Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
525/17.9T8MFR.L1-6
Relator: ANA PAULA A. A. CARVALHO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
TESTAMENTO
INDIGNIDADE SUCESSÓRIA
COACÇÃO MORAL
FACTOS ESSENCIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Apurando-se que a falecida, além do testamento lavrado em 2017, já outorgara em 2009 um testamento que não encerrava grandes alterações relativamente ao primitivo, elaborado no ano de 2000, e não se tendo provado a existência de qualquer ameaça dos réus, é patente que inexistem os fundamentos previstos na al. c) do artigo 2034º do C.C. para obter a declaração de indignidade daqueles;
II – Na valoração dos testemunhos prestados, importa atender à globalidade do depoimento, e não a meros excertos descontextualizados que são contrariados por afirmações posteriores. 
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Seção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
A…. intentou ação declarativa de condenação, com processo comum contra E…. M…, L…, MJ…, MC..e ME…, formulando o seguinte pedido: Que seja DECLARADA A INDIGNIDADE SUCESSÓRIA DOS RÉUS NA HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE C …., CONSIDERANDO-SE, CONSEQUENTEMENTE, A SUCESSÃO DOS INDIGNOS COMO INEXISTENTE, COM TODAS AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.
Alega, para tanto, em suma, o seguinte:
· o Autor é irmão da falecida , já falecida e que era proprietária de vasto património, mormente, imobiliário;
· nos últimos anos, C.. aproximou-se dos Réus e afastou-se dos seus familiares;
· os Réus aproveitando-se da debilidade psicológica, fragilidade emocional e pouca instrução de C.., começaram a gerir todo o património desta, com o auxílio de advogados e solicitadores contratados pelos Réus; vindo a gerir os negócios de C… como se fossem seus, prejudicando a falecida; amedrontando-a e ameaçando-a de que ficaria só e abandonada; sendo certo que os Réus não prestaram a C… a atenção e cuidados de que esta precisou, assegurando a sua deslocação à fisioterapia, ao cabeleireiro e a consultas médicas; não obstante vivessem à custa e por conta da falecida;
· após o óbito da irmã, C…, o Autor tomou conhecimento de que esta outorgara em testamento (em fevereiro de 2017) contra a sua própria e real vontade; testamento em que foi testemunha solicitadora contratada pelos primeiros Réus para gerir os negócios de C…; e que
· a real vontade de C… ficara expressa em testamento do ano de 2000, pois C… não pretendia que os seus familiares entrassem em conflito, pretendendo que os seus bens fossem divididos entre todos; de forma que
· tal testamento de 2017 outorgado por C… foi fruto da sobredita conduta ameaçadora e da relação de dependência e autoridade existente entre C… e os Réus; termos em que o Autor
· enquadra a situação dos autos na previsão do art. 2034º, al. c), do Código Civil, pretendendo a declaração de indignidade dos Réus para adquirirem, por sucessão, como herdeiros e legatários.
Os Réus MC.. e ME… vieram contestar a ação pedindo a sua improcedência e consequente absolvição do pedido; alegando, em suma que:
· a falecida C… sempre se relacionou com os seus familiares, mormente, todos os Réus, embora tenha cortado relações com o Autor por ter tido desentendimento que envolveu um filho e um genro do ora demandante; e ainda que
· o 1º Réu sempre auxiliou a falecida C… na administração do património que esta recebeu, por testamento; negando a invocada debilidade psicológica e fragilidade emocional e dando exemplos em conformidade; e negando a falta de apoio à falecida; e as invocadas dependência e autoridade que teriam levado a uma vontade de testar não correspondente com a real; e que
· já em 2009, C… fizera um outro testamento a alterar o testamento de 2000, aquele sim (o de 2009) a alterar substancialmente o de 2000. Também, os Réus E…, M…, L.., LF..e MJ.. vieram contestar alegando, em suma, que:
· não induziram a falecida  a revogar ou modificar qualquer testamento;
· C.. estava no pleno uso das suas faculdades cognitivas e que, ao lavrar o testamento em causa, exerceu a sua liberdade de modo consciente;
· o ora 1º Réu já era pessoa da confiança do falecido companheiro de C… (falecido em 1991) muitos anos antes deste falecimento e continuou a ser pessoa de confiança da ora falecida , instituída pelo falecido Dr. D…, como sua única herdeira; tendo recebido Procuração daquela para dispor dos seus bens imóveis; nunca tendo prejudicado esta;
· a solicitadora que testemunhou na realização do testamento mais recente era, também, pessoa da confiança da falecida ; e que
· a vontade de C… foi validamente expressa em qualquer um dos testamentos em que outorgou; além do que
· pugnam pela condenação do Autor como litigante de má fé, pedindo a sua condenação em multa.
Após a prolação do despacho saneador, realizou-se o julgamento com observância do formalismo legal e foi elaborada a sentença que julgou a ação improcedente na íntegra com a consequente absolvição dos réus do pedido.
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Não se conformando, o autor interpôs recurso de apelação, pugnando pela revogação da sentença e que se dê provimento ao pedido formulado.
O apelante formula as seguintes conclusões das alegações de recurso:
« 1. Vem o presente recurso interposto de sentença proferida pelo Tribunal “a quo” que julgou a ação improcedente por não provada e em consequência considerou a “não existência de qualquer ameaça dos Réus à testadora C… e, assim, que tenha sido o receio de concretização de tal ameaça dos Réus a conduzir à elaboração do testamento de 2017, nos termos em que este se mostra outorgado, contrário à vontade real da testadora.”
2. Não assiste qualquer razão ao tribunal “a quo”.
3. Desde logo, porque o tribunal considerou como factos não provados, os constantes dos pontos 2, 8, 10 e 11 da , aliás, douta Sentença.
4. O tribunal entrou em contradição direta com os factos dados como provados nos pontos 9 e 14, tendo dado como provado que a falecida C… deixou de ter relação próxima com o Autor, ora Requerente, bem como com os seus filhos.
5. E, ainda, que a Solicitadora … prestava seus serviços, quer aos primeiros Réus, quer à falecida.
6. O ponto 1 dos factos não provados não corresponde ao depoimento da testemunha (..).
7. Ao minuto 10:43 a mesma referiu que: A minha tia nem sequer completou o ensino primário…era uma pessoa com muita dificuldade em redigir qualquer papel…a minha tia era incapaz de perceber documentos oficiais precisava sempre de ajuda de alguém.
8. Do depoimento das testemunhas (…) resultou clara e inequivocamente demonstrado que o Autor e a sua família foram afastados do convívio com a falecida.
9. E que a mesma lhes manifestou diretamente o receio e medo que tinha em ser vista pelos Réus com o Autor ou com membros da sua família.
10. Ao minuto 10:52 … (…) (transcrição dos depoimentos omissio)
106. De todo o exposto, resulta insofismavelmente demonstrado que houve, de facto, manifesta divergência entre a vontade real da testadora e o que consta do seu testamento. 107. Ora, o Artigo 2034º, alínea c) do Código Civil prevê que carece de capacidade sucessória, por motivo de indignidade, aquele que por meio de dolo ou coação, induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento.
108. Por coação moral, entende-se, nos termos previstos no Artigo 255º, Nº 1 do Código Civil, a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração.
109. Ou seja, dois dos pressupostos da declaração negocial por coação moral são a ameaça e a ilicitude da ameaça ( cfr. Artigo 255º, Nº 3 do Código Civil).
110. De acordo, com a prova testemunhal ora carreada, constata-se que, de facto, os Réus, mormente os primeiro e segundos Réus, ameaçavam a falecida de que “ficaria só e abandonada” , tendo-lhe causado sério receio e procuraram sempre evitar que a mesma contactasse com outros membros da família e amigos.
111. Pelo que, os Réus supra identificados, como ficou claramente provado pelo depoimento das testemunhas supra indicadas, aproveitaram-se da debilidade psicológica e da fragilidade emocional da falecida, bem como do facto da falecida ter uma instrução muito limitada, para conseguirem os seus intentos.
112.Nomeadamente, que o testamento apenas contemplasse as pessoas que eles pretendiam, ao contrário da própria vontade da testadora que sempre manifestou a intenção de auxiliar e ajudar todos os membros da sua família e sempre quis que todos “se dessem bem entre si”.
 113.O que facilmente se constata não resultar do testamento lavrado.
114.Na verdade é notório pela análise do depoimento das testemunhas supra indicadas, que C…, encontrava-se deprimida, profundamente triste e amedrontada, provavelmente com medo que aqueles com quem vivia mais próximo, a criticassem e a abandonassem deixando-a na sua debilidade física e psicológica entregue à sua sorte.
 115.Só este grande medo pode motivar reações tão contraditórias para com os restantes familiares e amigos, nomeadamente chorar de emoção quando os vê e logo em seguida olhar para todo o lado para verificar que ninguém está a observar aquele encontro e apressar-se a entrar em casa, bem como dizer que os contempla em testamento e posteriormente fazer um testamento que não os contempla.
116. O Tribunal “a quo” violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nos Artigos 2034º e 255º do Código Civil?»
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Foram oferecidas contra-alegações pelos réus, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
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Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar.
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Questões a decidir:
O objeto e o âmbito do recurso são delimitados pelas conclusões das alegações, nos termos do disposto no artigo 635º nº 4 do Código de Processo Civil. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Similarmente, não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Abrantes Geraldes, Recursos no N.C.P.C., 2017, Almedina, pág. 109).
Importa apreciar as seguintes questões:
a). Se deve ser modificada a decisão sobre a matéria de facto, pelos motivos indicados no recurso do autor?
b). Se a decisão recorrida incorreu em erro de interpretação e aplicação do disposto nos art.º 2034º e 255º do Código Civil?
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade provada e não provada consignada na sentença recorrida é a seguinte:
«a) Factos Provados
Discutida a causa, julgam-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1. C… faleceu no dia 28 de maio de 2017, no estado de solteira, com a idade de 78 anos, com última residência habitual no  (…).
2. O ora Autor,  e a acima aludida C…, são filhos de A… e G….
3. Os Primeiros Réus são, respetivamente, cunhado e irmã da falecida e também do ora Autor.
4. O Segundo e Terceira Réus são sobrinhos da falecida e do Autor e também filhos dos Primeiros Réus.
5. A Quarta e o Quinto Réus são sobrinhos da falecida e do ora Autor.
6. Conforme exarado no “Testamento Público” de 13 de fevereiro de 2017, certificado nos autos a fls. 10 (verso) 14, C… não tinha descendentes nem ascendentes vivos.
7. A ora falecida era muito amiga da sua família, irmãos e sobrinhos, privilegiando o contacto e reuniões familiares.
8. Era uma pessoa muito generosa para com os seus familiares próximos, nomeadamente sobrinhos, auxiliando-os, não só com quantias monetárias, como também, com doações de imóveis.
9. Desde alguns anos antes do seu falecimento, a falecida  deixou de ter relação próxima com o ora Autor e seus filhos; e deixou de propiciar contactos frequentes com estes, mormente, na sua casa.
10.Os ora primeiros Réus viviam em fração do mesmo prédio em que vivia C…, no R/C.
11.C… era proprietária de vários imóveis.
12.C… outorgou, como testadora, no testamento de 13 de fevereiro de 2017, no Cartório Notarial de ….(..), cuja certidão se mostra junta aos autos a fls. 10 (verso) a 14.
 13.Aí constam como testemunhas a solicitadora A… e I….
14.A referida solicitadora prestava os seus serviços, quer, aos primeiros Réus, quer, à ora falecida .
b) Factos não provados
Discutida a causa, julgam-se não provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1. A falecida  tinha dificuldade na leitura e na redação da sua própria assinatura e era pouco alfabetizada.
2. Nos últimos anos de vida, a falecida afastou-se dos familiares que tanto estimava e isolou-se dos mesmos.
3. A falecida  deixou de ter relação próxima com o ora Autor e seus filhos, inexplicavelmente.
4. Entre a falecida e o ora Autor nunca existiu qualquer conflito ou discussão que justificasse o afastamento.
5. Tal afastamento da falecida coincidiu com a aproximação à mesma dos Réus, nomeadamente, os Primeiros Réus.
6. A fração em que os primeiros Réus viviam, foi-lhes dada pela ora falecida .
7. O património imobiliário de C… estava avaliado em milhões de euros; e esta era também proprietária de peças de ourivesaria de valor incalculável e de quantias bancárias avultadas.
8. Os Réus, aproveitando-se da debilidade psicológica, fragilidade emocional e da pouca instrução da falecida, em data que não se pode precisar, começaram a gerir todo o património financeiro e imobiliário com o auxílio de advogados e solicitadores por eles próprios contratados.
9. Nesse sentido, acabaram por gerir tais negócios nos seus próprios e exclusivos interesses pessoais, beneficiando com todos esses mesmos negócios, prejudicando grave e dolosamente os interesses financeiros da ora falecida .
10.Ao longo deste período de tempo, o Autor e demais familiares foram afastados do convívio com a falecida, porquanto os Réus manipulavam a mesma ameaçando-a que iria ficar só e abandonada.
11.Em inúmeras situações, a ora falecida manifestou medo perante terceiros que os Réus tomassem conhecimento que tentava manter contacto com os demais membros da família.
12.C…faleceu deixando sinais de abandono e falta de cuidados.
13.Os Réus não prestaram, a C…, a atenção e cuidados de que a irmã precisou em vida, nomeadamente assegurando as suas deslocações às sessões de fisioterapia, ao cabeleireiro, bem como a consultas médicas.
14.C… outorgou no testamento de 13 de fevereiro de 2017, contra a sua própria e real vontade, como por diversas vezes havia expresso.
15.A solicitadora A… era pessoa das relações pessoais dos 1ºs Réus.
16.A intenção séria e real da falecida foi expressa no seu primeiro testamento, de 13 de outubro de 2000.
17.C… pretendia que todos os seus bens fossem divididos entre todos os seus herdeiros legítimos.
18.C…desconhecia os exatos termos do testamento de 2017 e menos ainda os efeitos daí advenientes.
19.Foi o facto de os Réus assustaram e amedrontaram a falecida, dizendo-lhe que ficaria sozinha, abandonada e sem ninguém, caso não fizesse o que eles pretendiam, que levou a que C… outorgasse no testamento de 13 de fevereiro de 2017, com o conteúdo que, desse testamento, consta.
Para além dos factos acima elencados, não se julgaram provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa.»
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
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a). Se deve ser modificada a decisão sobre a matéria de facto, pelos motivos indicados no recurso do autor?
Nas alegações de recurso, é afirmado expressamente que não assiste qualquer razão ao tribunal «a quo» porque:
«…o tribunal considerou como factos não provados, os constantes dos pontos 2, 8, 10 e 11 da, aliás, douta Sentença.
Não obstante, o tribunal entrou em contradição direta com os factos dados como provados nos pontos 9 e 14, tendo dado como provado que a falecida C… deixou de ter relação próxima com o Autor, ora Requerente, bem como com os seus filhos e, ainda que a Solicitadora A… prestava os seus serviços, quer aos primeiros Réus, quer à falecida.»
Nas contra-alegações de recurso, é suscitada a questão prévia da violação do ónus de impugnação especificada imposto ao recorrente, nos termos do artigo 640º nº 1 alínea c) do C.P.C., cuja consequência é a rejeição do recurso nessa parte.
Quando é impugnada a decisão sobre a matéria de facto, dispõe o artigo 640º do C.P.C. que deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição do recurso: (a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; e (c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O ónus de alegação quanto à indicação precisa dos pontos da matéria de facto que se pretende questionar, e a especificação dos meios de prova constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada que imponham decisão diversa, foi criado pela necessidade de impor ao recorrente «uma delimitação objetiva do recurso» e uma «fundamentação» (Acórdãos do S.T.J. de 9.10.2008 e de 18.06.2009, disponíveis no sítio da internet do IGFEJ).
Com a reforma do Código de Processo Civil de 2013, o legislador teve a preocupação de «conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto», conforme se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República (disponível no sítio da internet do parlamento).
Assim, em sede de impugnação da matéria de facto, passou-se a exigir ao recorrente que especifique «a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas», bem como a indicação exata «das passagens da gravação em que se funda» o recurso, sob pena de rejeição imediata do recurso de facto.
A questão suscitada tem sido objeto de tratamento na jurisprudência do S.T.J., perfilhando-se o entendimento maioritário de que este ónus de indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado «em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exata e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento» (Acórdão de 29.10.2015, e em idêntico sentido os Acórdãos de 9.07.2015 e de 01.07.2014, disponíveis no sítio da internet identificado).
No caso vertente, é notório que o apelante omite qualquer um dos requisitos exigidos para a impugnação da matéria de facto no tocante ao segmento já transcrito das alegações, e enquadrado nas conclusões 1ª a 5ª, pois não se consegue discernir qual o sentido pretendido da decisão fáctica, nem quais os testemunhos  ou outros elementos probatórios que apontavam noutro sentido, o que implica a rejeição do recurso de impugnação nesta parte.
No entanto, já não sucede exatamente o mesmo relativamente ao ponto 1 dos factos não provados, pois é possível depreender que o apelante pretende a alteração da decisão deste facto para provado, com base nos testemunhos que transcreve prestados por  (…).
Está em causa o facto não provado nº 1 - A falecida C… tinha dificuldade na leitura e na redação da sua própria assinatura e era pouco alfabetizada.
No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes. Esta averiguação não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
A fundamentação fáctica constante da decisão recorrida é, neste segmento, do seguinte teor:
«Quanto ao ponto 1, considerou-se o depoimento de várias pessoas que foram dando conta de que C… fora, jovem, com 14 anos de idade servir como empregada doméstica para casa do Dr. M…., Conservador do Registo Predial, com veio a viver, como se fossem marido e mulher, durante décadas, até ao falecimento deste; sendo certo que o Dr. M… teve a preocupação de contratar professora particular (…) para a ensinar a ler e escrever.
Para além de terem sido vários os testemunhos no sentido de que C… (falecida em 2017, com 78 anos de idade) tirou a carta de condução e conduzia automóvel com habitualidade e perícia, para se deslocar a Lisboa ou ao Alentejo, por exemplo (neste caso, com a testemunha ..); recebia rendas de arrendamentos em que era senhoria e decidia da aquisição, alienação ou doação dos seus bens imóveis; viajava para o estrangeiro, sem familiares, o que tudo (à falta de prova sobre tais factos) não permite dar como certa tal realidade factual.
Tais depoimentos sobre estes factos que ora referimos foram prestados pela testemunha .. (filho do Autor), pela testemunha …, também, filha do Autor, pela testemunha …, ex. empregada do Registo, concretamente, quando era Conservador, o falecido Dr. M.. e amiga de C…a; e pela testemunha …, Conservadora que sucedeu ao Dr. Ma.. e amiga de C….»
No entender do apelante, os depoimentos transcritos das aludidas testemunhas permitem alterar a decisão deste facto.
Após a audição integral destes testemunhos, constata-se que …, filha do autor e sobrinha da falecida, referiu expressamente que a sua tia estava lúcida e orientada (01.04.23), embora já não mantivessem uma relação próxima nos últimos anos, o que atribuiu a influência da tia C… e do tio E.. Por sua vez, …, amiga da falecida desde os 15-16 anos, falou sobretudo sobre o estado de espírito desta nos últimos tempos, que a achava deprimida e isolada, «nos últimos tempos não fazia viagens» (31.21) e na última semana, antes do falecimento, lhe perguntou se queria ir ao Algarve, tendo obtido a seguinte resposta: «Já não queria ir, porque sabia que a casa não era dela».
Por último,…., cabeleireiro que conviveu com frequência com a C… nos últimos treze anos e até às duas últimas semanas, referiu ao longo do seu depoimento que «ela não era influenciável» (8.50), «sabia pagar pelo multibanco» (23.27) e que «obviamente ela fazia o que queria (29.16)... e com alta vontade (28.29)».
É patente que estes depoimentos não permitem alterar o sentido da decisão para provado, conforme pretende o apelante. Aliás, dos excertos transcritos também não se extrai que a falecida fosse pouco alfabetizada e tivesse dificuldade na leitura nos últimos tempos da sua vida.
Improcedem, assim, na íntegra as conclusões recursórias relativas à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
b). Se a decisão recorrida incorreu em erro de interpretação e aplicação do disposto nos art.º 2034º e 255º do Código Civil?
Nas conclusões das alegações de recurso, a apelante sustenta que resultou demonstrado que houve, de facto, manifesta divergência entre a vontade real da testadora e o que consta do seu testamento. O Artigo 2034º, alínea c) do Código Civil, prevê que carece de capacidade sucessória, por motivo de indignidade, aquele que por meio de dolo ou coação, induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento. Por coação moral entende-se, nos termos previstos no artigo 255º nº 1 do C.C. a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração. Ou seja, dois dos pressupostos da declaração negocial por coação moral são a ameaça e a ilicitude da ameaça, cfr. artigo 255º, nº 3 do C.C. e, de acordo com a prova testemunhal ora carreada, constata-se que, de facto, o primeiro e segundo réus ameaçavam a falecida C… de que «ficaria só e abandonada», tendo-lhe causado sério receio e procuraram  sempre evitar que a mesma contactasse com outros membros da família e amigos. Na verdade, estes réus aproveitaram-se da debilidade psicológica e da fragilidade emocional da falecida, bem como do facto de ter uma instrução limitada para conseguirem os seus intentos, nomeadamente, que o testamento apenas contemplasse as pessoas que eles pretendiam, ao contrário da própria vontade da testadora que sempre manifestou a intenção de auxiliar e ajudar todos os membros da sua família e sempre quis que todos «se dessem bem entre si», o que facilmente se constata não resultar do testamento lavrado.
Conforme se constata, a fls. 78-79 (despacho proferido em 19.12.2018), o tribunal recorrido identificou como objeto do litígio – aferir da incapacidade sucessória, por indignidade, dos réus em razão do dolo ou coação que terão induzido a autora da sucessão a fazer o testamento objeto dos autos. Os temas da prova enunciados foram os seguintes:«A Saber se os Réus assustaram e amedrontaram a falecida dizendo-lhe que ficaria sozinha, abandonada e sem ninguém se não fizesse, a seu favor, o testamento objeto dos autos.  B E se foi, por isso, que a falecida  fez, nos seus precisos termos, o testamento em causa nesta ação.  C Saber se existia uma relação de dependência e autoridade da falecida para com os ora Réus».
Estes temas da prova incidiram sobre a matéria factual controvertida alegada nos artigos 9º a 49º da petição inicial aperfeiçoada (remetida em 24.05.2018).
Na decisão recorrida concluiu-se pela improcedência da ação, do seguinte modo:
«Efetivamente, o art. 2034.º, al. c), do Código Civil prevê que carece de capacidade sucessória, por motivo de indignidade, designadamente, aquele que, por meio de dolo ou coação, induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu.
Veja-se que se considera feita sob coação moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração - artigo 255 n.º 1 do Código Civil. Termos em que, dois dos pressupostos da declaração de nulidade negocial por coação moral, são a ameaça e a ilicitude da ameaça; sendo, ainda certo que não constitui coação a ameaça do exercício normal de um direito – cf. art. 255 n.º 3 do Código Civil.
Nestes termos, poderíamos discutir se a invocada ameaça de que C… ficaria só e abandonada (pelos Réus) se trataria de puro exercício de uma livre faculdade individual do sujeito ameaçador (dos Réus, no caso) ou de ato ilícito (diverso de imoral ou ingrato).
Contudo, dada a manifesta falta de prova da factualidade invocada pelo Autor como fundamento da pretensão que formula, a ação não pode deixar de, sem mais, improceder, o que se decidirá; pois que não se apurou a existência de qualquer ameaça dos Réus à testadora C… e, assim, que tenha sido o receio de concretização de tal ameaça a conduzir à elaboração do testamento de 2017, nos termos em que este se mostra outorgado, contrário à real vontade da testadora. 
Improcederá, assim, a ação.»
Tal como é enfatizado por Abrantes Geraldes («Sentença Cível», Apêndice II, obra citada, pág. 611), na enunciação dos factos provados e não provados, «o juiz deve adequar-se às circunstâncias e exigências do caso, tendo em conta designadamente as virtualidades que decorram de uma maior concentração da factualidade apurada ou de uma maior discriminação ou pormenorização que, além de antecipar a resolução de problemas de integração jurídica, possa ainda obviar a eventuais impugnações sustentadas em argumentos de pendor formal em redor da delimitação do que constitui matéria de facto ou matéria de direito (….) Esta opção não significa obviamente que seja admissível doravante a assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto. Mas, para além de revelar o artificialismo a que conduzia a anterior solução, em que se pretendia a todo o custo essa separação, tem subjacente a admissibilidade de uma metodologia em que, com mais maleabilidade, se faça o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito.»
Na resposta ao recurso do primeiro e segundo apelados, assinala-se a este respeito que o autor alegou genericamente que a testadora C… beneficiou os RR. em testamento por ter sido por eles atemorizada, mas omitiu qual deles fez o quê, onde, quando e com que intuito, incumprindo assim o ónus de alegação imposto no n.º 1 do artigo 5.º do Código de Processo Civil de que «às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas».
Poder-se-á, no entanto, questionar se estão em causa factos instrumentais, que resultam da instrução da causa, e que devam ser considerados pelo juiz, ao abrigo dos seus poderes de cognição, tal como é estipulado no artigo 5º nº 2 al. a) do C.P.C.
Ora, após a audição integral dos testemunhos que foram transcritos nas alegações de recurso, não se vislumbra que contenham factos concretizadores/instrumentais que devam ser considerados.
Por um lado, as testemunhas não referem que, nos últimos tempos, a falecida  andava amedrontada ou receosa, mas sim que andava deprimida e com tendência para se isolar. Indagada se a mesma confiava no Sr. E..(primeiro réu), M… responde afirmativamente, depois de esclarecer que «há certas coisas que não se pode explicar» (21.39). Mais adiante refere que a «D. M… [quinta ré] ia lá todos os dias, ia à farmácia, dava-lhe banhinho…muito carinho» (39.36) e «não era pessoa para amedrontar ninguém» (40.25). A… que convivia regularmente com a falecida, também esclareceu que «não era uma pessoa fácil, era muito complicada» (25.01), «se estava no salão comigo, achava que eu não podia falar com mais ninguém» (25.26), era «possessiva» (25.40), «no dia 28 de Fevereiro ligou-me», «eu alterei o testamento todo e vou surpreender muita gente». Esta testemunha, à pergunta se a falecida se dava bem com a irmã C.. (segunda ré), responde que sim (10.15).
Consequentemente, a solução jurídica equacionada pelo tribunal recorrido não merece qualquer censura, sufragando-se ainda as apreciações feitas na motivação da decisão fáctica sobre a falta de prova da alegada divergência entre a vontade real da testadora e o que consta do testamento de 2017, por acrescer a «circunstância de se ter apurado que C… outorgara noutro testamento além dos dois alegados pelo Autor (o de 2000 e o de 2017) outorgado em 2009 (cf. certidão de fls. 26 - verso a 29); sendo certo que neste último já ocorre manifestação de vontade em termos bem diversos do conteúdo do testamento de 2000; de tal forma que o testamento de 2017 já não encerra grandes alterações, não se mostrando, contudo, impugnada, pelo Autor, a vontade de C… relativamente a esse documento de 2009, cujo conteúdo é mais próximo do testamento de 2017, do que do testamento de 2000».  
Nesta sequência, entende-se que as conclusões do recurso não merecem qualquer acolhimento.
DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, rejeitando o recurso da impugnação da matéria de facto pelos motivos já indicados, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante, nos termos do artigo 527º nº 1 e nº 2 do C.P.C.

Lisboa, 02.04.2020,
Ana Paula Albarran Carvalho
Gabriela Fátima Marques
Adeodato Brotas