Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1251/17.4T8PVZ.L1-7
Relator: PAULO RAMOS DE FARIA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
SOCIEDADE COMERCIAL
RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
RESPONSABILIDADE AQUILIANA
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Não satisfaz os ónus previstos no art.º 640.º do Cód. Proc. Civil o apelante que verte num enunciado (ou num bloco de enunciados) todos os pontos da matéria de facto que entende terem sido erradamente julgados, apresentando depois, de um só fôlego, a transcrição de todos os depoimentos prestados que entende serem pertinentes, sem identificar os concretos enunciados – contidos em documentos, relatórios periciais ou transcrição de depoimentos gravados, por exemplo – que contradizem cada um dos concretos juízos de facto do tribunal a quo, e adjudica ao tribunal ad quema tarefa de distribuir pertinentemente os meios de prova por cada uma das proposições alegadamente mal julgadas.
2. O enunciado do n.º 1 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais – que prevê um caso exercício de responsabilidade civil aquiliana – apresenta-se como uma proposição remissiva incompleta, em que parte da hipótese legal necessita de ser completada através de uma outra disposição legal ou contratual destinada à proteção dos credores da sociedade.
3. No contexto jus-mercantil, pode dizer-se que uma norma jurídica tem carácter de proteção quando, impondo ou proibindo determinada conduta, é positivada para oferecer uma proteção individual (ou também individual) ou a um círculo mais ou menos determinado de indivíduos.
4. A ampliação ilimitada do instituto da responsabilidade delitual, no sentido da proteção de todos os afetados por uma conduta que apenas ofende o direito absoluto outrem, seria totalmente paralisante da sociedade, por temerem os cidadãos que terceiros (incertos e em número ilimitado) se pudessem sentir ofendidos com a sua atuação (ainda que não dolosa). O Direito existe para regular relações sociais e não para as tornar praticamente impossíveis.
5. A nossa lei mercantil não contém uma norma que tutele, em geral (erga omnes), o direito dos credores à preservação dos seus ativos. O mesmo é dizer que a pretensão do credor contra o gerente ou administrador, ou encontra fundamento numa concreta norma primária do direito mercantil, ou não o encontra de todo.
6. As singularidades do regime especial de responsabilidade aquiliana previsto no n.º 1 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais justificam que a lei descreva, como seu pressuposto, uma relação causal específica: exige, como pressuposto específico, que tal atuação cause a insuficiência do património social para a satisfação das dívidas da sociedade.
7. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade comercial afeta os titulares da pessoa coletiva, isto é, aqueles que atuam no tráfego jurídico-comercial por seu intermédio, permitindo, pois, responsabilizar os sócios, atingindo o seu património pessoal, e não os representantes estatutários, designadamente, os seus administradores.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

A. Relatório
A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
Autora, S.A., instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra VMRV, ADVP, CJSP, VMLSs e ALS, pedindo a condenação dos réus “solidariamente a pagar à autora a quantia de 714.334,95 euros (…), acrescidos de juros à taxa legal calculados desde a distribuição até efetivo pagamento da divida, tudo com as legais consequências”.
Para tanto, alegou que os réus foram administradores da sociedade GITRRT, S.A., tendo violado os seus deveres nesta qualidade, o que levou à insolvência desta sociedade e à consequente insatisfação do crédito da autora.
Citados os réus, ofereceram estes a sua contestação, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Após realização da audiência final, o tribunal a quo julgou “a ação improcedente e, em consequência”, absolveu “os réus do pedido”.
Inconformada, a autora apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
1. A decisão recorrida desconsiderou factos alegados pela autora essenciais à discussão da causa, que não foram apreciados na sentença proferida. (…)
2. É o caso da seguinte matéria: // a. – da pi: arts 4.º, (...) 21.º (…), 23.º, 25.º, 50.º, 57.º a 63.º; // b. – do articulado de resposta da A: arts 3º a 15º, 19º, 23º, 29º, 32º a 35º; // c. – do requerimento da autora de 17/11/2017: arts 14.º, 17.º e 18.º; // d. – da pi aperfeiçoada: arts. 8.º, 14.º, 16.º, 18.º a 20.º, 23.º a 35.º, 44.º a 48.º, 66.º a 72.º, 92.º e 93.º (…)
5. Ao proceder dessa forma o Tribunal omitiu fundamentos de facto deixou de pronunciar-se sobre questões que deveria apreciar – cfr art.º 615.º, n.º 1, als. a) e d), CPC.
6. Ocorreu ainda erro de julgamento ao nível dos pontos 1) a 18.59) da matéria de facto não provada, que deverão ser dados como provados.
7. Por outro lado dever ser aditada à matéria provada o alegado: // a. na pi nos arts 4.º, parte do alegado no art.º 21.º (…), 23.º (…), 25.º (…), 50.º (…), 57.º a 63.º (…); // b. no articulado de resposta da A: arts 3.º a 15.º, 19.º, 23.º, 29.º, 32.º a 35.º; // c. no requerimento da autora de 17/11/2017: arts 14.º, 17.º e 18.º; // d. na pi aperfeiçoada: arts 5.º, 7.º a 37.º, 44.º a 46.º, 48.º a 52.º, 56.º a 57.º, 60.º a 64.º, 66.º a 71.º, 92.º, 93.º, 111.º, 112.º, 115.º a 119.º.
21. A conduta dos réus violou os artigos 64.º do CSC, 79.º, n.º 1 CSC, 78.º, n.º 1, Cód. Soc. Comerciais (…).
22. No caso dos autos, é manifesto que os réus deliberadamente violaram os interesses da autora enquanto credora da sua administrada GITRRT, S.A., assim violando o disposto no art.º 64.º, n.º 1, b), CSC. (…)
24. Se os réus não tivessem procedido da forma acima descrita, a autora veria garantido o seu crédito. (…)
27. Incorreram ainda na prática do crime a que alude o art.º 523.º CSC ao não promoveram a dissolução da GITRRT, SA, nem a redução do seu capital social, apesar de estar perdido metade do capital social.
28. Violaram ainda o disposto no art.º 528.º, n.º 2, CSC, o art.º 171.º, n.º 1, CSC. (…)
32. Verificam-se (…) os pressupostos para o levantamento da personalidade coletiva, justificando-se a desconsideração da personalidade jurídica autónoma da sociedade em causa (…), sendo todos os RR responsabilizados solidariamente (…) pelo pagamento das quantias devidas à A (…).


Os apelados contra-alegaram, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.

A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar

Começaremos por enfrentar a arguição de nulidade da sentença, por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia.
Seguir-se-á a apreciação da impugnação da decisão respeitante à matéria de facto.
As questões de direito a tratar, em torno da responsabilidade civil dos administradores de uma sociedade anónima, serão mais desenvolvidamente enunciadas no início do capítulo dedicado à análise dos factos e à aplicação da lei.
*
B. Fundamentação
B.A. Factos julgados provados pelo tribunal ‘a quo’
1. Fornecimentos efetuados pela autora
1 – A autora tem como atividade a importação, exportação e comercialização de equipamentos e acessórios de ar-condicionado e ventilação.
2 – No exercício dessa atividade a autora entregou à sociedade GITRRT, S.A. (…), diversos bens, mediante contrapartida monetária total de € 714.334,95, que até hoje não recebeu.
3 – A autora forneceu à GITRRT, SA, os bens descritos nas seguintes faturas e (#29) nota de crédito:

##NúmeroEmissãoVencimentoValor
1
133003
2 de janeiro de 20121 de junho de 2012
335.492,57 (69.438,30)
2
133058
11 de janeiro de 201210 de abril de 2012
86.288,87
3
133324
10 de fevereiro de 201210 de maio de 2012
37.364,71
4
133792
3 de abril de 20122 de julho de 2012
19.751,83
5
133837
09 de abril de 20122 de julho de 2012
14.820,65
6
133895
16 de abril de 201213 de setembro de 2012
33.770,88
7
134343
06 de junho de 20122 de novembro de 2012
179.061,70
8
134669
18 de julho de 201214 de dezembro de 2012
154.743,40
9
135085
05 de setembro de 20121 de fevereiro de 2013
87.040,91
10
135677
21 de novembro de 201219 de abril de 2013
    14.849,65
11
135700
22 de novembro de 201222 de abril de 2013
    5.262,19
12
136414
20 de fevereiro de 201319 de julho de 2013
948,92
13
136663
22 de março de 201319 de agosto de 2013
93,76
14
136865
14 de abril de 201313 de setembro de 2013
928,01
15
137134
16 de maio de 201314 de outubro de 2013
178,98
16
137145
20 de maio de 201317 de outubro de 2013
613,09
17
140312
3 de junho de 20141 de agosto de 2014
4.509,48
18
140319
3 de junho de 20141 de agosto de 2014
239,14
     19
140320
3 de junho de 20141 de agosto de 2014
2.138,95
20
140368
4 de junho de 20144 de agosto de 2014
26,11
     21
141883
19de novembro de 201419 de janeiro de 2015
1.492,26
22
142025
2 de dezembro de 201430 de janeiro de 2015
92,78
23
142096
10 de dezembro de 20149 de fevereiro de 2015
34,53
 24
142196
17 de dezembro de 201416 de fevereiro de 2015
10,25
25
142288
05 de janeiro de 20156 de março de 2015
10,37
26
142479
26 de janeiro de 201527 de março de 2015
305,66
27
142501
27 de janeiro de 201527 de março de 2015
221,40
28
142674
12 de fevereiro de 201513 de abril de 2015
211,63
29
142788
26 de fevereiro de 201527 de abril de 2015
-221,40
30
142854
4 de março de 20154 de maio de 2015
107,94


4 – A GITRRT, SA, comprou à autora os bens descriminados nas faturas acima mencionadas, para as obras Hospital E, obra Hospital G, obra ML, obra MLE, obra Hospital X, obra Escola Secundária RR, obra Sede da PJP, Sociedade 3, Banco Centrp, Sociedade 7, obra Sociedade 1, obra Hospital K.
5 – Em 4 de dezembro 2013, a GITRRT, SA, e a autora tinham um saldo de conta corrente favorável à segunda, tendo acordado celebrar um acordo para a regularização da dívida (…).
6 – A GITRRT, SA, deixou de cumprir acordo que havia realizado com a autora quando se preparava para dar entrada de processo especial de revitalização, tendo por objeto, designadamente, a regularização de um valor até €714.334,95 à autora.
2. Insolvência da GITRRT, SA,
7 – Em 4 de maio de 2015, a sociedade GITRRT, SA, apresentou-se a processo especial de revitalização, tendo nele apresentado, em 6 de novembro de 2015, um plano de revitalização, que foi aprovado por maioria qualificada de credores.
8 – Por sentença datada de 18 de março de 2016, foi homologado o plano de revitalização da GITRRT, SA, que a empresa nunca cumpriu.
9 – Em 18 de julho de 2016, a GITRRT, SA, procedeu à apreciação e deliberação sobre as contas do exercício de 2015.
10 – Em 2 de agosto de 2016, em nova assembleia geral não convocada, os acionistas da insolvente deliberam a apresentação desta à insolvência, reconhecendo que a GITRRT, SA, se encontrava em “falência técnica e com total incapacidade e liquidez financeira para o cumprimento do plano de revitalização que foi aprovado em outubro de 2015.”
11 – Em 3 de agosto de 2016, a sociedade GITRRT, SA, apresentou-se à insolvência.
12 – No art.º 29.º da petição inicial do processo de insolvência, a GITRRT, SA, admite que “a situação económico-financeira da empresa após a entrada do plano de revitalização não melhorou”:
1. Os pagamentos a realizar a fornecedores que até essa data eram feitos a crédito, passaram a ter que ser realizados à data da encomenda e muito deles recusaram-se a fornecer;
2. A requerente deixou de ter certidões da Autoridade Tributária e Segurança Social que lhe permitisse concorrer a concursos públicos ou que lhe permitisse receber dos seus clientes sem que estes cativassem 25% do valor a entregar pela inexistência dessas certidões;
3. Algumas locadoras exigiram a imediata entrega das viaturas;
4. As Instituições Financeiras sem o PER homologado e trânsito em Julgado negaram analisar qualquer solução para prestação de GB para novas obras;
5. As obras em curso para as quais eram necessários produtos financeiros que garantissem a entrega/pagamento de um conjunto de máquinas e respetiva conclusão da obra, obrigava a um apoio de uma Instituição Financeira momentâneo, aumento de responsabilidades, mas com redução no fim da obra.
6. Mas as instituições de crédito consultadas recusaram todas as propostas apresentadas pelo conselho de Administração da GITRRT, implicando muitas das vezes a resolução de contratos em curso por parte do cliente com aplicação de penalidades por incumprimento da GITRRT (Autoeuropa);
13 – Consta nos arts. 30.º e segs. da petição inicial do processo de insolvência:
Sem crédito, sem garantias e sem certidões de não divida, só foi possível à requerente prosseguir os trabalhos em curso com muito esforço do pessoal, mas com uma perda de produtividade atroz que consequentemente se refletiu na faturação mensal e ainda perda de contratos.
Relativamente às obras em curso na República Democrática do Congo o esforço foi elevadíssimo para as concluir, pois se por um lado o apoio das instituições financeiras era nulo por outra qualquer entrada de valores em Portugal, apresentava risco elevado de ficar retido/cativo por qualquer instituição de crédito por não estar o plano homologado.
Pese embora a realidade acima descrita, foi dada esperança à administração da GITRRT, SA, que tal realidade seria passageira e que aprovando-se o plano de revitalização a situação alterar-se-ia.
O conselho de administração da requerente, com a colaboração da entidade consultora que acompanhou o processo de revitalização, encetaram junto de várias entidades, tendente à promoção da entrada de um investidor na empresa por via da cedência de parte ou 100% do capital social.
Das negociações havidas existiu inicialmente um interesse de um investidor, só que, não foi possível a materialização até à data de qualquer instrumento visando a concretização do negócio.
As entidades bancárias que haviam aprovado o plano dando o seu voto favorável mantiveram a mesma postura e não mostraram a abertura necessária que permitisse continuar a atividade, como por exemplo, acordar um mecanismo de obtenção linha de garantias bancárias necessárias para apresentação a concurso.
Todas as circunstâncias acima referidas geraram a impossibilidade de obtenção de novas obras e a gestão somente das obras que haviam sido adjudicadas, implicando a degradação da empresa, o que gerou que ano de 2015 terminasse com um prejuízo líquido apurado, no montante de €4.654.284,31 (quatro milhões seiscentos e cinquenta e quatro mil duzentos e oitenta e quatro Euros e trinta e um cêntimos), e aprovação que fosse transferido para Resultados Transitados, como resulta da ata n.º 97 (…).
O conselho de administração alertou que o prejuízo aprovado provocou quase a perda de metade do Capital Social, pelo que, no cumprimento do disposto no Artigo 35.º do Código Sociedade Comercial o Conselho de Administração apresentou a todos os accionistas as seguintes medidas:
a) A redução do capital social;
b) A realização de entradas em dinheiro que mantenham pelo menos em dois terços a cobertura do capital social;
c) A adopção de medidas concretas tendentes a manter pelo menos em dois terços a cobertura do capital social nomeadamente convocar de credores para procederem ao aumento do capital social.
Os accionistas informaram o conselho de administração da impossibilidade do cumprimento de qualquer das medidas previstas no referido artigo 35º do Código Sociedades Comerciais.
A requerente face à realidade acima descrita encontra-se impossibilitada de cumprir com as obrigações mensais que têm prevista no plano de revitalização, encontra-se já em mora no pagamento da primeira prestação cujo vencimento ocorreu a 31 de Maio de 2016, não se vislumbrando quando o poderá fazer (…).
Do mesmo modo, sendo o passivo muito superior ao ativo como se atesta pelo balanço de 2015, afigura-se que tal realidade se subsume no previsto no n.º 2 do artigo 3º e da na alínea h) do n.º 1 do artigo 20º ambos do CIRE.
14 – Em 29 de setembro de 2016, a GITRRT, SA, foi declarada insolvente por sentença proferida, transitada em julgado
15 – A sentença declarou que os autos não continham elementos que justificassem a abertura do incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno ou limitado, designadamente com vista à formulação de um juízo de culpabilidade do apresentante na situação de insolvência.
16 – A autora reclamou o seu crédito sobre a massa insolvente GITRRT, SA, no valor de € 714.334,95 a fim de que o mesmo pudesse ser reconhecido e graduado.
17 – Foram reclamados créditos laborais e créditos da Autoridade Aduaneira e Tributária.
18 – O total reclamado e reconhecido de créditos no processo de insolvência foi no montante de € 41.303.603,40.
19 – A GITRRT, SA tem como ativo/inventário os seguintes bens apreendidos para a massa insolvente:

LoteDescritivoValor €
1
Lote de registos de desenfumagem automática
2.000,00
2
Lote Ar condicionado marca Samsung (unidades exteriores)
1.500,00
3
Lote de Salamandras e Recuperadores de calor
1.200,00
4
Lote de Material descontinuado
   300,00
5
Lote de Painéis Solar
 1.500,00
6
Lote de escadas e escadotes alumínio
      100,00
7
Lote de Rack ́s
      400,00
8
Porta paletes elétrico marca Hu-Lift
    2.000,00
9
Lote de cassetes HC 52 N
       200,00
10
Lote de cilindros DOUBLE SERP. BOILER
     2.000,00
11
Lote de botijas de gás c/cessão de 42 propriedade da Linde
300,00
12
Lote diverso material ferragem e elétrico
350,00
13
Lote escadas técnicas
400,00
14
Lote ferramentas e diversos aparelhos manutenção de obras
1.200,00
15
Lote estantes metálicas
120,00



QtDescritivoQtDescritivoQtDescritivo
1
Mesa de reuniões
8
Cadeira
2
Armário cinza 100 x 80
6
Cadeiras de fundo preto
2
Móvel apoio
1
Mesa pequena de apoio
2
Armários cinza 120*80
5
Estante metálica
1
Mesa de vidro pequena
1
Mesa de reuniões
2
Armário metálico
12
Secretária com extensão
8
Cadeiras de fundo verde
1
Impressora HP Lasejet 1160
1
Secretária pequena
4
Secretárias com extensão
1
Impressora Oki C810
31
Cadeira
1
Secretária
1
Monitor
1
Mesa reuniões
1
Mesa de apoio
1
Teclado
1
Quadro grande de escrever c'giz
1
Mesa redonda
1
Computador
6
Monitores mais antigos
6
Cadeira
8
Secretária com extensão de canto
8
Monitor
3
Computadores
1
Secretária
6
Teclado
3
Monitores
10
Cadeira
4
Computador
3
Teclado
1
Estirador
        19
Armário metálico
1
Armário metálico
1
Plotter HP design 430
1
Estante metálica
2
Estante metálica
1
Plotter HP design 430
1
Secretária com extensão de canto
1
Aparelho FAX Canon
1
Plotter de corte
1
Mesa redonda formica cinza
2
Armário c'4 gavetas arquivo
4
Monitor
5
Cadeira
2
Armário metálico
3
Teclado
1
Armário metálico
2
Secretária com extensão
4
Computador
1
Armário cinza 100 x 80
1
Secretária
1
Bloco 3 gavetas com rodas
2
Secretária
2
Computador
8
Armário metálico
2
Cadeira
3
Monitor
1
Impressora Laserjet 1320TN
2
Teclado
3
Teclado
1
Impressora fficejet Pro K550
1
Monitor
5
Cadeira
5
Secretária com extensão de canto
1
Computador
11
Armário metálico
1
Secretária
1
Estante metálica
6
Estante metálica
7
Cadeiras
1
Bloco 4 gavetas
2
Secretária com extensão
3
Monitores
1
Fotocopiadora Xerox 230dc
3
Secretária
3
Teclado
1
Teclado
1
Armário c'4 gavetas arquivo
1
Computador
1
Monitor
1
Estante metálica pequena
5
Armário metálico
1
Impressora Hpcolor laserjet
2
Bloco 3 gavetas com rodas
5
Armário metálico pequeno
1
Máquina encadernar a quente
1
Bloco 4 gavetas com rodas
1
Fax Xerox Workcentre 665
2
Secretária
7
Cadeira
1
Impressora HP Laserjet 4700n
1
Armário metálico
1
Mesa pequena extensível
1
Secretária com extensão de canto
1
Secretária
2
Computador
2
Secretária
2
Cadeira
3
Monitor
3
Cadeira
1
Teclado
2
Teclado – 580,00 €
4
Armário metálico
1
Monitor
1
Computador
3
Estante metálica
1
Computador
1
Monitor
1
Impressora HP Laserjet CP3525n
2
Armário metálico
1
Teclado
2
Mesa de apoio
1
Armário metálico pequeno verde
4
Cadeira
3
Secretária
1
Máquina encadernar argolas
1
Mesa de Vidro
3
Cadeiras
3
Secretária
2
Bloco 3 gavetas com rodas
2
Armário metálico
1
Secretária com extensão
1
Aparelho FAX Brother
1
Mesa de apoio
8
Cadeira
1
Aparelho FAX Xerox
2
Monitor
3
Teclado
1
Impressora HP Officejet K7100
1
Teclado
2
Monitor
2
Secretária
1
Estirador
2
Computador
1
Estante metálica
1
Impressora HP Fotosmart 8050
           
Armário metálico
1
Armário metálico
1
Fotocopiadora Toshiba Std 451c
5
Armário metálico pq 100x80
1
Mesa Redonda
1
Mesa de apoio redonda
3
Bloco c/ 3 gavetas
4
Cadeira
1
Móvel vitrine prateleiras vidro
1
Secretária com extensão de canto
2
Secretária
1
Conjunto de aparelhos de medição
1
Armário metálico pq 100x80
2
Cadeira
2
Sofás pequeno tecido cinza
1
Armário metálico pq 120x80
2
Estante metálica
1
Impressora HP Laserjet CP3525
1
Monitor – 770,00€
2
Armário metálico
1
Impressora HP Deskjet 2540
8
Secretária
1
Armário cinza 120 x 80



DescritivoValor
Lote de Andaimes de Alumínio 1
500,00
Lote material elétrico
200,00
Máquina pressão de lavar (cor amarela)
350,00
Lote de caixas ferramentas completas
300,00
Lote ferramentas e diversos aparelhos manutenção de obras
300,00
Máquina de abrir roscas
600,00
Máquina de soldar marca Selco modelo Genesis 245
700,00
Empilhador elétrico marca Linde 3
500,00
Forno de elétrodos, estrutura de apoio e elétrodos
350,00
Lote de tubos ferro, inox e cobre
800,00
Armazém de Rack c/plataforma elevatória 4
000,00
Estufa de pintura em mau estado
700,00
Lote de escadas e escadotes em alumínio
280,00
Biombos de pintura cor azul
150,00
Máquina de soldar marca Selco modelo Neoming 330
450,00
Compressor de 100l e Compressor de 20l
75,00
Máquina de soldar de cor negra marca Tig 250
260,00
Lote de varões de enroscar
80,00
Lote de bancadas de ferro
100,00
2 Porta paletes
140,00
Máquina de dobrar tubo marca Ridgid 918 -I
150,00
Maçarico grande
200,00
2 Máquina de soldar marca Cemont
250,00
2 Máquina de soldar media amarela
100,00
2 Bancadas apoio de ferramentas
150,00
Engenho de furar
200,00
Máquina de abrir roscas cinzenta
450,00
Lote de material de ferragem
2.800,00
Lote de extensões, ferramentas elétricas
300,00
Lote de material descontinuado
2.000,00
Marca n.º 534 GITRRT, S.A.
5.000,00
Prédio CRP Sintra – Ficha 4761 Freguesia Rio de Mouro (V. Tributário)
47.569,38
Prédio CRP Sintra – Ficha 6966 Rio de Mouro (Valor Tributário)
1.282.970,00
Fração 717 – Q, 2ª CRP Loures, Moscavide (Valor Tributário)
183.762,00
Fração 657 – A 1ª CRP V.N. Gaia, Canidelo
143.760,00
a) Veículo Renault, modelo Laguna, matrícula 16-AV-16
b) Veículo Renault, modelo Trafic, matrícula 23-91-ZI,
c) Veículo Renault, modelo Laguna, matrícula 65-24-US
d) Veículo Mercedes Benz, modelo E 200, matrícula 61-71-UO
e) Veículo Mitsubishi, matrícula 68-50-UH
f) Veículo Honda, matrícula 75-DI-70
g) Veículo Renault, matrícula 95-EZ-32
h) Veículo Ford, matrícula 96-FH-91
11.000,00
Cinco contentores de carga de 20 pés
1.000,00
Contentor – escritório de 40 pés
800,00
Contentor – escritório de 20 pés
450,00
Escritório constituído por dois contentores de 20 pés
800,00
Quota na S.C. SP II Ldª (Valor nominal -V.Venal a determinar)
1.000,00
Quota social na AMG (Luanda)
4.500,00 acções do valor nominal de 1€ de NN S.A,
4.500,00
41.140 ções do valor nominal de 1€ de LL S.A
41.140,00
18.520 acções do valor nominal de 1€ cada de GG S.A.
18.520,00


3. Atividade da GITRRT, SA, e dos réus
20 – O objeto social da GITRRT, SA, é “1. Elaboração de projetos, gestão e execução de obras de instalações técnicas. 2.Exploração e manutenção de instalações técnicas e de edifícios e manutenção de ascensores; 3. Construção civil e obras públicas, fiscalização e manutenção de obras e atividades técnicas de engenharia. 4. Peritagens e avaliações de imóveis incluindo os dos fundos de investimento imobiliário”.
21 – Os réus exerceram a atividade de administradores da GITRRT, SA.
22 – A evolução do volume de negócios nos últimos cinco anos da GITRRT, SA, são as que infra se indicam:

Ano
Valor
2010
33.130.357,40
2011
21.376.667,11
2012
29.409.396,82
2013
21.959.230,84
2014
18.564.837,55

23 – O financiamento da GITRRT, SA, foi, até ao ano de 2015, em parte realizado, através do sistema financeiro.
24 – Os ativos imobiliários da GITRRT, SA, com um valor patrimonial tributário superior ao seu capital social, mantiveram-se até à data da apresentação à insolvência totalmente desonerados.
25 – Através de contrato de arrendamento comercial celebrado em 1 de março de 2009, a GITRRT, SA, cedeu à TECS, L.da (adiante, TECS), o gozo da fração SPC destinada a escritórios, sita na Rua Terras da Vinha, Quinta de PP, Albarraque, freguesia de Rio de Mouro, concelho de Sintra de que declarou ser proprietária.
26 – Em 22 de maio de 2014, as duas empresas criaram 11 Agrupamentos Complementares de Empresas, em que a participação da GITRRT, SA era de 80% e da TECS de 20%.
27 – E que mais tarde foi alterado para 45% e 55%, respetivamente.
28 – A GITRRT, SA concorreu com a empresa TECS à pré qualificação de 11 Concursos para a Manutenção de Lotes de Escolas, lançados pelo Parque Escolar.
29 – São contratos para Manutenção de Lotes de Escolas pelo período de 36 meses, podendo ser renovado por mais 12 meses.
30 – Aos ACE´s S.P. / GITRRT, SA – TECS são adjudicados 5 lotes, no valor global de € 8.482.387,13, a saber:

##
Descritivo
Valor
1.
PE_13061_CQS – LN1
1.780.570,44
2.
PE_13063_CQS – LN5
1.728.240,00
3.
PE_13066_CQS – LN3
1.525.543,92
4.
PE_13095_CQS – LS2
1.710.312,96
5.
PE_13098_CQS – LS3
1.717.719,80

31 – Em 26 de julho de 2016, a GITRRT, SA, vendeu 35% da participação que tinha no ACE com a TECS por €60.000,00.
32 – Em 31 de dezembro de 2013, a GITRRT, SA, detinha participações financeiras na “SP RPC”, na “GB”, na “AM”, na “LL”, na “GG”, na “NN”, no “Grupo SP” e empréstimos ao “Grupo SP” (à data, € 3.222.159,30), à “SP RPC”, à “SP SF”, à “SP II” e à “F SP”.
B.B. Arguição de nulidades (vícios processuais)
A apelante sustenta que a sentença impugnada é nula, por força das normas enunciadas nas als. a) e d) do art.º 615.º do Cód. Proc. Civil, por ter o tribunal a quo, supostamente, omitido pronúncia sobre diversos factos alegados. Conclui a apelante, no essencial, nos seguintes termos:
1. A decisão recorrida desconsiderou factos alegados pela autora essenciais à discussão da causa, que não foram apreciados na sentença proferida. (…)
2. É o caso da seguinte matéria: // a. – da pi: arts 4.º, (...) 21.º (…), 23.º, 25.º, 50.º, 57.º a 63.º; // b. – do articulado de resposta da A: arts 3º a 15º, 19º, 23º, 29º, 32º a 35º; // c. – do requerimento da autora de 17/11/2017: arts 14.º, 17.º e 18.º; // d. – da pi aperfeiçoada: arts. 8.º, 14.º, 16.º, 18.º a 20.º, 23.º a 35.º, 44.º a 48.º, 66.º a 72.º, 92.º e 93.º (…)
5. Ao proceder dessa forma o Tribunal omitiu fundamentos de facto deixou de pronunciar-se sobre questões que deveria apreciar – cfr art.º 615.º, n.º 1, als. a) (será al. b)) e d), CPC.

As normas invocadas pela recorrente têm o seguinte conteúdo: “É nula a sentença quando (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; (…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Confrontando a sentença proferida com estes enunciados, podemos imediatamente afastar o primeiro vício apontado: é ostensivo que a sentença especifica “os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. A arguição de nulidade da sentença com fundamento neste putativo vício é manifestamente improcedente.
Pelo que respeita ao fundamento previsto na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do Cód. Proc. Civil – que deve ser articulado com o disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil –, e mesmo sem entrar na estimulante discussão em torno da aplicação desta norma à pronúncia sobre a matéria de facto, sempre se dirá que a decisão de facto não padece de nenhuma deficiência. Os factos que devem integrar a fundamentação da sentença (ou do acórdão) são os factos essenciais que estimulam a norma de direito substantivo, sem prejuízo de a decisão respeitante à matéria de facto dever, ainda, abranger os factos instrumentais necessários a emprestar coerência ao relato da realidade histórica. Não sendo este o caso, é despropositada a inclusão destes últimos na decisão de facto. O mesmo é dizer que, tendo sido emitida pronúncia sobre toda a factualidade essencial, a falta de pronúncia sobre a factualidade instrumental nunca constitui um vício da decisão.
Quanto ao alegado na petição inicial, verifica-se que o art.º 4.º foi objeto de pronúncia no ponto 21 – na sentença: facto 7 provado –, o art.º 21.º foi objeto de pronúncia nos pontos 1 e 2 dos factos não provados, o art.º 23.º foi objeto de pronúncia no ponto 4 dos factos não provados, o art.º 25.º encerra um enunciado puramente conclusivo e contendo conceitos de direito, os art.ºs 50.º e 57.º foram objeto de pronúncia, na parte não puramente conclusiva nem de direito, nos pontos 1 a 3 dos factos não provados, o art.º 58.º encerra um enunciado conclusivo, assentando a conclusão apresentada, não em dados de facto, mas em conceitos de direito (v.g., “devidamente” e “corretamente”), os art.ºs 59.º 60.º encerram enunciados puramente conclusivos, o art.º 61.º foi objeto de pronúncia no ponto 5 dos factos não provados, o art.º 62.º encerra um enunciado conclusivo, assentando a conclusão apresentada, não em dados de facto, mas num juízo de direito (“se os seus administradores tivessem cumprido as disposições legais já mencionadas”) e o art.º 63.º encerra um enunciado puramente conclusivo, contendo conceitos de direito.
Quanto ao alegado na petição inicial aperfeiçoada, constata-se que os arts 8.º, 14.º, 16.º, 18.º a 19.º, 44.º, 48.º, 66.º, 69.º, 70.º e 92.º descrevem factos meramente instrumentais (e de escassa relevância, ou que têm por objeto a emissão de pareceres de terceiros), o art.º 20.º foi objeto de pronúncia no ponto 10 dos factos não provados, o art.º 23.º foi objeto de pronúncia no ponto 11 dos factos não provados, o art.º 24.º foi objeto de pronúncia no ponto 12 dos factos não provados, o art.º 25.º foi objeto de pronúncia no ponto 26 – na sentença: facto 17 provado –, os arts. 27.º e 28.º foram objeto de pronúncia do ponto 28 – factos provados – ao ponto 30 – na sentença: factos 19.º a 21.º provados –, o art.º 29.º foi objeto de pronúncia no ponto 30 – na sentença: facto 21 provado –, o art.º 32.º foi objeto de pronúncia no ponto 15 dos factos não provados, o art.º 33.º foi objeto de pronúncia no ponto 16 dos factos não provados, o art.º 34 foi objeto de pronúncia no ponto 31 – na sentença: facto 22 provado –, os arts. 26.º, 35.º, 47.º, 67.º, 71.º e 93.º encerram enunciados puramente conclusivos e contendo conceitos de direito, o art.º 45.º foi objeto de pronúncia no ponto 18 – na sentença: facto 24 provado –, o art.º 46.º foi objeto de pronúncia no ponto 19 – na sentença: facto 25 provado –, o art.º 68.º encerra um enunciado conclusivo, assentando a conclusão apresentada, não em dados de facto, mas num outro juízo conclusivo (apresentado no artigo anterior), e o art.º 72.º veicula uma mera opinião em matéria probatória.
Quanto aos restantes supostos factos alegados pela apelante, não se deve perder de vista que tem o autor o ónus de alegar todos os factos essenciais na petição inicial (art.º 552.º, n.º 1, al. d), do Cód. Proc. Civil) – ou no aperfeiçoamento desta proporcionado pelo tribunal, para além dos casos em que é admissível a apresentação de articulados supervenientes –, não sendo um meio válido de aquisição processual dos factos a apresentação de requerimentos ou repostas de outra natureza. Isto significa que não tinha o tribunal a quo de emitir pronúncia sobre os supostos factos contidos nos arts. 3.º a 15.º, 19.º, 23.º, 29.º e 32.º a 35.º da resposta à contestação nem sobre os supostos factos contidos nos arts. 14.º, 17.º e 18.º do requerimento da autora de 17 de novembro de 2017.
Em suma, a sentença não padece dos vícios alegados, pelo que improcede a arguição da sua nulidade.
B.C. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
1. Satisfação dos ónus previstos no art.º 640.º do Cód. Proc. Civil
Dispõe o art.º 640.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil que, “(q)uando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: // a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; // b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; // c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
A indicação dos meios probatórios que impunham decisão diferente (al. b)) deve, por um lado, ser consequente, isto é, deve compreender a explicação dessa imposição – por exemplo, uma testemunha ter afirmado aquilo que se pretende que seja dado por provado ou tenha negado aquilo que se pretende que seja dado por não provado. Por outro lado, quando a impugnação seja fundada em prova gravada, deve o apelante, conforme resulta do disposto no art.º 640.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Civil, “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Sobre cada uma das proposições de facto que integram o objeto do processo, o tribunal formula um “julgamento” ou “decisão”. Embora o termo assuma diferentes sentidos no âmbito processual-civil, o “julgamento”, na sua essência, é o juízo de adesão, ou não, a uma proposição posta. O regime acabado de descrever tem por objeto o juízo apresentado pelo julgador sobre uma concreta proposição de facto.
Porque sobre o litígio já se pronunciou um órgão jurisdicional independente, e considerando que inexiste para Processo Civil qualquer exigência constitucional da garantia de um duplo grau de jurisdição, este regime é marcado por três características principais: (i) o elevado nível (standard) de rigor imposto ao impugnante; (ii) a recondução da impugnação a cada concreta proposição de facto julgada (vedando-se a impugnação indiscriminada da decisão respeitante à matéria de facto); (iii) a inexistência da previsão de um convite ao aperfeiçoamento da satisfação dos ónus impostos.
O elevado nível (standard) de rigor imposto ao impugnante é revelado pelos ónus previstos neste artigo. A alegação imprecisa (na concretização dos pontos impugnados e dos meios de prova pertinentes, ou na indicação da decisão alternativa apropriada) é, não raramente, um fenómeno intencional. A parte tende a ser menos precisa quando se vê forçada a justificar a sua tese contrária à realidade processualmente adquirida, quando a posição sustentada assenta num silogismo falhado ou falacioso. Assim se justifica, sem dificuldade, a proibição de uma impugnação vaga ou ambígua, não sendo claro o seu sentido, prestando-se (propositadamente) a diversas interpretações.
Importa, no entanto, ter presente que o elevado nível de rigor não equivale a elevado nível de dificuldade. Pelo contrário, seguro do acerto do seu juízo dissidente sobre determinado ponto da decisão respeitante à matéria de facto, o apelante não terá a menor dificuldade em identificar este concreto ponto nem o concreto meio de prova em que assenta o seu juízo, menos ainda em enunciar a decisão alternativa que entende dever ser proferida. São estes requisitos ónus que, na generalidade dos casos, qualquer observador atento à produção de prova, ainda que leigo, poderá facilmente satisfazer (apenas se exigindo rigor, labor e eupatia).
A recondução da impugnação a cada concreta proposição de facto jugada impõe que sobre cada específico e individualizado juízo contestado o recorrente apresente uma fundamentação dedicada. Tendo a impugnação por objeto cada concreto juízo formulado pelo tribunal a quo – isto é, cada ponto da decisão de facto, objeto de um concreto juízo sobre uma proposição de facto processualmente adquirida –, sobre este deve ser desenvolvido um específico silogismo demonstrativo, de modo a poder ser o tribunal superior persuadido da bondade da posição do impugnante. Assim, cada impugnação constitui-se como uma célula autossuficiente, contendo a indicação do ponto impugnado, o juízo alternativo a formular e o concreto meio de prova que diz respeito a esta impugnação, isto é, apenas o segmento da prova produzida pertinente ao concreto silogismo demonstrativo apresentado, devidamente iluminado, destacado da restante prova.
Não pode o apelante despejar num enunciado (ou num bloco de enunciados) todos os pontos da matéria de facto que entende terem sido erradamente julgados, apresentando depois, de um só fôlego, a transcrição de todos os depoimentos prestados que entende serem pertinentes, sem identificar os concretos enunciados – contidos em documentos, relatórios periciais ou transcrição de depoimentos gravados, por exemplo – que contradizem cada um dos concretos juízos de facto do tribunal a quo, e adjudicar ao tribunal ad quem a tarefa de distribuir pertinentemente os meios de prova por cada uma das proposições, putativamente, mal julgadas – cfr. o Ac. do STJ de 16-01-2024 (818/18.8T8STB.E1.S1).
Finalmente, devemos notar que a falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados, incluindo a falta de indicação das passagens da gravação em que o recorrente funda a sua impugnação, determina a “imediata rejeição do recurso na respetiva parte” (art.º 640.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Civil). O mesmo é dizer que a lei não consente aqui a prolação de um despacho de convite ao aperfeiçoamento da alegação, contrariamente ao que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art.º 639.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil.
Assim é por decorrência das características do regime descrito, designadamente, como referido, por serem os ónus impostos de muito simples satisfação, não exigindo mais do que um grau mínimo de diligência na atuação da parte. Recorde-se, a propósito, que, na fase de recurso, todos os recorrentes devem estar patrocinados por advogado (art.º 40.º, n.º 1, al. c), do Cód. Proc. Civil).
No caso dos autos, constata-se que a alegação não satisfaz os ónus estabelecidos art.º 640.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil. Não desenvolve o impugnante, sobre cada um dos pontos da decisão respeitante à matéria de facto impugnados um concreto silogismo demonstrativo. Limita-se a enunciar o conjunto de pontos impugnados, seguido da transcrição em bloco dos segmentos dos depoimentos gravados que entende serem relevantes, sem nunca destacar e relacionar as concretas afirmações das testemunhas e depoentes com cada um dos pontos impugnados.
Por todo o exposto, rejeita-se o recurso sobre a decisão da matéria de facto, com o que se mantém inalterada a factualidade fixada em 1.ª instância, improcedendo a apelação nesta parte.
2. Alteração oficiosa da matéria de facto dada por provada
Não consta dos fundamentos de facto da sentença impugnada, acima transcrita, uma outra factualidade essencial, complementar e concretizadora, processualmente adquirida, sobre a qual as partes já exerceram o seu direito de contraditório e exerceram o seu direito à prova – designadamente documental e pericial. Referimo-nos ao capital social da GITRRT, SA, e ao capital próprio desta sociedade nos exercícios de 2014 e de 2015. Impõe-se, pois, quer ao abrigo da norma enunciada no n.º 1 do art.º 662.º do Cód. Proc. Civil, quer por força do disposto na al. c) do n.º 2 do art.º 662.º do Cód. Proc. Civil, alterar a decisão de facto – sobre a admissibilidade da alteração oficiosa, cfr. o Ac. do STJ de 17-10-2019 (3901/15.8T8AVR.P1.S1), bem como António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, pp. 357 e 358.
A prova do capital social da GITRRT, SA, é documental – cfr. a cópia da certidão permanente do registo comercial junta aos autos (código de acesso: 2414-2858-0740), bem como a IES (informação empresarial simplificada) de 2015, junta aos autos em 27 de outubro de 2020 (ref. 27513740). A prova do valor do capital próprio da GITRRT, SA, em 2014 e em 2015 também é documental – cfr. as IES (informação empresarial simplificada) de 2014 e de 2015, juntas aos autos em 27 de outubro de 2020 (ref. 27513740) e em 13 de novembro de 2017 (ref 27330795). Refira-se que no relatório pericial é considerado o capital próprio de € 7.842.953,27, no exercício de 2014. Este lapso – de € 10,00 – é irrelevante e não afeta a força do parecer pericial.
Destes documentos resulta que, nos anos de 2014 e 2015, designadamente, a GITRRT, SA, tinha o capital social de €1.104.460,00, que, no ano de 2014, tinha o capital próprio de €7. 842.963,27, e que, no ano de 2015, tinha o capital próprio de €472.071,86. Esta matéria deve ser incluída no leque dos fundamentos de facto da decisão final de mérito.
Ainda essencial na apreciação da satisfação, ou não, dos deveres que cabem aos administradores, é a matéria alegada pela autora no art.º 51.º da petição aperfeiçoada, no essencial não impugnada e provada por documento – ata n.º 97 da assembleia geral da GITRRT, SA, junta aos autos. A factualidade relevante documentada nesta ata também deve ser dada por provada.
Assim, em resultado da reapreciação da prova produzida, aditam-se ao leque dos factos provados os seguintes pontos:
33 – Nos anos de 2014 e 2015, designadamente, a GITRRT, SA, tinha o capital social de € 1 104 460,00.
34 – No termo do exercício de 2014, a GITRRT, SA, tinha o capital próprio de € 7 842.963,27.
35 – No termo do exercício de 2015, a GITRRT, SA, tinha o capital próprio de € 472 071,86.
36 – Em 18 de julho de 2016, os titulares das participações sociais da GITRRT, SA, presentes, reunidos em assembleia geral, tendo por ordem de trabalhos, designadamente, “Ponto Um – Análise contas do exercício do ano 2015; // Ponto Dois – Deliberar sobre os assuntos previsos no n.º 3 do artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais: // a) Dissolução da sociedade; // b) Redução do capital social para montante inferior ao capital próprio da sociedade, com respeito, se for o caso, do n.º 1 do artigo 96.º do Código das Sociedade Comerciais e por último; // c) Realização pelos sócios de entradas para reforço da cobertura do capital”, declararam que:
a) “o esforço exigido é muito elevado e não estão em condições de neste momento poder deliberar sobre qual dos caminhos será aquele que melhor satisfaça os interesses da sociedade”;
b) “o esforço exigido é muito elevado e, impossível de concretizar no imediato”.
No mais, deve ser mantida a decisão de facto do tribunal a quo, improcedendo a sua impugnação. Esta decisão original é acima reproduzida, embora com uma sistematização distinta, mais ajustada à crónica dos factos essenciais, e transcrevendo-se agora o teor de documentos já considerados assentes.
B.D. Análise dos factos e aplicação da lei
São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Pressupostos da responsabilidade civil do administrador perante os credores
1.1. Dano: insatisfação do crédito
1.2. Ilicitude: violação de uma norma de proteção
1.2.1. Normas contidas nos art.ºs 78.º do CSC e 483.º do Cód. Civil
1.2.2. Normas contidas no art.º 64.º do Cód. Soc. Comerciais
1.2.3. Normas contidas nos art.ºs 528.º, n.º 2, e 523.º do Cód. Soc. Comerciais
1.2.4. Normas contidas nos art.ºs 32.º, n.º 1, do CSC e 18.º do CIRE
1.2.5. Normas contidas nos art.ºs 35.º, n.º 1, e 171.º, n.º 2, do Cód. Soc. Comerciais
1.3. Causalidade específica: condução à insuficiência do património
2. O levantamento da personalidade jurídica coletiva
3. Responsabilidade pelas custas
Pressupostos da responsabilidade civil do administrador perante os credores
Dispõe o n.º 1 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais que “(o)s gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos”. A relação jurídica ressarcitória descrita neste enunciado intercede, diretamente, entre os gerentes ou administradores (lesantes) e os credores da sociedade (lesados).
São conhecidos os pressupostos de cuja verificação depende o nascimento do direito a uma indemnização na esfera jurídica do lesado: o facto voluntário; a ilicitude; a culpa; o dano; o nexo de adequação causal. Sob o prisma processual, estes requisitos assumem a natureza de causa de pedir (de natureza complexa), devendo, por regra, ser alegados e provados os factos que os substanciam – assim, no contexto do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais, cfr. o Ac. do TRL de 26-03-2009 (10140/03.9TVLSB.L1-8).
Em casos especiais (outros excecionais), a lei prescinde da prova (e mesmo da ocorrência) de alguns dos pressupostos que fundam a responsabilidade civil (contratual ou extracontratual) – da culpa, por exemplo. No entanto, há um pressuposto que tem sempre de ser alegado e provado: o dano. Começaremos a análise do caso por este pressuposto comum.
.1. Dano: insatisfação do crédito
Se um sujeito for vítima de um sinistro, os seus credores não podem instaurar contra o lesante uma ação fundada no art.º 483.º do Cód. Civil, para exercício de um direito próprio a uma indemnização (por ofensa ao direito de crédito), mas apenas, verificando-se os pressupostos, sub-rogarem-se no direito do lesado (art.º 606.º do Cód. Civil). Ora, no contexto que nos ocupa, um ato lesivo do património social praticado pelo gerente ou administrador da sociedade ofende imediatamente o direito desta, e não do terceiro credor, que assiste à degradação do património que representa a garantia geral da satisfação do seu crédito (art.º 601.º do Cód. Civil). O mesmo é dizer que, por regra, o credor não tem direito contra o gerente ou administrador que causa um dano à sociedade. Não obstante, excecionalmente, o regime previsto no art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais – ressalvada a sub-rogação prevista no seu n.º 2 –, assentando na prática pelo gerente ou administrador de um ato que agride o património social, dirige-se à tutela do direito do credor, conferindo-lhe um direito de indemnização substitutivo do direito de crédito de que seja titular sobre a sociedade.
Do exposto se extrai que o dano – pressuposto indispensável da responsabilidade civil – se traduz, no essencial, na insatisfação de um direito relativo de terceiro. No entanto, o prejuízo não tem de ser decalcado da dívida da sociedade insatisfeita nem a ação instaurada pelo credor contra o gerente ou administrador se destina à sua cobrança, podendo admitir-se que a conduta deste, por via da consequente insatisfação do crédito, tenha causado outros danos àquele, incluindo a sua insolvência e o encerramento da sua atividade – cfr. Alexandre de Soveral Martins, Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores, Coimbra, Almedina, 2020, p. 275.
Registe-se que há autores que, não recortando com precisão o perfil normativo da demanda prevista no art.º 78.º, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais, acabam por fazer equivaler o dano sofrido pelo credor ao dano da sociedade: o dano, de acordo com esta posição, não é individual (resultando numa afetação do património do credor), correspondendo, sim, à “insuficiência do património social para a satisfação dos créditos dos credores sociais”. Logicamente, de acordo com esta doutrina, a natural eliminação deste dano (ou seja, a indemnização) é a reconstituição do património da sociedade, e não a reconstituição do património do credor lesado, à custa do património do gerente ou administrador. Não é este, manifestamente, o fim prático-jurídico desta norma.
Em suma, reconhecendo-se que a relação obrigacional intercede entre a sociedade e o credor, aceita-se, não obstante, que quem não é parte nesta relação material – isto é, o gerente ou o administrador, por força da interposição da personalidade coletiva – possa responder por danos que têm origem no incumprimento dos créditos que emergem de tal relação obrigacional relativa, por ter praticado um ato – ofensivo do património social – que causou a impossibilidade de a devedora os satisfazer. A singularidade deste caso de responsabilidade civil extracontratual remete-nos, como qualquer jurista imediatamente se apercebe, para a problemática da ressarcibilidade de danos “puramente patrimoniais”, o que nos impele, pela convocação necessária das “normas de proteção”, à análise de outro pressuposto da responsabilidade civil: a ilicitude – cfr. cfr. Mafalda Miranda Barbosa, Liberdade vs. Responsabilidade, Coimbra, Almedina, 2006, p. 214 e segs., e «Um caso de ressarcimento de danos puramente patrimoniais – Comentário ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de setembro de 2016 (processo no1952/13.6TBPVZ.P1.S1)», RJLB, Ano 3 (2017), n.º 2, p. 453 e segs., Manuel Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra, Almedina, 2016, p. 238 e segs., e «Danos económicos puros: ilustração de uma problemática», in Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2019, p. 161 e segs., Jorge Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Coimbra, Almedina, 1989, 187 e segs., e «Danos puramente patrimoniais: a propósito do caso ACP v. Casa da Música / Porto 2001, S.A.», RFDCP, n.º 9 (2017), Universidade Lusófona do Porto, p. 195 e segs., e Adelaide Menezes Leitão, Normas de Proteção e Danos Puramente Patrimoniais, Coimbra, Almedina, 2009, § 9 (p. 252 e segs.), e «A Responsabilidade Civil por violação de normas de protecção no âmbito do código de valores mobiliários», in Responsabilidade Civil – Cinquenta Anos em Portugal, Quinze Anos no Brasil, Vol. II, 2018, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 7 e segs..
1.2. Ilicitude: violação de uma norma de proteção
Começamos este capítulo por notar o que, neste ponto do aresto, já é evidente: o exercício do direito dos credores não é um caso exercício de responsabilidade civil contratual. O gerente ou administrador, autor do facto danoso, não é sujeito da relação obrigacional da qual emerge o crédito insatisfeito.
Assente que está que nos movimentamos nos terrenos da responsabilidade civil aquiliana, importa localizar a norma cuja violação qualifica a conduta do gerente ou administrador como ilícita. Será, como decorre do acima exposto, uma norma de proteção. A lei é particularmente clara a este respeito, ao estabelecer que o gerente ou administrador responde “pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção” dos credores, “o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos” (art.º 78.º, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais).
À semelhança do que sucede com a segunda variante de ilicitude contemplada no n.º 1 do art.º 483.º Cód. Civil, o enunciado do n.º 1 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais configura uma proposição remissiva incompleta, em que parte da hipótese legal necessita de ser completada através de uma outra disposição legal ou contratual destinada à proteção dos credores da sociedade. A incompletude desta norma “exige que se procurem na globalidade do sistema jurídico (em especial no sistema jus-mercantil) as normas primárias que permitem a sua articulação com a norma secundária e, sob este ponto de vista, o enunciado que se encontra tem propósitos e leituras claramente restritivos, na medida em que nem todo o sistema jurídico está à partida apto a desencadear efeitos indemnizatórios, devendo descortinar-se uma categoria de enunciados que viabilizem esse efeito, por contraposição ao resto do sistema em relação ao qual essa consequência jurídica é excluída” – cfr., a propósito da segunda situação básica delitual do n.º 1 do art.º 483.º Cód. Civil, Adelaide Menezes Leitão, Normas de Protecção e Danos Puramente Patrimoniais, Coimbra, Almedina, 2009, p. 840.
No contexto jus-mercantil que nos ocupa, pode dizer-se que uma norma jurídica tem carácter de proteção quando, impondo ou proibindo determinada conduta, é positivada para oferecer proteção individual (ou também individual) ou a um círculo mais ou menos determinado de indivíduos, tendo por objeto, no que para o nosso caso importa, interesses puramente patrimoniais – é o caso, por exemplo, do regime previsto no art.º 186.º do CIRE; cfr. Manuel Carneiro da Frada, «A responsabilidade dos administradores na insolvência», ROA, Ano 66, Vol. II, setembro de 2006, https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa. Neste contexto, a qualidade de norma de proteção não pode ser determinada com recurso a critérios de tutela delitual – seja com o auxílio do n.º 1 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais, seja com a ajuda do n.º 1 do art.º 483.º do Cód. Civil –, isto é, o fim da norma não deve ser imediatamente o ressarcimento de danos – escopo da tutela oferecida pela responsabilidade aquiliana –, sob pena de se cair num circulus in demonstrando, pelo que é a teleologia da própria norma que tem que visar a proteção individual ou de um grupo determinado de pessoas.
Identificado o fim de proteção da norma primária, e verificando-se a existência de um dano, ainda assim poderá não haver lugar ao funcionamento da responsabilidade civil extracontratual. Necessário é, ainda, que o dano sofrido se inscrever no âmbito de proteção da norma. O dano tem que traduzir-se na ofensa ao concreto interesse protegido pela norma primária. Esta só pode, pois, ser articulada com a norma secundária – prevendo a responsabilidade delitual (v.g., n.º 1 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais) – relativamente a determinadas pessoas e a determinado tipo de danos.
A dispensa de um rigoroso apuramento do específico âmbito da proteção oferecida pela norma primária com fim de proteção – objetivado na própria norma – levaria à mera tutela reflexa de interesses, sem qualquer efetiva cobertura normativa, com total descaracterização da responsabilidade aquiliana. Por exemplo, é duvidoso que o sujeito que estaciona mal a sua viatura, assim impedindo a passagem do elétrico, levando a que um passageiro se atrase e, por essa razão, falte a um exame escolar, a uma entrevista de emprego ou à outorga de um contrato, responda por esta ordem de prejuízos. Diferente já será o caso do peão que é atropelado por ter percorrido alguns metros da faixa de rodagem fora da passadeira, por se encontrar uma viatura sobre ela estacionada – cfr. o art.º 49.º, n.º 1, al. d), do Cód. da Est., sendo esta contraordenação, em razão do seu escopo, considerada grave (art.º 145.º, n.º 1, al. o), do Cód. da Est.).
O mesmo é dizer que nem todos os afetados pela violação de uma norma com fim de proteção são titulares de um direito ressarcitório contra o autor do facto danoso. O âmbito de proteção da norma primária pode não incluir a tutela de todos os afetados pela prática do ato que a viola, mas tão-só daqueles cujos interesses específicos sejam por ela protegidos.
A ampliação ilimitada do instituto da responsabilidade delitual, tratando-se da segunda modalidade de ilicitude prevista no art.º 483.º, n.º 1, do Cód. Civil, no sentido da proteção de todos os afetados por uma conduta que apenas ofende o direito absoluto outrem, seria totalmente paralisante da sociedade, por temerem os cidadãos que terceiros (incertos e em número ilimitado) se pudessem sentir ofendidos com a sua atuação (ainda que não dolosa). O Direito existe para regular relações sociais e não para as tornar praticamente impossíveis.
No caso que nos ocupa (o n.º 1 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais), os efeitos de tal ampliação não seriam menos devastadores. A “responsabilidade limitada” e a personalidade jurídica coletiva perderiam sentido pratico. Embora continuassem elas a proteger os meros donos da sociedade, deixariam de oferecer proteção aos seus gerentes (ou administradores) – que, na maior parte do tecido empresarial português, são também detentores de participações sociais. Na prática, nos casos de insolvência, os gerentes (ou administradores) seriam quase invariavelmente responsabilizados pessoalmente pelo passivo social, por poder ser-lhes imputado o mau desempenho empresarial (subsumível às normas contidas no art.º 64.º do Cód. Soc. Comerciais).
À luz destas considerações introdutórias, resta-nos analisar as disposições que se candidatam à qualificação como norma de proteção, capaz de oferecer cobertura legal à pretensão da autora, ou que já foram como tal apodadas nos autos.

1.2.1. Normas contidas nos arts. 78.º do CSC e 483.º do Cód. Civil
Conforme já se adiantou, não se pode procurar no próprio n.º 1 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais a desejada norma de proteção. Assim como não o pode ser no regime geral paralelo previsto no n.º 1 do art.º 483.º do Cód. Civil – que reza, recorde-se, no que agora importa, “aquele que (…) violar ilicitamente (…) qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
A relação de especialidade entre estas duas normas (que já se viu afirmada) em nada altera os dados do problema, pois ambas desempenham mesma função: estabelecem pressupostos da responsabilidade civil (fonte do direito a uma indemnização); não consagram o direito (ou interesse legitimo) subjetivo ilicitamente violado. Não é, pois, correto dizer-se que, em termos civis, com uma apropriação ilegítima, por exemplo, ocorre a violação do art.º 483.º do Cód. Civil (ou que, no domínio mercantil, ocorre a violação do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais). A violação que ocorre é da norma substantiva que, por exemplo, consagra o direito de propriedade, conferindo ao proprietário o gozo exclusivo do bem, oponível a terceiros; e essa norma não está prevista nos referidos artigos.
Logo, a norma do Código das Sociedades Comerciais violada (destinada a proteger os credores) que está aqui em causa nunca será uma das inscritas nos diferentes números do art.º 78.º deste código. Aplicando ao caso a afamada comparação de Winston Churchill, aceitar que a ‘disposição legal’ de proteção dos credores referida no n.º 1 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais é a própria norma presente neste número, é como aceitar que um homem de pé, dentro de um balde, pode levantar-se a si próprio puxando pela pega.
A nossa lei civil (ou a mercantil) não contém uma norma que tutele em geral o direito das pessoas à preservação do seu ativo patrimonial, não reconhecendo, pois, aos terceiros reflexamente afetados, em geral e sem mais, o direito a uma indemnização pela violação de um direito subjetivo de outrem. O mesmo é dizer que a pretensão da autora, ou encontra santuário numa concreta norma primária do direito mercantil, ou não o encontra de todo.
1.2.2. Normas contidas no art.º 64.º do Cód. Soc. Comerciais
Prosseguimos ensaiando o enquadramento do caso no regime previsto no art.º 64.º do Cód. Soc. Comerciais. O tribunal limita-se aqui a enfrentar a qualificação jurídica oferecida pela autora.
A autora sustenta que os réus violaram os deveres de “boa gestão” e de “lealdade”, sendo as disposições legais ofendidas destinadas à proteção dos credores as enunciadas no n.º 1 do art.º 64.º do Cód. Soc. Comerciais (deveres fundamentais). Reza este número: “Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:
a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e
b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”.
Pelo que respeita ao dever de lealdade, é clara a lei no sentido de estar ele preordenado à satisfação do interesse da sociedade, tendo-se em consideração os interesses de longo prazo dos sócios. Os interesses de outros sujeitos relevantes não devem ser agredidos, mas não é para sua satisfação que se estabelece o dever de lealdade. Este encontra o seu campo de aplicação na ocorrência de conflitos de interesse (entre os interesses do gestor e os interesses da gerida), máxime na proibição de concorrência (cfr., por exemplo, a concretização deste dever presente no art.º 254.º do Cód. Soc. Comerciais).
No que toca ao dever de cuidado, corresponde ele, no essencial, ao anteriormente designado dever de diligência. Até 2006, o art.º 64.º do Cód. Soc. Comerciais rezava: “Os gerentes, administradores ou diretores de uma sociedade devem atuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”. Na lei anterior, o enunciado legal não suscitava dúvidas sobre os interesses tutelados. Embora com diferente redação, na lei nova não são diferentes tais interesses, sendo de sublinhar a ideia de gestão, isto é, a relação entre o gerido e o gestor e a atividade por este desenvolvida ao serviço daquele (e da satisfação dos seus interesses).
Tal como o dever de diligência do mandatário está ordenado à tutela dos interesses do mandante, também o dever de diligência do gestor (gerente ou administrador) está ordenado à tutela do interesse de quem o nomeia para gerir ou administrar o seu negócio, isto é, dos titulares das participações sociais (e, hoc sensu, da sociedade). Como é evidente, todos aqueles que interagem com a sociedade beneficiam da diligência do gestor, sejam os trabalhadores da empresa, sejam os seus clientes, sejam os credores sociais, por exemplo. Mas dizer isto não é o mesmo que dizer que, sem mais, um trabalhador com salários em atraso ou um cliente insatisfeito com o atraso na entrega de produto adquirido, em resultado da falta de “competência técnica” do gerente ou administrador, beneficiam de tutela delitual contra este dirigente, por força da violação do disposto no art.º 64.º, n.º 1, al. a), do Cód. Soc. Comerciais.
De acordo com a mais qualificada jurisprudência, não é de aceitar que os enunciados do no n.º 1 do art.º 64.º do Cód. Soc. Comerciais consagram normas destinadas a proteger os credores sociais. É o seguinte o raciocínio desenvolvido:
Tal aceitação “levaria à conclusão de que, no fundo, todas as normas legais que gizassem os deveres dos gerentes, administradores e diretores tutelariam direta ou reflexamente os interesses dos credores sociais (…). Ora, se o legislador tivesse pretendido responsabilizar os administradores com uma tão ampla abrangência teria aludido apenas à infração de disposições legais ou contratuais por parte daqueles, ao invés de ter dito expressamente que as disposições infringidas que relevam para este efeito são apenas aquelas que se destinem a proteger os credores sociais, isto é, as que tenham em vista a proteção destes, não bastando, portanto, que apenas lhes aproveitem ou que, eventualmente, os beneficiem reflexamente. Conforme observa Miguel Pupo Correia (…), a não ser assim, poderia chegar a incluir-se na abrangência deste requisito do n.º 1 do artigo 78.º praticamente todas as normas aplicáveis ao exercício das funções dos titulares dos órgãos sociais e, portanto, ao cumprimento dos seus deveres funcionais, eliminando, de todo em todo, o alcance restritivo do requisito em questão e criando um estado de total insegurança jurídica no tocante à responsabilidade dos titulares dos órgãos em questão. Aliás, em boa medida, aquele entendimento teria como consequência criar uma assimilação do alcance deste n.º 1 do art.º 78 ao n.º 1 do art.º 72, restaurando, assim, na prática, a presunção de culpa que, como vimos já, o legislador quis manifestamente afastar (…)” – cfr. o Ac. do STJ de 28-01-2016 (1916/03.8TVPRT.P2.S1); No mesmo sentido, cfr. os Acs. do TRL de 13-01-2011 (26108/09.9T2SNT-A.L1-2) e de 13-09-2016 (1636/13.5TBOER.L1-7), do TRP de 03-02-2014 (145/06.3TTMAI-F.P1) e de 08-01-2015 (449/14.1TBMAI.P1), e do TRG de 01-06-2017 (2687/12.2YXLSB.G2) e de 23-10-2014 (2300/10.2TBVCT.G1).
Não é necessário reforçar esta argumentação, por ser ela manifestamente bastante na recusa da presença de uma concreta norma primária do direito mercantil com fim de proteção dos credores sociais no art.º 64.º do Cód. Soc. Comerciais.
1.2.3. Normas contidas nos art.ºs 528.º, n.º 2, e 523.º do Cód. Soc. Comerciais
Na afirmação da ilicitude da conduta dos réus, invoca a apelante o disposto nos arts. 528.º, n.º 2, e 523.º do Cód. Soc. Comerciais. Estabelece o primeiro (ilícitos de mera ordenação social) que “(a) sociedade que omitir em atos externos, no todo ou em parte, as indicações referidas no artigo 171.º deste Código será punida (…)”. Por seu turno, estabelece o segundo (violação do dever de convocar ou requerer a convocação da assembleia geral em caso de perda grave do capital social) que “(o) gerente ou administrador de sociedade que, verificando pelas contas de exercício estar perdida metade do capital, não der cumprimento ao disposto no artigo 35.º é punido (…)”.
Afigura-se-nos ser claro que esta normação não se qualifica como uma previsão legal primária com o fim de proteção dos credores sociais. Estamos perante meros regimes sancionatórios, assentes na remissão para normas que preveem, estas sim, deveres a observar pelos agentes. De resto, a primeira destas disposições não se dirige, sequer, à atuação dos gerentes ou administradores da sociedade, mas sim à atuação da própria sociedade.
Aproximamo-nos, no entanto, da procurada norma de proteção a que se refere o art.º 78.º, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais, pois, como se verá mais adiante, ela está presente nos artigos convocados pelos enunciados dos arts. 528.º, n.º 2, e 523.º do Cód. Soc. Comerciais: os arts. 35.º, n.º 1, e 171.º, n.º 2, do Cód. Soc. Comerciais.
1.2.4. Normas contidas nos art.ºs 32.º, n.º 1, do CSC e 18.º do CIRE
Resulta dos factos provados que, em 26 de julho de 2016, a GITRRT, SA, vendeu 35% da participação que tinha no ACE com a TECS, por €60.000,00, conforme consta do ponto 31 – factos provados. Considerando o volume de negócios do ACE, este valor pode indiciar uma simulação contratual, pretendendo-se, na verdade, beneficiar sócios da GITRRT, SA, se também forem sócios da sociedade adquirente – num esquema fraudulento de interposição fictícia desta sociedade –, em violação do disposto no art.º 32.º do Cód. Soc. Comerciais.
Independentemente de os factos alegados e provados sustentarem, ou não, esta conclusão, afigura-se-nos ser deslocado efetivamente convocar a norma enunciada no n.º 1 do art.º 32.º do Cód. Soc. Comerciais – a qual reza: “(s)em prejuízo do preceituado quanto à redução do capital social, não podem ser distribuídos aos sócios bens da sociedade quando o capital próprio desta (…) seja inferior à soma do capital social e das reservas que a lei ou o contrato não permitem distribuir aos sócios ou se tornasse inferior a esta soma em consequência da distribuição”. Esta norma, que representa uma ressalva ao regime previsto no artigo que a antecede, não se dirige, nem por analogia, à atuação do gerente ou administrador, mas sim à atuação da sociedade a propósito distribuição de bens sociais aos sócios – ou se se preferir, à atuação dos titulares das participações sociais (art.º 31.º, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais). Do que trata o n.º 1 do art.º 32.º do Cód. Soc. Comerciais é de deliberações da sociedade (manifestação de vontade dos detentores das participações sociais) tendentes à transferência da propriedade de bens do ente coletivo – cfr., ainda, o disposto no art.º 72.º, n.º 5, do Cód. Soc. Comerciais.
Nenhuma pessoa jurídica, a não ser a indicada na norma, pode violar o n.º 1 do art.º 32.º do Cód. Soc. Comerciais – trata-se de um ato ilícito específico em sentido próprio –, assim como ninguém, a não ser um juiz (ou membro do CSM), pode violar uma norma disciplinar constante do EMJ. Nem que quisesse, o gerente ou administrador não pode violar esta norma (com imputação subjetiva do ato), numa atuação distinta de um ato dispositivo (da sociedade), pelo que não pode ela ser a norma de proteção a que se refere o art.º 78.º, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais.
Em suma, não negamos que o n.º 1 do art.º 32.º do Cód. Soc. Comerciais está ordenado à proteção dos credores – cfr. Alexandre de Soveral Martins, Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores, Coimbra, Almedina, 2020, p. 270 e segs. –; apenas afirmamos que os réus (na qualidade de administradores) não violaram esta norma (com a conduta descrita nos factos provados).
Não é invocada nas conclusões da alegação a inobservância do dever de apresentação pontual da sociedade à insolvência, como sendo o ilícito praticado pelos réus (cfr. os arts. 18.º e 19.º do CIRE). O conhecimento desta questão extravasa, pois, o objeto da apelação. De todo o modo, sempre se dirá que a factualidade dada por provada não permite, sem mais, uma subsunção do caso à norma enunciada no n.º 1 do art.º 18.º do CIRE, dada a apresentação da GITRRT, SA, a um processo especial de revitalização (art.º 18.º, n.º 2, al. a), do CIRE).
Também não é invocado nem exercido pela autora um direito da GITRRT, SA, sobre os seus administradores, pelo que não estamos face a uma ação sub-rogatória, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais. Nos casos em que os credores exercem a faculdade prevista no n.º 2 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais, não pedem estes a condenação do administrador a satisfazer o seu crédito, mas sim a entregar à sociedade a quantia indemnizatória de que esta perante aquele administrador é credora. Só depois de ingressar no património da pessoa coletiva, pode este ativo ser afeto ao pagamento das dívidas da sociedade (créditos de todos os credores: art.º 609.º do Cód. Civil).
Importa, por último, notar que o fornecimento de bens pela demandante – que está na origem do seu crédito – em nada foi condicionado pelas condutas relevantes dos réus – todas respeitantes ao ano de 2016 (após a revelação da perda de capital próprio) –, pois os últimos fornecimentos dados por provados foram efetuados no ano de 2015 – no valor total de €2.708,22 –, conforme consta do ponto 3 – factos provados. Esta realidade impede que se ensaie a responsabilização dos réus pela via da culpa in contrahendo (art.º 227.º do Cód. Civil).
Em face do exposto, resta-nos analisar as normas contidas nos art.ºs 35.º, n.º 1, e 171.º, n.º 2, do Cód. Soc. Comerciais.
1.2.5. Normas contidas nos art.ºs 35.º, n.º 1, e 171.º, n.º 2, do Cód. Soc. Comerciais
Reza o n.º 2 do art.º 171.º do Cód. Soc. Comerciais (menções em atos externos) que “(a)s sociedades (…) anónimas (…) devem (…) (em todos os contratos, correspondência, publicações, anúncios, sítios na Internet e de um modo geral em toda a atividade externa) indicar o capital social, o montante do capital realizado, se for diverso, e o montante do capital próprio segundo o último balanço aprovado, sempre que este for igual ou inferior a metade do capital social”. Dispõe o n.º 1 do art.º 35.º do Cód. Soc. Comerciais (perda de metade do capital) que “(r)esultando das contas de exercício ou de contas intercalares, tal como elaboradas pelo órgão de administração, que metade do capital social se encontra perdido, ou havendo em qualquer momento fundadas razões para admitir que essa perda se verifica, devem os gerentes convocar de imediato a assembleia geral ou os administradores requerer prontamente a convocação da mesma, a fim de nela se informar os sócios da situação e de estes tomarem as medidas julgadas convenientes”. Inquestionavelmente, o regime integrado por estas duas disposições constitui uma normação primária também com fim de proteção dos (potenciais) credores sociais – cfr. António Menezes Cordeiro e Ana Alves Leal, anotação ao artigo 35.º, in Código das Sociedade Comerciais Anotado, coord. de António Menezes Cordeiro, Coimbra, Almedina, 2022, 5.ª ed., pp. 234 e 235.
Com relevância para o preenchimento das fatispécies destas normas, resultou provado, após reapreciação oficiosa por este tribunal ad quem da prova produzida, que:
33 – Nos anos de 2014 e 2015, designadamente, a GITRRT, SA, tinha o capital social de €1.104.460,00.
34 – No termo do exercício de 2014, a GITRRT, SA, tinha o capital próprio de €7.842.963,27.
35 – No termo do exercício de 2015, a GITRRT, SA, tinha o capital próprio de €472 071,86.
Desta factualidade emerge com clareza que o caso descrito no n.º 1 do art.º 35.º do Cód. Soc. Comerciais (perda de metade do capital) apenas ocorreu no termo do exercício de 2015. Isto significa que só no decurso de 2016 poderia ser convocada a assembleia geral prevista neste artigo. O mesmo se diga das menções referidas no n.º 2 do art.º 171.º do Cód. Soc. Comerciais: apenas no exercício de 2016 poderiam e deveriam elas ser incluídas nos atos externos.
Não consta dos factos provados que a GITRRT, SA, tenha omitido nos seus atos externos as menções referidas no n.º 2 do art.º 171.º do Cód. Soc. Comerciais. Estamos perante um facto negativo, mas de simples alegação e fácil prova – bastando ao onerado juntar aos autos um documento que formalize um destes atos, no decurso do ano 2016, no qual aquelas informações não estejam presentes. Não se encontra, pois, demonstrado o facto ilícito extracontratual em causa.
Quanto ao dever de imediata apresentação de um requerimento para convocação de uma assembleia geral (art.º 35.º, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais), aparentemente mostra-se o mesmo incumprido, conforme decorre do ponto 36 – factos provados. A lei é clara: “(r)esultando das contas de exercício ou de contas intercalares, tal como elaboradas pelo órgão de administração, que metade do capital social se encontra perdido, ou havendo em qualquer momento fundadas razões para admitir que essa perda se verifica, devem os gerentes convocar de imediato a assembleia geral ou os administradores requerer prontamente a convocação da mesma” – cfr., ainda, o prazo previsto no art.º 376.º, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais.
Dizemos que aparentemente foi violado o dever de imediata apresentação de um requerimento para convocação de uma assembleia geral, pois, em rigor, apenas sabemos que a assembleia ocorreu em 18 de julho de 2016 – cfr. o facto 36 –, e não quando foi esta requerida ao presidente da mesa pelo conselho de administração – arts. 375.º, n.º 1, e 377.º, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais. Ainda assim, porque os réus não excecionaram a apresentação de um tempestivo requerimento ao presidente da mesa – o contrário é, aliás, sugerido pelo teor do facto 13 –, podemos aceitar que a satisfação da obrigação prevista no art.º 35.º, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais, por ter ocorrido tardiamente, é defeituosa. Aqui se encontra a ilicitude da sua atuação.
1.3. Causalidade específica: condução à insuficiência do património
As singularidades do regime especial da responsabilidade que nos ocupa justificam que a lei descreva, como seu pressuposto, uma relação causal específica. Não se reitera no n.º 1 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais, como requisito a preencher, que o dano do credor (insatisfação do seu crédito) seja causado pela atuação do administrador (violadora de uma disposição legal destinada à proteção dos credores), exigindo-se, sim, como pressuposto específico, que tal atuação cause a insuficiência do património social para a satisfação das dívidas da sociedade.
Ora, não resulta dos factos provados que uma suposta omissão da inclusão das menções referidas no n.º 2 do art.º 171.º do Cód. Soc. Comerciais nos atos externos da sociedade ou que a falta de uma mais célere convocação da assembleia geral (art.º 35.º, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais) tenham sido causa da insuficiência do património social para a satisfação das dívidas da sociedade. A relação de causalidade presente é a inversa: a perda de património social suficiente para a satisfação das dívidas da sociedade é anterior e determina o nascimento dos deveres acima analisados.
Em suma, não resulta minimamente dos factos provados que uma concreta insatisfação do disposto no n.º 1 do art.º 35.º do Cód. Soc. Comerciais tenha causado a insuficiência do património social para a satisfação das dívidas da sociedade. O mesmo é dizer que, embora se tenha detetado um instituto jurídico destinada à proteção dos credores, não se pode concluir que sua violação provocou a insuficiência do património social para a satisfação das dívidas da sociedade.
A análise do último pressuposto da responsabilidade civil aquiliana, a culpa – isto é, a atuação censurável –, é desnecessária, pois podemos, desde já, concluir que a hipótese legal do n.º 1 do art.º 78.º do Cód. Soc. Comerciais não se mostra preenchida – sobre o ónus da prova da culpa, cfr. o Ac. do STJ de 13-09-2016 (1636/13.5TBOER.L1-7).
2. O levantamento da personalidade jurídica coletiva
Na 32.ª conclusão das suas alegações, a apelante sustenta que se verificam “os pressupostos para o levantamento da personalidade coletiva, justificando-se a desconsideração da personalidade jurídica autónoma da sociedade em causa (…), sendo todos os réus responsabilizados solidariamente (cfr. art.º 512.º do Cód. Civil) pelo pagamento das quantias devidas à autora”. Afigura-se que a autora labora em equívoco, no que respeita ao modo de funcionamento do instituto da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade comercial, em geral.
A desconsideração da personalidade da sociedade comercial afeta os titulares da pessoa coletiva, isto é, aqueles que atuam no tráfego jurídico-comercial por seu intermédio. Esta ferramenta jurídica afasta, na prática, a responsabilidade limitada, passando os titulares das participações sociais a encabeçar as relações jurídicas formalmente integradas pela sociedade, designadamente, respondendo pelas suas dívidas. A “‘desconsideração da personalidade jurídica’ da sociedade e a responsabilização dos gerentes (ou administradores) não constituem mecanismos alternativos para resolver o mesmo problema (embora ambos tutelem, direta ou indiretamente, os interesse dos credores sociais): o primeiro destina-se a promover a responsabilidade de sócios por dívidas da sociedade; o segundo, a responsabilizar e gerentes (ou administradores) pelos danos que a sua atuação causou à sociedade e, eventual e reflexamente, também a credores sociais” – cfr. Maria de Fátima Ribeiro, «Da pertinência do discurso à "desconsideração da personalidade jurídica" para tutela dos credores sociais», CDP, n.º 27, p. 51, sublinhado nosso. Ou seja, a desconsideração da personalidade coletiva, enquanto ferramenta não tipificada, permite responsabilizar os sócios, afetando o seu património pessoal, e não os seus representantes estatutários, designadamente, os seus administradores – cfr. o Ac. do TRL de 16-05-2013 (2160/11.6TBOER.L1-2), bem como Maria de Fátima Ribeiro, «Desconsideração da personalidade jurídica e tutela de credores», in Estudos Dedicados ao Professor Doutor Nuno José Espinosa Gomes da Silva, Volume II, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p. 13 e segs., e Ana Filipa Morais Antunes, A Fraude à Lei no Direito Civil Português, Coimbra, Almedina, 2018, p. 432, nota 1069.
Importa aqui notar que o regime previsto no art.º 78.º, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais representa já, até certo ponto, um afastamento da personalidade coletiva – e da eficácia relativa dos contratos (art.º 406.º, n.º 2, do Cód. Civil) – que, especialmente, afeta os administradores da sociedade. À margem desta norma, o afastamento da personalidade jurídica da sociedade comercial, de contornos manifestamente imprecisos e inseguros, não afeta retroativamente a natureza da sua atuação em nome de outrem.
Ora, no caso dos autos, a autora nunca alegou qual é a estrutura acionista da GITRRT, SA, nunca tendo alegado que os réus são detentores de participações sociais (ações). Toda a demanda foi estruturada sobre a qualidade de administradores detida pelos réus. O mesmo é dizer que, à luz dos factos alegados e provados, nunca poderiam os réus ser responsabilizados pelas dívidas da GITRRT, SA, ainda que a personalidade jurídica desta fosse desconsiderada.
3. Responsabilidade pelas custas
A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art.º 25.º do Reg. Cus. Proc.).
A responsabilidade pelas custas (da causa e da apelação) cabe à apelante, por ter ficado vencida (art.º 527.º do Cód. Proc. Civil).
C. Dispositivo
C.A. Do mérito do recurso
Em face do exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em manter a sentença recorrida.
C.B. Das custas
Custas a cargo da apelante.
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Notifique.
Lisboa 19/3/2024
Paulo Ramos de Faria
José Capacete
Carlos Oliveira