Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17082/21.4T8LSB.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: CERTIFICADOS DE AFORRO
REGIME LEGAL DE PRESCRIÇÃO
HERDEIRO
CONHECIMENTO DO DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-A prescrição tem como fundamento sancionar a inércia do titular do direito em exercê-lo. Assim, o curso do prazo de prescrição apenas se pode iniciar quando o titular do direito esteja em condições de o exercer, como decorre do art.º 306.º n.º1 do Código Civil.
II. O prazo de prescrição de 10 anos referido no n.º 1 do art.º 7.º do DL n.º 122/2003, de 04-05, inicia-se no momento em que o herdeiro teve conhecimento do óbito do titular dos certificados de aforro e da existência destes, porquanto só então aquele está em condições de exercer o direito ali previsto.
III-Não impende sobre o herdeiro do titular dos certificados de aforro o dever de indagar junto do IGCP, sobre a titularidade dos mesmos.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

 I-RELATÓRIO
J… intentou ação declarativa de condenação, sob forma de processo comum, contra:
 Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública – IGCP, E.P.E., peticionando o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre os certificados de aforro correspondentes a 915 unidades da série A e a 1000 unidades da série B, por óbito de seu pai, M…, bem como o pagamento do correspondente valor global, de €15.939,52, acrescido dos respetivos juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alega, para tanto, em suma, que apenas tomou conhecimento da existência dos referidos certificados de aforro em data posterior ao falecimento do seu pai e que, ao tentar obter o seu pagamento junto da ré, lhe foi indicado que os valores em causa se encontravam prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública por não terem sido reclamados pelos herdeiros dentro do prazo legalmente estipulado para o efeito.
Regularmente citada, a Ré apresentou contestação na qual se defendeu por exceção alegando a prescrição do direito invocado com fundamento na não reclamação dos valores ora peticionados dentro do prazo de 10 anos após o falecimento do aforrista, bem como alega que, a ser reconhecido o direito do autor, o valor a restituir será apenas de €11.203,73, por ser esse o seu valor, à data do óbito. Apresentou, ainda, defesa por impugnação.
Notificado para o efeito, o Autor respondeu às exceções deduzidas, pugnando pela sua improcedência.
Decorridos todos os trâmites legais, foi realizado o julgamento e seguidamente proferida sentença que julgou a ação totalmente procedente, por provada e, em consequência, condenou a ré Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública – IGCP, E.P.E. no pagamento ao autor J… do montante global de €15.939,52, acrescido dos respetivos juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, contados desde 15/07/2021 até efetivo e integral pagamento.
Inconformada com a sentença proferida, a Ré interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1.O presente recurso é interposto da sentença proferida em 21.12.2021 (ref.ª 410677013), nos termos da qual se julgou a presente “ação totalmente procedente, por provada” e, em consequência, condenou a Ré “no pagamento ao autor ….do montante global de €15.939,52 (quinze mil, novecentos e trinta e nove euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescido dos respetivos juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, contados desde 15/07/2021 até efetivo e integral pagamento” (a “Sentença Recorrida”).
2. De modo sumário, na Sentença Recorrida considerou-se “a data do conhecimento da qualidade de aforrista como relevante para o início da contagem do prazo de prescrição”, sendo que, “no caso dos autos, o mesmo ocorreu apenas em dezembro de 2018”, razão pela qual “não se considera prescrito o direito do autor de requerer o seu reembolso por parte da réu”.
3.Sucede, porém, que a Recorrente não se pode conformar com tal decisão porquanto não concorda com a interpretação jurídica e solução de direito adotadas pelo Tribunal a quo, impondo-se, conforme se verá infra, a revogação total da Sentença Recorrida e a sua substituição por outra nos termos da qual se absolva a Recorrente do pedido contra si formulado.
4. Com efeito, é entendimento da ora Recorrente que a Sentença Recorrida incorreu numa errada interpretação e aplicação do regime jurídico da prescrição especialmente previsto para os certificados de aforro in casu [nomeadamente, do artigo 7.º do do Regime dos Certificados de Aforro Série B, dos artigos 18.º e 19.º do Regime dos Certificados de Aforro Série A e dos artigos 9.º e 306.º, n.º 1 do CC, regras jurídicas estas que se mostram violadas].
5. Outrossim, os referidos preceitos, devidamente interpretados e aplicados, implicariam a procedência da exceção perentória de prescrição do direito do Autor, ora Recorrido, importando, por conseguinte, a absolvição total da Ré, ora Recorrente, do pedido por aquele formulado.
6. A interpretação adotada pelo Tribunal a quo – além de não encontrar o mínimo de correspondência na letra da lei – carece de fundamentação que a suporte, não se compaginando com a ratio legis subjacente ao instituto da prescrição objetiva, em geral, muito menos com a subjacente a estes preceitos legais, em especial. Não pode, por isso, a Recorrente conformar-se com tal entendimento.
7. É que a legislação aplicável neste âmbito é clara no sentido de estabelecer que a contagem do aludido prazo de prescrição se inicia a partir da data do óbito do titular dos certificados de aforro, conforme veremos em detalhe infra, tendo este prazo de prescrição um carácter eminentemente objetivo cuja contagem é espoletada por um evento objetivo (neste caso, o óbito do aforrista), não estando dependente de qualquer estado de subjetividade (como  o conhecimento do herdeiro da existência de certificados).
8. Assim, tendo em conta que o óbito do aforrista ocorreu em 01.01.2007, o referido prazo de 10 anos contado da data de tal facto, há muito que decorreu, não tendo o Autor, ora Recorrido, requerido a transmissão dos certificados de aforro titulados pelos seu pai para o seu nome de forma tempestiva, pois que só o fez em dezembro de 2018 (cfr. artigo 29.º da Contestação), ou seja, já depois de decorrido tal prazo de prescrição.
9. De igual modo, o direito ao reembolso do respetivo valor de que o Recorrido se arroga titular nesta ação encontrava-se à data da sua instauração (em 12.07.2021) há muito prescrito, prescrição que devia ter sido declarada pelo Tribunal a quo em sede de sentença, algo que não logrou fazer, em virtude da errada interpretação e valoração jurídica do prazo de prescrição (e do momento inicial da sua contagem) em causa nos presentes autos em que caiu.
10. A errada interpretação e aplicação do regime jurídico da prescrição especialmente previsto para os certificados de aforro está patente em diversos segmentos da Sentença Recorrida, oferecendo o Tribunal a quo uma solução jurídica que se mostra absolutamente incorreta, existindo, por isso, várias razões que impõem a revogação da mesma e a sua substituição por outra que considere a ação totalmente improcedente, absolvendo a Recorrente do pedido contra si formulado.
II. DO MÉRITO DO RECURSO: DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO REGIME ESPECIAL DA PRESCRIÇÃO APLICÁVEL AOS CERTIFICADOS DE AFORRO
11. O pedido formulado pelo Autor, ora Recorrido, alicerça-se numa interpretação errada (idêntica à que vem sufragada na Sentença Recorrida) do regime da prescrição previsto especialmente para os certificados de aforro, em concreto, no que toca ao termo inicial do prazo de prescrição consagrado nos artigos 7.º e 18.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B e do Regime dos Certificados de Aforro Série A, respetivamente, segundo a qual tal prazo se inicia com o conhecimento pelo herdeiro (neste caso, pelo Recorrido) da existência de certificados de aforro titulados pelo de cujus.
12. É entendimento da Recorrente, porém, que o alegado direito ao reembolso do valor dos certificados de aforro, outrora titulados pelo pai do Recorrido, se encontrava já prescrito à data em que este requereu a transmissão dos referidos certificados de aforro para o seu nome (em dezembro de 2018),
13. E, bem assim, por maioria de razão, à data da propositura da presente ação judicial e, por conseguinte, à data da citação da Recorrente, pelo decurso do prazo de prescrição de 10 anos previsto naqueles regimes especiais, porquanto o óbito do aforrista ocorreu em 01.01.2007, sendo certo que o referido prazo de prescrição é desencadeado por tal facto, contando-se da data em que o mesmo se verifica.
14. Ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, o prazo de prescrição de 10 anos previsto naqueles regimes especiais inicia-se a partir da data do óbito do titular dos certificados de aforro, conforme veremos em detalhe infra, e não do conhecimento da existência desses certificados, tendo este prazo de prescrição um carácter eminentemente objetivo cuja contagem é espoletada por um evento objetivo (neste caso, o óbito do aforrista), não estando dependente de qualquer estado de subjetividade (como o conhecimento do herdeiro da existência de certificados).
15. De facto, a prescrição aplicável in casu é uma prescrição objetiva, impondo-se por razões de segurança jurídica, com o objetivo de evitar que a contraparte fique indefinidamente refém da proactividade do titular dodireito(nestecaso,dos herdeiros), o qual pode nunca vir a ser exercido.
16. Com efeito, além dos demais objetivos já descritos, este instituto procura também evitar que situações de indefinição que se prolonguem no tempo, criando fundadas e legítimas expectativas, sejam atacadas por quem não agiu no devido tempo.
17. Por outras palavras, a referida prescrição objetiva pretende proteger asituaçãojurídica em que se encontram os certificados de aforro decorrido que esteja o período de 10 anos após o óbito do aforrista. Encontrando-se prescritos, os valores de reembolso de tais certificados reverterão para o Fundo de Regularização de Dívida Publica, conforme previsto no n.º 2 do artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B e no artigo 19.º do Regime dos Certificados de Aforro Série A - uma situação que se cristalizou no tempo e que não pode ser posta em causa por herdeiros que não agiram atempadamente, que não lograram evitar que tal prescrição operasse, e que agora tentam atacar uma situação já consolidada no passado (in casu, em 01.01.2017, quando operou a prescrição).
18. Acresce que o prazo de 10 anos é um prazo perfeitamente razoável e suficientemente longo para que os herdeiros de titulares de certificados de aforro, como o Recorrido, possam tomar conhecimento de todos os bens que integram a herança e, assim, exercer o direito previsto no artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B e no artigo 18.º do Regime dos Certificados de Aforro Série A, o que o Recorrido não logrou fazer em tempo.
Vejamos em detalhe,
A (ERRADA) REMISSÃO PARA “AS DEMAIS DISPOSIÇÕES EM VIGOR EM RELAÇÃO À PRESCRIÇÃO” E A IRRELEVÂNCIA DO CONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DOS CERTIFICADOS DE AFORRO COMO FACTO DESENCADEANTE DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO
19. O Tribunal a quo crê (erroneamente) que a remissão para “as demais disposições em vigor em relação à prescrição” (a que fazem referência os artigos 7.º e 19.º dos Regimes dos Certificados de Aforro Série A e B) abrange também o termo inicial do prazo de prescrição de 10 anos,
20. E com esta remissão (erradamente feita) concede o Tribunal a quo uma relevância ao conhecimento do direito (i.e., ao conhecimento da existência dos certificados de aforro), para efeitos de início de contagem do prazo de prescrição dos autos, que não existe (nem pode existir como se explanará mais adiante).
21. Sucede que tal raciocínio vertido na Sentença Recorrida não pode proceder por padecer de falhas de hermenêutica na sua génese.
22. É certo que aquelas disposições legais contêm uma remissão legal para “as demais disposições em vigor relativas à prescrição”, prescrevendo assim a subsidiariedade do direito civil como critério de integração de lacunas.Tal significa apenas que é de aplicar o regime geral da prescrição em tudo o que não esteja particularmente disciplinado na legislação especial dedicada aos certificados de aforro.
23. Contudo, para que tal remissão pudesse operar seria necessário a verificação de uma verdadeira lacuna no que ao termo inicial do prazo de prescrição diz respeito, o que não sucede in casu.
22.Na verdade, existirá uma lacuna “quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pela ordem jurídica global - ou melhor: não contêm a resposta a uma questão jurídica” 20 – não é este o caso.
25. Com efeito, o termo inicial do prazo de prescrição ora em apreço encontra-se bem vincado naquelas disposições, sendo claro e evidente que é a data do óbito do aforrista o momento relevante para efeitos de contagem de tal prazo, não existindo qualquer lacuna a este respeito que deva ser integrada com recurso àquela norma remissiva.
26. Tal norma remissiva existe para regular situações para as quais os referidos preceitos não preveem uma regulamentação específica. Por outras palavras, não prevendo a lei especial (dos certificados de aforro) nada em específico quanto a determinada situação relacionada com a prescrição, serão aplicáveis as demais disposições (i.e. as previstas nas disposições gerais da lei civil).
27. É o que sucede com as causas de suspensão e interrupção do prazo de prescrição -não existe na lei especial uma disposição específica que as regulamente, pelo que tal lacuna terá de ser resolvida com base no exercício remissivo, sendo então aplicáveis as disposições previstas nos termos gerais da lei civil (em concreto, os artigos 318.º e seguintes do CC).
28. Ora, não é o que sucede com o caso em apreço: o momento a partir do qual se inicia o prazo de prescrição de 10 anos para os herdeiros (neste caso, para o Recorrido) exercerem o direito previsto nos artigos 7.º e 18.º dos Regimes dos Certificados de Aforro Séries A e B é o óbito do aforrista e tal interpretação resulta clara da letra da lei.
29. É, assim, óbvio que, para resolver a questão essencial enunciada na Sentença Recorrida – “a determinação do termo inicial de contagem do prazo de prescrição” – não é necessário efetuar qualquer remissão para “as demais disposições em vigor relativas à prescrição”, como entende (erroneamente) o Tribunal a quo, bastando antes um simples exercício interpretativo, com base na letra da lei.
30. E, de facto, no âmbito da interpretação da lei, a disposição fundamental a ter emconta é, como se sabe, o artigo 9.º do CC, do qual decorre que, para a determinação do sentido prevalente das normas, deve levar-se em consideração a letra da lei -simultaneamente ponto de partida e limite da interpretação – não podendo efetuar-se uma interpretação que não tenha o mínimo de correspondência naquela – o que ocorre quando, ao invés de se considerar a morte do titular de um certificado de aforro como facto desencadeante do prazo de prescrição, tal como decorre expressamente da letra da lei, se considera como relevante o conhecimento da existência dos certificados de aforro. Tal interpretação não cumpre este requisito da mínima correspondência verbal, sendo por isso violadora do artigo 9.º do CC, bem como dos artigos 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B e 18.º e 19.º do Regime dos Certificados de Aforro Série A.
31. Fica, assim, claro que a remissão legal constante dos artigos 7.º e 19.º dos Regimes dos Certificados de Aforro Séries A e B não abrange o termo inicial do prazo de prescrição neles previsto, o qual vem bem delineado em tais preceitos, não carecendo de qualquer integração com recurso a tal norma remissiva, sendo por demais evidente a improcedência do entendimento sufragado na Sentença Recorrida.
32. Além disso, ainda que operasse uma tal remissão quanto ao termo inicial do prazo de prescrição para as demais disposições em matéria de prescrição, nunca tal remissão seria feita para as regras de prescrição que preveem o conhecimento do direito como facto desencadeante.
33. Com efeito, conhecimento do direito como facto relevante para efeitos de contagem do prazo de prescrição apenas está previsto para casos muito específicos, expressamente consagrados (como sucede nos termos do artigo 498.º, n.º 1 do CC) e não para todo e qualquer caso, não sendo o regime regra em matéria de prescrição, mas antes disposições especiais aplicáveis em situações específicas e que não são análogas à situação dos presentes autos.
34. Também por isso não procede o argumento do Tribunal a quo da relevância do conhecimento do direito (i.e.do conhecimento da existência dos certificados de aforro) como facto desencadeante do prazo de prescrição.
A INÉRCIA (NEGLIGENTE) DO RECORRIDO QUE FOI IGNORADA NA SENTENÇA RECORRIDA E QUE TEM RELEVÂNCIA PARA EFEITOS DE APLICAÇÃO DO REGIME DA PRESCRIÇÃO.A(ERRADA)APLICAÇÃO DO ARTIGO 306.º DO CC
35. Acrescenta, ainda, a Sentença Recorrida que a prescrição é o efeito jurídico/sanção da inércia prolongada do titular do direto no seu exercício, considerando que não existe inércia do Recorrido no exercício do direito que deva ser sancionada na medida em que não se verifica negligência no desconhecimento da existência dos certificados de aforro.
36. Contudo, o que o Tribunal a quo ignora é que é precisamente pela inércia (negligente até) do Recorrido - como se explanará melhor de seguida - que este não tomou conhecimento atempado das cartas que eram enviadas para a morada do seu pai, não tendo (negligentemente) sabido da existência dos certificados de aforro dos autos em tempo e, por conseguinte, não tendo exercido o seu direito tempestivamente.
37. A Recorrente não pode concordar com a conclusão vertida na Sentença Recorrida pois que estamos perante inércia (negligente) quando o Recorrido dispõe de todos os meios para averiguar da existência de certificados de aforro e não o faz, sobretudo num caso em que conhece o passado do pai como aforrista.
38.Com efeito, ficou provado nos autos que eram enviados regularmente extratos das contas-aforro para a morada do aforrista, na qual residia o irmão (até 2012), tendo sido possível ao Recorrido conhecer das mesmas e, consequentemente, conhecer da existência dos certificados de aforro dos autos, durante quase 7 anos em que aquele aí residiu já depois do óbito do seu pai.
39. É também inércia (negligente) quanto o Recorrido não cuida de verificar a caixa de correio do seu pai durante 6 anos (desde 2012, altura em que o seu irmão deixar de residir na morada do aforrista, até 2018, altura em que efetua a limpeza dessa residência).
40. Se tivesse consultado a caixa de correio do seu pai durante esse largo período de 6 anos, teria tido conhecimento atempado das cartas e extratos enviados, como seria exigido a alguém que deve agir com a diligência média de um bonus pater familias. Se não o fez, não tendo seguido um padrão de cautela, análogo ao do homem razoável, então estamos perante uma atuação negligente que deve ser censurada com a aplicação da prescrição.
41. Da mesma forma, conhecendo o passado do pai como aforrista, o referido padrão do bonus pater famílias impunha que também tivesse diligenciado junto dos serviços da Recorrente no sentido de confirmar a existência de eventuais certificados de aforro titulados pelo seu pai, uma vez que, no passado, este tinha tido vários títulos.
42. Ademais, o Tribunal a quo incorreu também em erro de julgamento ao lançar mão do disposto no artigo 306.º do CC onde se prevê que “O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido (…)”, considerando ser “este o segmento que assume relevância nesta relação material controvertida”.
43. No entanto, este é um preceito com caráter meramente supletivo e  que nessa medida é afastado pelo regime especial dos certificados de aforro, atuando apenas em segunda linha, quando nada vem estabelecido quanto à prescrição – como se viu, não é esse o caso dos presentes autos pois que o legislador consagrou um regime especial de prescrição para os certificados de aforro - tal entendimento tem merecido acolhimento pela Jurisprudência dos Tribunais Superiores Portugueses.
44. Por isso, ao invés de se aplicar tal critério (supletivo), é aplicável a solução especialmente prevista nos artigos 7.º e 18.º dos Regimes dos Certificados de aforro Séries A e B, a qual, como se tem vindo a demonstrar à saciedade, determina que o prazo de prescrição de 10 anos inicia a sua contagem da data do óbito do aforrista.
45. Mesmo que se aplicasse o critério previsto no artigo 306.º do CC – o que não se concede, mas por cautela de patrocínio se equaciona –a verdade é que o direito sempre estaria em condições de ser exercido pois, como já alegado em sede de Contestação, o Recorrido podia ter diligenciado junto dos serviços da Recorrente no sentido de obter informação sobre a eventual existência de certificados de aforro, sendo certo que existia um registo central de certificados de aforro através do qual os herdeiros podiam lograr saber acerca da existência dos mesmos.
O (MERAMENTE APARENTE) TRATAMENTO DIFERENCIADO DOS CERTIFICADOS DE AFORRO FACE AOS DEMAIS BENS DA HERANÇA E A VISÃO SISTEMÁTICA DOS PRECEITOS RELATIVOS AOS PRAZOS DE PRESCRIÇÃO
46. Considera ainda o Tribunal a quo que a interpretação da Recorrida (a única correta) implica um tratamento diferenciado dos certificados de aforro face aos restantes bens da herança, na medida em que entende (mais uma vez, erradamente) que a contagem do prazo de prescrição da data do óbito do aforrista pode determinar a prescrição do direito dos herdeiros reclamarem os certificados de aforro ainda antes do decurso do prazo para aceitação da herança.
47. Contudo, tal entendimento também não procede desde logo porque o prazo de prescrição para ambas as situações é o mesmo – 10 anos – e, no presente caso, contado do mesmo momento (01.01.2007), de modo que terminaram ambos na mesma data (i.e. em 01.01.2017). Não se vislumbra qualquer tratamento diferenciado dos certificados de aforro face aos restantes bens da herança a que os herdeiros(neste caso, o Recorrido) têm direito.
48. Foi precisamente a tal “visão sistemática” a que alude o Tribunal a quo que presidiu ao alargamento do prazo de prescrição previsto nos Regimes dos Certificados de Aforro Séries A e B: este prazo estava inicialmente fixado em cinco anos, tendo o Decreto-Lei n.º 122/2002 de 4 de Maio alargado para dez anos para coincidir com o prazo de dez anos previsto para a aceitação da herança, por existir quem considerasse que aquele prazo mais curto (de cinco anos) criava uma desigualdade arbitrária no tratamento das “heranças (ou a parte da herança de uma mesma pessoa) referentes aos certificados de aforro e das heranças (ou a parte da herança) referentes aos demais bens”, pelo facto de colocar os sucessíveis de heranças que integram certificados de aforro na contingência de a aceitarem num prazo mais curto ou de perderem a possibilidade de assegurar a titularidade daqueles 21.
O PRESSUPOSTO ERRADO DE QUE ESTÃO EM CONFRONTO DOIS TIPOS DE INTERESSES –O INTERESSE DO ESTADO VERSUS O INTERESSE DOS HERDEIROS -COMO OBSTÁCULO À CORRETA INTERPRETAÇÃO DAS DISPOSIÇÕES LEGAIS APLICÁVEIS IN CASU
49. O Tribunal a quo faz uma incorreta interpretação das disposições legais aplicáveis in casu, como se tem vindo a demonstrar, também porque parte do pressuposto errado de que estão em confronto dois tipos de interesses – o interesse do Estado versus o interesse dos herdeiros – sufragando que não assiste ao Estado direitos ou interesses que se superiorizem aos direitos ou interesses dos herdeiros.
50. Com o devido respeito, que é muito, não está em causa qualquer interesse do Estado, muito menos da Recorrente, que possa rivalizar com os interesses dos herdeiros, desde logo porque nem um nem outro beneficia da prescrição.
51. É útil esclarecer que o único interesse da Recorrida, na situação dos autos e em todas as outras situações em que estabelece contacto com particulares, é assegurar que cumpre escrupulosamente a lei, não tendo qualquer benefício direto no desfecho da presente ação, qualquer que ele seja.
52. Com efeito,como entidade pública queé, a Recorrente encontra-se vinculada a estritos deveres de legalidade, que procura cumprir de forma absolutamente rigorosa, sem transigências ou concessões.
53. Por outro lado, cumpre frisar que a Recorrente nada tem a ganhar com a invocação da exceção de prescrição e, consequentemente, com a rejeição da pretensão do Recorrido. Isto porque que os valores de reembolso dos certificados de aforro prescritos não revertem a favor daRecorrente nem doEstado,mas antes para o Fundo de Regularização de DívidaPublica,conforme previstono n.º 2 do artigo 7.º do Regime dos Certificados deAforroSérieBenoartigo19.º doRegimedos Certificados deAforro Série A.
54. É de salientar que o Fundo de Regularização de Dívida Publica é um fundo consignado, estando as suas receitas primordialmente afetas à amortização da dívida pública. Significa isto que as receitas geradas em virtude da transferência dos valores de reembolso dos certificados de aforro prescritos têm por finalidade primordial a amortização da dívida pública, de modo que tais valores são utilizados em prol de todos os contribuintes, assim reduzindo o peso daquela.
55. Com efeito, tais valores não são alocados nem ao orçamento da Recorrente nem ao orçamentodeEstado,mas –reitere-se -antes servirãopara amortizar a dívida pública, em benefício de todos os contribuintes, razão pela qual não se vislumbra qualquer interesse do Estado, nem da Recorrente, que se possa sobrepor aos interesses dos herdeiros (em concreto, do Recorrido).
56. A única dicotomia que poderá existir neste âmbito é aquela que põe em confronto os valores de justiça e de segurança, na medida em que, ao consagrar um critério objetivo de contagem do prazo da prescrição - espoletada por um determinado evento/facto jurídico (a morte do aforrista) independentemente de concretos conhecimentos que o titular do direito (o herdeiro) possa ter quanto ao mesmo – optou o legislador por dar primazia à certeza e segurança jurídicas (como sucede em casos de prazos de prescriçãolongos) em detrimento da (in)justiça quese possaverificarnocaso.É, aliás, esse o entendimento que tem vindo a ser vertido em inúmeros acórdãos do Tribunais Superiores Portugueses .
57.O Tribunal a quo faz ainda referência a “uma concordância prática, de acordo com oprincípio da proporcionalidade” para fundamentar a sua tese, esquecendo que é precisamente o princípio da proporcionalidade que está subjacente à fixação de um prazo de prescrição tão alargado como o que aqui se discute.
58. O prazo de 10 anos é considerado – até pelo Tribunal Constitucional - um prazo perfeitamente razoável e suficientemente longo para que os herdeiros de titulares de certificados de aforro, como o Recorrido, possam tomar conhecimento de todos os bens que integram a herança e, assim, exercer o direito previsto nos artigos 7.º e 18.º do Regime dos Certificados de Aforro Séries A e B, o que o Recorrido não logrou fazer em tempo.
59. Por essa razão resulta evidente que o principio da proporcionalidade foi devidamente ponderado pelo legislador no momento em que fixou o prazo de 10 anos a contar da data do óbito do aforrista para que os herdeiros possam exercer o seu direito sobre os certificados de aforro, pelo que, caso não o façam nesse período, deve operar a consequência da prescrição nos termos previstos naquele regime especial, a bem da certeza e da segurança jurídicas que presidiram à criação deste instituto, como se verá em maior detalhe infra. Assim, também por esta via, não procede o entendimento do Tribunal a quo.
O ÓNUS DE INDAGAR OS CONCRETOS BENS DO DE CUJOS QUE INTEGRAM A MASSA DA HERANÇA POR FORMA A PREENCHER, DE FORMA COMPLETA E VERDADEIRA, A RELAÇÃO DE BENS A APRESENTAR À AUTORIDADE TRIBUTÁRIA
60. É ainda sufragado na Sentença Recorrida o entendimento de que não existe qualquer obrigação legal por parte dos herdeiros de averiguar junto da Recorrente a existência de certificados de aforro titulados pelo de cujos. Ao fazer tal afirmação, com o devido respeito, parece que o Tribunal a quo faz tábua rasa da obrigação que impende sobre os herdeiros de apresentarem à Autoridade Tributária declarações e relações de bens corretas e completas, o que passa por levar a cabo certas diligências de investigação.
61. Cumpre, relembrar que, após o óbito do autor da herança (neste caso, aforrista), os herdeiros interessados na herança têm de dar cumprimento a obrigações fiscais declarativas - concretamente, participação do óbito e entrega da relação de bens do de cujus junto da Autoridade Tributária – as quais implicam que os herdeiros sejam obrigados a proceder às diligências necessárias no sentido de tomar conhecimento e declarar a existência (ou não) de produtos de aforro na herança do falecido.
62. Com efeito, os herdeiros têm o ónus de indagar os concretos bens do de cujos que integram a massada herança, por forma a preencher, de forma completa e verdadeira, a relação de bens cuja apresentação à Autoridade Tributária é legalmente exigida.
63. No que respeita, em concreto, aos títulos ou certificados de dívida pública como os certificados de aforro dos autos, impunha-se ao Recorrido ou ao seu irmão, enquanto herdeiros, na sequência do óbito do seu pai, que diligenciassem no sentido de procurar saber se o seu pai era titular de algum produto de aforro bastando, para o efeito, solicitar junto dos serviços da Recorrente a prestação de informações sobre as contas-aforro de que o seu pai fosse (eventualmente) titular, uma vez que, enquanto herdeiros, teriam legitimidade para tal.
64. Podiam o Recorrido ou o seu irmão ter iniciado um processo de habilitação de herdeiros junto dos serviços da Recorrente, através da apresentação de requerimento de transmissão de produtos de aforro, o qual é formalizado através do preenchimento de um impresso próprio disponibilizado pela Recorrente, bastando comprovar o óbito do aforrista (através da apresentação de certidão de óbito) e apresentar documentos de identificação do de cujus (cfr. pontos 13.1, 13.2, 13.4, 13.5, 13.6, 13.8 da Instrução n.º 1/2020 publicada no Diário da República, 2ª série, n.º 53, em 16.03.2020).
65. Resulta assim claro que o Recorrido e o seu irmão tinham maneira de saber da existência dos Certificados de Aforro, pelo que, não tendo cuidado de diligenciar no sentido de obter tal informação, incumpriram um ónus que sobre si impendia.
66. De facto, é o que decorre do artigo 26.º do Código do Imposto de Selo, no qual se prevê um elenco de documentos que devem instruir as participações para transmissão de bens (a serem feitas junto dos serviços de finanças competentes) onde se inclui “Certidão, passada pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários ou pelo Instituto de Gestão do Crédito Público, conforme os casos, da cotação das acções, títulos ou certificados de dívida pública e de outros valores mobiliários ou do valor determinado nos termos do artigo 15.º” (n.º 6, alínea d)) (sublinhado nosso). Além disso, a declaração de imposto de selo dedicada à participação de transmissão de bens, que deve ser entregue junto da Autoridade Tributária, contém um anexo no qual se deve relacionar os “títulos e certificados da dívida pública e outros valores mobiliários”.
67. Caso não diligenciem no sentido apontado, os herdeiros ficam sujeitos às consequências legalmente previstas (a prescrição), constituindo-se, assim, um ónus que recai sobre os mesmos.
DA INADMISSIBILIDADE LEGAL DO CRITÉRIO ADOTADO PELO RECORRIDO PARA A DETERMINAÇÃO DO MONTANTE A REEMBOLSAR,O QUAL FOI (ERRADAMENTE)ACEITE PELO TRIBUNAL A QUO
68. Se se permitisse que o valor a reembolsar fosse aferido com base no critério identificado pelo Autor, ora Recorrido, na Petição Inicial (i.e. “no montante atual”), tal resultaria no reembolso de valores sem limite máximo, que seriam tão mais avultados quanto mais prolongada fosse a inércia dos herdeiros, ou seja, quanto mais tarde os herdeiros decidissem reclamar tais valores – por vezes, já depois de prescrito o seu direito – ao abrigo de uma alegada ignorância sobre a existência dos certificados de aforro, maior o valor que receberiam.
69. É que a inércia dos herdeiros apenas os favorece: enquanto não requererem a transmissão da totalidade das unidades que constituem os certificados de aforro ou o respetivo reembolso, este produto fica a capitalizar, gerando tantos mais juros quanto mais tempo demorarem os herdeiros a exercer o seu direito.
70. O critério apontado pelo Autor, ora Recorrido, para determinação do valor a reembolsar, e que foi aceite pelo Tribunal a quo na Sentença Recorrida, permite que os herdeiros de certificados de aforro beneficiem de uma maior vantagem económica, ilimitada até, desde logo porque a interpretação jurídica acolhida pelo Tribunal a quo de que o prazo de prescrição de 10 anos se inicia apenas com o conhecimento pelo herdeiro da existência dos certificados, possibilita aos herdeiros calcular o momento em que será mais vantajoso virem arguir tal (des)conhecimento. Com o devido respeito, mas tal cenário não pode ocorrer…
 Um tal critério conduz a uma utilização abusiva do instituto da prescrição, já que se traduziria, na prática, na eliminação de qualquer limite máximo ao prazo de reclamação da transmissão das unidades dos certificados de aforro ou do respetivo reembolso.
71. Com efeito, a prescrição neste âmbito não está consagrada para beneficiar os herdeiros e um tal critério permite que estes beneficiem do prazo de prescrição e incentiva à inércia prolongada no tempo: beneficiam mais quanto mais tempo estiverem sem reclamar o reembolso dos certificados de aforro.
72. Donde decorre que o montante a reembolsar tem de ser determinado de forma objetiva e não com base no “valor atual” pois que tal “atualidade” será aquela que os herdeiros escolherem, estando dependente do momento em que decidam reclamar o reembolso – ainda que já depois de prescrito tal direito – e propor a consequente ação judicial ao arrepio das regras jurídicas vigentes.
73. Para este efeito, a determinação do montante a reembolsar aos herdeiros não pode estar dependente do conhecimento da existência dos certificados de aforro nem do subsequente momento da reclamação, momentos que são suscetíveis de manipulação.
74. Deste modo, com o devido respeito, mas andou mal o Tribunal a quo ao aceitar o critério estabelecido pelo Autor, ora Recorrido, na determinação do montante a reembolsar, sem cuidar de efetuar um juízo crítico sobre o mesmo. Tal juízo crítico teria como consequência a aceitação do critério identificado pela Ré, ora Recorrente, na sua Contestação, ou seja, que o (eventual) reembolso se faça em valor nunca superior àquele que estava nas contas do falecido aforrista à data do seu óbito.
75. Por todo o exposto, é certo que na Sentença Recorrida se contemplam interpretações jurídicas desconformes com as regras aplicáveis in casu face ao disposto nos artigos 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B, 18.º e 19.º do Regime dos Certificados de Aforro Série A, 9.º e 306.º, n.º 1 do CC, regras jurídicas estas que se mostram violadas, razão pela qual se impõe a revogação e substituição da Sentença Recorrida por outra que interprete adequadamente tais regras e, por conseguinte, que ofereça a solução jurídica correta, a qual determina a improcedência total da presente ação por se encontrar prescrito o alegado direito do Recorrido, absolvendo-se a Recorrente do pedido contra si formulado.
DA SOLUÇÃO JURÍDICA (CORRETA)APLICÁVEL AO CASO SUB JUDICE
76. Da letra dos artigos 7.º e 18.º dos Regimes dos Certificados de Aforro Séries A e B resulta, de forma muito clara, que os herdeiros do titular de certificados de aforro têm um prazo de 10 anos, a contar da data do óbito deste, para requerer a transmissão da totalidade das unidades que o constituem ou o respetivo reembolso, findo o qual se consideram prescritos.
77. Optou, assim, o legislador por consagrar nesta sede um critério objetivo de contagem do prazo da prescrição, na medida em que a contagem de tal prazo é espoletada por um determinado evento/facto jurídico – a morte do aforrista - independentemente de concretos conhecimentos que o titular do direito (o herdeiro) possa ter quanto ao mesmo.
78. Esta clara opção do legislador, que tem como principal objetivo garantir a certeza e segurança jurídicas, institutos cruciais no procedimento de controlo da prescrição dos produtos aforro, é caracterizada por ter um prazo de prescrição considerado longo.
79. Em face da duplicidade de sistemas de prescrição existentes no nosso ordenamento jurídico – o sistema objetivo assente na verificação de um determinado evento e o sistema subjetivo assente no estado de conhecimento subjetivo do titular do direito -é possível concluir que esta opção do legislador foi uma opção evidentemente consciente e tomada sopesando os prós e os contras de cada sistema e dando primazia à proteção dos valores protegidos por um – neste caso o sistema objetivo – em detrimento do outro (o subjetivo).
80. A propósito da dualidade de sistemas de prescrição, já se pronunciou a Doutrina, os Tribunais Superiores Portugueses e o Conselho Consultivo da PGR no mesmo sentido que vem arguido pela Ré, ora Recorrente, nos presentes autos, ou seja, no sentido de que no instituto da prescrição objetiva, cujo prazo começa a correr independentemente do conhecimento que disso tenha ou possa ter o respetivo titular do direito, domina uma preocupação de segurança jurídica, razão pela qual está previsto para casos com prazos mais longos, como o prazo de 10 anos em causa nos presentes autos.
81. Mas este não é um caso isolado, existindo outros exemplos de prazos de prescrição objetiva como seja o previsto no artigo 498.º, n.º 2 do Código Civil (“CC”), nos termos do qual se prevê um prazo de três anos, a contar do cumprimento, para o exercício do direito de regresso, ou no artigo 329.º, n.º 1 do Código do Trabalho, segundo o qual o direito de exercer o poder disciplinar prescreve um ano após a prática da infração. O instituto da prescrição objetiva não é, como se vê, uma novidade no ordenamento jurídico português, não sendo uma figura jurídica legalmente inadmissível. Aliás, o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a figura da prescrição prevista no artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B, tendo decidido não julgar inconstitucional tal preceito.
82. De facto, um prazo de prescrição assim delineado, como o que está em causa nos presentes autos, é o que melhor se coaduna com exigências de certeza e segurança jurídicas: sem ele, a Recorrente ficaria refém ad eternum de uma atuação dos herdeiros – que poderiam nem vir a reclamar a transmissão dos títulos ou o respetivo reembolso – numa situação de incerteza quanto ao eventual exercício do direito, com as consequências naturais daí advindas com impacto no montante a reembolsar, o que, no limite, teria efeitos (negativos) na gestão da dívida pública, em claro prejuízo de todos os contribuintes.
83. A incerteza gerada pela inércia do titular no exercício do seu direito deve ser combatida com a previsão de um prazo de prescrição objetivo como que vem previsto nos artigo 7.º e 18.º dos Regime dos Certificados de Aforro Série B e Série A, assim se evitando que situações que se prolonguem no tempo, criando expetativas e cristalizando-se, sejam postas em causa pelo titular que não agiu no período de tempo razoável para o efeito.
84. Sucede que o Tribunal a quo não soube distinguir o sistema objetivo do subjetivo na Sentença Recorrida, tendo, por isso, incorrido, mais uma vez, no já mencionado erro de julgamento. O Tribunal a quo posiciona-se do lado da jurisprudência que faz a prescrição depender do conhecimento, o que não está claramente de acordo com o sistema legal.
85. Por outro lado, e dado que não resultou provada nos autos a “impossibilidade de efetuar pesquisas sobre a existência dos certificados de aforro em momento anterior a 2008, estando, portanto, essa possibilidade ao alcance do autor”, cumpre referir que o Recorrido podia, de facto, ter tomado conhecimento desse facto em data bem anterior em virtude da existência de um registo central de certificados de aforro, ainda antes de 2008, e, a partir desse ano, de um registo de acesso público.
86. Com efeito, enquanto bens escriturais nominativos, os certificados de aforro sempre foram sujeitos a registo em nome da pessoa (singular) deles titular, pelo que desde o início da comercialização destes produtos (em 1960) existe um registo de produtos aforro, conforme já alegado em sede de Contestação (cfr. artigos 77.º a 88.º), sendo certo que, a partir de 2008, com a publicação do Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de março, passou a existir o Registo Central de Certificados de Aforro (“RCCA”), com a finalidade de possibilitar a obtenção de informação sobre a existência de certificados de aforro e sobre a identificação do respetivo titular (cfr. artigo 9.º-A aditado por este diploma).
87.Por isso, o Recorrido já estava em condições de conhecer da existência dos mesmos, desde logo porque, como se vê, existia um sistema centralizado com informações atualizadas sobre a existência de tais títulos de dívida ainda antes de 2008, como de resto não vem negado na Sentença Recorrida, pelo que o direito do Recorrido podia já ter sido exercido logo após o óbito do seu pai.
88. A favor da tese sufragada pela R., ora Recorrente, de que o regime legal destes produtos de aforro não faz qualquer apelo ao conhecimento que os herdeiros possam ter (ou não) destes bens, devendo interpretar-se que tal prazo começa a correr da data do óbito do aforrista, está o facto de a inércia dos herdeiros apenas os favorecer: enquanto não requererem a transmissão da totalidade das unidades que constituem os certificados de aforro ou o respetivo reembolso, este produto fica a capitalizar, gerando tantos mais juros quanto mais tempo demorarem os herdeiros a exercer o seu direito.
89. E, sendo o prazo de prescrição tão alargado, tal significaria que um herdeiro poderia, no limite, simplesmente “alegar” a sua ignorância sobre existência dos certificados de aforro e vir reclamar o seu reembolso apenas passados vários anos após o términus do referido prazo de 10 anos, o que, conjugado com a dificuldade que a Recorrente muito provavelmente teria em fazer prova do efetivo conhecimento, por parte do herdeiro, da existência dos certificados de aforro, tornaria o sistema altamente permeável a abusos.
90. Esta interpretação faria com que os herdeiros dos certificados de aforro beneficiassem de uma maior vantagem económica, ilimitada até, já que a interpretação jurídica de que o Recorrido se pretende fazer valer – a qual vem sufragada na Sentença Recorrida - permitiria aos herdeiros calcular o momento em que seria mais vantajoso virem arguir o (des)conhecimento da existência de certificados de aforro.
91. Uma tal interpretação do disposto nos artigos 7.º e 18.º do Regime dos Certificados de Aforro Séries A e B – além de não ter o mínimo de correspondência na letra da lei – é uma interpretação perigosa e suscetível de conduzir a uma utilização abusiva do instituto da prescrição, já que se traduziria, na prática, na eliminação de qualquer limite máximo ao prazo de reclamação da transmissão das unidades dos certificados de aforro ou do respetivo reembolso.
92. No presente caso, de acordo com a interpretação que o Recorrido e o Tribunal a quo sustentam, esta poderia vir a receber juros até dezembro de 2028 pois argumenta que o prazo de 10 anos só pode iniciar a sua contagem da data em que terá alegadamente tomado conhecimento da existência dos certificados de aforro (em dezembro de 2018, conforme entendeu o Tribunal a quo) – ou seja, o Recorrido poderia vir a receber um rendimento adicional de quase 22 anos (!),ou mais, consoante a data que pretendesse alegar como tendo sido o momento em que soube da existência de tais títulos.
93. Com o devido respeito, tal interpretação não pode simplesmente proceder sob pena de se abrir porta a inseguranças e utilizações abusivas e arbitrárias de um instituto jurídico cujo objetivo é exatamente o oposto e que se impõe por razões de certeza e de segurança jurídicas.
94. Por todo o exposto, a única interpretação admissível dos artigos 7.º, n.º 1 do Regime dos Certificados deAforroSérieBedo artigo18.º doRegimedos Certificados deAforro Série A é aquela segundo a qual o prazo de prescrição de 10 anos para os herdeiros do titular de certificados de aforro requererem a transmissão da totalidade das unidades que os constituem ou o respetivo reembolso, se conta a partir da data do óbito do aforrista.
95. Assim sendo, tendo o pai da Recorrido falecido em 01.01.2007, tinha aquele um prazo de 10 anos para requerer a transmissão da totalidade das unidades que constituem os certificados de aforro ou o respetivo reembolso, o qual terminou em 01.01.2017, sem que este tivesse exercido tal direito nesse período nem interrompido por qualquer forma o prazo de prescrição em questão, pelo que o mesmo já se encontrava há muito decorrido à data da instauração da ação pelo Recorrido (12.07.2021) - e, naturalmente, à data da citação da Recorrente (15.07.2021).
96. Adotando a única interpretação correta das normas aplicáveis ao caso sub judice resulta claramente evidente que a presente ação se encontra votada ao manifesto insucesso, porquanto o direito invocado pelo Recorrido se encontra prescrito. Conclui-se, então, que a Sentença Recorrida assentou numa incorreta interpretação jurídica das normas aplicais ao caso em apreço, pelo que, e sempre com o devido respeito, o Tribunal a quo andou mal ao julgar procedente a presente ação por considerar que o direito do Autor, ora Recorrido, não se encontra prescrito. Impunha-se, ao invés, que o Tribunal a quo tivesse absolvido a Ré, ora Recorrida, julgando a presente ação totalmente improcedente.
97. Em face do exposto, a Sentença Recorrida deverá ser revogada e substituída por outra nos termos da qual se declare procedente a exceção de prescrição invocada pela Recorrente, se julgue a ação improcedente e, por conseguinte, se absolva a Recorrente do pedido contra si formulado.
Nas suas contra- alegações o Autor pronuncia-se pela improcedência das conclusões e consequente confirmação da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II-OS FACTOS
Na 1.ª Instância foram dados como provados os seguintes factos:
1.A Ré é uma pessoa coletiva de direito público com natureza empresarial, dotada de autonomia administrativa e financeira, e património próprio, sujeita à tutela e superintendência do membro do Governo responsável pela área das Finanças.
2. O autor nasceu em 19.07.1967 e é filho de M…e de C….
3. C…faleceu em 22.07.1998, no estado de casada com M…, sem deixar testamento nem outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como seus únicos herdeiros, o cônjuge sobrevivo e os filhos, o aqui autor e o seu irmão .
4. M…faleceu intestado e sem qualquer outra disposição de última vontade no dia 01.01.2007, no estado de viúvo de C…a, deixando por únicos herdeiros os seus dois filhos, o aqui autor e o seu irmão mais velho, e cabeça de casal.
5. À data da morte de seu pai, o autor já era casado e vivia de forma independente com a sua esposa e filhos.
6. Apenas o irmão do autor  vivia com o pai.
7. À data do seu óbito, o pai do autor era titular de duas contas aforro, com o n.º 101252 e com o n.º 18884970.
8.Na data do óbito, a conta aforro n.º 101252 era constituída pelos seguintes certificados de aforro da série A, no total de 915 unidades:
a) N.º 191273029-1, emitido em 24-04-1979, composto por 2 unidades; b) N.º 191273031-1, emitido em 24-04-1979, composto por 5 unidades; c) N.º 191432324-1, emitido em 02-01-1980, composto por 3 unidades; d) N.º 191432328-1, emitido em 02-01-1980, composto por 20 unidades; e) N.º 191432330-1, emitido em 02-01-1980, composto por 400 unidades; f) N.º 191432327-1, emitido em 02-01-1980, composto por 5 unidades; g) N.º 191754042-1, emitido em 19-01-1981, composto por 400 unidades; h) N.º 191754040-1, emitido em 19-01-1981, composto por 20 unidades; i) N.º 192311767-1, emitido em 10-02-1982, composto por 25 unidades; j) N.º 192757955-1, emitido em 06-10-1982, composto por 5 unidades; k) N.º 192757956-1, emitido em 06-10-1982, composto por 30 unidades.
9. Na mesma data, a conta aforro n.º 18884970 era constituída pelo certificado de aforro da série B, com o n.º 70468109-1, emitido em 19-09-1996, composto por 1000 unidades.
10. Foi realizada a comunicação do óbito às finanças e a subsequente partilha dos bens em 05.04.2008, tendo em conta o património conhecido de M….
11. Na referida partilha foi atribuída ao irmão do autor, a casa e respetivo recheio, sita no …., no Porto.
12. Após o falecimento do pai, o irmão do autor continuou a residir na casa e manteve o quarto que foi dos pais no estado em que se encontrava.
13. Em 2012, foi diagnosticado a M.. cancro do intestino, concretamente, adenocarcinoma do sigmóide/recto alto, tendo sido submetido a cirurgia extrativa.
14. Durante 6 anos, o irmão do autor foi submetido a diversos tratamentos e cirurgias por conta da sua doença oncológica.
15. No dia 17.12.2018, M…a faleceu intestado e sem qualquer outra disposição de última vontade, no estado de solteiro e sem descendentes, deixando como seu único e universal herdeiro o aqui autor.
16.No período entre o diagnóstico da doença e o seu falecimento, M… passou a ficar quase em permanência em casa do autor.
17. Além de passar largos períodos internado por conta dos tratamentos e cirurgias.
18. Após a morte do irmão, o autor decidiu pôr à venda a casa em que aquele e os seus pais habitaram.
19. Após a morte do irmão, o autor procedeu a uma operação de limpeza da referida casa, durante a qual encontrou, entre a última correspondência do falecido irmão, uma carta ainda fechada do IGCP, E.P.E., datada de 01/10/2018.
20. Tal carta fazia referência aos certificados de aforro da série A, os quais, à data ali indicada, valiam €10.234,16.
21. Na mesma ocasião, foi encontrada pela esposa do autor, dentro de uma gaveta da cómoda do quarto do pai deste, documentação referente aos certificados de aforro.
22. Em data não concretamente apurada, mas em Dezembro de 2018, o autor dirigiu-se à estação de correios de Matosinhos e pediu informações sobre os certificados de aforro em causa.
23. Por carta datada de 22.01.2019, a ré informou que, relativamente aos títulos constantes das contas aforro em causa: «os valores reclamados se encontram prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública desde 01/01/2017 por não terem sido reclamados pelos herdeiros dentro do prazo legalmente estipulado para o efeito, ou seja, 10 anos após o falecimento do Aforrista».
24. Em resposta, o autor fez uma exposição dirigida à ré na qual referiu apenas ter tido conhecimento dos mesmos em Janeiro de 2019.
25. Em 31.05.2019, a ré respondeu reiterando a sua primeira comunicação.
26. Atualmente, o valor global dos certificados de aforro em causa é de €15.939,52, sendo €10.811,33 referentes às 915 unidades dos certificados de aforro da série A e €5.128,19 referentes às 1000 unidades dos certificados de aforro da série B.
27. M… optou por receber extratos das suas duas contas aforro na morada que comunicou ao IGCP: Campo 24 de Agosto, n.º 185 A – Casa 8, 4300-505 Porto.
28. O IGCP nunca recebeu dos CTT qualquer devolução relativa aos extratos enviados para a morada do aforrista falecido.
29. Na sequência de protocolo celebrado entre o IGCP e o Instituto de Registos e Notariado (IRN), no ano de 2012, a ré passou a cruzar regularmente a informação constante da sua base de dados de aforristas com a informação constante da base de dados de óbitos do IRN.
30. Foi nestas circunstâncias que a ré tomou conhecimento do óbito ocorrido em 01.01.2007 do seu aforrista, M….
31. Na posse desta informação, em 23.05.2012, a ré procedeu à imobilização da conta aforro n.º 18884970 (certificados de aforro série B) titulada por M….
32. O certificado de aforro da série B que constava da referida conta tinha como movimentador designado pelo titular aforrista, C…, esposa do aforrista e mãe do autor.
33. Em 23/08/2016, já depois do IGCP ter recebido a informação do IRN sobre o óbito do seu aforrista e ter imobilizado a conta aforro, a ré enviou uma carta dirigida aos «herdeiros de M….s», para a morada que possuía, isto é, …Porto, dando conhecimento a «eventuais herdeiros» da existência de produtos de aforro em nome do falecido, prazos e formalidades necessárias ao exercício dos seus direitos, a qual foi devolvida com a indicação “não atendeu”.
34. Em 18.04.2017, a ré transferiu o saldo da conta aforro n.º 18884970 para o Fundo de Regularização da Dívida Pública (adiante FRDP), no valor de €4.841,65.
35. Após o pedido de informação apresentado pelo autor em dezembro de 2018, a ré conseguiu associar ao aforrista falecido, M…, também a conta aforro n.º 101252, conta esta que tinha sido aberta em 24.04.1979, não sendo, nessa data, exigido NIF ou número de identificação civil para a subscrição dos certificados.
36. A conta aforro n.º 101252 era constituída por 11 (onze) subscrições de certificados de aforro da série A, num total de 915 unidades, sendo que à data do óbito do titular aforrista o valor da mesma era de €7.486,27.
37. A conta aforro n.º 101252 tinha como movimentadora de todas as 11 subscrições, C….
38. Na conta aforro n.º 101252 (certificados de aforro da série A) do falecido aforrista nunca houve qualquer registo de resgate de subscrições.
39. Desde 29.10.1976 que o autor tem uma conta aforro, aberta pelo seu pai, a qual foi integrada com outra conta mais recente em 31.12.2018.
40. Em 06.08.1993 e 02.02.1994 o autor resgatou duas subscrições de certificados de aforro da conta aforro 18884970 titulada pelo seu pai, correspondendo à totalidade dos certificados detidos por aquele naquela data.
41. O autor convenceu-se de que a referida conta aforro tinha sido encerrada com o último levantamento.
42. Aquando do falecimento do seu irmão, o autor procurou saber se o mesmo ainda tinha a sua conta aforro, a qual também havia sido criada pelo pai.
Com relevância para a boa decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:
À data do óbito do pai do autor, em 1 de Janeiro de 2007, não existia ainda o registo central de certificados de aforro para que os herdeiros lograssem obter informação acerca da existência dos mesmos.
III-O DIREITO
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, a única questão a resolver consiste em saber se o prazo de 10 anos fixado para os herdeiros do titular de certificados de aforro requererem a transmissão da totalidade das unidades que os constituem ou o respetivo reembolso, se conta a partir da data do óbito do aforrista ou a partir da data do conhecimento por parte do herdeiro do aforrista da existência desses certificados.
Os certificados de aforro constituem uma das formas de representação da dívida pública direta do Estado, conforme resulta do art. 11.º, n.º 1, alínea d) da Lei-Quadro 7/98, de 3 de fevereiro, que estabelece o Regime Geral de Emissão e Gestão da Dívida Pública.
Os primeiros certificados de aforro, correspondentes à Série A, foram criados em 1960, através do Decreto-Lei nº 43453, de 30 de dezembro de 1960, tendo em vista «(…) estimular o espírito de previdência», criando-se «uma nova forma de representação da dívida pública através dos chamados certificados de aforro, destinados a conceder uma aplicação remuneradora aos pequenos capitais, sem que estejam sujeitos às oscilações do mercado de títulos».
Em relação aos certificados de aforro da série A importa sublinhar o disposto nos artigos 18.º e 19.º do DL 43 454, de 30 de dezembro de 1960, à luz das alterações introduzidas pelo DL 122/2002 de 4 de maio e DL 47/2008 de 13 de março.
Determina o art.º 18.º que, em consequência da morte do titular de um certificado de aforro, dentro do prazo de 10 anos, os seus herdeiros podem requerer a transmissão da totalidade das unidades que o constituem ou o seu reembolso, pelo valor que o mesmo tenha à data em que o reembolso seja autorizado.
Por sua vez, dispõe o art. 19.º que, findo o aludido prazo de 10 anos, os valores representados pelos respetivos certificados de aforro, se consideram prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública (FRDP). Determina, também, este preceito a aplicabilidade ao caso das demais disposições vigentes referentes ao instituto da prescrição.
No que se reporta aos certificados de aforro emitidos sob a série B, os mesmos foram criados através do DL 172-B/86, de 30 de junho (Regime Jurídico dos Certificados de Aforro da Série B) e adaptados como parte de um dos «objetivos fundamentais da política económica e financeira do Governo» que consistia no estímulo à poupança, especialmente em relação ao aforro privado.
Releva, no caso vertente, o disposto no art. 7.º do Regime Jurídico dos Certificados de Aforro da Série B, com as alterações introduzidas pelo DL 122/2002, de 04 de maio e pelo DL 47/2008, de 13 de março que é idêntico ao já referido a propósito da série A, ou seja, por morte do titular de um certificado de aforro, nasce na esfera jurídica dos seus herdeiros o direito de requerer, no prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem ou o respetivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data da autorização do mesmo. Determina, também, que findo aquele prazo o valor correspondente aos certificados se considera prescrito a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública (FRDP), «sendo no entanto, aplicáveis ao caso as demais disposições em vigor relativas à prescrição».
Conforme determinado pelo art. 10.º, n.º 3 do DL 122/2002, de 4 de maio, com as alterações introduzidas pelo já referido DL 47/2008, de 13 de março, o controlo da titularidade dos certificados de aforro, bem como dos prazos de prescrição da sua transmissão ou reembolso por morte do titular compete ao IGCP, ora réu.
Antes das alterações a estes regimes, operadas em 2008, dispunham os mesmos artigos que o prazo de prescrição aplicável era de 5 anos e não de 10, tendo-se, portanto, verificado um alargamento do prazo prescricional considerado aplicável ao caso vertente.
A questão essencial para a decisão do presente litígio reside na determinação do termo inicial de contagem desse prazo actualmente de 10 anos: desde a data do óbito ou desde a data do conhecimento que o herdeiro teve da existência dos certificados?
Para o efeito, é necessário apreciar os termos da remissão para «as demais disposições em vigor relativas à prescrição» no sentido de apurar se o conhecimento da existência dos certificados de aforro tem influência no início da contagem do prazo de prescrição ou se, por outro lado, basta o conhecimento do falecimento do aforrista.
Nos termos do disposto no art.º 306º, nº1, do Código Civil, «O prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo de prescrição.»
A propósito do início do prazo de prescrição afirma Menezes Cordeiro[1], o seguinte: «(1) Pelo sistema objetivo, o prazo começa a correr logo que o direito possa ser exercido ou melhor [296º e 297º, b)]: no dia seguinte, já que o próprio dia não se conta. E isso independentemente de o titular ter conhecimento da sua existência ou dispor de meios para o exercer. Este sistema era tradicional. As injustiças a que pode dar azo são compensadas pelo facto de comportar prazos longos e de jogar como o sub - instituto da suspensão da prescrição.
(2)Pelo sistema subjetivo, o prazo prescricional só se inicia quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito. Postula, rem regra, prazos curtos.
(3).–
O Código Civil optou, como regra, pelo sistema objetivo: 306º/1. (…)
Todavia, nos artigos 482º (prescrição do direito à restituição do enriquecimento) e 498º (prescrição do direito à indemnização), adota-se o sistema subjetivo: a prescrição só se inicia a contar do momento em que o credor tenha conhecimento do direito que lhe compete e (no caso do enriquecimento) da pessoa do responsável.»
Em parecer elaborado a propósito desta questão, votado em 14.4.2011, o Conselho Consultivo da PGR concluiu que: «O prazo de dez anos, estabelecido no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, para os herdeiros do titular de certificados de aforro requererem a transmissão da totalidade das unidades que os constituem ou o respetivo reembolso, sob pena de prescrição a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública, prevista no n.º 2 da mesma disposição, deve contar-se a partir da data do falecimento do titular aforrador, em conformidade com a regra acolhida no artigo 306.º, n.º 1 – 1.ª parte, do Código Civil[2]
Contudo, a esta posição que é a defendida nas alegações do presente recurso pelo Apelante, contrapõe-se uma outra que corresponde aquela que é defendida na sentença recorrida, no sentido de que o início do prazo de prescrição só ocorre a partir do momento em que os herdeiros têm conhecimento de que o de cujus era titular de certificados de aforro.
Neste sentido decidiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-11-2005[3], afirmando:
«I- Fundamento específico da prescrição é a negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período legalmente estabelecido, a qual faz presumir ou a renúncia ao direito ou, pelo menos, torna aquele indigno de proteção jurídica, a inércia negligente.
II- Ninguém pode exercer um direito que não conhece ter, que não sabe que lhe assiste. Se o desconhece e o prazo se escoou não se pode verdadeiramente falar de inércia (há apenas decurso dum lapso de tempo) e, menos ainda, de negligência, sendo que pela prescrição se sanciona a inércia negligente do titular do direito.
III-
Não pode dizer-se que haja negligência da parte do titular dum direito em exercitá-lo enquanto ele o não pode fazer valer por causas objetivas, isto é, inerentes à condição do mesmo direito e na hipótese de o direito já ser exercitável, só pode ser impedido por motivos excecionais, que são as causas suspensivas da prescrição.
IV-
As expressões «conhecimento do direito que lhe compete» (CC 482 e 498-1) e ‘poder o direito ser exercido’ (CC 306-1) traduzem o mesmo princípio que informa o instituto da prescrição, que aí se afasta do da caducidade.
V- Dispondo o art. 7 do dec-lei 172-B/86, de 30.06 que ‘por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem ... (nº1) e que ‘findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respetivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição’ (nº 2), a contagem do prazo prescricional só se inicia com o conhecimento da morte do titular (facto neutro) e de que ele era titular de certificados de aforro.»[4]
Mais recentemente o Supremo Tribunal de Justiça decidiu no mesmo sentido, por acórdão de 08-01-2019[5]:
«I - A prescrição assenta no desvalor da inércia do titular de um direito no seu exercício e implica a afetação da sua eficácia; porém, o curso do prazo de prescrição apenas se pode iniciar quando o titular do direito esteja em condições de o exercer.
II -
O prazo de 10 anos a que aludia o n.º 1 do art. 7.º do DL n.º 122/2003, de 04-05, inicia o seu decurso no momento em que o herdeiro teve conhecimento do decesso do titular dos certificados de aforro e da existência destes, porquanto só então aquele está em condições de exercer o direito ali previsto.
III -
Demonstrando-se que a recorrida apenas teve conhecimento de que a sua falecida mãe era titular de certificados de aforro em 01-05-2015 e que, em 11-06-2015, requereu ao recorrente o seu reembolso, é de concluir pela improcedência da exceção perentória da prescrição, tanto mais que inexistia, à data do óbito, o Registo Central de Certificados de Aforro e que, em todo o caso, não impende sobre o cabeça de casal o dever de indagar, junto do IGCP, sobre a titularidade de certificados de aforro.»
Também neste sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão datado de 14-09-2017[6]:
“É de prescrição o prazo estabelecido, relativamente ao resgate dos certificados de aforro, no artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio.
–Não tendo os herdeiros acesso à existência, localização e titularidade dos investimentos financeiros de pessoa falecida, não pode iniciar-se o prazo de prescrição nos termos do artigo 306.º, n.º 1, do Código Civil.”
No caso tratado no supra citado acórdão, o óbito da aforrista ocorrera em 2002 e o conhecimento por parte da sua herdeira da existência dos certificados de aforro apenas ocorreu em 2014, ou seja, o caso apresenta contornos muito semelhantes relativamente ao caso que ora nos ocupa.
Tal como a sentença recorrida, sufragamos este segundo entendimento e que tem sido aquele que tem orientado a Jurisprudência do STJ.
Desde logo e como resulta do acórdão do STJ de 08-01-2019, “ao cabeça de casal não está imposta, em qualquer disposição legal, a obrigatoriedade de diligenciar, antes de apresentar a relação de bens nas Finanças, junto do IGCP para saber da eventual existência de certificados de aforro, nem o facto de não diligenciar se pode considerar como comportamento negligente”. No caso em apreço, não obstante se ter provado que “em 06.08.1993 e 02.02.1994 o autor resgatou duas subscrições de certificados de aforro da conta aforro 18884970 titulada pelo seu pai, correspondendo à totalidade dos certificados detidos por aquele naquela data” tal não se considera gerar uma obrigação acrescida ao Autor no sentido de indagar se não teria sido criada outra conta. Na verdade, “41. O autor convenceu-se de que a referida conta aforro tinha sido encerrada com o último levantamento”.
Por outro lado, como se refere no voto de vencido de Paulo Dá Mesquita, anexo ao Parecer do Conselho Consultivo da PGR, supra mencionado:
«Como se destacou nesse aresto [Acórdão do Tribunal Constitucional nº 541/04], (…) «os certificados de aforro conferem direitos patrimoniais aos respetivos titulares, consubstanciando a aplicação de “poupança(s) das famílias” integrados no quadro de emissão e gestão da dívida pública, mas não evidenciam, por esse facto, qualquer especificidade relativamente aos demais bens que constituem o património dos sujeitos no que se refere ao aspeto do regime agora em questão, isto é, à transmissão de tais bens por morte do respetivo titular. Assim, não se divisa nenhuma razão, decorrente da natureza dos certificados de aforro, que legitime o diferente tratamento relativamente ao prazo geral de caducidade do direito de aceitar a herança». Na verdade, tendo em conta o disposto no art.º 2059.º n.º1 do Código Civil, se entendêssemos que o prazo de dez anos de prescrição dos certificados de aforro se deveria contar a partir do momento da morte do titular, poderia acontecer que essa prescrição ocorresse antes de decorrido o prazo de aceitação da herança previsto naquele artigo.
Assim, justifica-se inteiramente o argumento utilizado segundo o qual a interpretação sistemática das normas em causa aponta igualmente para a posição que vimos defendendo.[7]
Por fim, tal como se refere naquele acórdão do TRL “ a interpretação que propugnamos, na senda da maioria da jurisprudência, é a que garante uma concordância prática de acordo com o princípio da proporcionalidade, entre os interesses dos herdeiros do titular dos certificados de aforro e a apelante. Na verdade, sancionando o instituto da prescrição a inércia do titular do direito, só se pode falar de inércia perante uma realidade conhecida e não perante o desconhecido: não se reage a uma realidade desconhecida. Só se reage perante a aquisição do conhecimento dos pressupostos do direito a exercer”.
Por fim, pretende o Apelante que no caso de não ser julgada procedente a prescrição invocada, o montante a reembolsar seja calculado com base naquele que existia nas contas do falecido aforrista, à data do seu óbito. Ora, afigura-se-nos que tal pretensão não tem fundamento legal. Decorre do disposto nos artigos 18.º  do DL 43 454 de 30 de Dezembro de 1960 e art.º 7.º do Regime Jurídico dos Certificados de Aforro da Série B  que a data relevante para a sua determinação é a da autorização do reembolso.
Improcedem, pois, as conclusões de recurso também quanto a esta questão.

IV-DECISÃO
Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o recurso e, por consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.

Lisboa, 23-06-2022
Maria de Deus Correia
Maria Teresa Pardal
Anabela Calafate
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[1] Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Almedina, 2020, p. 887.
[2] Porém , com voto de vencido de Paulo Dá Mesquita.
[3]  P. 05A3169, disponível em www.dgsi.pt
[4] Negrito nosso.
[5] Processo 25635/15.3T8LSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Processo n.º16519/15.6T8LSB, disponível em www.dgsi.pt
[7] Neste sentido, também decidiu  o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-07-2020, Processo 5354/18.0T8LSB-7, disponível em www.dgsi.pt