Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
265/21.4S6LSB.L1-9
Relator: SIMONE PEREIRA
Descritores: PROVA POR PRESUNÇÃO
CRIME DE BURLA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I.–A formação da convicção do Tribunal pode não assentar exclusivamente em meios de prova directos, mas igualmente em processos lógicos assentes nas regras de experiência comum, que permitem deduzir de um facto conhecido ou outro desconhecido – presunção judicial1 [a prova por presunções constitui um meio de prova legalmente previsto no artigo 349º do Código Civil, traduzindo-se em “(…) ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”, que não está afastada no âmbito do processo penal];

II.–Pratica o crime de burla o agente que, visando a obtenção para si de dinheiro a que não tinha direito, publicou (ou mandou publicar), no site de leilões online que explora, uma venda em leilão que tinha por objeto o veículo automóvel, que nunca pretendeu vender, fazendo, com isso, crer ao ofendido que, de facto, o iria vender, determinando-o a transferir quantia monetária.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO


No Juízo Local Criminal da Amadora, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, no âmbito do processo comum nº 265/21.4S6LSB, o arguido AA, devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento, tendo a final sido proferida Sentença que decidiu condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217º, n.º 1 e 218º, n.º 1do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de €5 (cinco euros), no total de € 1.000 (mil euros), a que correspondem subsidiariamente 133 dias de prisão, bem como a pagar ao Estado Português a quantia de 12.160,00 € (doze mil cento e sessenta euros), nos termos do artigo 110º nº 1 alínea b) do Código Penal.

Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
I.–Carece de correção a sentença, nos factos provados sob os pontos 2.1.1 e 2.1.2, porquanto na ausência de concreta identificação de quem procedeu a publicação do anúncio no site de leilões designado por ..., não pode o Tribunal simplesmente afirmar que foi o Arguido, ou alguém a seu mando.
II.–Ademais que o nome indicado no ponto 2.1.1 da sentença não corresponde ao nome nem à identificação do Arguido.
III.–Carece igualmente de correção a sentença nos factos provados 2.1.6.
IV.–Não existe prova (testemunhal ou documental) que ateste que o Arguido forneceu ao Ofendido o IBAN ..., do ....
V.–Destarte, não pode o Tribunal afirmar que foi o Arguido que forneceu o IBAN ao Ofendido;
VI.–O Arguido nunca falou ou contactou o Ofendido, de acordo com as afirmações proferidas pelo Ofendido em sede de audiência de discussão e julgamento.
VII.–Sendo, portanto, evidente a contradição entre a prova produzida e a matéria dada como provada em sede de sentença.
VIII.–Os factos 2.1.1, 2.1.2 e 2.1.6 erradamente indicados como provados na sentença proferida, devem passar a constar em factos não provados.
IX.–O Tribunal a quo violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artº 127' do CPP.
X.–Os factos dados como provados na sentença, ao arrepio da prova produzida e gravada em audiência de julgamento, determinam a nulidade da sentença.
XI.–Constata-se a ausência de elementos essenciais ao preenchimento do crime de Burla, - ardil intencionalmente criado pelo Arguido com intuito de retirar benefício patrimonial.
XII.–Não se provou que o Arguido logrou convencer o Ofendido a praticar acto contrario à sua vontade.
Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser considerada nula a sentença proferida com as demais e ínsitas consequências,
Deve ser dado provimento ao presente recurso em consequência, ser o recorrente absolvido do crime de burla, p.e p. pelo art. 217 n.º 1 e art. 218.º n.º 1 ambos do Código Penal em que foi condenado.
*

O recurso foi admitido por despacho proferido a 13 de Novembro de 2023 [referência citius 147439949], a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
*

A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao recurso no sentido do seu não provimento, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1º-O arguido AA, foi condenado, pela prática, em autoria material, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de €5 (cinco euros), no total de €1.000 (mil euros), a que correspondem subsidiariamente 133 (cento e trinta e três) dias de prisão, bem como a pagar ao Estado Português a referida quantia de 12.160,00 € (doze mil cento e sessenta euros), nos termos do artigo 110º nº 1 alínea b) do Código Penal.
2º-Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, o qual versa sobre a matéria de facto e de direito (artº 428º do Código do Processo Penal).
3º-O recorrente impugna os pontos 2.1.1. 2.1.2, e 2.1.6 da matéria de facto dada como provada, por considerar que os mesmos não resultaram provados.
4º-O recorrente alega ainda, que o Tribunal a quo violou o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artº 127º do Código de Processo Penal.
5º-Entende ainda o recorrente, que não resultaram provados todos os elementos essenciais do tipo legal do crime de burla.
6º-O recorrente, quanto aos pontos concretos da matéria de facto que pretende seja dada como não provada, omitiu quer a sua transcrição, quer a mera indicação das concretamente passagens da prova gravada, em que se funda a sua impugnação, ao arrepio do disposto no arto 412º, nos 3, 4 e 6 do Código do Processo Penal, o que deverá conduzir à rejeição do recurso.
7º-Assim não se entendendo, decorre da motivação da decisão de facto que, a convicção do Tribunal a quo se formou com base na avaliação e ponderação de todos os meios de prova produzidos ou analisados em audiência de julgamento e ainda na prova documental, nomeadamente bancária, junta aos autos, pelo que foi corretamente fixada a matéria de facto provada, não existindo qualquer contradição entre a prova produzida e a matéria dada como provada em sede de sentença, e não merecendo a mesma, qualquer reparo.
8º-O mecanismo de impugnação da prova previsto no artº 412º, nºs 3 e 4 do Código do Processo Penal, tem por escopo a correção de erros manifestos de julgamento, que resultem ostensivamente da prova produzida.
9º-A Douta decisão recorrida, mostra-se conforme às regras e princípios do direito probatório, sendo consistente e coerente, não apenas com todos os elementos probatórios carreados para o processo, como ainda, à luz das regras da normalidade e da experiência da vida, pelo não violou o princípio da livre apreciação da prova, nem qualquer outro, não padecendo de qualquer vício.
10º-A atuação do recorrente preencheu todos os elementos essenciais do tipo legal do crime de burla, previstos no artº 217º, nº 1 e 218º nº 1 do Código Penal.
11º-O recorrente induziu em erro a vítima, sobre factos que astuciosamente provocou, ao ter publicado (ou alguém a seu mando), no site de leilões online, um leilão que tinha por objeto um veículo automóvel, do qual sabia não ser proprietário, enganando, deste modo, o ofendido, que licitou a referida viatura, por estar convencido da veracidade e seriedade do negócio.
12º-Desse erro, resultou a prática de factos que prejudicaram patrimonialmente a vítima, que se traduziram na transferência bancária por efetuada pelo ofendido, da quantia de de 12.160,00 € (doze mil cento e sessenta euros), para a conta do ..., unicamente titulada pelo recorrente.
13º-O recorrente teve intenção de obter um enriquecimento ilegítimo, o que logrou conseguir, locupletando-se com a referida quantia.
14º-O recorrente atuou com dolo.
15º-Tudo sopesado, não merece a Douta sentença recorrida qualquer reparo, devendo ser confirmada.
*

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, pela Exmª. Procuradora-Geral Adjunta foi lavrado parecer, no qual, em síntese, declara aderir à argumentação apresentada pelo Ministério Público em 1ª instância e conclui pela improcedência do recurso.

Cumprido o preceituado no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, o recorrente não apresentou resposta.

No exame preliminar considerou-se que o objecto do recurso interposto deveria ser conhecido em conferência (uma vez que não foi requerida a realização da audiência e não é necessário proceder à renovação da prova nos termos do artigo 430º do Código de Processo Penal).

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
**

II–FUNDAMENTAÇÃO

II.1.-Delimitação do objecto do recurso

Constitui jurisprudência assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP2, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).3

Assim, atentas as conclusões do recorrente, as questões colocadas à apreciação deste tribunal são as seguintes:
i)-Se ocorreu errada decisão quanto à matéria de facto, em concreto relativamente aos pontos 2.1.1., 2.1.2 e 2.1.6 da matéria de facto provada; e
ii)-Se estão preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do crime de burla.
*

Para efeitos de apreciação das questões enunciadas, cumpre convocar a factualidade assente nos autos.

II.2.-Factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª Instância (transcrição):

«(…) II- Fundamentação:

2.1.- Matéria de facto provada:

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
2.1.1.-Desde data não concretamente apurada, mas seguramente anterior a 13/04/2021, que o arguido AA explora um site de leilões online, denominado ..., gizando um plano que tinha por objetivo a obtenção de dinheiro a que não tinha direito, induzindo em erro terceiros.
2.1.2.-No cumprimento de tal plano, o arguido, ou alguém a seu mando, publicou, no referido site, um leilão que tinha por objeto um veículo automóvel com a matrícula ..-TA-...
2.1.3.-A propriedade do referido veículo encontra-se registada desde .../.../2017 a favor de .....
2.1.4.-No dia 13/04/2021, BB visualizou os referidos site e leilão, tendo licitado, porquanto pretendia adquirir o referido veículo.
2.1.5.-Na sequência das licitações que efetuou, BB foi informado de que lhe havia sido atribuído o referido veículo, devendo, por isso, efetuar o pagamento devido, no valor de 12.160€ (doze mil cento e sessenta euros).
2.1.6.-Para concretização do pagamento, o arguido forneceu ao ofendido o ..., do ..., titulada pelo arguido.
2.1.7.-Acreditando no que lhe era proposto, no dia 14/04/2021, BB efetuou a respetiva transferência bancária, num total de 12.160€ (doze mil cento e sessenta euros), conforme indicações que lhe foram transmitidas pelo arguido.
2.1.8.-E, deste modo, no dia 14/04/2021, o arguido recebeu da conta bancária IBAN ..., do ..., por si titulada, a quantia de 12.160€ (doze mil cento e sessenta euros), transferida no mesmo dia pelo ofendido, quantia que fez sua.
2.1.9.-Todavia, após tal recebimento o arguido não mais contactou o ofendido.
2.1.10.-Aquando da publicação do anúncio e do leilão em causa, o arguido não tinha a intenção de transferir a propriedade do veículo anunciado, nem qualquer outro, tratando-se de veículo que não tinha ou que não pretendia vender.
2.1.11.-O arguido sabia que, se não tivesse publicado o leilão referido e não tivesse criado a convicção da veracidade daquilo que anunciava, o ofendido não teria transferido qualquer quantia, como fez, obtendo, desta forma, para si, uma vantagem patrimonial indevida, em detrimento da situação patrimonial do ofendido.
2.1.12.-Ao agir da forma supra descrita, agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de determinar o ofendido a realizar o pagamento da quantia total de 12.160€ (doze mil cento e sessenta euros), a favor do arguido, como efetivamente fez, o que este conseguiu através da publicação do referido anúncio de leilão, criado para esse efeito bem sabendo que não teria a propriedade do respetivo veículo para transmitir ao ofendido.
2.1.13.-Agiu, ainda, o arguido consciente de que, com a sua conduta, causaria ao ofendido um prejuízo correspondente ao valor de venda do veículo leiloado, correspondente a 12.160€ (doze mil cento e sessenta euros), resultado que, aliás, pretendia.
2.1.14.-Em todas as condutas acima descritas o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as mesmas eram proibidas e punidas por lei.
2.1.15.-O arguido é solteiro, tem um filho maior de idade e mora com a companheira.
2.1.16.-Aufere cerca de €1.200 por mês e a sua companheira está desempregada.
2.1.17.-Mora em casa arrendada pagando €400 de renda mensal.
2.1.18.-Tem o 6° ano de escolaridade.

2.1.19.-Tem antecedentes criminais conforme resulta do CRC junto aos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido, tendo já sido condenado em:
- pena de multa no âmbito do processo n.°547/03.7GDALM, pela prática do crime de condução de veiculo sem habilitação legal a 19.07.2003, por sentença de 13.06.2007, transitada em julgado a 23.06.2007;
- pena de multa no âmbito do processo n.°583/02.GCALM, pela prática do crime de desobediência a 11.05.2002, por sentença de 16.01.2006, transitada em julgado a 20.02.2006;
- pena de multa no âmbito do processo n.°661/03.9TAALM, pela prática do crime de condução de veiculo sem habilitação legal a 07.09.2001, por sentença de 10.02.2006, transitada em julgado a 22.02.2006;
- pena de prisão suspensa no âmbito do processo n.° 226/13.7PFSXL, pela prática do crime de furto qualificado a 16.02.2013, por sentença de 04.03.2013, transitada em julgado a 12.04.2013;
- pena de prisão suspensa com regime de prova no âmbito do processo n.°990/13.3PFSXL, pela prática do crime de furto qualificado a 09.09.2013, por sentença de 27.09.2013, transitada em julgado a 19.06.2014;
- pena de prisão no âmbito do processo n.°2125/14.6PAALM, pela prática do crime de condução de perigosa de veiculo rodoviário e do crime de roubo a 02.12.2014, por acórdão de 02.11.2015, transitado em julgado a 02.12.2015;
- pena de multa e pena acessória no âmbito do processo n.°101/14.8SPLSB, pela prática do crime de condução de veiculo em estado de embriaguez a 03.09.2014, por sentença de 03.12.2015, transitada em julgado a 21.12.2015;
- pena de prisão no âmbito do processo n.°1345/14.8PAALM, pela prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário a 31.07.2014, por sentença de 12.02.2016, transitada em julgado a 14.03.2016;
- pena de prisão suspensa com regime de prova no âmbito do processo n.°315/14.0T9TVD, pela prática do crime de furto a 01.09.2014, por sentença de 28.02.2016, transitada em julgado a 29.03.2016.
*

2.2.–Matéria de facto não provada:
Não existem factos não provados.
(fim de transcrição).

II.3.–Motivação da decisão de facto (transcrição):

«2.3.–Motivação da decisão de facto:
A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação e ponderação de todos os meios de prova produzidos ou analisados em audiência de julgamento, nomeadamente:
- Nas declarações do arguido que descreveu as suas condições económicas e sociais.
Quanto aos factos o arguido negou a prática dos mesmos, admitindo apenas que a referida quantia foi depositada na sua conta, sendo que ele pensou que se tratava de pagamentos que lhe eram devidos por obras que tinha realizado.
- No depoimento da testemunha BB, a qual de forma clara e segura referiu o modo como tomou conhecimento do anuncio na internet e como como se informou acerca das condições do modo de pagamento do veiculo. Referiu que fez o pagamento por transferência para o IBAN que lhe foi indicado. Sendo que quanto a esta matéria referiu que não falou com o arguido.
Explicou ainda as diligências que fez e como chegou à conclusão que não ia receber o carro.
Teve-se ainda em conta:
- Cópias de fls. 7 a 13;
- Resultados de pesquisa de fls. 18 e 19;
- Documentação bancária de fls. 27 a 54, 60, 69 a 72 e 112 a 135 e ref. CITIUS 225 618 60;
- No Certificado de Registo Criminal, junto aos autos, no que concerne aos antecedentes criminais do arguido.
- Assim face à prova produzida em julgamento em conjugação com os elementos constantes dos autos, não teve o Tribunal quaisquer dúvidas em como o arguido praticou os factos que lhes eram imputados na acusação.
- Desde logo dos documentos juntos aos autos resulta desde logo comprovada a existência do pagamento efectuado pelo queixoso e que está associado à conta do arguido.
- Por outro lado o depoimento do ofendido, mostrou-se bastante claro e detalhado quanto à forma como tomou conhecimento do anúncio e dos contactos efectuados, e o que o levou a acreditar na veracidade da situação de modo a que efectuasse o referido pagamento, pelo que dúvidas não teve o Tribunal em valorar tal depoimento.
- Para além disso é de referir que nestes casos é prática corrente utilizar-se uma terceira pessoa para efectuar os contactos com a vitima, de modo a ser mais difícil de apurar a verdadeira identidade dos autores dos factos.
- Por outro lado, o arguido não apresentou uma razão plausível para justificar o depósito daquela quantia na sua conta e o porquê de achar que a mesma lhe pertencia.
- Pelo que face a tais elementos dúvidas então não restam em como o arguido praticou os factos que lhe eram imputados.
- Sendo que resulta claro das regras de experiência que o arguido agiu de forma livre e consciente, com o propósito de obter benefícios a que não tinha direito, à custa do correspondente prejuízo do património do ofendido, o que conseguiu, mesmo sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.».

II.4 –Apreciação dos fundamentos do recurso

Como ponto prévio à análise das questões suscitadas no presente recurso, impõem-se três notas prévias:
1ª)-Como correctamente se assinala no recurso, verifica-se existir um manifesto lapso de escrita na identificação do arguido no ponto 2.1.1. da matéria de facto provada, se detecta na simples leitura dos factos provados.
Tal lapso já constava da acusação e, não obstante ter sido ordenada a sua rectificação, por despacho proferido em audiência de julgamento realizada no dia 21.09.2023, a pedido do próprio arguido, o mesmo foi transposto novamente para a decisão ora recorrida.
Tratando-se de manifesto erro de escrita na transcrição do nome do arguido, impõe-se a respectiva rectificação, ao abrigo do princípio da livre rectificabilidade dos lapsos cometidos em actos jurídicos que se retira dos artigos 249º e 295º do Código Civil, processualmente cristalizado, entre o mais, no nº 1 do artigo 146º e no artigo 614º do Código de Processo Civil, bem como na alínea b) do nº 1 do artigo 380º do Código de Processo Penal.
Assim, rectifica-se o ponto 2.1.1., substituindo o nome “BB”por “AA”.
*

2ª)-O recorrente invoca a “nulidade da sentença”, por divergência entre “os factos dados como provados na sentença” e a “prova produzida e gravada em audiência de julgamento”.
Como sabemos, a divergência entre a prova produzida e os factos dados por provados, configura um vício decisório, distinto da nulidade da sentença.
Tendo em conta o fundamento aduzido, o que, verdadeiramente, o recorrente censura é a forma como o tribunal a quo apreciou a prova [o seu juízo probatório], diversa da sua convicção pessoal sobre a prova produzida, o que se prende com a impugnação da matéria de facto, que apreciaremos infra, e não é confundível com a existência de nulidade da sentença.

O art.º 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, por remissão para o art.º 374.º, que define os requisitos da sentença, comina com nulidade a omissão, entre outras, da fundamentação que, nos termos do n.º 2 do citado art.º 374.º, é composta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Constitui entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência que o normativo legal em apreço, que visa garantir o desiderato constitucional da necessidade de fundamentação das decisões judiciais (art. 205º da CRP), como meio indispensável ao alcance de um processo equitativo e não arbitrário, penaliza apenas a falta absoluta de fundamentação da decisão, não padecendo do vício da nulidade aquela que contém uma fundamentação deficiente, medíocre ou mesma errada.
Compulsada a decisão recorrida, conclui-se, sem esforço, não padecer a mesma de qualquer das nulidades enumeradas no artigo 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
*

3ª)-Resulta do recurso apresentado que o recorrente pretende sindicar a apreciação da prova, através da impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
Não obstante as conclusões de recurso serem parcas no tocante ao cumprimento das exigências de especificação impostas no n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal para o recurso amplo sobre a matéria de facto [como dá nota a Exma Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer], da sua conjugação com os termos e fundamentos constantes da motivação resultam identificados os segmentos fácticos que o recorrente entende terem sido incorretamente julgados e as concretas provas, com indicação suficiente das respetivas passagens (e transcrição das mesmas), em que assenta a sua discordância relativamente ao juízo probatório feito em 1ª instância (cfr. n.ºs 12 e 13 da motivação), pelo que, sem necessidade de mais delongas, nomeadamente da que adviria da formulação de convite de aperfeiçoamento, passaremos a apreciar a impugnação da matéria de facto.

Impugnação da matéria de facto

[In] Verificação de erro de julgamento
Da conjugação do regime legal vigente em matéria de apreciação e valoração da prova, consagrado no artigo 127.º do Cód. Proc. Penal, com as regras processuais previstas no art. 412º, nº 3 do CPP para a impugnação da matéria de facto, resulta que a tarefa do Tribunal de recurso, se reconduz a aferir se o Tribunal “a quo” apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma regra extraída de casos similares), não extraindo conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do Tribunal a quo, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular.
O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação.
Com efeito, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros»4.
Com as limitações que decorrem da falta de mediação e da impugnação parcelar dos factos, o Tribunal de recurso somente poderá alterar a decisão de facto quando se “imponha” (usando a expressão legal), ou seja, quando o processo decisório de reconstituição do acontecer histórico da 1.ª Instância se fundou fora da razoabilidade em juízos destituídos de lógica, ou distintos dos padrões da experiência comum.
No recurso sob apreciação, alega o recorrente que não foi feita prova “da concreta identificação de quem procedeu à publicação do anúncio no site de leilões designado por ...”, nem que tenha sido o arguido a fornecer “ao Ofendido o IBAN”, pelo que, em seu entender, “os factos 2.1.1., 2.1.2. e 2.1.6.” foram “erradamente indicados como provados na sentença proferida”, devendo “passar a constar em factos não provados”.
Ouvido o registo integral da prova produzida em audiência de julgamento (declarações do arguido e depoimento do ofendido BB), entende-se não se impor decisão diversa da proferida pela 1.ª instância.
Embora o ofendido não tenha identificado o arguido como tendo sido a pessoa que publicou o leilão no site em causa e quem lhe forneceu o IBAN, e o arguido tenha negado estes factos, o juízo formulado pelo Juiz a quo, alicerçado em processo dedutivo, não merece qualquer reparo, sendo o caminho percorrido absolutamente plausível e consentâneo com critérios da lógica e da experiência comum, e com suporte suficiente na prova produzida.
Analisada a exposição motivacional do Tribunal recorrido, verifica-se que este analisou critica e conjugadamente os diversos meios de prova, com recurso e em total compatibilidade e adequação com as regras de experiência comum. Nenhuma conclusão ou dedução do tribunal se apresenta desconforme às regras ditadas pela experiência comum e todas elas se contém dentro dos limites da prova produzida.
Como sabemos, a formação da convicção do Tribunal, pode não assentar exclusivamente em meios de prova directos mas igualmente em processos lógicos assentes nas regras de experiência comum, que permitem deduzir de um facto conhecido ou outro desconhecido – presunção judicial5 [a prova por presunções constitui um meio de prova legalmente previsto no artigo 349º do Código Civil, traduzindo-se em “(…) ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”,que não está afastada no âmbito do processo penal].
Como vem sendo afirmado, de forma sedimentada, pela jurisprudência, a estrutura lógica desta tipologia de presunção caracteriza-se pela conexão de factos através de um juízo de probabilidade que, por sua vez, se apoia na experiência, de maneira tal que a prova de um envolve a prova de outro. A presunção consiste, pois, em alcançar a prova de determinado facto (facto presumido), partindo de um ou outros factos básicos demonstrados por outros meios de prova, que por apresentarem uma ligação estreita com o facto presumido, permitem dar igualmente como probatoriamente demonstrado o facto presumido.

Como se escreveu no Acórdão do STJ de 05.07.2007, Processo n.º 07P2279, o «juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova direta do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstancias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção.
Por isso que, em sede de apreciação, a prova (…) pode ser objeto de formulação de deduções ou induções, bem como da correção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência.
Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP) e o art. 349.º do C. Civil prescreve que presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º do CPP).»

No caso em análise, como bem refere a decisão recorrida, o depoimento do ofendido BB, “mostrou-se bastante claro e detalhado quanto à forma como tomou conhecimento do anúncio e dos contactos efetuados” (todos por email ou por mensagens de WhatsApp, estas trocadas com uma pessoa que se identificou com um nome feminino) e as razões que o levaram “a acreditar na veracidade da situação de modo a que efetuasse o referido pagamento”, sendo, nestes casos, “prática corrente utilizar-se uma terceira pessoa para efetuar os contactos com a vítima, de modo a ser mais difícil apurar a verdadeira identidade dos autores dos factos” ou o próprio identificar-se com outro nome. No “Termo de Arrematação” junto aos autos consta o nome “AA” como “representante financeiro” nomeado pela ..., seguido dos dados para pagamento, com a indicação do IBAN, e com uma assinatura aposta no lugar do “Responsável ...: AA”. A transferência bancária foi efetuada para a conta com o indicado IBAN, conforme documentação bancária junta. Acima de tudo, o arguido foi o beneficiário da transferência bancária da quantia em causa, sem que, conforme refere a decisão recorrida, tenha apresentado “uma razão plausível para justificar o depósito daquela quantia na sua conta e o porquê de achar que a mesma lhe pertencia”.
A análise do conjunto da prova produzida aponta, inequivocamente, no sentido do juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido, não se registando qualquer desvio das regras da lógica e da experiência comum, não havendo, por isso, fundamento para qualquer alteração da matéria de facto, não podendo proceder a pretensão do recorrente de impor a sua convicção pessoal face à prova produzida em detrimento da convicção do tribunal.
Assim sendo, nada há a censurar à decisão do tribunal a quo ao ter julgado provados os factos descritos nos pontos 2.1.1., 2.1.2. e 2.1.6 dos factos provados.

Enquadramento jurídico dos factos:

Invoca ainda o recorrente “a ausência de elementos essenciais ao preenchimento do crime de burla- ardil intencionalmente criado pelo Arguido com intuito de retirar benefício patrimoniais”.
Mais uma vez, inexiste fundamento para que tal pretensão do recorrente proceda.
Com efeito, dada a factualidade apurada, é inequívoco que o arguido/recorrente praticou o crime de burla que lhe foi imputado, já que, visando a obtenção para si de dinheiro a que não tinha direito, publicou (ou mandou publicar), no site de leilões online que explora, uma venda em leilão que tinha por objeto o veículo automóvel identificado nos autos, assim agindo com a malícia adequada a fazer crer que, de facto, iria vender o referido veículo, o que criou um engano no ofendido, que ficou convencido da veracidade do anunciado, determinando-o a transferir a quantia de € 12.160,00 para a conta bancária do arguido, obtendo este para si uma vantagem patrimonial indevida, pois, ao contrário do que ardilosamente fez crer ao ofendido, nunca pretendeu vender-lhe qualquer veículo, causando-lhe, deste modo, um prejuízo patrimonial em montante equivalente, tendo o arguido atuado com conhecimento e vontade de realização da globalidade dos referidos factos.
Deste modo, nenhuma censura merece o tribunal a quo ao ter condenado o recorrente pela prática do crime de burla.
Improcede, pois, o recurso.

III.DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes que integram a 9.ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa acordam em corrigir o facto descrito sob o ponto 2.1.1. da factualidade provada, substituindo o nome “BB” por “AA”, e em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se em 4 UCs a taxa de justiça devida- artigos 513º e 514º, ambos do Código de Processo Penal, e artigo 8.º, n.º 9, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique.



Lisboa, 21 de Março de 2024



(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)



Simone Almeida Pereira - (Relatora)
Nuno Matos - (1º Adjunto)
Maria João Lopes - (2ª Adjunta)




1.-Veja-se por todos o Acórdão do S. T.J de 17.3.2004 in www.dgsi.pt
2.-Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995
3.-Cf. neste sentido, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, disponíveis em www.dgsi.pt.
4.-Veja-se por todos o Acórdão do S. T.J de 17.3.2024 in www.dgsi.pt