Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4011/21.4T8LRS.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: CONVENÇÃO ANTENUPCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.A proibição, inserida no n.º 2 do artigo 1699.º do Código Civil, de estipulação da comunicabilidade dos bens referidos no n.º 1 do artigo 1722.º apenas vincula o nubente que tenha filhos.

II.O nubente que não tem filhos pode estipular a comunicabilidade dos seus referidos bens, sendo válida a convenção antenupcial em que o faça.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.Relatório


«AA», autora na presente ação declarativa que move a «BB», notificada da sentença proferida em 11 de outubro de 2023, que julgou a ação totalmente improcedente, e com essa sentença não se conformando, interpôs o presente recurso.

A autora intentou a ação contra o réu pedindo que se declare a nulidade da convenção antenupcial por contrária ao regime imperativo do artigo 1699º n.º 2 em conjugação com o artigo 1722º n.º 1 alínea a), ambos do CC e em consequência ser promovido o cancelamento do registo da convenção antenupcial outorgada entre nubentes a …2005.
Para tanto e em síntese, alegou:
- Autora e réu casaram-se em …2005 (assento de casamento junto com a p.i. e certidão de casamento juntos pelo réu com a sua contestação) e divorciaram-se por sentença de …2018, transitada em julgado … mesmo ano (assento de casamento junto com a p.i.);
Tiveram um filho, «CC», nascido a …2008;
- Tinham celebrado convenção antenupcial em …2005, pela qual adotaram o regime da comunhão de adquiridos, convencionando, todavia, que passaria a ser considerado como bem comum do casal a fração autónoma designada pelas letras “…”, destinada a habitação, sita na Rua … Lisboa, descrita na CRP de Lisboa sob o n.º …17, com o artigo matricial urbano …06;
- À data da convenção, a descrita fração autónoma era bem próprio e exclusivo da autora, que o tinha comprado por escritura pública de …2004;
- O réu tem dois filhos de relacionamentos anteriores;
- Quando celebraram a convenção antenupcial, desconheciam por completo o impedimento legal ao convencionado derivado da anterior paternidade do réu.

Citado, o réu contestou alegando que, não tendo a autora filhos à data do casamento, não havia impedimento à estipulação de que o seu bem próprio fosse considerado como comum; apenas o nubente com filhos à data do casamento está impedido de, por via de convenção antenupcial, tornar comuns os seus bens próprios.

Findos os articulados, foi proferido saneador-sentença, julgando a ação totalmente improcedente.

A autora não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«I.– Tem a presente ação origem no facto de entender a Recorrente que a convenção antenupcial se encontra ferida de nulidade por força do disposto nos arts. 1699.º n.º 2 e 1722.º n.º 1 a) do CC.
II.– Todavia, a questão suscitada pelo Tribunal a quo, “é a de se saber se o regime previsto nos preceitos legais atrás citados se aplica apenas quando o proprietário do bem próprio é o nubente que já tem filhos na data da celebração da convenção ou se se aplica sempre que um dos nubentes já tenha filhos, independentemente de ser ele o proprietário do bem considerado próprio” (cfr. sentença proferida).
III.– Recordemos o disposto no n.º 2 do artigo 1699.º do CC: “se o casamento for celebrado por quem tenha filhos, ainda que maiores ou emancipados, não poderá ser convencionado o regime da comunhão geral nem estipulada a comunicabilidade dos bens referidos no n.º 1 do artigo 1722.º”.
IV.– Ora, a norma jurídica “exprime a ligação à representação de um acontecimento ou situação da vida social, como consequente da necessidade de uma conduta, traçada em termos gerais e abstratos”, podendo ser definida como a ligação de uma estatuição à previsão de um evento, situação ou hipótese e facto.
V.–Nesta senda, deveria ter sido facilmente discernível, por interpretação literal e enquadramento da previsão e estatuição da norma, a conclusão de que a convenção antenupcial outorgada é nula, por violação desta norma e do n.º 2 do art. 9º do CC.
VI.–Todavia, decidiu o Tribunal a quo invocando, essencialmente, o elemento histórico, no sentido de ser pertinente o pensamento do legislador ao sustentar na sentença ora recorrida que “É, então, referido pelo legislador que «Relativamente ao casamento de quem já tenha filhos, apenas se proíbe a estipulação do regime da comunhão geral de bens ou a estipulação da comunicabilidade de bens que são próprios no regime de comunhão de adquiridos (artigo 1699.º n.º 2); a aplicação do regime de comunhão de adquiridos não parece lesar por forma injusta os filhos anteriores ao casamento»”.
VII.–Ora, este entendimento do legislador plasmado na sentença em nada colide com a pretensão da aqui Recorrente, não obstante esta compreender que o pensamento do legislador está inserido num específico contexto histórico de proteção das expectativas sucessórias dos filhos previamente existentes contra os efeitos patrimoniais normais do novo casamento do progenitor.
VIII.–Contudo, o contexto histórico e a intenção do legislador parecerem bastar ao Tribunal a quo para formular a sua decisão, o que não se pode conceder.
IX.–Vejamos que, o pensamento histórico do legislador não impede que a norma jurídica, que é geral e abstrata por natureza, se aplique a uma multiplicidade de situações de facto, desde que enquadradas na sua previsão, nos termos supra aduzidos.
X.–É inquestionável que desde a reforma legislativa de 1977, a sociedade se modificou e transformou, sendo necessário, tanto para o legislador, como para o intérprete, o devido ajuste aos novos tempos e realidades, que não são imutáveis ou estanques.
XI.– Ademais, atendendo ao disposto no n.º 2 do art. 9.º do CC, e recordando que aquando da outorga da convenção antenupcial e casamento com a Recorrente, o Recorrido já tinha filhos, significa que o n.º 2 do art. 1699.º do mesmo diploma legal é indubitavelmente aplicável, por se enquadrar na previsão de casamento celebrado, simplesmente, “por quem tenha filhos”.
XII.–Com efeito, quando a Lei não distingue não cabe ao intérprete distinguir. No caso, o legislador não inseriu no preceituado da lei qualquer distinção entre o progenitor que detém o(s) bem(ns) próprio(s) cuja comunicabilidade pretendeu afastar e o outro progenitor, pelo que não cabe ao intérprete distinguir aquilo que o legislador não distinguiu, sendo que se o legislador tivesse querido apenas garantir essa circunstância, não deixaria, com clareza, de o afirmar.
XIII.–Por outro lado, a proteção patrimonial dos filhos, existentes ou futuros, no âmbito do nosso ordenamento jurídico manifesta-se não só ao nível do direito matrimonial, mas também ao nível do direito sucessório.
XIV.–Destarte, mantendo-se esta decisão, ocorre uma manifesta subversão daquilo que o n.º 2 do art. 1699.º do CC pretende proteger: não pode o Tribunal anuir que os dois filhos previamente existentes do Recorrido concorram com o único verdadeiro herdeiro do bem próprio da Recorrente – o filho de ambos, o que apenas teria como único efeito prático lesar as legítimas expetativas deste último, ficando, evidentemente, numa manifesta situação de desigualdade.
XV.–E inclusivamente da Recorrente pelos mesmos motivos, na eventualidade do falecimento do Recorrido, com os dois filhos sobrevivos.
XVI.–Acrescendo ainda que, não vislumbra a Recorrente como possível, salvo o devido respeito, que seja relevante a existência jurídica do filho comum na data da celebração da convenção antenupcial, porquanto, apesar de a sentença afirmar que a norma tem o desiderato de proteger os filhos previamente existentes, tal não significa que a intenção do legislador tenha sido de apenas acautelar a tutela das suas legítimas expectativas, em detrimento e clara desigualdade com filhos que possam vir a nascer, fruto da constância de novo matrimónio.
XVII.–Desde logo, porque o legislador não é alheio à circunstância de que na pendência do matrimónio, duas pessoas possam querer ter, e tenham, filhos, alargando assim a base inicial de herdeiros já existentes.
XVIII.–O que sucede, na verdade, e se verifica in casu, é que o Tribunal a quo, com o entendimento sufragado, confere uma tutela de proteção aos filhos do Recorrido previamente existentes, beneficiando-os, em detrimento do filho comum das partes, que sai clara e inequivocamente prejudicado na qualidade de herdeiro, por ter de com aqueles concorrer.
XIX.–A ideia de que a norma assenta na proteção dos filhos previamente existentes não é incompatível com a lógica de que a Lei visa também proteger qualquer filho que possa vir a nascer. Deduz-se assim do próprio texto e do seu elemento histórico, que o espírito da norma é o de tutelar os interesses de todo e qualquer descendente – os nascidos e os por nascer, assim seguindo o brocado "ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus".
XX.–Resulta por demais evidente que, na prática, o Tribunal a quo, desprotegeu o filho comum das partes, violando a letra da Lei e a vontade do legislador, propugnando uma interpretação violadora do princípio da igualdade, previsto no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa, por conceber um regime mais favorável a irmãos não germanos pelo simples facto de estes serem anteriores ao novo matrimónio, em detrimento dos filhos que possam vir a nascer, que ficariam, desta forma em situação de desigualdade, quando estão em clara igualdade de circunstâncias.
XXI.–Sendo, por isso, a interpretação do Tribunal a quo inconstitucional.
XXII.–Por tudo o exposto, e salvo o devido respeito, não assiste ao Tribunal a quo qualquer razão, por errónea interpretação da disposição legal constante do n.º 2 do art. 1699.º CC, e concomitante violação do n.º 2 do art. 9.º do CC, devendo, ao contrário do por aquele entendido, ter-se por nula a convenção antenupcial outorgada, com todas as suas demais consequências legais.»

O réu contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida e requerendo, à cautela, a ampliação do âmbito do recurso
Transcrevem-se as conclusões mais significativas:
«i)-De acordo com a letra da lei, o impedimento legal de estipular a comunicabilidade de bens existentes à data do casamento, aplica-se ao nubente que já tenha filhos.
j)-A recorrente não tinha filhos, nem à data da celebração da convenção antenupcial, nem à data da celebração do casamento com o recorrido.
k)-E, era à recorrente que pertencia o bem cuja comunicabilidade foi estipulada pela convenção antenupcial.
l)-Assim, vertendo a letra da lei para o caso concreto, terá de concluir-se que a recorrente, que não tinha filhos (nem à data da convenção antenupcial, nem à data do casamento), podia estipular a comunicabilidade do bem imóvel em sede de convenção antenupcial.
(…)
p)- A ratio do n.º 2 do Art.º 1699.º do CC, é proteger os interesses filhos, que já existam, do bínubo em face do novo cônjuge deste.
q)-O filho da recorrente e do recorrido, nasceu no dia 31 de Janeiro de 2008, cerca de três anos após o matrimónio daqueles e na constância do matrimónio.
r)-Não sendo nascido, nem à data da celebração da Convenção Antenupcial, nem à data do casamento da recorrente e do recorrido, não se pode dizer que o filho de ambos tinha alguma legítima expectativa ou interesse a proteger pela lei, pois ainda não era nascido.
s)-E, quer a letra da lei (Art.º 1699.º, n.º 2 do CC), quer o seu espírito são claros: visam proteger os interesses e legítimas expectativas dos filhos já existentes.
(…)
III- Da ampliação do âmbito do recurso (ainda que seja a título de hipótese académica e por isso subsidiariamente, e sem prescindir do supra exposto)
(…)
cc)-Caso os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa entendam dar procedimento ao recurso da recorrente, o que por mera hipótese académica se coloca e sem prescindir do supra exposto em Contra-Alegações,
dd)-então, há necessidade de apreciação por V. Ex.ªs dos fundamentos de defesa do R. aqui recorrido sobre os efeitos da declaração de nulidade da convenção antenupcial, bem como quanto à litigância da A. aqui recorrente em manifesto abuso de direito e com má-fé e, lançar mão, se necessário for, ao disposto no Art.º 636.º, n.º 3 do CPC. Assim, caso V. Ex.ªs entendam que a Convenção Antenupcial é nula, o que por mera hipótese académica se admite, e sem prescindir do supra exposto em Contra-Alegações, sempre se dirá:
ee)-Caso a Convenção Antenupcial venha a ser declarada nula, pretende a recorrente que tal declaração tenha efeitos retroativos, o que fundamentou com os Art.ºs 294.º, 286.º e 289.º do CC.
ff)-Contudo, não lhe assiste razão, pois há um regime especial que afasta a aplicabilidade dos artigos acima referidos, tal como estabelece o Art.º 285.º do CC.
gg)-O Art.º 1710.º do CC, sob a epígrafe “Forma das convenções antenupciais”, estipula que as convenções antenupciais são válidas se forem celebradas por escritura pública, o que se verificou nos presentes autos.
hh)-Por outro lado, a Convenção Antenupcial só produz efeitos em relação a terceiros depois de registada, sendo certo que o registo da convenção antenupcial não dispensa o registo predial relativo a factos a ele sujeitos, tal como dispõe o Art.º 1711º, nºs. 1 e 3 do CC.
ii)-Ora, no caso concreto, a Convenção Antenupcial consta do Assento de casamento, cumprindo, assim, o disposto no Artigo 1.º, n.º 1, alínea e), do Código de Registo Civil (adiante CRC), e foi feito o registo na certidão do imóvel.
jj)-Do Art.º 3.º, n.º 2 conjugado com o Art. 90.º, ambos do CRC retira-se que a prova resultante do registo só pode ser ilidida nas ações de estado e de direito, enquanto a nulidade não for reconhecida, o registo (ainda que nulo), produz efeitos como se fosse válido e os efeitos anteriormente produzidos ficam ressalvados.
kk)-No sentido do supra exposto, já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 21 de Outubro de 2020, consultável em (…)
ll)-Assim, ainda que a Convenção Antenupcial venha a ser declarada nula (o que, reitera-se, apenas por hipótese académica se coloca), a nulidade não poderá ter efeitos retroativos e os efeitos produzidos ficam ressalvados.
mm)-Pelo que a partilha do ex-casal, aqui recorrente e recorrido, deve ser efetuadas segundo o que ficou convencionado na Convenção Antenupcial, ou seja, considerando-se a comunicabilidade do bem que, com a Convenção Antenupcial, foi considerado (e é) bem comum da recorrente e do recorrido.
nn)-Nem outra coisa poderia ser, sob pena de, no limite, se pôr em causa a segurança jurídica e as legítimas expectativas do recorrido.
Ainda no campo da hipótese académica acima levantada e sem prescindir, dir-se-á, ainda:
Acresce que a recorrente litiga em manifesto abuso de direito e com má-fé
oo)-Na Convenção Antenupcial, celebrada por escritura no dia … 2005, no 26.º Cartório Notarial de Lisboa, foi considerado como bem comum dos nubentes a Fração autónoma designada pelas letras “…” e a escritura foi lida e explicado o seu conteúdo, tal como consta da parte final da mesma.
pp)-Recorrente e recorrido estavam ambos presentes na celebração da escritura, para a qual ambos tinham capacidade de celebração e fizeram-no livremente e de boa fé e sem qualquer vício na formação da vontade.
qq)-Foram cumpridos os formalismos legais, designadamente o previsto no Art.º 1710.º do CC, à luz do qual a Convenção Antenupcial é válida.
rr)- Resulta do Assento de casamento n.º … de … 2005 a menção à convenção antenupcial.
ss)-Portanto, a Convenção Antenupcial passou pelo crivo do Conservador da 7.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, que nenhuma dúvida ou questão levantou acerca daquela.
tt)-Também como resulta do Assento de Casamento n.º …, à data da celebração do casamento a morada do recorrente já era a morada da fração objeto da Convenção Antenupcial.
uu)-O recorrido passou a integrar e a ser devedor do crédito à habitação junto da Caixa Geral de Depósitos, bem como um outro crédito (Multiopções) que a recorrente tinha junto da mesma instituição, com início em …2004.
vv)-Aliás, o recorrido renegociou o crédito com o Banco, obtendo melhores condições, designadamente, um spread mais vantajoso.
ww)- O recorrido passou, igualmente, a integrar e a ser titular da conta junto da CGD de onde era mensalmente retirado o valor para amortização dos dois créditos acima referidos e o vencimento do recorrido passou a ser transferido para essa mesma conta.
xx)-O recorrido também passou a efetuar o pagamento da amortização da hipoteca ao Banco, o pagamento do IMI, e demais despesas do imóvel.
yy)-Como acima já foi referido, em consequência da celebração da Convenção antenupcial, foi feito o registo na certidão do imóvel, sendo que o averbamento não ficou provisório por dúvidas, mas sim foi feito a título definitivo, pois nenhuma dúvida surgiu a quem efetuou esse registo.
zz)-Portanto, a Convenção passou, ainda, pelo crivo da Conservatória do Registo Predial, sem que nenhuma dúvida ou questão fosse levantada.
aaa)-No âmbito do processo de divórcio da recorrente e do recorrido resulta da Ata de Tentativa de Conciliação do Proc.º n.º …, realizada no dia … 2018: “Neste momento, pelas partes foi declarado não pretenderem reconciliar-se e foi requerida a convolação do divórcio sem consentimento do outro cônjuge em divórcio por mútuo consentimento, declarando para o efeito:
(…)
IV.–Relacionam como bens comuns do casal a partilhar: A fração autónoma designada de pelas letras "…" do prédio urbano sito em Lisboa, descrito na 7ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº …17, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …06.”
bbb)-Desta feita, a Convenção Antenupcial passou pelo crivo de um Juiz de Direito, sem que qualquer dúvida ou questão lhe tenha surgido.
ccc)-Mais, tal como consta da referida Ata de Tentativa de Conciliação, a fração autónoma "…" do prédio urbano sito em Lisboa, descrito na 7ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº …17, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …06, foi relacionada como bem comum do casal a partilhar.
ddd)-A recorrente que estava presente na tentativa de conciliação e acompanhada por mandatário judicial, nada disse, nenhuma questão levantou acerca da Convenção Antenupcial, nem se opôs à relação de bens: não se opôs a que o bem que só agora vem dizer que é só seu, fosse relacionado como bem comum do casal.
(…)
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Ex.ªs, Venerandos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, certamente suprirão, deve a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser mantida nos seus precisos termos, para que se faça a costumada JUSTIÇA!
Caso assim V. Ex.ªs não entendam, o que por mera hipótese académica se admite e sem prescindir, deve ser admitido o requerimento de ampliação do âmbito do recurso e consequentemente ser considerado que a (eventual) declaração de nulidade da convenção antenupcial não tem efeitos retroativos e que os efeitos produzidos entre as partes ficam ressalvados devendo o bem ser partilhado como bem comum que é, bem como deve ser considerado que a recorrente litiga em manifesto abuso de direito e com má-fé, retirando-se daí as devidas consequências legais (neste caso a única consequência a retirar do abuso de direito da recorrente é considerar que a Convenção é válida, produz efeitos e que o bem é um bem comum) para salvaguarda da segurança jurídica e legítimas expectativas do recorrido e criadas ao mesmo, para que se faça a costumada JUSTIÇA!»

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, coloca-se a questão de saber se o facto de, aquando do casamento com a autora, o réu ter filhos de outras mulheres impedia as partes de convencionarem a comunicabilidade de um imóvel próprio da autora.
No caso de o recurso da autora ser julgado procedente, colocam-se questões suscitadas pelo réu sobre:
- os efeitos da declaração de nulidade da convenção antenupcial;
- a má-fé processual da autora;
- o abuso de direito da autora.

II.Fundamentação de facto
Estão provados pelos respetivos documentos autênticos os seguintes factos, que correspondem aos listados na sentença da 1.ª instância, com retificação dos meses do casamento e da sentença de divórcio (abril, em ambos os casos, e não maio, como consta da sentença):
A.Autora e réu contraíram matrimónio no dia … 2005, na 7.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa.
B.Por escritura pública data de … 2005, a autora e o réu declararam que: «(…) vão casar um com o outro e para regular as relações patrimoniais do casamento que entre si vão celebrar, adotam o regime de comunhão de adquirido, convencionando, todavia, que seja considerado como bem comum dos nubentes, o seguinte imóvel: fração autónoma designada pelas letras “…”, destinada exclusivamente a habitação, correspondente ao piso …, com arrecadação número …, e estacionamento número …, no piso menos dois, do prédio urbano sito em Lisboa, designado por lote …, composto por sete blocos, no plano de Urbanização do Alto do Lumiar, …, descrito na Sétima Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o … dezassete, da referida freguesia, inscrito na respetiva matriz sob o artigo provisório …06, pendente de avaliação».
C.A fração autónoma descrita era, à data da convenção antenupcial, um bem próprio da aqui autora.
D.Autora e réu divorciaram-se por sentença de … 2018, transitada em julgado em … do mesmo ano.
E.Na pendência do matrimónio, autora e réu tiveram um filho, «CC», nascido a … de 2008.
F.«DD», nascido a … de 1990, é filho do réu e de «EE».
G.«FF», nascido a … de 2000, é filho do réu e de «GG».

III.Apreciação do mérito do recurso
A questão jurídica suscitada pelo recurso da autora respeita tão-só à interpretação do disposto no n.º 2 do artigo 1699.º do CC: «Se o casamento for celebrado por quem tenha filhos, ainda que maiores ou emancipados, não poderá ser convencionado o regime da comunhão geral nem estipulada a comunicabilidade dos bens referidos no n.º 1 do artigo 1722.º».
Entre os bens indicados no n.º 1 do artigo 1722.º encontram-se os bens que cada um tiver ao tempo da celebração do casamento, como era o caso do imóvel da autora relativamente ao qual os nubentes convencionaram que se consideraria bem comum.
Como sabemos, aquando do casamento, o réu tinha filhos não comuns à autora.
Perante estes factos e normas, importa apenas saber se, face ao disposto no artigo 1699.º, n.º 2, do CC, as partes estavam proibidas de convencionar que um bem próprio da autora se considerasse bem comum.
A resposta impõe-se negativa.
O n.º 2 do artigo 1699.º do CC interpreta-se com as seguintes duas precisões (trechos sublinhados): Se o casamento for celebrado por quem tenha filhos de terceiros (não comuns ao cônjuge), ainda que maiores ou emancipados, não poderá ser convencionado o regime da comunhão geral nem estipulada a comunicabilidade dos bens referidos no n.º 1 do artigo 1722.º, relativamente a bens que sejam propriedade do cônjuge com filhos.
A lógica desta norma reside na proteção do filho, ou dos filhos, do cônjuge que tem património relevante, à data do casamento. Esta é a leitura coerente que ressalta da letra do preceito, dele fazendo uma interpretação lógica, conforme à sua razão de ser e finalidade:  a restrição de liberdade convencional nele estatuída visa a proteção dos filhos do nubente que tem bens à data do casamento (filhos não comuns à pessoa com quem agora casa, obviamente).

No mesmo sentido, transcrevemos as palavras de Antunes Varela (Direito da Família, I, 4.ª ed., Livraria Petrony, 1996, p. 428): «Além disso, sabe-se que não pode ser convencionado o regime dotal, inteiramente proscrito pela Reforma de 1977, e que também não pode ser adotado (art. 1699º, 2) o regime da comunhão geral (nem estipulada a comunicabilidade dos bens considerados como próprios no regime da comunhão de adquiridos) pelo nubente que tiver já filhos, mesmo que maiores ou emancipados».
Bem como as de Adriano Miguel Ramos de Paiva, A Comunhão de Adquiridos - Das insuficiências do regime no quadro das relações patrimoniais entre os cônjuges, Coimbra Editora, 2008, p. 98: «cabe igualmente perguntar se aquela proibição [da estipulação da comunicabilidade dos bens referidos no n.º 1 do art. 1722.º sempre que o casamento for celebrado por quem tenha filhos] se deverá aplicar, ainda que parcialmente, às hipóteses em que apenas um dos nubentes tem filhos. É certo, como resulta da letra da lei, que não poderá ser convencionada a comunhão geral. Apesar disso, não deixa de ser pertinente a questão de saber se, ainda assim, não poderá ser estipulada a comunicabilidade dos bens próprios do nubente que não tem filhos. Com efeito, se é inequívoca a preocupação de proteger os interesses dos filhos e, já não, o dos cônjuges, justifica-se que o nubente com filhos não possa estipular a comunicabilidade dos seus bens próprios, uma vez que tal convenção prejudicará, como vimos, os interesses patrimoniais daqueles descendentes. Mas já não se compreende como a comunicabilidade dos bens do nubente sem filhos possa causar qualquer prejuízo aos filhos do outro. Pelo contrário, essa estipulação é-lhes vantajosa, já que irá aumentar a meação do seu progenitor. Assim, não contraria o espírito do n.º 2 do art. 1699.º a estipulação da comunicabilidade dos bens referidos no n.º 1 do art. 1722.º por parte do nubente que não tenha filhos».
Ainda no mesmo sentido, Rute Teixeira Pedro (a citação que segue é do Código Civil Anotado, II, Coord. Ana Prata, Almedina, 2017, anotação 6.2. ao artigo 1699.º, p. 596, mas lembramos que a Autora é especialista na matéria, com tese de doutoramento justamente intitulada Convenções Matrimoniais: A Autonomia na Conformação dos Efeitos Patrimoniais do Casamento, publicada pela Almedina, em 2018): «A razão de ser desta opção legislativa é a de proteger a posição jurídica do(s) filho(s) pré-existentes de um dos cônjuges, em caso de morte do cônjuge progenitor desse filho(s). O que se pretende com o disposto no n.º 2 do artigo é evitar que o conjunto de bens que correspondam às categorias assinaladas integrem o património comum do casal, tendo, assim, aqueles bens, em caso de morte do referido cônjuge, de ser partilhados com o seu consorte e, nessa medida, apenas a meação que, nesses bens, coubesse ao falecido integraria o património hereditário. Com as regras referidas, os bens abrangidos pela previsão do n.º 2 permanecem próprios do cônjuge falecido integrando na sua totalidade a herança, devendo o seu destino ser decidido no âmbito da sucessão a que será chamado o filho em concurso com o cônjuge (art. 2133.º, n.º 1-a)). Atendendo à ratio do artigo que se acaba de expor, pontifica o entendimento de que o disposto no art. 1699.º, n.º 2, só se aplica quando o(s) filho(s) existente(s) à data da celebração do casamento não seja(m) comuns a ambos os nubentes (…)».
Ou, acrescentamos nós, em pleno alinhamento com o raciocínio antes exposto pela Autora, quando o(s) filho(s) existente(s) à data da celebração do casamento não seja(m) do nubente cujo património passa a ser comum.
O fim visado pela norma é, ainda, afirmado por outros autores. Por exemplo, Jorge Augusto Pais de Amaral, Direito da Família e das Sucessões, 3.ª ed., Almedina, 2016, p. 145: «Com esta proibição procura-se defender os interesses dos filhos anteriores à celebração do casamento, visto que poderiam ser lesados se fosse fixado o regime de comunhão geral».
Sobre situação idêntica à sub judice, pronunciou-se o bem fundamentado parecer aprovado em sessão do Conselho Técnico da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado de 27/05/2004, homologado por despacho do Diretor-Geral de 31/05/2004, publicado no Boletim dos Registos e Notariado, junho de 2004, 2.º caderno, pp. 13-20, acessível em https://irn.justica.gov.pt/Sobre-o-IRN/Doutrina-registal/Boletim-dos-Registos-e-do-Notariado,  com as seguintes conclusões:
«I- Na celebração do casamento, a restrição ao princípio da liberdade contratual, prevista no n.º 2 do art.º 1699.º do Código Civil, apenas vincula o nubente que tenha filhos, ainda que maiores ou emancipados;
II- Em consequência, o nubente que não tenha filhos pode estipular a comunicabilidade dos bens referidos no n.º 1 do art.º 1722.º do mesmo diploma.
III- É válida, e deve ser registada no assento de casamento a escritura de convenção antenupcial em que tenha sido estipulado o disposto no número anterior».
Lembramos, ainda, toda a argumentação do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 31/08/2018, P000551994, acessível em www.dgsi.pt, com as seguintes conclusões:
«1- Inexiste fundamento legal para a proibição prevista no nº 2 do artigo 1699º do Código Civil, na redação do Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, se os nubentes, seja em primeiras, seja em segundas núpcias, apenas tiverem filhos comuns;
2- Consequentemente, os nubentes podem convencionar o regime da comunhão geral de bens se apenas tiverem filhos comuns».
As conclusões reportam-se apenas a nubentes com filhos comuns, porque essa era a situação submetida a consulta. Toda a sua discussão e raciocínio expendidos conduzem a que as mesmas conclusões se apliquem ao nubente que não tem filhos, permitindo que os nubentes possam convencionar a comunicabilidade de bens do nubente sem filhos ao nubente com filhos.
O parecer faz interessante percurso sobre os antecedentes da norma no Código de Seabra, as alterações de redação que sofreu, os contributos da doutrina para a sua interpretação e as soluções da jurisprudência. Continua com a versão inicial da norma no Código vigente e a versão resultante da reforma de 1977, que vigora. Nesse excurso, pare ele remetemos.

Em suma: a proibição, ínsita no n.º 2 do artigo 1699.º do Código Civil, de estipulação da comunicabilidade dos bens referidos no n.º 1 do artigo 1722.º apenas vincula o nubente que tenha filhos; o nubente que não tenha filhos pode estipular a comunicabilidade dos seus referidos bens, sendo válida a convenção antenupcial em que o faça.

Em consequência, o recurso improcede e fica prejudicada a apreciação das questões objeto da ampliação do âmbito do recurso requerida pelo recorrido.

IV. Decisão

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação da autora totalmente improcedente, mantendo a sentença objeto de recurso.
Custas pela recorrente.


Lisboa, 21/03/2024


Higina Castelo - (relatora)
Arlindo Crua - (primeiro adjunto)
Pedro Martins - (segundo adjunto)