descritos nas alíneas a) a c) do segmento “ Factos Não Provados “ é ineficaz , não produzindo efeitos jurídicos , sendo  como tal revogada e eliminados esses factos do elenco dos não provados , e face à decisão proferida a 13.4.2023 que julgou confessados todos os factos articulados pela Autora , aditam-se os referidos factos ao elenco dos factos provados .
Procede assim nesta parte o recurso, aditando-se aos Factos Provados da sentença recorrida os seguintes factos:
11. Ao abrigo do acordo referido em 2 dos factos provados, o Réu ficou obrigado a pagar mensalmente à Autora a quantia de €1.070,08.
12. A Autora e o Réu estabeleceram que o acordo referido em 2 dos factos provados se renovaria automaticamente e sucessivamente por novos períodos de um mês.
13 Com reporte ao mesmo cliente, aquando da emissão de cada factura relativa ao referido acordo, é gerado um novo número de contrato, e eliminando-se da sentença recorrida o segmento “Factos Não Provados”.
B)
Procedendo a pretensão recursória de alteração da decisão sobre a matéria de facto cumpre apreciar a requerida alteração da sentença recorrida no sentido da condenação do Recorrido na totalidade do pedido.
Defende a Recorrente que face aos factos alegados pela Recorrente, e confessados pelo Recorrido, dos quais decorre o incumprimento por parte deste último da obrigação de pagamento da retribuição mensal emergente do contrato de aluguer do veículo automóvel de matrícula 57-..-54 , se impõe a condenação do mesmo na totalidade do pedido .
Mais sustenta a Recorrente que o tribunal a quo errou quando considerou que o abuso de direito que imputou ao Recorrido se aplica apenas a duas das facturas emitidas por conta do contrato de aluguer celebrado com o mesmo.
Resulta da factualidade provada que Recorrente e Recorrido celebraram entre si um contrato de aluguer tendo por objecto o  veículo automóvel de matrícula 57-..-54 , com início em 12.10.2019 , que em virtude de acordo das partes nesse sentido se foi  renovando  automaticamente e sucessivamente por novos períodos de um mês   até 7.9.2022 ( data em que  a Recorrente resolveu o contrato ), através do qual a primeira cedeu ao segundo o gozo do referido veículo automóvel , mediante o pagamento pela segunda de uma  retribuição mensal  no montante descrito nos autos.( artigos 1023º , 1031º e 1038º do C. Civil e 1º , do Dec. Lei nº 181/2012 , de 6.8 )
Estatui o artigo 9º, nº 1, do Dec. Lei nº 181/2012, de 6.8 , que o contrato de aluguer de veículo automóvel tem de ser reduzido a escrito , e assinado pelas partes contratantes.
No entanto resulta dos autos que relativamente ao contrato de aluguer celebrado pelas partes apenas foram juntos três documentos escritos, assinados pelo Recorrido, e relativos aos períodos de   12/10/2019 a 11/11/2019, de 9.2.2020 e de 9.4.2020 a 9.5.2020 .
De acordo com o disposto no artigo 220º do C. Civil o contrato de aluguer celebrado entre Recorrente e Recorrido é nulo por preterição de forma legalmente prescrita, violando a exigência de forma escrita preconizada pelo artigo 9º , nº 1 , do Dec. Lei nº 181/2012 , de 6.8 .
Trata-se de nulidade de conhecimento oficioso pelo Tribunal, parecendo-se impor-se deste modo a declaração dessa nulidade (artigos 220º e 286º, do C. Civil).
Todavia resultaram apurados factos que apontam para a verificação "in casu" do instituto do abuso de direito, o qual muito embora não tenha sido expressamente invocado é igualmente de conhecimento oficioso. Neste sentido aliás decidiu o Acórdão da Relação de Lisboa de 25/3/2004, considerando que "(...) se a nulidade é de interesse e ordem pública, também o é a ilegalidade do exercício do direito." (Relator Urbano Dias, disponível em www.dgsi.pt)
O artigo 334º do Cód. Civil define sob a epígrafe “Abuso de direito “como ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
No que respeita à invocação do instituto do abuso de direito nas hipóteses de nulidade proveniente da inobservância da forma legalmente preconizada actualmente a sua admissibilidade é plenamente aceite pela Jurisprudência, e com mais limitações pela doutrina (por todos ver A. Menezes Cordeiro, "Tratado de Direito Civil Português", tomo IV, 2007, págs. 299 a 312 ;  “Código Civil Anotado “, volume I , coordenação Ana Prata , pág. 409 e 410, anotação de Ana Prata , 2017 ; Acórdãos do S.T.J. de 14/05/2003, rel. Araújo de Barros, de 3/6/2003, rel. Bettencourt de Faria e de 30/05/2006 , rel. Fernandes Magalhães; Acórdão da Relação de Guimarães de 26.5.2022 , rel. José Cravo , todos disponíveis em www.dgsi.pt )
Menezes Cordeiro chama "(...) inalegabilidade formal à situação em que a nulidade derivada da falta de forma legal não possa ser alegada sob pena de se verificar um abuso de direito, contrário à boa fé", acrescentando que:
"- devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas; nunca também as de terceiros de boa fé;
- a situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar;
- o investimento de confiança apresentar-se-á sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via." (in obra supra citada, págs. 299 e 311).
O Insigne Professor acima citado termina concluindo que nessa hipótese "(...) a tutela da confiança impõe, ex bona fide, a manutenção do negócio vitimado pela invalidade formal." (obra supra cit., pág. 312).
Por seu lado escreveu Ana Prata que “as hipóteses de venire contra factum proprium estão muitas vezes na base da recusa da alegabilidade de vício formal, pois se trata tipicamente de casos em que o sujeito pretende prevalecer-se da nulidade formal, quando foi ele a recusar a observância da forma legal. Em outras hipóteses, por vezes nem sempre claramente destrinçáveis destas, identifica-se abuso para evitar que o infractor da norma beneficie dessa inobservância (o tu quoque); finalmente , a chamada supressio tutela a confiança do sujeito contra o qual o direito não foi exercido “. (“Código Civil Anotado “, volume I , coordenação Ana Prata , pág. 410 , anotação de Ana Prata , 2017 )
Igualmente o Acórdão do S.T.J. de 14.5.2003 decidiu que "(...) este Supremo Tribunal, inicialmente mais formalista e recusando a invocação do abuso de direito nos casos de nulidade decorrente da inobservância da forma legal, veio, depois maioritariamente (posição a que aderimos) a reconhecer a admissibilidade dessa invocação, desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando (…) válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo." (relator Araújo de Barros, disponível em www.dgsi.pt).
Com particular relevância para o caso em apreciação no âmbito do presente recurso decidiu-se no Acórdão da Relação de Guimarães de 26.5.2022 que:
“I- Em situações excepcionais e bem delimitadas, pode decretar-se, ao abrigo do instituto do abuso de direito, a inalegabilidade pela parte de um vício formal do negócio jurídico, decorrente da preterição das normas imperativas que, à data da respectiva celebração, com base em razões de interesse público, regiam a forma do acto.
II- Em consonância com esta orientação geral , pode admitir-se a paralisação invocabilidade da nulidade por vício de forma , com base num censurável venire contra factum proprium , quando a conduta das partes , sedimentada ao longo de período temporal alargado , se traduziu num escrupuloso cumprimento do contrato , sem quaisquer focos de litigiosidade relevante , assumindo aquelas inteiramente inteiramente os direitos e obrigações deles emergentes – e criando , com tal estabilidade , e permanência da relação contratual , assumida prolongadamente ao longo do tempo , a fundada e legítima confiança na contraparte em que não se invocaria o vício formal , verificado aquando da celebração do contrato”. (rel. José Cravo, todos disponíveis em www.dgsi.pt)
Ora resultou apurado que que o Recorrido desde 12.10.2019 tem o gozo do veículo automóvel veículo automóvel de matrícula 57-..-54 , que então lhe foi disponibilizado pela Recorrente , e desde Março de 2020 até Setembro de 2022 quando esta resolveu esse contrato recebeu as 30 facturas relativas à retribuição mensal acordada , sem efectuar qualquer oposição ou reparo às mesmas , e sem proceder ao pagamento de qualquer valor.
Constituiria assim abuso de direito permitir que o Recorrido beneficiasse da declaração da nulidade cuja manutenção assegurou, e da qual tirou proveito, usufruindo do gozo do veículo automóvel objecto do contrato durante mais de dois anos sem pagar a correspondente retribuição.
Foi este aliás o entendimento do tribunal a quo, limitado, no entanto a duas das retribuições não pagas tendo em conta a factualidade que julgou provada na sentença recorrida.
Como tal, e devendo os contratos ser pontualmente cumpridos, verificado o incumprimento pelo Recorrido  da obrigação de pagamento da contrapartida convencionada pela cedência do gozo do veículo  assiste a esta última o direito de resolver o contrato bem como requerer a condenação do  Recorrido  a pagar o valor correspondente às retribuições em falta e aos respectivos juros de mora à taxa legal desde a data de vencimento das facturas (artigos 406º, nº 1, 798º, 799º, 801º , 804º, 806º , 1023º e 1038º , do C. Civil).
Uma vez que a Recorrente resolvera o contrato de aluguer celebrado com o Recorrido antes de intentar a presente acção improcede o recurso relativamente ao pedido de declaração de resolução desse contrato, mantendo-se nesta parte a decisão recorrida, embora com outros fundamentos. (artigos 432º e 436º do C.P.C.)
No demais procede o recurso interposto, revogando-se  a sentença recorrida no que respeita à absolvição do pedido de condenação do Réu a pagar à Autora o valor das prestações em dívida , no montante de €29 962,54 (correspondente à dedução no valor de €32.102,72 reclamados em sede de petição inicial dos €2.140,18 a cujo pagamento foi condenado na sentença), acrescido dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
V – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso interposto e, em consequência, em
5.1. Revogar parcialmente a sentença recorrida, passando agora a ler-se no ponto iii. do seu dispositivo final: “Condena-se o Réu a pagar à Autora o valor das prestações em dívida, no montante de €29.962,54 acrescido dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento. “
5.2. Revogar parcialmente a sentença recorrida, passando agora a ler-se no ponto iv. do seu dispositivo final: “Condena-se a Autora e o Réu no pagamento das custas da acção, na proporção do respectivo decaimentos (artigo 527.º do CPC). “
5.3. Confirmar, o remanescente da sentença recorrida.
Custas da apelação por ambas as partes, na proporção do decaimento (artigos 527.º, n.º 1 e n.º 2, do C.P.C.).

LISBOA, 21/03/2024
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
Maria Teresa Lopes Catrola
Rui Manuel Pinheiro de Oliveira