Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
324/14.0TELSB-DV.L1-5
Relator: MANUEL ADVÍNCULO SEQUEIRA
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
CORRUPÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: A possibilidade legal de constituição de qualquer cidadão como assistente em processo por prática de crime de corrupção, prevista na alínea e) do nº 1 do artº 68º do Código de Processo Penal, não abrange os crimes de corrupção passiva no sector privado, pp. e pp. pelos nos 1 e 2 do artº 8º da Lei nº 20/2008 de 21.4, já que apenas contempla tipos penais contra a realização da justiça, ou cometidos no exercício de funções públicas, que a par com os crimes contra a paz e a humanidade, constituem protecção de bens jurídicos comuns a todos os cidadãos e que põem gravemente em causa toda a comunidade.(Sumariado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

No âmbito deste processo foi indeferido requerimento para constituição de assistente de AA.
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Interpôs esta o presente recurso concluindo:
I. Nos presentes autos os arguidos vêm acusados, entre outros, dos seguintes crimes: crime de burla simples e qualificada, abuso de confiança, falsificação de documentos, infidelidade e branqueamento de capitais.
II. A recorrente, também enquanto lesada/ofendida, veio requerer a respectiva constituição de assistente, nos termos do artigo 68°, n.°1, alínea a) do C.P. Penal.
III. O Tribunal a quo indeferiu a constituição de assistente por parte da recorrente, alegando, para tal a sua falta de legitimidade, em virtude da mesma fundamentar o seu pedido na aquisição de ações da Portugal Telecom, Portugal Telecom SGPS e/ou Multimedia, PT International Finance BV e de tais instrumentos de dívida não serem objeto do despacho de encerramento do inquérito proferido nestes autos no dia 14.07.2020.
IV. A recorrente não se limita a fundamentar o seu pedido de indemnização e constituição de assistente na mera aquisição de acções da Portugal Telecom.
V. Ao longo do seu pedido de indemnização civil e requerimento de constituição de assistente, a recorrente alega e contextualiza, utilizando para o efeito partes da acusação deduzida pelo Ministério Público, a relação entre a Portugal Telecom e o Grupo Espírito Santo, de modo a concluir que as condutas criminosas perpetradas pelos arguidos tiveram influência directa na perda do seu investimento.
VI. A relação com a Portugal Telecom e com o Grupo Espírito Santo encontra-se discriminada, entre outros, nos pontos 5.2.2.1.1. e sgs. e ainda 7.4.5.2. da acusação.
VII. À época da subscrição, como resulta da acusação (pontos 3711, ss) o Grupo PORTUGAL TELECOM (PT), liderado pela holding de topo, a PORTUGAL TELECOM SGPS (em 29.05.2015 redenominada PHAROL SGPS SA), até 2014 o principal operador no setor das telecomunicações em Portugal, foi, também, fonte importante de liquidez para o GES.
VIII. Com efeito, BB, em conjugação de esforços com os demais arguidos, logrou que fosse implementada na PT uma política de gestão de recursos que beneficiou financeiramente o GES, seja através de depósitos do Grupo PT no BES, seja pela tomada de obrigações, até 2008 as comercializadas pelo Grupo BES e, a partir de 2010, as emitidas pela ESI.
IX. Entre 2001 e 2013, BB conseguiu que a PT concentrasse montantes significativos da sua tesouraria em depósitos no BES e obrigações, representando tais investimentos 91% do total de tesouraria da PT.
X. A partir de 2010, BB, querendo dissimular a deterioração da situação financeira e patrimonial da ESI, conseguiu que o Grupo PT investisse os seus excedentes de tesouraria em obrigações emitidas por essa holding.
Xl. A ESI tinha capitais próprios negativos de, pelo menos, 1609,6 milhões de euros, valor que, se a participação sobre a ESFG fosse ajustada para a cotação em bolsa, atingiria a expressão negativa de 2.791 milhões de euros.
XII. Parte da dívida da ESI foi transferida para a RIOFORTE alegando os arguidos que se trataria de uma reestruturação financeira do GES, passando a ser a nova holding do GES.
XIII. A RIOFORTE faz parte do GES.
XIV. Entre 2009 e Julho de 2014 BB exerceu controlo sobre todo o GES.
XV. Nessa medida, e através de deliberações aprovadas nas diferentes reuniões dos Conselhos de Administração (CA) de cada uma das sociedades, foram "fabricados" instrumentos de dívida emitidos pelas diferentes sociedades do grupo, foi falsificada documentação contabilística com vista à possível emissão de tais instrumentos de dívida, foram promovidos produtos financeiros de sociedades já insolventes, foram emitidos valores mobiliários em franca contradição com deliberações proferidas pelo Banco de Portugal, enquanto entidade reguladora.
XVI. Foi na sequência da influência de BB, em comunhão de esforços com as pessoas melhor identificadas na acusação, que a Portugal Telecom subscreveu obrigações das ESI e das empresas do grupo que dela faziam parte.
XVII.  Em janeiro de 2014, na execução do plano de "reestruturação" do GES gizado, mostrava- se essencial que a dívida ESI tomada pelo Grupo PORTUGAL TELECOM, que, a 31.12.2013, se cifrava em 750 milhões de euros fosse assumida na integra pela RIOFORTE (ponto 8662, da acusação).
XVIII. Nessa altura, bem sabiam os arguidos que a ESI não tinha capacidade para reembolsar aquela dívida tornada pelo Grupo PT.
XIX. Em janeiro de 2014, BB, referindo-lhe o plano de "reestruturação" do GES e apresentando a RIOFORTE como a nova holding de topo do GES, solicitou que os investimentos do Grupo PT em papel comercial da ESI fossem transferidos para Obrigações emitidas pela RIOFORTE, a serem sucessivamente roladas, pelo período de um ano, até fevereiro de 2015.
XX. Toda a conduta que originou perdas para a PT de cerca de 897 milhões de euros encontra-se descrita nos pontos 8662 a 8682 da acusação.
XXI. Em 05.05.2014, aquando da liquidação do aumento de capital da 01, a PORTUGAL TELECOM contribuiu com os ativos que haviam sido transferidos para a PT Portugal, incluindo as Obrigações RIOFORTE no valor de 897 milhões de euros, subscritas pela PT SGPS e pela PT FINANCE.
XXII. Consequentemente, depois de em julho de 2014 a RIOFORTE não ter reembolsado estas Obrigações tomadas pelo Grupo PT, em processo que veio a culminar na sua insolvência, a PT SGPS (atual PHAROL SGPS) sofreu um prejuízo de 897 milhões de euros.
XXIII. Estas perdas em 2014, causadas pela omissão deliberada da real situação financeira da ESI e da RIOFORTE e falsificação de diversos documentos, levaram a que, mais tarde, em 2016, a OI, tendo já a PT e a PTIF integrada no seu perímetro, tivesse necessidade de pedir ao tribunal a proteção dos credores.
XXIV. A OI admite que o crescimento da dívida foi o que originou os seus problemas financeiros.
XXV. Ao invés de apresentarem a ESI/RIOFORTE à insolvência, o arguido BB, coadjuvado pelos demais co-arguidos, utilizaram a ESI/RFI para se financiar junto de terceiros.
XXVI. De modo a aparentar uma realidade que sabiam não existir, para que fosse possível manter a emissão de produtos financeiros da ESI/RFI, os arguidos/Demandados ordenaram ou executaram atos de manipulação das contas desta entidade por recurso a documentos que falsificaram ou mandaram falsificar.
XXVII. Os arguidos/Demandados agiram com intenção de obter para si, ou para entidades do Grupo Espírito Santo, um enriquecimento ilegítimo.
XXVIII. Para o efeito utilizaram, entre outras, as estruturas do BES de modo a que estas comercializassem produtos financeiros que os primeiros sabiam não deter valor ou serem pouco fiáveis.
XXIX. Assim, o pedido de recuperação pela OI e a consequente perda e danos na esfera patrimonial da lesada/recorrente, está diretamente relacionada com os factos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público.
XXX. Considerou o Douto despacho recorrido que os factos relatados e que fundamentam o pedido de constituição como assistente em causa, não são objecto dos autos.
XXXI. Porém, as condutas dos arguidos descritas no pedido de indemnização civil e constituição de assistente dizem respeito a factos constantes da Acusação (pontos 4013, 5.2.2.11 e seguintes e 7.4.5.2. da Acusação).
XXXII. Os factos descritos no despacho de acusação "...dão corpo ao texto que os concretiza em sede de acusação, na qual são imputados os crimes de associação criminosa para a prática de crimes de falsificação, previsto no art.° 256°, burla (qualificada), previsto nos art.'s 217° e 218°, infidelidade, previsto no art. ° 224°, branqueamento, previsto no art. ° 368°¬A, todos do Código Penal, e de corrupção ativa e passiva no setor privado, previstos nos art.° 8° e 9° da Lei 32/2008, de 21.04, e de manipulação de mercado, previsto no art.° 379° do Código de Valores Mobiliários. Os factos descritos demonstram a existência de células organizadas, com domínio de assuntos de auditoria, de supervisão, do circuito bancário e do circuito de intermediação financeira para a prática deliberada de atos criminosos, e de todos os conexos a impedir a sua deteção e permitir a sua dissimulação na normalidade de uma atividade particularmente complexa." (Fls. 84 da Acusação).
XXXIII. Considerando a sua versão da ocorrência, os factos descritos, os documentos que juntam e a perspectiva em que se colocam face aos arguidos, é manifesto que a legitimidade da recorrente para se constituir como assistente deve ser reconhecida.
XXXIV. Independentemente de se virem, a final, a provar ou não as respectivas suspeitas, e perante a tipologia de crimes em causa, é perfeitamente aceitável admitir a constituição de assistente da recorrente/demandante, como titular dos interesses que a incriminação visou especialmente proteger, uma vez que, na sua óptica, viu o seu património afetado pelas condutas cuja prática é o objeto dos presentes autos.
XXXV. A Recorrente é titular de obrigações emitidas pela PORTUGAL TELECOM INTERNATIONAL FINANCE, BV, (PTIF), sendo que os denunciados cometeram crimes de burla qualificada e infidelidade contra essa mesma sociedade, entre outros.
XXXVI. De acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, (Ac. 10/2010, DR 242 SÉRIE I de 2010-12-16), "...sempre que for identificado um interesse determinado, corporizado num concreto portador, que não se confunda com o interesse (típico do lesado) no simples ressarcimento do dano sofrido, nem com o interesse geral na mera vigência das normas penais (as chamadas «expectativas comunitárias»), estaremos perante um bem jurídico protegido".
XXXVII. No crime de burla e de infidelidade o bem jurídico protegido é o património.
XXXVIII. No crime de burla previsto e punido nos termos do art. 217.° do C.P., o legislador procurou acautelar o património, não só do burlado, como também de algum terceiro que, como consequência directa do engano provocado pelo agente sofra um prejuízo patrimonial.
XXXIX. O mesmo acto ilícito pode provocar prejuízo a uma pluralidade de pessoas, e, portanto, provocar vários ofendidos.
XL. O prejuízo provocado pelos arguidos à Recorrente não é apenas indirecto e reflexo, mas decorre, directamente, da conduta dos arguidos.
XLI. A burla qualificada na venda de papel comercial ESI e da RIOFORTE teve consequências directas nas obrigações PT e na 01 e/ou PTIF, originando a perda de valor das ditas obrigações.
XLII. No douto despacho recorrido considerou-se que as obrigações emitidas pela PORTUGAL TELECOM INTERNATIONAL FINANCE, BV, (PTIF) não são objeto do despacho de encerramento do inquérito proferido nos autos.
XLIII.  Sucede, porém que as condutas referidas tiveram impacto na PT e posteriormente na OI.
XLIV. O pedido de recuperação pela OI e a consequente perda e danos na esfera patrimonial da lesada/recorrente, está diretamente relacionada com os factos descritos na acusação.
XLV. Depois de, em julho de 2014 a RIOFORTE não ter reembolsado as Obrigações tomadas pelo Grupo PT, em processo que veio a culminar na sua insolvência, a PT SGPS (atual PHAROL SGPS) sofreu um prejuízo de 897 milhões de euros.
XLVI. Perdas estas que levaram a que em 2016, a OI, tendo já a PT e a PTIF integrada no seu perímetro, tivesse necessidade de pedir ao tribunal a proteção dos credores (Cfr. Art.°s 54.° a 56.° do pedido de indemnização civil e requerimento de constituição de assistente).
XLVII. A recorrente é a titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato dos crimes de burla qualificada e infidelidade, interesse próprio e direto que não se consubstancia somente na pessoa do lesado, uma vez que está em causa não apenas o património mas a necessidade de garantir a integridade dos mercados financeiros e promover a confiança dos investidores.
XLVIII. A recorrente é, por isso, titular de um interesse que a norma incriminatória procurou acautelar, e, portanto, tem legitimidade para apresentar a queixa e constituir-se assistente, dado que é ofendida, na extensão que o conceito deve ter, conforme fixado pelo Acórdão 1/2003 do Supremo Tribunal de Justiça.
XLIX. O Meritíssimo Juiz a quo interpretou de forma errónea o disposto no artigo 68° n.° 1 al. a) do CPP, nomeadamente, quanto ao conceito de ofendido, já que deveria ter considerado que a recorrente, sendo titular de um interesse especialmente protegido pela norma, tem legitimidade para se constituir assistente.
L. Neste sentido, veja-se o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 03‑02-2016, proferido no âmbito deste mesmo processo (324/14.0TELSB), acessível in, que diz o seguinte:
"1. Têm legitimidade para se constituírem assistentes, os lesados por uma instituição bancária onde se investigam os crimes de burla simples e qualificada, abuso de confiança, falsificação de documentos, branqueamento de capitais e fraude fiscal, e cujo processo tem como arguido, entre outros, o Presidente do respectivo Banco.
2. Tem sido comumente aceite, que o conceito de ofendido para efeitos de legitimidade para constituição como assistente, coincide com o adotado para se aferir da legitimidade para apresentação de queixa, previsto no art° 113°, n° 1, do cód. penal.
3. Como condição dessa legitimidade exige-se a existência de um interesse específico, particularmente qualificado, que intercede na relação entre o bem jurídico e o sujeito afectado.
4. Os lesados pelos gestores da instituição bancária na qual haviam depositado o seu dinheiro, mostram-se investidos na posição de titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com as incriminações que se indiciam."
LI. O mesmo se conclui relativamente a eventuais crimes de falsificação e de abuso de confiança, atenta a descrição da factualidade alegada pela recorrente.
LII. O crime de falsificação de documento é um crime contra a vida em sociedade, em que o bem jurídico segurança e confiança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal é prevalente ou predominantemente protegido.
LIII. Mas não é o único bem jurídico particularmente protegido com a correspondente incriminação, atendendo ao conjunto do tipo.
LIV. Como requisito subjectivo deste crime, exige-se que o agente tenha actuado com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou Estado ou alcançar para si ou para terceiro benefício ilegítimo.
LV. O mesmo é dizer que se não estiver presente esse elemento não perfecciona o respectivo tipo.
LVI. Quando for o caso, verificados os elementos materiais do iter criminis, é essa especial direcção de vontade do agente: prejudicar outra pessoa, que dita o completamento do crime.
LVII. O que impõe a conclusão, face a este elemento subjectivo, de que o tipo em causa visa proteger aqueles valores, mas (também) em razão do prejuízo que os atentados contra eles podem causar a interesses de particulares.
LVIII. Esses interesses particulares, se bem que não exclusivamente, são pois protegidos de modo particular pela incriminação, constituindo um dos objectos imediatos da incriminação.
LIX. Se num caso concreto os arguidos visaram com a falsificação causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, neste caso todos os adquirentes de obrigações PT, estes poderão constituir-se assistentes.
LX. A análise do tipo legal de falsificação de documento do artigo 256.° do Código Penal permite concluir que a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afastou, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, aquele cujo prejuízo o agente visava, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente.
LXI. Neste sentido, veja-se o Acórdão n.° 1/2003 — Processo n.° 609/02 - do Supremo Tribunal de Justiça, disponível in www.dgsi.pt que concluiu o seguinte que (No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente.»"
LXII. O Acórdão 1/2003, estabelece que o vocábulo " especialmente" usado pela lei significa "de modo especial, num sentido de particular e de não exclusivo" de sorte que" quando os interesses imediatamente protegidos pela incriminação, sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares...a pessoa que tenha sofrido danos em consequência da sua prática tem legitimidade para se constituir assistente."
LXIII.  O direito penal tem por encargo proteger os bens jurídicos e todos os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou vários bens jurídicos que podem ser lesados cumulativamente ou alternativamente.
LXIV. Neste caso, os interesses particulares, se bem que não exclusivamente, também são objecto imediato da protecção pela norma incriminadora.
LXV. A ampliação do conceito de ofendido acarreta o correto equilíbrio entre a necessidade de punir a necessidade que esta punição seja feita de forma justa e ponderada contribuindo assim para a realização de um processo penal mais equitativo e pacificador.
LXVI. Assim, impunha-se, face às circunstâncias particulares do caso e ao tipo legal de crime em causa que se concluísse que a Recorrente, surge como titular de um interesse digno de tutela e acautelado pela norma incriminadora em apreciação.
LXVII. Neste contexto, AA apresenta-se com legitimidade para se constituir, assistente nos presentes autos.
LXVIII. Razão pela qual, face ao supra exposto, o Douto despacho violou a alínea a) do n.° 1 do artigo 68.° do Código de Processo.”
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância pugnou fosse negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida, concluindo:
1. Importa, perante o teor do recurso, aquilatar se a recorrente se mostra investida na posição de titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação no âmbito destes autos.
2. O conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para constituição como assistente, coincide com o conceito adoptado para se aferir da legitimidade para apresentação de queixa, previsto no art° 113° n° 1 do Código Penal, onde igualmente se estabelece que ofendido é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
3. A legitimidade do ofendido é aferida necessariamente em relação ao crime concreto que estiver em causa, e a delimitação do seu conceito encontrar-se-á na tipologia criminal concretamente expressa em lei. Só assim é possível determinar se uma pessoa viu os interesses que a lei quis especificamente proteger afectados pela conduta adoptada pelo arguido ou pelo suspeito.
4. É a norma incriminadora que fornece ao intérprete o interesse que o legislador quis proteger, ao tipificar determinada conduta como criminosa.
5. No caso vertente, a recorrente apresentou-se à constituição como assistente invocando apenas o disposto no art.° 68° n° 1 al. a) do CPP, tendo o tribunal a quo necessidade de recorrer aos termos do pedido cível deduzido.
6. Sendo o seu fundamento a subscrição, em 12.07.2012, de obrigações emitidas pela Portugal Telecom, com a designação PT TAXA FIXA 2012/2016, com o ISIN PTPTCYOM0008, no valor nominal de 25.000 euros, sendo o valor investido, despendido pela recorrente, de € 25.000,00.
7. Não foi apurado neste inquérito em que circunstâncias foram comercializados os instrumentos de dívida a que alude a recorrente e se tais factos implicariam responsabilidade criminal e de quem.
8. O objecto do processo foi fixado com a acusação proferida no dia 14.07.2020.
9. Nela não foi imputada a prática de qualquer crime por aqueles factos, pelo que, e salvo melhor opinião, não assume a recorrente a qualidade de ofendida nos termos e para os efeitos do art.° 68° n°1 al. a) do CPP, ou seja, aquela que a norma incriminadora especialmente quis proteger com a incriminação.
10. E, por isso, carece de legitimidade para se constituir assistente.
11. Sempre se dirá, contudo, que não estando a recorrente investida na qualidade de ofendida, como pretende, sempre poderia ser admitida a intervir como assistente ao abrigo do que dispõe o art.° 68° n° 1 al. e) do CPP (o que não requereu), já que se procede por crimes de corrupção no sector privado.
12. Todavia, nos termos pretendidos, deverá ser negado provimento ao recurso interposto, por total falta de fundamento face ao que dispõe o art° 68° n° 1 al. a) do CPP, mantendo-se a decisão recorrida.
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Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Dispensados os vistos, foram os autos à conferência.
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Fundamentação.
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A decisão recorrida tem o seguinte teor:
Fls. 63184 a 63185 (...) AA (...) vem requerer a respectiva constituição como assistente nos termos do art° 68° nº 1 al. a) e 3 do Código de Processo Penal.
Todos estes requerentes, fundamentam o seu pedido (como decorre do pedido de indemnização civil) na aquisição de acções da Portugal Telecom, Portugal Telecom, SGPS e/ou da PT Multimédia, PT International Finance, BV.
Porém, verifica-se como aduzido pelo titular da acção penal que, tais instrumentos de dívida não são objecto do despacho de encerramento do inquérito proferido nestes autos no dia 14.07.2020, pelo que corroboramos o entendimento sancionado pelo detentor da acção penal de que, no âmbito do presente inquérito, não têm os requerentes legitimidade para se constituírem assistentes, nos termos e para os efeitos do art.° 68° nº 1 al. a) do Código de Processo Penal, pelo que se indeferem os respectivos pedidos.
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Cumpre apreciar.
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
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Atendendo às conclusões apresentadas é questão a apreciar se a requerente tem, ou não, legitimidade para intervir no processo como assistente.
O devir processual não levanta qualquer tipo de dissensão.
Isto é, os factos que a requerente invoca como directamente causadores de prejuízo no seu património (aquisição de obrigações da Portugal Telecom) não constam da acusação.
Tanto basta para concluir que, em princípio, não tem legitimidade para intervir na qualidade que pretende.
Invoca a recorrente jurisprudência tirada no sentido do alargamento do conceito dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, para além dos bens jurídicos directamente visados pelos tipos penais que ali são dissecados.
Mas ponto comum àquela é o de que de alguma forma haja protecção penal típica que tenha conexão com a esfera jurídica do lesado, o que bem se surpreende no tipo penal de falsificação de documento, quando prevê possibilidade de ocorrer prejuízo, como intenção do agente.
Prejuízo esse que terá um destinatário concreto, ofendido, portanto, ao qual caberá a correspondente possibilidade de intervenção processual.
Não é o que ocorre neste processo, pelo que se constata do respectivo teor, pois os factos objecto do processo (mesmo e principalmente os que se referem a crimes de falsificação de documento) têm conexão já muito longínqua com os que são causais do prejuízo de que se queixa a recorrente, os mesmos que são essenciais para fundar o seu pedido de indemnização civil e que, desde logo, constituiriam alteração substancial dos factos constantes da acusação, vedada no momento processual da requerida constituição como assistente (artos 284º e 309º do Código de Processo Penal), cuja esfera patrimonial se encontra afastada daquela sobre a qual versa a acusação – a da Portugal Telecom, S.A. Neste sentido Ac. desta Relação de 14.12.2021 no procº 324/14.0TELSB-DM.L1, ainda inédito.
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Nem se diga ainda que por ter sido deduzida acusação também pela prática de crimes de corrupção passiva no sector privado, pp. e pp. pelos nos 1 e 2 do artº 8º da Lei nº 20/2008 de 21.4, já poderia a recorrente, como qualquer cidadão, intervir como assistente.
É certo que na alínea e) do nº 1 do artº 68º Código de Processo Penal se dispõe que “podem constituir-se assistentes no processo penal... qualquer pessoa nos crimes... de... corrupção...
Mas, salvo o devido respeito, dali se devem excluir os crimes de corrupção passiva no sector privado.
É que aquela previsão processual, tratando-se claramente de excepção à regra geral patente no mesmo preceito, muito particularmente na sua alínea a), encontra-se entre outras que respeitam aos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.
Ou seja, visam-se ali, muito claramente, crimes contra a realização da justiça, ou cometidos no exercício de funções públicas, que a par com os crimes contra a paz e a humanidade constituem protecção de bens jurídicos comuns a todos os cidadãos e que põem gravemente em causa toda a comunidade, o que manifestamente não ocorre com os crimes de corrupção atrás referidos.
Repare-se, no mesmo sentido, na precisão relativamente ao crime de favorecimento pessoal.
Só se admite a intervenção como assistente de qualquer cidadão, caso o agente seja funcionário (artº 368º do Código Penal).
Se assim não suceder e ainda que o crime de favorecimento pessoal (artº 367º do Código Penal) continue a ser um crime contra a realização da justiça, como as actuações ali previstas já relevam de interesses pessoais, está arredada aquela prerrogativa processual.
Conclui-se assim que a requerente não tem qualquer legitimidade para intervir como assistente.
Consequentemente, improcede o recurso.
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Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UC.
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Lisboa, 21 de Dezembro de 2021
Manuel Advínculo Sequeira
Alda Tomé Casimiro