Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4592/19.2T8ALM.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: RESTITUIÇÃO DO SINAL EM DOBRO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
DÍVIDA DE CÔNJUGES
MEIO DE PROVA ILEGAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – O direito ao pagamento do sinal em dobro (art. 442/2 do CC), depende do incumprimento definitivo e da resolução do contrato.
II – Não há abuso no direito a exigir esse pagamento (art. 334 do CC), se não se provam os factos alegados para esse efeito.
III – A condenação de um cônjuge de um promitente vendedor faltoso no pagamento daquele sinal, depende da alegação e prova de factos que permitam a sua responsabilização pela dívida (art. 1691 do CC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados
             
S e mulher, J, intentaram a presente acção declarativa comum contra PJ e mulher, PF, pedindo que estes sejam condenados no pagamento do sinal em dobro, bem como numa indemnização a quantificar pelo tribunal, acrescida de juros até à data da entrada da petição, face ao incumprimento contratual, ou, caso não se entenda ao peticionado, a acção seja julgada procedente em sede de enriquecimento sem causa, condenando os réus no pagamento da quantia total dada a título de sinal no valor de 8000€, sendo suportados pelos réus todos os juros desde a entrega do valor até à data da entrada desta petição.
Para tanto alegam que [transcreve-se com apenas alguns cortes e simplificações]: em 15/05/2018, celebraram, na qualidade de promitentes-compradores, um contrato de promessa de compra e venda de um imóvel (conforme doc.1), dando a título de sinal 8000€ aos promitentes vendedores, que se apresentaram como legítimos proprietários do imóvel; do contrato promessa entregue aos autores não existe reconhecimento das assinaturas, sendo que os autores desconheciam essa obrigatoriedade; não se juntou a procuração da mulher do promitente vendedor, em virtude de esta não estar presente, mas consta do documento que o réu outorgou por si e na qualidade de procurador e em representação da ré; ficou, de comum acordo, a chave do imóvel, de ser entregue aos promitentes-compradores somente na data da celebração da escritura, pois o imóvel estava em obras de remodelação total, estando combinado os promitentes vendedores só entregarem o imóvel quando as mesmas terminassem; (11) não obstante, as partes acordaram que os autores poderiam acompanhar as obras, sendo certo que mantinham contacto com o engenheiro; (12) nesse sentido, foram facultadas as chaves para que os autores pudessem acompanhar a realização das obras; os réus de acordo com o contrato, ficaram de realizar a escritura de compra e venda no prazo de 120 dias a contar da data da celebração do contrato-promessa; apesar das várias interpelações, já após 15/09/2018, por parte dos autores e da própria gerente do banco, os réus nunca enviaram a documentação solicitada a fim de se marcar a escritura e nunca prestaram qualquer esclarecimento para o efeito aos autores; (19) tendo os autores constatado que, na data limite acordada para a celebração da escritura, não foi comunicada nenhuma data para ela, enviaram carta aos promitentes-vendedores a conceder mais 30 dias para diligenciarem na realização da escritura (doc.8) (20) e no dia 04/10/2018 foi enviado e-mail por parte dos autores a questionar quando seria a escritura e a pedir para se ter atenção ao tempo já decorrido; (21) não obstante, os réus nada vieram dizer. (22) Os autores entraram em contacto telefónico com os réus, por diversas vezes, porém sem sucesso, sendo que, os mesmos nunca atenderam as chamadas. (23) Ao longo do processo os promitentes vendedores não facultaram os documentos legais para a celebração da escritura, tendo apenas entregue alguns, “a conta-gotas”, porque não tinham a documentação legal para entrega. Os poucos documentos entregues por parte do promitente vendedor, só foram enviados ao promitente-comprador fora de todos os prazos combinados e após várias insistências por parte dos autores e do próprio banco. (25) Os autores tinham grande necessidade em ocupar o imóvel, pois o contrato celebrado tinha como finalidade a habitação própria e permanente, tendo os autores já feito a encomenda da mobília. (26) A autora, por motivos de saúde tem dificuldades de mobilidade, razão pela qual era urgente a marcação da escritura para que pudessem estabilizar as suas vidas e ter a comodidade pretendida. (27) Desde a data da celebração do contrato-promessa que os autores nunca mais conseguiram falar com os réus, sendo que por vezes conseguiam falar com o Eng. JP, que era o intermediário entre as partes. (28) Foram efectuados vários contactos telefónicos, troca de e-mails, bem como mensagens durante o período de Maio de 2018 à presente data [25/06/2019], nomeadamente insistência de contactos em Dezembro de 2018 – cfr. docs. 9 e 10. (29) Nesta data, foi inclusive enviada carta por correio simples a dar novo prazo para se marcar a escritura, caso contrário não haveria mais interesse no cumprimento do contrato, atento o tempo decorrido. (30) Sucede que uma vez mais não houve qualquer resposta por parte dos réus, como vinha a ser habitual desde Maio de 2018, após assinarem o contrato e receberem o valor de 8000€ (31) O Eng. JP sempre foi intermediário entre as partes e bem sabia e conhecia quais os contactos dos autores, nomeadamente contactos telefónicos, e-mails, sendo que nunca os autores durante 1 ano receberam qualquer contacto para se marcar a escritura, seja dos réus, seja do engenheiro em nome deles. (32) O contrato-promessa foi celebrado na perspectiva de ser celebrado escritura de compra e venda ao fim de 120 dias, confiando os autores na boa fé dos réus, porém nunca obtiveram resposta por parte dos mesmos. (33) Os autores devido à permanente e interminável espera não denunciaram o contrato de arrendamento num outro imóvel, caso contrário ficariam sem uma casa. (34) Ora, dado que os réus nunca responderam as insistências realizadas, os autores tiveram que organizar a sua vida, não podendo ficar ad eternum, na instabilidade em que viviam, a aguardar uma resposta dos mesmos. (35) Assim, atento o lapso de tempo decorrido desde a celebração do contrato promessa até á presente data, os autores perderam total interesse na compra do imóvel, tendo já adquirido uma nova habitação. (36) No dia 30/04/2019, foi enviada nova carta registada com aviso de recepção aos réus, através dos mandatários dos autores concedendo um prazo de 5 dias para voluntariamente procederem à devolução do sinal em dobro, manifestando-se desde já a falta de interesse na manutenção do contrato - cfr doc.11 (37) Após recepção da carta, não houve qualquer resposta à mesma, nem o respectivo pagamento. (38) Ainda, diligenciaram os autores no sentido de entrar em contacto telefónico com os réus, porém sem sucesso. (39) A mandatária dos autores entrou em contacto com o Eng. JP que comunicou que iria falar com os réus, alertando que tinha sido enviada uma carta. (40) Mais, comunicou que as cartas por vezes não eram recebidas em 1.ª mão pelos réus sendo que eram entregues posteriormente aos mesmos, porém que iria diligenciar e entrar em contacto posteriormente com o escritório, o que nunca veio a suceder. (41) Desde o pagamento do sinal, até a presente data, não foi prestado qualquer esclarecimento aos autores sobre o incumprimento do contrato. (42) Nessa medida, dá-se por definitivamente incumprido o contrato por parte dos réus, já comunicado anteriormente, e confirmado por carta de 30/04/2019 pela mandatária. (43) Até à presente data, não houve qualquer comunicação oral ou escrita por parte dos promitentes vendedores, pelo que não tiveram os autores outra alternativa a não ser dar entrada desta acção para recuperar o valor do sinal em dobro, conforme consta expressamente do contrato. (44) Os autores sentem-se lesados nos seus objectivos, pelo que devem, de igual forma, ser indemnizados nesse sentido. (45) É de salientar que, os réus nunca disseram nada aos autores após receberem o sinal de 8000€ nas suas contas bancárias. (46) Nunca mais comunicaram com os [autores], nem atenderam os telefones.
Os réus contestaram, dizendo, que os autores inserem na PI a problemática da eventual nulidade do contrato promessa de compra e venda por falta de forma bem como da eventual necessidade de ambos os promitentes vendedores estarem devidamente representados em tal acto e acrescentam que nunca se iriam refugiar na alegação de vícios de forma do contrato promessa, porquanto sempre quiseram que o mesmo produzisse os seus normais efeitos e sempre agiram de boa-fé; as chaves nunca forem entregues aos autores para que acompanhassem a realização das obras; apenas foram entregues pelo Eng. JP ao autor em 23/10/2018, pois este necessitava de receber uma encomenda que chegava nesse mesmo dia, ao imóvel; com as chaves em seu poder, e aproveitando-se de tal facto, os autores começaram a residir no imóvel antes do final de 2018, onde ficaram a residir, pelo menos, até Abril de 2019; na data em que deveria ter ocorrido a escritura do contrato [definitivo] – 15/09/2018 - as obras no imóvel ainda não estavam concluídas, mantendo quer os promitentes-vendedores, quer os promitentes-compradores, interesse na concretização do negócio prometido, conforme doc.8 junto com a PI; os autores no final do mês de Setembro, em simultâneo, interpelam os réus para a marcação de escritura no prazo máximo de 30 dias e dão início ao processo de crédito bancário com vista ao financiamento da compra do imóvel, o que, desde logo, resulta do art. 16 da PI; verifica-se do confronto dos e-mails de 28/09/2018 e de 04/10/2018, que os réus entregaram aos autores, em data compreendida entre o dia 28/09/2018 e 04/10/2018, a certidão de teor e a caderneta predial urbana, documentos solicitados pela entidade bancária com vista ao financiamento; acresce que, tendo em conta os e-mails de 04/10/2018 e 09/10/2018, os réus enviaram ainda para a entidade bancária no dia 08/10/2018 o documento relativo ao direito de preferência; acresce ainda que, na data de 09/10/2018, o réu procedeu ao envio para a empregada do banco, a identificação do vendedor, cfr. doc. 4 que se junta; assim, até ao dia 09/10/2018, os réus disponibilizaram todos os elementos solicitados, à excepção da licença de utilização e do certificado energético; o prazo concedido pelos autores para marcação da escritura de compra e venda terminaria no final de Out2018; a comunicação entre os autores e os réus foi continuando, nomeadamente através do Eng. JP que era quem, a trabalhar conjuntamente como réu, se encontrava amiúde com o autor; foi através de tais contactos que os réus vieram a concordar proceder à instalação de dois roupeiros, a pedido dos autores, conforme factura FT 2018A/1016, doc. 5, sendo que tal factura data de Outubro de 2018. Foi na sequência de todos os contactos que a porta de entrada da fracção foi substituída, ainda durante o mês de Set2018, conforme factura FT2018A/906, doc.6; os réus ainda comunicaram aos autores que, uma vez que o elevador do prédio onde se situa a fracção se encontrava avariado, teriam uma “atenção” no valor final no montante de 3000€; os réus ainda forneceram máquina de lavar roupa, máquina de lavar loiça e um frigorífico, todos no estado novo, em Janeiro de 2019, o que se alcança da factura FT2019A/7 doc.7; o autor encontrava-se em casa no dia em que estes electrodomésticos foram entregues na fracção; porque sempre mantiveram a boa fé inicial, os réus aguardaram que a Câmara Municipal de S enviasse a licença de utilização, único documento que obstava à realização da escritura de compra e venda e conforme doc.8 que juntam, apenas em Janeiro de 2019 é que a CM disponibilizou aos réus tal documento; dada a situação de facto – os autores já terem a posse da fracção, a estarem a habitar, a solicitarem, mesmo muito para além do decurso de todos prazos por eles impostos, a montagem de electrodomésticos, a contratualizarem serviços de fornecimento de energia e de telecomunicações -, entenderam os réus que os autores continuariam a manter o interesse na concretização do negócio prometido, sem a urgência manifestada na sua carta de 29/09/2018; para total surpresa dos réus, e seus colaboradores, os autores depois de todas estas condutas que geraram a confiança na concretização do negócio, deixaram de estar contactáveis: facto este que levou o réu e o Eng. JP a deslocarem em 01/05/2019 à fracção prometida vender a fim de apurar o sucedido, tendo então sido informados de que os autores se tinham ausentado para parte incerta; com maior surpresa os réus receberam a 03/05/2019 a carta si dirigida, de 30/04/2019, na qual os autores através da sua mandatária, declaram resolvido o contrato promessa celebrado, peticionando a devolução do sinal em dobro; impugnam o envio de uma carta pelos autores em Dez2018; dizem que as verdadeiras intenções dos autores, são reveladas pela compra de nova habitação, conforme por eles alegado; só com a entrada a acção em juízo é que os autores vêm afirmar a perda total de interesse na compra do imóvel, tendo adquirido nova habitação; anteriormente a esta data, os réus através do seu mandatário, em Maio do corrente ano, vieram informar os autores de data para realização da escritura de compra e venda, conforme doc.8 que se junta; impugnam uma série de outros factos, alguns deles por desconhecimento sem obrigação de conhecer; os autores sempre criaram a confiança dos réus de que iriam celebrar o contrato prometido, ainda que tivessem decorrido alguns dos prazos fixados; os réus sempre foram correspondendo aos pedidos dos autores quanto a melhorias na fracção a adquirir; os próprios autores foram sempre manifestando pessoalmente ao Eng. JP, a vontade de concretização de tal negócio, independentemente do tempo decorrido; os autores, ao resolverem o contrato da forma como o fizeram, agem em nítido abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
Na audiência de 07/01/2020, foi determinado que se oficiasse à I e à M, solicitando as informações indicadas nos artigos 44 e 45 da contestação, o que foi feito por ofícios do mesmo dia, em que se diz apenas que, por ordem da Srª juíza, solicita-se que informe, no prazo de 10 dias, a data do início da prestação do serviço no imóvel sito Rua J, n.º 5 frente, S.
Na petição o imóvel é identificado como n.º 5 andar frente, e no contrato está identificado como n.º 2, 5º andar frente.
A M respondeu que “não nos é tecnicamente possível efectuar pesquisas por morada.”
A I informou que procedeu à consulta da base de dados, utilizando para o efeito os elementos disponibilizados no ofício, não constando da mesma registo de contrato de fornecimento, em vigor ou não, no imóvel indicado.
As respostas foram notificadas às partes.
Os réus vieram então requerer a junção aos autos de “dois documentos, comprovativos da falsidade da informação prestada”, que são duas cartas da I dirigidas ao autor.
Estes documentos foram notificados aos autores, que vieram “no exercício do contraditório, impugnar os documentos juntos pelos réus.” Dizem que “desconhecem como é que os réus tiveram acesso aos documentos em causa, pelo que se requer que venham informar os autos nesse sentido”.
Na acta da audiência final de 15/06/2020, consta a seguinte assentada relativamente ao depoimento de parte do réu: artigo 11 da PI – admite como verdadeiro; artigos 19 e 20 da PI – admite como verdadeiro; artigo 25 da PI – admite como verdadeiro; artigo 26 da PI – admite como verdadeiro; artigo 27 da PI – admite apenas que o engenheiro JP era o intermediário entre as partes; artigos 28 a 30 da PI – não se recorda se foram enviadas cartas simples; artigo 31 da PI – admite como verdadeiro; artigo 33 da PI – admite apenas que os autores residiram numa casa arrendada; artigo 37 da PI – desconhece se houve alguma resposta por parte do Eng. JP, admitindo que não procedeu ao pagamento do sinal em dobro; artigos 39 e 40 da PI – não se recorda; artigos 45 [corrigiu-se o lapso de escrita: constava 46 - TRL] e 46 da PI – Admite apenas que, posteriormente à celebração do contrato promessa, o réu apenas falou directamente com os autores uma única vez.
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença condenando os réus, solidariamente, no pagamento aos autores, da quantia de 16.000€, a que acrescem juros de mora à taxa de juros de 4%, desde a data da propositura da acção e até integral pagamento, absolvendo-os do remanescente pedido. Custas pelos réus (art.º 527º, n.º 1 do CPC).
O réu recorre desta sentença, impugnando a decisão de vários pontos da matéria de facto e a decisão de direito, pois que não teria incorrido em incumprimento definitivo do contrato e os autores estariam a agir com abuso do seu direito.
Os autores contra-alegaram, defendendo a improcedência de ambas as impugnações.
*
Questões que importa decidir: se os autores têm direito ao pagamento do sinal em dobro por parte dos réus; ou se se deve entender que os autores estão a agir com abuso de direito.
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Estão dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão destas questões [ao abrigo dos artigos 663/2 e 607/4 do CPC, transcreveu-se o contrato-promessa em causa nos autos, na parte que importa, em vez do que os autores alegavam – e foi reproduzido - de forma imperfeita: erro na identificação do imóvel [n.º 5 em vez de n.º 2, por exemplo], transcrição parcial de factos, etc., eliminando-se, por isso, as anteriores alíneas (a), (d) (e), (h), (i) e (j); este TRL transcreveu as cartas de 29/09/2018 e Abril2019; mantendo-se embora a numeração, foi alterada a ordem dos factos, no essencial para os colocar por ordem cronológica; os factos 3, 4, 10, 11 e 16, dado que se referem a todo o período de relacionamento, foram deixados para o fim, antes dos factos dos réus, factos 18 a 20, que foram deixados para depois daqueles; face ao decidido quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, foi aditado ao ponto 2 a parte sublinhada e foram aditados os pontos 21 e 22]:
A) Foi celebrado o seguinte contrato promessa:
Contrato promessa de compra e venda e recibo de sinal
Entre: [réu], casado sob o regime de comunhão geral de bens com [ré], que outorga por si e na qualidade de procurador e em representação da sua referida mulher, consigo residente em Almada, adiante designado por Promitente Vendedor;         
e [autor], casado no regime de comunhão geral de bens com [autora], ele natural de Luanda, ela natural de Lubango, residente na Rua J, n.º 2, freguesia de R, concelho de S, adiante designado por Promitentes Compradores.           
Considerando que
O Promitente Vendedor, é dono e legítimo proprietário da fracção autónoma, destinada a habitação, designada pela letra U, composto de três assoalhadas, que constitui o 5° andar frente, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua J, n.º 2, freguesia de R, concelho de S, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de S sob o n.º 000, e inscrito na respectiva matriz predial urbana, da referida freguesia, sob o artigo 0000.
É livremente e de boa fé celebrado o presente Contrato-Promessa de Compra e Venda, constante do considerando anterior e do seguinte clausulado, que ambas as partes aceitam e reciprocamente se obrigam a cumprir:    
Cláusula Primeira (Objecto)
Pelo presente contrato, o Promitente Vendedor promete vender aos Promitentes Compradores, que reciprocamente prometem comprar, para si ou pessoa (as) a indicar até à realização da Escritura Notarial / Conservatória "Casa Pronta" / Documento Particular Autenticado, livre de quaisquer ónus ou encargos à data da escritura e devoluta de pessoas e bens, a fracção autónoma descrita nos considerandos supra, no estado de conservação e habitabilidade em que se encontra na presente data.              
Cláusula Segunda (Preço)
O preço da prometida compra e venda é de 60.000€ e será pago nos termos e nas datas previstas na Cl.ª 3.ª.    
Cláusula Terceira (Forma de Pagamento)
1. No acto da assinatura deste contrato, o Promitente Vendedor declara ter recebido dos Promitentes Compradores, como sinal e princípio de pagamento do aludido preço, a quantia de 8000€, dando pela assinatura aposta neste contrato a correspondente e devida quitação;                           
2. O remanescente do preço, ou seja, 52.000€, será pago na data da celebração da prometida escritura; 
3. O pagamento a que se refere o número 1 será efectuado por transferência bancária para a conta do Promitente Vendedor. A produção de efeitos deste contrato está condicionada à boa cobrança da transferência bancária.
Cláusula Quarta (Data e Local da Escritura)
1. A escritura de compra e venda será realizada em data e Cartório Notarial / Conservatória "Casa Pronta" / Documento Particular Autenticado a designar pelo Promitente Vendedor no prazo de 120 dias a contar desta data.  
2. Para efeitos do número anterior, o Promitente Vendedor deverá comunicar a data, hora e local da celebração da escritura aos Promitentes Compradores com uma antecedência mínima de oito dias.
Cláusula Quinta (Entrega do Imóvel)
1. A entrega das chaves da fracção, objecto do presente contrato, será entregue na data da outorga da escritura no Cartório Notarial / Conservatória "Casa Pronta" / Documento Particular Autenticado.
Cláusula Sexta (Incumprimento)
1. As partes acordam em sujeitar o presente contrato-promessa ao regime de execução específica, prevista no artigo 830 do Código Civil, podendo ainda os Promitentes Compradores, em caso de incumprimento imputável ao Promitente Vendedor, optar por exigir a devolução da quantia paga, a título de sinal, em dobro.
2. Se o incumprimento for da responsabilidade dos. Promitentes Compradores, o Promitente Vendedor terá o direito de fazer sua a quantia entregue a título de sinal, ou igualmente optar pela execução específica.   
Cláusula Sétima (Encargos com a celebração da Escritura)
[…]
Cláusula Oitava (Pacto de Jurisdição)
[…]
A, 15 de Maio de 2018                  
O Promitente Vendedor,
Os Promitentes Compradores
B) Os autores deram, a título de sinal da compra do referido imóvel a quantia de 8.000€, aos promitentes vendedores.
C) Os promitentes vendedores apresentaram-se como legítimos proprietários do imóvel.
F) O contrato promessa foi celebrado sem reconhecimento das assinaturas, sendo que os autores desconheciam essa obrigatoriedade.
G) Não foi junta a procuração da mulher do promitente vendedor, a qual não esteve presente na assinatura do contrato.
1. As partes acordaram que os autores poderiam acompanhar as obras, sendo certo que mantinham contacto com o engenheiro, bem como com o mestre-de-obras.
2. Apesar das várias interpelações, por intermédio do Eng. JP, já após 15/09/2018, por parte do autor e da própria gerente do banco, nunca foi enviada por parte dos réus toda a documentação solicitada para a realização da escritura, e mais concretamente, nunca foi enviada a licença de utilização nem o certificado energético.
5. Tendo os autores constatado que, em 15/09/2018 não tinha sido comunicada qualquer data para a celebração do contrato de compra e venda do imóvel, enviaram carta aos promitentes vendedores, a conceder mais 30 dias para diligenciarem na realização da escritura, junta como documento n.º 8 da PI:    
29/09/2018
Cumprimento do contrato-promessa […]
Exmo. Senhor [réu] (promitente vendedor),
Serve a presente carta para dar conhecimento da necessidade de ser celebrado o contrato de compra e venda do imóvel […], tal como resulta do contrato de promessa de compra e venda celebrado em 15/05/2018.
Notamos que apesar do não cumprimento do prazo inicial de 120 dias por parte do promitente vendedor, previsto no supra-referido contrato de promessa, mantemos o interesse na celebração do contrato prometido.
No entanto, relembrando que as partes devem proceder de boa fé tanto nos preliminares como na formação do contrato, como tal, concedemos um novo prazo, de 30 dias, para celebração do contrato prometido, a partir da recepção desta carta.
Caso o promitente vendedor não cumpra o novo prazo estabelecido terá que restituir o sinal prestado no valor de 8000€ em dobro nos termos do n.º 2 do artigo 442 do Código Civil.
6. No dia 04/10/2018 foi enviado e-mail pelos autores, dirigido ao Eng. JP, com a seguinte comunicação: “Bom dia JP, Para quando a conclusão do processo para assinatura da escritura. Peço-vos mais uma vez para ter em atenção os timings.”
7. Os réus não responderam à carta referida em 5.
8. Os autores tinham grande necessidade em ocupar o imóvel, pois o contrato celebrado tinha como finalidade a habitação própria e permanente, tendo os autores já feito a encomenda da mobília.
9. A autora, por motivos de saúde, tem dificuldades de mobilidade, razão pela qual para os autores era urgente a marcação da escritura para que pudessem estabilizar as suas vidas e ter a comodidade pretendida.
12. Os autores tinham uma casa arrendada aquando da celebração do contrato-promessa.
17. As chaves da fracção apenas foram entregues pelo Eng. JP ao autor, em data não concretamente apurada, pois este necessitava de receber uma encomenda.
K) No dia 30/04/2019, foi enviada nova carta registada com aviso de recepção aos réus, através dos mandatários dos autores, com o seguinte teor:
Fomos incumbidos por parte do nosso constituinte, [autor] para informar V. Exª que, na presente data se encontra definitivamente incumprido o contrato de promessa de compra e venda, referente ao imóvel […], celebrado em 15/05/2018, com vista a realizar escritura no prazo de 120 dias a contar da referida data.
Em 29/09/2018, o nosso constituinte, o promitente comprador, enviou carta registada com aviso de recepção a V. Exª, com o intuito de lhe conceder mais 30 dias para efectivar a celebração de escritura do referido imóvel, que não se veio a concretizar.
No âmbito de contrato de promessa de compra e venda celebrado por V. Exa como promitente vendedor do imóvel, consta da 6ª cláusula, n° 1 (incumprimento), que caso o incumprimento seja imputável ao promitente vendedor, terá o nosso constituinte na qualidade de promitente-comprador, a exigir a devolução da quantia paga de 8000€, a título de sinal, mas em dobro, ou seja, pelo montante de 16.000€.
Face ao exposto, vimos em nome do nosso constituinte, informar que devido ao incumprimento definitivo do contrato, e tendo sido ultrapassado largamente o prazo acordado para a celebração do contrato definitivo da compra do imóvel, já não existe interesse na sua compra.
Face ao exposto, vimos solicitar o pagamento do valor de 16.000€ por transferência bancária para a conta PT […], no prazo máximo de 5 dias a contar da data da emissão desta carta, sob pena de avançarmos com os respectivos meios judiciais para a resolução deste assunto.
13. A carta enviada pelos autores em 30/04/2019 foi recebida pelos réus e não teve qualquer resposta, nem os réus procederam a qualquer pagamento aos autores.
14. A mandatária dos autores entrou em contacto com o Eng. JP que comunicou que iria falar com os réus, alertando que tinha sido enviada uma carta.
15. O Eng. JP comunicou aos autores que as cartas por vezes não eram recebidas em 1.ª mão pelos réus, sendo que lhes eram entregues posteriormente; porém que iria diligenciar e posteriormente iria entrar em contacto com o escritório das advogadas dos autores, o que nunca veio a suceder.
3. Os réus nunca prestaram aos autores qualquer esclarecimento para o facto de não terem enviado a restante documentação.
4. Os réus jamais comunicaram aos autores qualquer marcação da escritura pública de compra e venda.
10. Os autores por vezes conseguiam falar com o Eng. JP, que era o intermediário entre as partes.
11. O Eng. JP tinha os contactos telefónicos e e-mails dos autores.
16. Os réus não tiveram mais contactos directos com os autores após receberem o sinal de 8000€ nas suas contas bancárias.
18. No dia 15/09/2018 as obras no imóvel ainda não estavam concluídas.
19. O Eng. JP reuniu com o autor na sala da fracção, no sofá lá colocado pelos autores, em data não concretamente apurada.
20. Os réus comunicaram aos autores, por intermédio do Eng. JP, que, uma vez que o elevador do prédio onde se situa a fracção objecto dos presentes autos se encontrava avariado, lhes fariam uma “atenção” no valor final no montante de 3000€.
21. Foram – por conta dos réus - fornecidos transportados e colocados na fracção objecto do negócio, às 16h53 de 10/10/2018, móveis de cozinha, um forno e placa, lava-loiça e 2 roupeiros.
22. Também por conta dos réus, foram entregues, na fracção, uma máquina de lavar roupa, outra de lavar loiça e um frigorífico, a 03/01/2019.
*
Da impugnação da decisão da matéria de facto
No ponto 2 dos factos provados consta: Apesar das várias interpelações, já após 15/09/2018, por parte do autor e da própria agente do banco, nunca foi enviada por parte dos réus toda a documentação necessária para a realização da escritura e mais concretamente, nunca foi enviada a licença de utilização nem o certificado energético.
O tribunal fundamenta assim a decisão deste ponto:
Resultou do depoimento da testemunha VM, empregada do banco que estava a reunir a documentação necessária para a escritura, que nunca lhe foram entregues os referidos documentos. Os seus e-mails, juntos a fls. 16v a 18v do suporte físico do processo revelam as suas insistências, junto do Eng. JP, pelo envio dos documentos imprescindíveis à realização da escritura pública e que nunca lhe chegaram a ser enviados. O autor corroborou, nas suas declarações, que tais documentos nunca lhe foram entregues. Por outro lado, os réus não fizeram qualquer prova de terem entregue aos autores tais documentos. Aliás, nem conseguiram fazer prova de que tenham sequer conseguido obter tais documentos, apesar de o réu o referir nas suas declarações, bem como o Eng. JP no seu depoimento. A prova de que tinham a licença de utilização e o certificado energético da fracção autónoma seria facilmente feita se os tivessem juntado aos presentes autos, o que não foi feito. A mensagem da Câmara Municipal de S, junta a fl. 41v do suporte físico do processo, não faz prova de que a certidão ali referida diga respeita à fracção autónoma objecto dos presentes autos.
Contra isto, os réus dizem que:
“[N]este ponto 2 está claramente afirmado que os autores tentaram realizar várias interpelações aos autores.
No entanto, conforme é afirmado pelo réu, durante as suas declarações de parte, os autores nunca o tentaram contactar, inclusive, era regularmente o Eng. JP que realizava todas as comunicações com o autor, como aliás decorre do facto provado sob 1 e que, como tal, geralmente deveria transmitir ao réu todas as informações e solicitações dos autores, o que fez.
No entanto os autores nunca tentaram contactar com o réu, tendo sido afirmado pelo próprio réu, no julgamento, de minuto 37:07 até 37:19, que esteve sempre à espera de alguma comunicação da parte dos autores, comunicação esta que nunca lhe chegou.
Poderá ser verificado também, de acordo com o depoimento da testemunha VM, que era a empregada do banco que auxiliou os autores durante o processo de obter o empréstimo para a compra da casa, que a mesma chegou a realizar chamadas telefónicas e a enviar e-mails a um dos responsáveis pelas obras que estavam a ser realizadas no imóvel, com um homem, do qual já não se recorda do nome, tendo sido dito em julgamento do tempo 08:29 até 08:42.
Mais tarde, durante o julgamento, foi clarificado que o homem em questão se trava do Eng. JP, o que igualmente decorre do facto 1.
O que não há é qualquer prova, qualquer factura detalhada ou qualquer outro meio de prova que permita concluir pela existência de qualquer comunicação dos autores aos réus, razão pela qual tal facto não poder ser dado por provado. Deste modo concluímos que os autores não tentaram, de facto, contactar o réu.
Os autores respondem que:
No dia 29/09/2018, conforme documento junto aos autos, os recorridos interpelaram directamente os recorrentes;
Mais, conforme refere a sentença, resultou do depoimento da testemunha VM que apesar de várias insistências junto dos réus, por intermédio do engenheiro da confiança dos réus, nunca foi entregue toda a documentação solicitada para a realização da escritura, bem como nunca foi enviada a licença de utilização, nem o certificado energético.
Note-se que os réus são profissionais da área da remodelação e venda de imóveis, pelo que bem sabem quais os documentos necessários para que se possa realizar a escritura de um imóvel.
Não obstante protelaram a situação no tempo e nunca entregaram o que foi solicitado, nem sequer prestaram qualquer esclarecimento.
Assim sendo, ficou devidamente provado que apesar de várias interpelações, nunca foi entregue toda a documentação solicitada.
Note-se o que foi dito em sede de julgamento: “Juiz: Enviaram após 15/09/2018? réu: Não.”
Consta dos autos e-mails datados de 28/09/2018, 04/10/2018, 08/10/2018, 09/10/2018, pelo que ficou devidamente provado que após várias interpelações, quer por carta, emails, os réus nada fizeram.
Note-se que o Eng. é pessoa de confiança e intermediário entre as partes conforme confessado pelo réu, sendo aquele trabalhador da empresa dos réus.       
Note-se o que foi dito pelo réu em sede de julgamento:
Juiz: O que eu quero saber agora é que o senhor é parte no processo, pode-me dizer aqui que há factos que não tem grande certeza, isto é uma opção sua, que sabe ou não. O que eu quero saber se confia na fonte de seu conhecimento, funcionários ou as pessoas responsáveis em tratar daquilo, transmitiram ao senhor e dá os factos como verdade? réu: sim.”
Nessa medida, não se pode aceitar o alegado pelos réus.
Mais, é certo que o facto que foi dado como provado, e que os réus entendem que foi mal julgado, foi que após várias interpelações “nunca foi enviada por parte dos réus toda a documentação solicitada”.
Ora, para que este facto fosse realmente dado como não provado como os réus pretendem deveriam ter alegado em sede de recurso e feito prova em julgamento que realmente, após interpelações, entregaram os documentos, o que não foi feito.
No ponto 2 da sentença [não] se mencion[a] que ficou provado que “os autores tentaram contactar os réus” para que os réus venham tentar impugnar a matéria de facto  quanto a um facto que simplesmente não existe.
Reitera-se que o que ficou provado foi que após interpelações os documentos não foram entregues e não que os autores contactaram os réus.
Os réus querem apenas iludir o tribunal.
Não obstante, tal foi confessado pelos réus, conforme consta da assentada.
Decidindo:
O que está em causa na impugnação, por parte do réu, no ponto 2, é que, segundo o réu, os réus não foram interpelados pelos autores ou pela empregada bancária. Não põe em causa tudo o resto que consta do ponto 2, isto é, a não entrega dos documentos.
Mas, como em parte também dizem os autores, no ponto 2 não se afirma que os réus foram interpelados pelos autores ou pela empregada bancária. O que se diz é que, “Apesar das várias interpelações, […] por parte do autor e da própria agente do banco, nunca foi enviada por parte dos réus  […].” Ou seja, neste ponto, coerentemente com o que resulta de outros factos provados e da fundamentação da decisão, pressupõe-se que os réus foram contactados através do intermediário Eng. JP e que os réus não enviaram, seja como for – isto é, por si ou por intermediário – os documentos. E isto está certo, como resulta dos elementos de prova referidos na fundamentação da decisão do ponto, na impugnação dos réus e na resposta dos autores, e dos factos 6, 17, 14, 15, 10, 16, 19 e 20, bem como ainda da confissão do réu. Mas pode ser precisado para não ficar só implícito. Ou seja, considerando-se parcialmente procedente a impugnação, será acrescentado, a seguir a ‘várias interpelações’, que elas eram feitas por intermédio do Eng. JP.
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No ponto 9 dos factos provados consta que: A autora, por motivos de saúde, tem dificuldades de mobilidade, razão pela qual para os autores era urgente a marcação da escritura para que pudessem estabilizar as suas vidas e ter a comodidade pretendida.
O tribunal diz que este facto 9, como também o 13, entre outros que refere,
“ficaram provados por terem sido confessados pelo réu, conforme resulta da assentada lavrada na audiência de julgamento. Não obstante se tratar da confissão por parte de apenas de um dos réus, o facto de os réus serem casados entre si, e a circunstância de a confissão provir daquele que interveio directamente nos factos a que respeitam os presentes autos (pois como o próprio afirmou nas suas declarações, ele é que está mais por dentro da actividade de remodelações e vendas), permite-nos inferir com segurança serem verdadeiros os factos que este admite terem acontecido.”
O réu contrapõe:
Uma vez que [os autores] estavam na posse da fracção, não se poderá dar por provado o referido em 9 à excepção de que a autora tinha dificuldade de mobilidade.
Os autores respondem que
Os réus afirmam que conheciam os problemas de saúde da autora, pelo que bem sabiam que havia necessidade de ocuparem o imóvel o mais rápido possível, logo não se compreende o motivo pelo qual impugnam o facto.
Decidindo:
Os autores alegavam, o que consta deste ponto, em 26 da PI, e o réu admitiu como verdadeiro o que aí era dito, como se vê na assentada transcrita no relatório deste acórdão, pelo que o juiz podia, como fez, valorar livremente esta confissão, que não fazia prova plena por ser feita por apenas um dos réus. Este TRL faz o mesmo juízo do tribunal recorrido, pois que o próprio réu admitiu como verdadeiro o que era alegado pelos autores a este propósito e foi ele que conversou com eles para a celebração do contrato-promessa. De resto, mais à frente, o réu transcreve uma passagem do depoimento da testemunha Eng. JP que aponta no mesmo sentido. Ora, se a prova feita pelos réus aponta no sentido do que consta do facto favorável aos autores, não se vê razões para dela duvidar, independentemente do valor que se dê, quanto ao mais, às declarações do réu e ao depoimento do Eng. JP.
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No ponto 13 dos factos provados consta que: A carta enviada pelos autores em 30/04/2019 foi recebida pelos réus e não teve qualquer resposta, nem os réus procederam a qualquer pagamento aos autores.
Já se viu acima, relativamente ao ponto 9, que o tribunal fundamenta a decisão deste ponto na confissão, conforme resulta da assentada lavrada na audiência de julgamento.
Contra isto, o réu diz que:
Em relação ao ponto 13 dos factos provados, se bem que obviamente não se possa considerar o mesmo como como falso ou não mesmo como provado, sempre se terá que dizer que o prazo dado para a devolução do sinal e constante do documento - carta - enviada ao réu consistia numa verdadeira notificação e com o prazo especialmente reduzido para cumprimento que foi de 5 dias.
Tal prazo deverá ser incluído no facto dado por provado pois que, não só consta expressamente do texto do documento, como pela exiguidade de tempo oferecido irá ajudar a demonstrar, a completa má-fé e abuso de direito por parte dos autores.
Os autores respondem que não compreendem o motivo pelo qual o ponto vem impugnado e respondem como se o prazo que estivesse em causa fosse o de 30 dias e como se os réus tivessem impugnado o resto do ponto 9, pelo que tentam demonstrar que os réus receberam a carta de 29/09/2018, que não é a carta em causa no ponto 13. Trata-se pois de uma resposta inaproveitável ao nível da impugnação da matéria de facto, aproveitando-se mais à frente quando se estiver a discutir o direito.
Decidindo:
O que o réu pretende é que se acrescente o prazo de 5 dias à carta do ponto 13; ora, esta é a carta da alínea (k) e nela já consta o prazo de 5 dias, pelo que a pretensão dos réus é inútil.
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No ponto 17 dos factos provados consta que: As chaves da fracção apenas foram entregues pelo Eng. JP ao autor em data não concretamente apurada, pois este necessitava de receber uma encomenda.
O tribunal fundamenta assim a decisão deste ponto: O facto foi admitido pelo autor, nas suas declarações de parte, e referido pela testemunha Eng. JP.
Diz o réu:
Tal não corresponde à verdade. Vejamos,
Durante as declarações de parte, o réu afirma que consentiu que os autores fossem habitar para o imóvel, devido às suas necessidades de desabitar a casa que tinham arrendando anteriormente, em 28:30 até 28:37, demonstrando completo conhecimento de que aqueles ali estariam a habitar.
Nas declarações da testemunha, eng. JP, de 03:40 até 04:22, este afirmou que realmente lhes facultou a chave para que fossem receber uma encomenda, mas que quando o informaram da sua necessidade em mudar para a casa celeremente, ele permitiu que assim o fizessem, mais tarde no seu depoimento, de 05:30 a 05:38 demonstra claramente que sabia que já estavam a habitar no imóvel os autores, que estavam frequentemente acompanhados de uma criança, à data infante.
Pelo que se revela forçoso incluir na matéria de facto dada por provada que os autores habitaram na fracção objecto do contrato até data indeterminada mas posterior a Março de 2019.
Os autores respondem que:
Este facto foi referido pelos autores, bem como pelo depoimento do Eng., logo ficou devidamente provado.
Note-se o que foi referido em sede de julgamento quando questionado o réu: Ele me comunicou que a chave tinha sido entregue para colocar lá móveis. Ora, o réu sabia que a entrega das chaves era para colocar os móveis, nomeadamente a encomenda.
Em sede de depoimento o engenheiro afirmou expressamente que facultou a chave para esse efeito: “Advogado dos réus: ao [autor] quando é que lhe deu as chaves da casa? E em que circunstâncias, já agora? Eng. JP: O [autor] teve acesso as chaves da casa através de um rapaz que estava a trabalhar na obra e foi porque precisava, por que ia receber encomendas para a casa e como não tinha onde as guardar foi guardado na casa.“
E quando questionado pela advogada dos autores: E a chave foi-lhe entregue por quê? Eng.: Precisava para receber a mobília. Advogada dos autores: Precisava para que se chegasse a mobília. Tem uma mensagem sua a dizer que era para receber uma encomenda. E o que era a encomenda? Era a mobília? Eng. JP: Sim.“
Decidindo:
O próprio réu admite que o que consta de 17 está provado, apesar de ter começado por dizer que era falso. Só que depois, diz que devia ser dado como provado outro facto, qual seja, que os autores habitaram na fracção objecto do contrato até data indeterminada mas posterior a Março de 2019. Esta é matéria de outro ponto, já a seguir, pelo que, nesta parte, ver-se-á depois se deve ser dada razão ao réu. Mas, quanto ao ponto 17, ele deve permanecer.
Aliás, se se for ver acima, na contestação, os réus diziam que “as chaves […] apenas foram entregues pelo Eng. JP ao autor em 23/10/2018, pois este necessitava de receber uma encomenda que chegava nesse mesmo dia, ao imóvel.” Ou seja, eles próprios, na contestação, afirmavam o que agora o réu diz que é falso, o que não abona nada à credibilidade do que afirma neste recurso.
Mais, o réu diz, agora, no recurso, que “consentiu que os autores fossem habitar para o imóvel, devido às suas necessidades de desabitar a casa que tinham arrendando anteriormente”. Ora, na contestação, os réus diziam que “com as chaves em seu poder, e aproveitando-se de tal facto, os autores começaram a residir no imóvel […]”. Ou seja, no recurso o réu pretende que consentiu que os autores fossem habitar para o imóvel, enquanto na contestação os réus sugeriam que se tratava de um acto de aproveitamento abusivo por parte dos autores, o que, de novo, pouco abona a credibilidade das posições que adoptam no julgamento e neste recurso: o réu está a tentar estabelecer o terreno da excepção da boa fé, com recurso a alegações de facto que nem sequer faziam na contestação.
*
O tribunal recorrido não considerou provado que: “h) que com as chaves em seu poder, e aproveitando-se de tal facto, os autores tenham começado a residir no imóvel antes do final do ano de 2018, e até, pelo menos, abril de 2019 (…).
Como fundamentação disse o seguinte:
Não considerámos convincente a prova de que os autores tenham estabelecido residência na fracção, aí pernoitando, fazendo a sua higiene, tomando as suas refeições, etc. Nenhuma testemunha inquirida fez essa prova, e bastaria, porventura, inquirir um vizinho do mesmo prédio para fazer prova de tal facto.
O facto de os autores terem recebido a mobília encomendada e, porventura, transportado para a fracção coisas suas (loiças, roupas, v.g.) não significa que ali estivessem a residir com permanência. O facto de os autores se terem encontrado com o eng. JP, sentados no seu sofá, no interior da casa, não é suficiente para fazer tal prova. O facto de os autores porventura ali terem confeccionado algumas refeições, ou deixado toalhas ou roupas também não demonstra que estivessem ali a residir em permanência.
O facto de o apartamento ter fornecimento de electricidade e água, como foi referido pelo eng. JP, também não é suficiente para fazer prova de que os autores ali tivessem residência permanente: não só não foi feita prova da titularidade de contratos de fornecimento em vigor, como a sua mera existência não basta para provar que alguém ali resida permanentemente – basta pensar nas segundas residências, para vilegiatura.
Não foram tidos em conta os documentos juntos aos autos pelos réus em 10/3/2020, uma vez que foram impugnados pelos autores, não tendo sido feita prova da sua autenticidade.
O réu diz que:
Em relação a (h), [tal] foi confirmado por várias das testemunhas em sede de julgamento que viram que os autores estavam a habitar no imóvel ou que tiveram a impressão que lá habitavam, o que inclusive foi confirmado pelo réu, de 28:30 até 28:37.
O Eng. JP afirma em minutos 05:30 até 05:38 que sabia que os autores já estavam no imóvel a viver, e reforça que, quando mais tarde visitou o imóvel, o mesmo apresentava sinais de uso diário, em divisões como a casa de banho, cozinha, etc., de 27:00 a 27:20.
Mencionou também a testemunha JF, no depoimento que prestou, de 07:25 a 07:30 que era notório que o imóvel tinha uso e sinais de que havia sido habitado, o que consegue verificar isso devido à sua experiência.
Por ultimo, foi informado pela testemunha PF, que quando teve de se deslocar até ao imóvel para proceder à entrega e instalação de alguns electrodomésticos para o imóvel, encontrou um homem, uma mulher e uma criança, que são os autores, o que consta do seu depoimento de 04:30 até 04:40.
Afirma ainda esta testemunha que teve a impressão de que essas pessoas que lhe abriram a porta para que entrasse, e o à vontade que manifestavam, que habitavam no imóvel, tendo dito também em sede de julgamento, de 05:30 a 05:38.
Considerando que a fracção é no 5.º andar, que o elevador estava avariado, fazendo uso da experiência do julgador, da normalidade dos acontecimentos e do bom senso comum, como se poderá explicar, senão pelo facto de ali estarem a habitar, a razão pela qual uma pessoa com dificuldade de locomoção, acompanhada por uma criança e ainda pelo autor teriam ido todos para receber uma encomenda, isto quando uma é suficiente; é forçoso reconhecer e dar por provado que os autores ali residiram.
Os autores respondem que:
As chaves foram entregues para receber mobília e não para residir.
Alegam os réus que os autores residiam no imóvel e que permitiram tal facto posteriormente ao engenheiro ter dado o consentimento. Note-se o que foi mencionado pelo engenheiro: Advogada dos autores: E foi o Sr que até disse que ele não está em Portugal, está em Angola? Eng: Sim, sim. Advogada: Então, se ele morava lá, ele estava em Angola?! Estava em Angola e estava lá?! O Sr. sabe quando é que eles estavam lá? Eng: Eu não sei dizer. “
Conforme se refere na sentença nenhuma testemunha fez prova nesse sentido, sendo que ninguém confirmou com certeza que os réus residiam habitualmente e permanente no imóvel.
Note-se que os réus alegam o seguinte “foi confirmado por várias testemunhas em sede de julgamento que viram os autores estavam a habitar no imóvel ou que tiveram a impressão que lá habitavam”
Ora, ter a impressão que lá habitavam não é ter certeza que lá habitavam e o certo é que as testemunhas não confirmaram que os autores residiam no imóvel.
É falso portanto que as testemunhas tenham confirmado tal facto.
Andou bem o tribunal na sua explicação e motivação. É certo que para o efeito bastaria juntar como testemunha um vizinho.
Os autores receberam alguma mobília encomendada, porém, em momento algum residiram a título permanente no imóvel, até porque, conforme referem os réus, o imóvel ainda não estava terminado e havia acabamentos a fazer, bem como não havia todos os equipamentos, electrodomésticos para o efeito.
Note-se o que foi referido em sede de julgamento: Juíza: Setembro-Outubro. Eu percebi mal. Ora, eu estava a perguntar, quando a obra estava a terminar, que a chave já tinha sido entregue e que faltava os tais remates não havia lá os tais electrodomésticos que o Sr tinha mandado...? Réu: Não. Foi depois na altura... Juíza: Não havia frigorífico. Réu: Não, isto foi logo pedido de imediato. Foi o pedido feito ao JP. Juíza: É que eu tenho aqui uma factura, que foi junta por si, de Outubro que tem aqui um forno, uma placa e um exaustor de camping. Mas depois, a máquina de lavar roupa, a máquina de lavar loiça e o frigorífico é uma factura de Janeiro de 2019.”
Ora, como poderiam residir no imóvel se não haviam os electrodomésticos necessários, afirmando os próprios réus que em data não concretamente apurada a testemunha PF foi proceder a instalação de electrodomésticos no imóvel. Ora, há electrodomésticos que só foram entregues em Janeiro de 2019, pelo menos é o que consta da factura, sendo de estranhar que se entreguem bens e que as facturas sejam emitidas no ano seguinte à compra do bem, pelo que cai por terra a tentativa dos réus iludirem o tribunal.
Decidindo:
O Eng. JP, empregado de uma empresa do réu e que foi intermediário entre este e os autores, diz que os autores estavam a viver na fracção, porque, uma vez, em Fev2019, lá conversou com ele, sentado num sofá que este para lá levou, estando lá também a mulher e uma criança. E até localiza o facto: falaram da vitória do Benfica contra o Sporting, com o resultado de 4-2, o que é facilmente pesquisável, na internet, como tendo ocorrido a 03/02/2019. Portanto teria lá estado com eles em Fev2019, vendo sinais de que a fracção era usada: uma refeição cozinhada, uma cama feita, coisas na casa de banho. O que antecede, deu origem ao facto 19.
JF é mais um empregado do réu, desde há 4 anos. Foi lá depois da carta de 30/04/2019, viu sinais de uso da fracção, segundo diz, como buracos nas paredes e tirou fotografias. 
PF é mais uma pessoa que presta serviços ao réu. Conta que foi entregar os electrodomésticos na fracção em causa e, a pergunta do advogado dos réus -: se tal tinha acontecido antes ou depois do Natal de 2018 -, diz que foi antes. Estava lá o autor e família.
Os electrodomésticos foram entregues segundo a factura respectiva – veja-se abaixo – em Janeiro de 2019. O réu, que começou por fazer referência à vontade dos autores irem morar para a fracção antes do fim do ano de 2018, acaba por dizer que o que quis dizer foi que eles foram para lá morar entre Set/Out de 2018. Isto reflecte-se na introdução da pergunta feita pela Srª juíza, transcrita acima pelos autores: ela teria percebido que o réu estava a dizer que os autores teriam ido para lá viver no fim de 2018. Quanto à data da factura, o réu justifica dizendo que as facturas às vezes são passadas depois da data a que respeitam.
Mas a factura, processada por programa certificado, que está datada, refere ainda a data e hora em que os electrodomésticos foram entregues e em que que veículo foram transportadas. Por isso, o réu não convence na explicação que dá. Aliás, agora, neste recurso, mais à frente, tenta aproveitar a data da factura como sendo a data da entrega, como se verá abaixo, pelo que ele próprio, contraditoriamente, diz que a factura é verdadeira, ou seja, não é posterior à data da entrega. Ora, se assim é, a testemunha PF está a faltar à verdade quando responde que entregou os electrodomésticos antes do Natal de 2018. O que aponta para que haja, da parte do réu, uma construção de uma versão dos factos para não perder a acção (tentando firmar o terreno da excepção da boa fé), o que retira credibilidade a todos estes quatro elementos de prova (3 testemunhas e declarações de parte). O réu não produziu, por isso, prova que convencesse da verdade das alegações de facto que os réus faziam.
Compreende-se assim que a Sr.ª juíza tenha ficado também na dúvida sobre os factos e que tenha sugerido que, se realmente os autores lá estivessem a morar, teria sido fácil aos réus terem indicado um vizinho – o edifício tem 5 andares e cada andar tem pelo menos mais do que um apartamento, como o demonstra a necessidade da identificação da fracção como 5º andar frente – para vir depor e confirmar que os autores lá tinham morado, tanto mais que, acrescente-se, a testemunha Eng. JP falou com alguém que morava em frente e que sabia o que tinha acontecido aos autores.
Estas dúvidas eram suficientes para não permitir a prova do facto (art. 346, 1.ª parte, do CC). A isto acresce, mas já desnecessariamente, que outros factos apontam para que os autores não tenham ido morar para a fracção, embora possam tê-la utilizado uma ou outra vez, tornando pois mais duvidosa uma prova que já era, por si, duvidosa: a fracção, no 5.º andar, não estava servida de elevador, sendo que a autora tinha dificuldades de mobilidade, sendo, pois, pouco natural, que a passasse a habitar enquanto o elevador não estivesse a funcionar (sendo que os réus não alegaram que ele alguma vez tenha ficado a funcionar); a fracção, até inícios de 2019, não tinha frigorífico, electrodoméstico, que, nas condições actuais, é raro não fazer parte de qualquer habitação por mais pobre que seja.
Portanto, tudo o que estas testemunhas e o réu, com as suas declarações de parte, provaram foi o que já consta do ponto 19, nada tendo de ser acrescentado.
Quanto às cartas da I/electricidade, concorda-se com a decisão de as desconsiderar, embora com outra fundamentação. Ou seja, não é certo, como se diz na fundamentação da decisão impugnada, que os autores tenham impugnado essas cartas. Documentos particulares impugnam-se dizendo alguma das coisas que constam dos artigos 444/1 e 446/1 do CPC e não através da afirmação genérica de que se impugnam, como o fizeram os autores. Por outro lado, a sua reacção à junção dos documentos – tudo como se refere no relatório deste acórdão – até sugere que eles aceitam que eles sejam verdadeiros (o que não quer dizer que tenham algum valor, mas isso é questão diferente e que, pelo que se diz já de seguida, nem sequer pode ser discutido no caso).
Mas tais cartas da I foram enviadas para o autor. São, portanto, correspondência dirigida ao autor. Quer isto dizer que os réus estão na posse, necessariamente abusiva, de correspondência dirigida ao autor e estão a referir o seu conteúdo, desse modo o divulgando, pelo que se trata sempre de uma prova ilícita. Não se sabe como é que os réus estão nessa posse – isto desconsiderando o que é dito neste recurso pelo réu, que pode ser apenas uma tentativa de justificação arranjada para o efeito, sem se ter consciência de que se está a sugerir que se praticou um ilícito ao abrir-se correspondência alheia. Mas o que é certo é que eles estão na posse de correspondência dos autores e estão-lhe a dar divulgação, sem consentimento dos autores, em violação do disposto no art. 194/3 do Código Penal: “Quem, sem consentimento, divulgar o conteúdo de cartas, encomendas, escritos fechados, ou telecomunicações a que se referem os números anteriores, é punido […], sendo que no n.º 1 se dispõe: Quem, sem consentimento, abrir encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e lhe não seja dirigido, ou tomar conhecimento, por processos técnicos, do seu conteúdo, ou impedir, por qualquer modo, que seja recebido pelo destinatário, é punido […].”
E o mesmo aconteceria se este TRL, fosse como fosse, fizesse referência ao que consta de tais cartas para valorar as mesmas como elemento de prova de factos desfavoráveis aos autores, titulares do direito à privacidade daquela correspondência. Pelo que, elas não podem ser utilizadas para prova destes factos, o que pode ser sustentado no art. 32/8 da Constituição da República Portuguesa (São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.) De algum modo neste sentido, veja-se, por exemplo, Paula Costa e Silva e Nuno Trigo dos Reis, Efeitos lícitos da prova ilícita em processo estadual e arbitral, AAFDL, 2019, pág. 107, conclusões 11.ª e 12.ª (: 11.ª Inversamente, o meio de prova resultante da ingerência na reserva sobre a intimidade ou da violação da correspondência não pode ser utilizado em favor de qualquer outra pessoa que não o titular dos direitos violados, nem valorado como fundamento decisório sobre quaisquer factos que não sejam aqueles que fundamentam a pretensão do titular violado. 12.ª A proibição de valoração vigora relativamente a qualquer pessoa que não seja o titular do domínio sobre a informação e dispensa qualquer juízo quanto à ilicitude subjectiva ou à culpa de quem procura aproveitar-se da prova proibida. De nada adianta ao requerente da mobilização do meio de prova ilicitamente obtido, não por ele mas por terceiro, alegar não ter sido ele o autor da devassa: a parte não pode comportar-se como um receptador do resultado do ilícito, como se o facto de o meio de prova lhe ter "caído nas mãos" excluísse as razões que a montante a tornam ilícita e justificasse que através dela se pudesse obter uma vantagem sobre a contraparte.”; sobre a questão, sem fazerem a distinção entre valoração bonam partem e malem partem, mas crê-se que conduzindo, no caso, à mesma solução, veja-se Miguel Teixeira de Sousa, As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, Lex, 1995, págs. 229-231≈> Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 2.ª edição, 1997, págs. 57-58, e no CC comentado, I, CIDP/Almedina, Maio 2020, páginas 978-979, m15; Isabel Alexandre, Provas ilícitas em processo civil, Almedina, 1998, pág. 261/265; e Carlos Castelo Branco, A prova ilícita, verdade ou lealdade, Almedina, paginas 324 a 327).
*
O tribunal recorrido não considerou provado que: k) os réus tenham acedido proceder à instalação de dois roupeiros (…) após Setembro de 2018.
Como fundamentação disse que:
Quanto às alíneas (k) e (o), não foi feita prova convincente do que é que foi ou não pedido pelos autores, designadamente, se pediram roupeiros, portas ou electrodomésticos, nem quando é que o fizeram. Do contrato-promessa nada consta. É plausível, contudo, que algo tenha ficado apalavrado quanto às obras que iam ser feitas e aos equipamentos que iam ser instalados, uma vez que as obras foram realizadas já depois de a fracção estar prometida vender aos autores, sendo natural que fossem feitas de acordo com o seu gosto/vontade e não à sua revelia. Contudo, não foi feita prova minimamente convincente acerca do que foi combinado a esse respeito e se os roupeiros e electrodomésticos foram concretamente pedidos pelos autores ou se isso já havia sido planeado pelos réus. O facto de terem sido fornecidos em Outubro/Janeiro não prova que tenha sido um pedido dos autores feito nessa mesma altura.
O réu contrapõe que:
Foi mencionado em sede de julgamento pelo réu que forneceu os roupeiros de porta de correr ao imóvel, por exigência dos autores, com o intuito de agradar e satisfazer os caprichos dos mesmos.
Isto porque queria que estivessem satisfeitos com o imóvel e com os seus serviços, demonstrando, novamente, boa fé da sua parte e vontade de proceder com o negócio. O réu jamais demonstrou vontade de não tencionar prosseguir com o que estava vinculado a realizar pelo contrato promessa.
Mas mesmo a admitir que não se dê por provado que os réus apenas colocaram os roupeiros por insistência dos autores, o que não se pode é deixar de dar por provado a colocação dos roupeiros na fracção e a data em que os mesmos foram fornecidos e transportados para a fracção objecto do negócio a 10/10/2018, data que consta no doc.5 da contestação.
Os autores respondem que:
Se os réus afirmam que não conseguiam contactar com os autores, conforme alegado, como poderiam ser solicitados estes bens?
Os réus não juntam qualquer prova que os autores tenham solicitado estes bens, ou melhor exigido, conforme alegam, pois nas palavras dos réus apenas cederam a exigências.
Em momento algum ficou provado que os réus solicitaram roupeiros, portas ou electrodomésticos, até porque numa remodelação pode-se entender que resultaria da própria remodelação colocar tais elementos.
Sendo que uma vez mais, se questiona como poderiam os réus residir habitualmente numa imóvel onde faltam ou faltavam todos esses elementos.
Decidindo:
O facto de o réu dizer, em suporte da sua excepção de boa fé deduzida na contestação, que colocou os roupeiros a pedido do autor, não é, só por si, suficiente para convencer que assim tenha ocorrido, e nada mais existe que aponte neste sentido.
Mas pode ser aproveitada a parte final da pretensão do réu, isto é que se dê “como provada a colocação dos roupeiros na fracção e a data em que os mesmos foram fornecidos e transportados para a fracção objecto do negócio a 10/10/2018, data que consta no doc.5 da contestação”, pois quanto a isto, suportado na factura em causa, nada consta na fundamentação da decisão ou na resposta dos autores, que o contrarie.
Pelo que, tendo em vista a excepção de boa fé deduzida pelos réus e para permitir que estes possam, com base nela, discutir a sua verificação, pode ser acrescentado um facto aos provados, isto é, que “Foram – por conta dos réus - fornecidos, transportados e colocados na fracção objecto do negócio, às 16h53 de 10/10/2018, móveis de cozinha, um forno e placa, lava-loiça e 2 roupeiros.”
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O tribunal recorrido não considerou provado que: l) os autores tenham celebrado um contrato de fornecimento de energia elétrica com a I, em fevereiro de 2019.
Como fundamentação disse que:
Não foi feita prova da existência de contrato com a I, que esta empresa negou, para a morada indicada (cfr. informação de 6/2/2020), não tendo sido feita, igualmente, prova da veracidade das facturas alegadamente emitidas por esta empresa, juntas pelos réus em 10/3/2020 e que, como já se referiu, não foram valoradas por essa razão.
O réu diz que:
A única parte que se pode aceitar neste ponto é a referência ao mês de Fevereiro, uma vez que se desconhece a data de celebração de tal contrato, dada a incorrecção da comunicação aos autos efectuada por aquela empresa. Porém,
Foram entregues e depositadas na caixa de correio da fracção as facturas da I, juntas aos autos, […], em que está identificado […] o nome do autor, e com a morada do imóvel.
[…]
Face ao exposto, ou os réus andaram a juntar documentos falsos e deverá tal facto ser participado ao Ministério Público ou terá de se admitir, de acordo com as regras da experiência comum, que os autores celebraram um contrato de fornecimento de energia eléctrica com a I em data que se desconhece […]
Os autores respondem:
No que diz respeito às facturas juntas pelos réus, na verdade foram impugnadas e os réus não fizeram prova da sua autenticidade, sendo certo que a I negou a existência de contrato. Mais, deve ser sim participado ao Ministério Público, pois se as facturas são dos autores, conforme alegam e foram juntas pelos réus, estes abriram correspondência alheia, sendo tal facto susceptível de procedimento criminal.
Decidindo:
A questão do aproveitamento das cartas da I já foi discutida acima [a propósito do facto não provado sob (h). Pelas razões que aí se referiram, omitiu-se agora, por meio do acrescento de parenteses rectos, o que o réu diz quanto a tais facturas, por se traduzir na divulgação de dados constantes de correspondência a que o réu não demonstrou ter direito de aceder ou divulgar e, por isso, a sua divulgação neste acórdão, faria deste, também uma foram de divulgação ilícita desses dados. As conclusões que o réu quer retirar de tais cartas, na parte em que é pública – consta da parte exterior das cartas – não tem suporte suficiente nas mesmas (pois que desse exterior apenas resulta que a I remeteu duas cartas para o autor).
Quanto à pretensão dos autores em que se comunique a abertura de correspondência ao MP, diga-se que se os autores entendem que os réus cometeram algum crime, cabe-lhes, querendo, participar o mesmo, em vez de estarem a pedir a este tribunal que o faça; este TRL apenas participa crimes quando tem a convicção necessária de que eles se praticaram, sendo que um crime pressupõe normalmente e pelo menos, como é o caso, o dolo e a culpa, sendo esta a consciência da ilicitude, e este TRL, só com os factos de que tem conhecimento, não tem como suficientemente indiciado que os réus tenham consciência da ilicitude dos factos.
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O tribunal recorrido não considerou provado que: n) os autores tenham furado paredes a fim de aí prenderem objectos decorativos e que tenham deixado o chão da cozinha riscado e o tampo do balcão da cozinha queimado”
Como fundamentação disse:
Não foi feita prova convincente acerca do estado em que a fracção se encontrava quando os autores retiraram de lá o seu mobiliário e outros pertences, inexistindo prova segura do estado em que estava, nem sequer da data em que isso sucedeu.
É de notar que os réus, embora tenham facultado as chaves aos autores, não deixaram de dispor das suas, tanto que afirmam ter entrado na fracção quando tiveram notícia de que os autores já tinham levado as suas coisas, sem terem tido necessidade de recorrer às autoridades públicas para retomar a posse da fracção.
Ora, desconhece-se o que terá sucedido na fracção, quantas pessoas tinham as chaves de acesso às mesmas, se houve alguma ocupação por outra pessoa, não bastando as fotografias tiradas pela testemunha JF, em data que não soube indicar, para imputar a autoria das situações retratadas aos autores, É evidente que as fotografias são tiradas numa fase de litígio entre as partes, com o objectivo de fazer prova contra os autores, que a testemunha JF não podia saber quem tinha feito as marcas/furações/riscos, etc. retratados. Note-se, igualmente, que a testemunha viu a casa antes das obras, mas não a viu imediatamente após a conclusão das obras, nem imediatamente após a retirada das coisas dos autores (em data que não se apurou), pelo que o seu depoimento não é suficiente para imputar a autoria aos autores, para estabelecer um nexo entre o uso que os autores fizeram da casa enquanto tiveram a chave e aquilo que visualizou.
E o tribunal já antes tinha dito o seguinte:
[…] não tendo considerado credível o depoimento da testemunha JF. Note-se que esta testemunha prestou serviços remunerados aos réus, tendo algum interesse em angariar casas remodeladas pelos réus, para mediar a sua venda.
O réu diz que:
Existem declarações de várias testemunhas que afirmam terem visto os furos nas paredes, o tampo queimado, entre outras coisas danificadas no imóvel.
Iniciando pelas declarações de parte do réu, este menciona de 38:14 até 39:29 que, quando foi visitar o imóvel, com o intuito de falar com os autores e ao estranhar a demora nos contactos, deparou-se com o imóvel vazio e com vários danos, tais como furos nas paredes, presumivelmente resultantes de suportes colocados para se pendurarem quadros, cortinados, etc., bem como a bancada da cozinha queimada com o que pensa ter sido realizada por um tacho ou uma panela quente, e o imóvel sujo, com sinais de uso.
Não sendo o único que se deparou com esta situação, pois ia acompanhado do Eng. JP, ao que o mesmo verificou também os mesmos danos, que descreve de 12:10 até 13:54.
Também a testemunha JF, não só verificou os danos, tendo ainda procedido ao fotografar dos danos, fotos que se encontram juntas aos autos e que de acordo com o depoimento prestado pela testemunha em sede de julgamento, de 06:51 até 07:10 impõem que tal facto tenha de ser dado por provado, sendo que esta mesma testemunha, ainda declarou que verificou que, de acordo com a sua experiência, a casa tinha sido notoriamente habitada, pois demonstrava claros sinais disso, de 07:25 a 07:28 de seu depoimento, realçando-se aqui que a profissão da testemunha é ser agente imobiliário.
De acordo com as regras da experiência comum e de acordo com os depoimentos prestados pelas testemunhas e fotos juntas aos autos afigura-se impossível que tal facto seja dado por não provado, à excepção de todas as testemunhas ouvidas terem ido prestar falso testemunho e tenham sido juntos aos autos documentos falsificados, única forma de não se considerar tal facto como provado.
As declarações das testemunhas não podem ser ignoradas, ou não levadas em conta, pois constituem prova directa de prova testemunhal, consagrada num capítulo inteiro do CPC, no capítulo VI.
[…]
Não podemos deixar que sejam ignoradas as fotografias juntas ao processo como prova, onde podemos ver os estragos no imóvel, tal como o tampo de cozinha queimado, os riscos no chão, os buracos nas paredes, etc.,
Danos tais, que darão prejuízo aos donos do imóvel pois terá de ser arranjado.
Os autores respondem que:
Ora, não foi feita prova nesse sentido, até porque os documentos juntos aos autos, não se encontram datados pelo que se desconhece em que data foram tiradas as fotos.
A testemunha JF apesar de afirmar que tirou as fotos não concretizou em que data.
Os réus alegam que “quando foi visitar o imóvel com o intuito de falar com os autores e ao estranhar a demora nos contactos deparou-se com o imóvel vazio” Ora, os réus sempre tiveram a chave do imóvel e tinham acesso ao mesmo, pelo que poderiam entrar sempre que quisessem, como fizeram. Não se compreende como podiam estranhar a falta de contactos se sempre houve contactos por parte dos autores, nem que fosse por intermédio do Engenheiro. Mais, se não haviam contactos por que motivo nunca enviaram um e-mail, carta a questionar? Note-se que o tribunal a quo em sede de Julgamento questionou o réu nesse sentido: Juíza: Mas o que eu quero saber é, o Senhor tinha razões para ter pressa. Para marcar a escritura, o Senhor estava legitimado para marcar a escritura e obrigava-os a resolverem com o banco. O Senhor ficaria a espera até quando? Réu: Fiquei sempre a espera, por que as pessoas estavam lá” (…) Juíza: Não contactou com eles? Ficou a espera e o que aconteceu depois? Réu: Eu fiquei à espera até a Abril de 2019” Não faz qualquer sentido o alegado pelos réus.
Decidindo:
A fundamentação do tribunal recorrido corresponde à que este TRL faria sobre o caso: não se sabe quando é que as fotografias foram tiradas e quando as testemunhas dos réus – e o réu - foram ao local, já lá podiam ter estado outras pessoas, pelo que não há modo de dizer que os furos foram feitos pelos autores.
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O tribunal recorrido considerou que não ficou provado que: o) os réus tenham fornecido uma máquina de lavar roupa, uma máquina de lavar loiça e um frigorífico, todos no estado novo, em Janeiro de 2019, por isso lhes ter sido pedido pelos autores já após Setembro de 2018.
Quanto à fundamentação veja-se o que o tribunal recorrido já tinha dito quanto a (k).
O réu contrapõe que:
Constitui mais um ponto em que jamais deverá ser considerado como não provado, pois existe uma factura, identificada como FT 2019A/7, identificada como doc.7, onde consta também a morada de entrega como sendo a morada do imóvel, com a data de entrega 03/01/2019.
Serve esta pelo menos como meio de prova da entrega dos electrodomésticos no imóvel, mesmo que não se dê por provado que foi a pedido dos autores.
A posição dos autores já resulta do que dizem acima.
Decidindo:
Vale o que já foi dito acima: o facto de terem sido entregues, na fracção, uma máquina de lavar roupa, outra de lavar loiça e um frigorífico, a 03/01/2019, pode ser dado como provado com base na factura 2019A/7, mas só isso. O que se fará, como ponto 22 (pela mesma razão que se acrescenta o ponto 21).
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Do recurso sobre matéria de direito
Como fundamentação de direito a sentença disse o seguinte:
Não existe controvérsia entre as partes em como foi celebrado, entre elas, um contrato-promessa de compra a venda de uma fracção autónoma.
O contrato-promessa é, nos termos da sua definição legal consagrada no artigo 410/1 do Código Civil, uma “convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato”. Aplica-se-lhe o regime jurídico previsto nos artigos 410 a 413 do CC.
Não obstante ambas as partes admitirem não terem sido observadas formalidades legais, mais concretamente, não ter havido reconhecimento presencial das assinaturas (nem certificação da existência de licença de utilização, cuja existência, aliás, não se provou nestes autos), ninguém veio arguir a sua nulidade com esse fundamento, não tendo qualquer das partes posto em causa quer a validade, quer a vigência do contrato-promessa.
A nulidade atípica consagrada no art. 410/3 do CC pode ser livremente invocada pelo promitente-comprador; o promitente-vendedor só a pode invocar quando tenha sido culposamente causada pela outra parte. Como é pacífico na doutrina (cfr. Ana Prata, Contrato-Promessa e Seu Regime Civil, Almedina, 1994, página 546; João Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, Coimbra editora, 6ª edição, 1998, página 79 a 81; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume I, Almedina, 5ª edição, página 225) e na jurisprudência (cfr. o assento n.º 3/95 de 1/2/1995, publicado no Diário da República, I série-A de 22/4/1995, “No domínio do n.º 3 do artigo 410 do CC (redacção do DL 236/80 de 18/07) a omissão das formalidades previstas nesse número não pode ser oficiosamente conhecida pelo Tribunal”), esta nulidade atípica não pode ser invocada por terceiros nem conhecida oficiosamente pelo Tribunal, pelo que sobre a mesma não nos debruçaremos.
Também se mostra assente que os autores entregaram aos réus 8000€ a título de sinal, isto é, de antecipação do pagamento do preço, o que sempre seria de presumir, por força do disposto o artigo 441 do CC.
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A primeira questão a apreciar é, assim, a de saber se se verifica um incumprimento definitivo imputável aos réus.
O incumprimento definitivo verifica-se “quando o devedor não a realiza no tempo devido por facto que lhe é imputável, mas já não lhe é permitida a sua realização posterior, em virtude de o credor ter perdido o interesse na prestação ou ter fixado, após a mora, um prazo suplementar de cumprimento que o devedor desrespeitou” (Luís Menezes Leitão, obra citada, página 251). É o que resulta do disposto no artigo 808 do CC.
No caso dos autos, importa atentar que, nos termos da cláusula quarta [do contrato], incumbia aos réus, promitentes vendedores agendar a celebração do contrato prometido, e comunicar a data da celebração da escritura aos autores com a antecedência mínima de oito dias. O prazo ali fixado foi de 120 dias a contar da celebração do contrato-promessa, pelo que a escritura pública devia ter sido realizada até 16/09/2018.
Ficou provado, também, que os réus nunca marcaram a escritura pública, ou melhor, nunca comunicaram aos autores qualquer agendamento da escritura pública.
Logo, desde 17/09/2018 que os réus entraram em mora, os termos do disposto nos artigos 804/2 e 805/2-a do CC.
Como ficou provado em 5, o autor enviou ao réu (que havia outorgado enquanto representante da ré, bastando, por isso, a sua interpelação), que a recebeu, a carta datada de 29/9/2018, que constitui o documento 8 da PI, na qual comunica que “concedemos um novo prazo, de 30 dias, para celebração do contrato prometido, a partir da recepção desta carta. Caso o promitente vendedor não cumpra o novo prazo estabelecido terá que restituir o sinal prestado no valor de 8000€ em dobro, nos termos do n.º 2 do artigo 442 do CC).”
Ora, esta interpelação, fixando um prazo admonitório para o cumprimento pelos réus, é suficiente para a conversão da mora em incumprimento definitivo, não carecendo os autores de demonstrar uma perda de interesse objectiva na prestação. A recusa em cumprir no prazo suplementar concedido converte a mora em incumprimento definitivo. E, no caso sub judice, os réus não cumpriram no prazo suplementar, nem nunca comunicaram qualquer agendamento da escritura.
Pretendem os réus, em sua defesa, revelar que os autores mantiveram interesse na prestação, mesmo após o termo do prazo admonitório fixado.
Contudo, como se extrai do emprego da conjunção coordenativa disjuntiva “ou” no artigo 808/1 do CC, bem como da respectiva epígrafe, trata-se de dois casos distintos de conversão da mora em incumprimento definitivo. O caso dos autos é o da “recusa do cumprimento”, em que basta o facto de os promitentes infiéis não cumprirem no prazo suplementar fixado, não carecendo os promitentes fiéis de demonstrar que perderam o seu interesse na prestação.
Pese embora os réus não tenham logrado provar a maior parte das circunstâncias alegadas para este efeito, importa […] referir que o facto de os autores, porventura, terem esperado durante mais algum tempo que os réus cumprissem – oportunidade que estes não aproveitaram – não significa uma qualquer renúncia aos direitos que para os autores advêm do incumprimento definitivo imputável aos réus. Nem tem qualquer relevância enquanto demonstração da manutenção de um qualquer interesse na prestação, porquanto não é esse o fundamente da conversão da mora em incumprimento definitivo, que resulta ope legis da recusa do cumprimento pelos réus no prazo suplementar fixado.
Face ao exposto, resta-nos concluir pela procedência do pedido de pagamento do sinal em dobro, tendo em conta que, por força do disposto no artigo 442/2 do CC, o promitente fiel que prestou o sinal a isso tem direito. A isto acrescem os juros de mora, à taxa de juros supletiva legal para os juros civis, de 4% (artigo 559/1 do CC e Portaria 291/2003 de 08/04), desde a propositura da acção, e até integral pagamento.
Contra isto, o réu diz o seguinte (sempre com simplificações e com os possíveis cortes nas inúmeras repetições):
J – O prazo de 5 dias dados pelos autores, pela exiguidade de tempo oferecido, demonstra, a completa má-fé e abuso de direito por parte dos autores.
K - A má fé dos autores resultará do facto incontornável de estarem na posse da fracção, sendo que o réu sempre demonstrou vontade de realizar o negócio prometido, nomeadamente ao proceder à instalação de diversos equipamentos na fracção objecto do negócio.
L - Foi também permitido pelo réu que habitassem no imóvel […].
M - Não se consegue entender a razão dos autores perderem objectivamente o interesse na realização do contrato prometido, à excepção de, pura e simplesmente, se terem interessado por um andar mais perto do solo, dada a avaria do elevador e a falta de mobilidade da autora; o que não se pode é concluir pelo incumprimento definitivo por parte dos réus.
[…]
O - O que aconteceu, e que nunca ocorreu, ao réu foi que os autores abandonassem o local, sem nunca lhe transmitirem absolutamente nenhum desejo de não quererem realizar o negócio, pois que nem enviaram uma qualquer carta afirmando que haviam perdido o interesse no negócio.
P - E que, ao abandonarem a mesma, lhe facultassem apenas 5 dias para a devolução do sinal, em dobro, como se o réu se tivesse recusado a realizar o negócio prometido, como se não estivessem a ocupar a fracção e a mesma a ser equipada muito para além do prazo constante do contrato celebrado.
[…]
S - Não existiu boa fé da parte dos autores, nem a mínima compreensão. Limitaram-se a ocupar o imóvel antes do momento da escritura, como favor, e a realizar exigências e melhorias ao imóvel, e a abandonar o negócio por uma demora na escritura, o que realmente não deveria ter acontecido, mas sempre existiu compreensão e boa fé da parte dos réus […]
[…]
AV – Apesar da mora, não se tratou de um factor condicionante para a realização do contrato ou não; afinal […] as datas de entrega de vários materiais e de vários electrodomésticos implica reconhecer que os réus continuavam as obras de renovação e de equipamento da fracção objecto do negócio, estando os autores já em posse da mesma, […], tudo a fim de se realizar o contrato prometido.
AW – O facto de o autor residir no imóvel, já perfeitamente equipado e mobilado como desejava, tranquilizou o réu nesse aspecto e, apesar de ter existido um desleixe da sua parte em relação à escritura por causa do prazo, esse factor apenas permite chegar à conclusão de que o prazo estabelecido não era essencial, visto que já habitavam no local.
[…]
AZ – […] o réu nunca se recusou de forma definitiva a cumprir o contrato prometido […]
[…]
BB – […] não poderemos considerar que o prazo estabelecido é um prazo essencial para a celebração do contrato prometido […]
BC - não existiu incumprimento definitivo, e apenas esse, não a mora, pode desencadear o mecanismo indemnizatório da devolução do sinal em dobro; a prestação, embora estivesse atrasada, ainda era possível.
BD - Seria aceitável a devolução do sinal que foi dado pelos autores ao ora recorrente, mas nunca a aplicação de uma sanção, a devolução do sinal em dobro […]
BE – […Os autores] teriam de fazer ónus da alegação e prova da factualidade de suporta da perda objectiva de interesse, caso existisse, […] de acordo com um critério de razoabilidade.
BF - É de entender que existiu um manifesto abuso de direito, consagrado no art. 334 do CC por parte dos autores, pois ao terem usufruído do imóvel, respectivos electrodomésticos e instalações, deveriam ser mantidos em bom estado, salvo o resultado de uma utilização prudente, o que não se verifica das fotos juntas aos autos.
BG - Abuso de direito que igualmente se verifica em ocultar o recurso à banca, ao dar prazos quase impossíveis de cumprir, ao mesmo tempo em que se ocupa a fracção objecto do negócio e se vem intentar esta acção […]
BH - Podemos verificar a existência de má fé da parte dos mesmos, por terem também abandonado o imóvel sem nunca comunicar nada de nada aos réus deixando o imóvel danificado […].
BI – […] continuaram a existir comunicação entre o banco e a testemunha JP.
BJ - Tal implica que os autores, muito embora já se tivesse ultrapassado largamente prazo admonitório de 30 dias, mantiveram o interesse na compra da fracção, mantendo-se a residir na mesma […], acabaram por renunciar tacitamente ao prazo por eles fixado, prazo esse que terminou em Outubro de 2018.
BH - Os autores, ao terem aceite a continuação do contrato para além de Outubro de 2018, mantendo-se na casa e a receberem o fornecimento e a montagem de equipamentos na mesma, muito após o prazo admonitório, […], através de um contrato de fornecimento de energia em nome do autor, bem como nunca tendo manifestado, fosse por que forma fosse, qualquer intenção de resolução do contrato celebrado, ao demandarem judicialmente a devolução de sinal em dobro, não só não permite concluir, de forma objectiva o desinteresse pela realização do negócio prometido, dada a possibilidade de realização do contrato, como se tem de ser entendida como verdadeiro abuso de direito, nos termos do disposto no art. 334 do Código Civil.
Quanto a isto, os autores respondem que [também com cortes e simplificações]:
Após concedido prazo admonitório [de 5 dias] os réus nada fizeram.
Ora, se não concordavam com o prazo concedido na missiva, assim que a receberam tentavam negociar, prorrogar o prazo, porém a verdade é que, conforme foi dado como provado, os réus receberam a carta e nada fizeram.
Não obstante o envio da missiva em 2019, os réus já tinham enviado outras missivas, nomeadamente a missiva dada como provada, no ano de 2018.
É falso que o réu sempre demonstrou vontade de realizar o negócio.
Se realmente houvesse essa intenção, tal facto não se demonstraria pela instalação de equipamentos, até porque isso está inerente à remodelação, mas sim se teria demonstrado em resposta às cartas, na entrega da documentação, em prestar esclarecimentos.
Sucede que nada disto ocorreu, pois os réus não tinham qualquer intenção de celebrar o negócio e tão só ficar com o sinal que já tinham recebido.
Mais, conforme ficou provado, os autores nunca residiram efectivamente no imóvel […]
Até porque os réus tinham um imóvel arrendado e era do conhecimento dos réus.
Mais, os réus afirmam que conheciam os problemas de saúde da autora, pelo que bem sabiam que havia necessidade de ocuparem o imóvel o mais rápido possível.
Não obstante, mesmo assim protelaram a situação no tempo e nunca enviaram os documentos necessários, não marcaram escritura e não prestaram qualquer esclarecimento.
Alegam os réus que não houve por parte dos autores a mínima compreensão, quando sabem que desde o ano de 2018 que os réus esperavam pela marcação da escritura, quando insistiram várias vezes pelo cumprimento e quando sabiam dos problemas de saúde da autora.
Nos termos do artigo 808 do CC “quando o devedor não a realiza no tempo devido por facto que lhe é imputável, mas já não lhe é permitida a sua realização posterior, em virtude de o credor ter perdido o interesse na prestação ou ter fixado, após a mora, um prazo suplementar de cumprimento que o devedor desrespeitou”
Ora, conforme resulta provado os autores enviaram missiva a conceder um prazo de 30 dias, fixando um prazo admonitório para o cumprimento.
Sucede que os réus nada fizeram, pelo que converteu-se a mora em incumprimento definitivo.
Não se pode aceitar o alegado abuso de direito, por se encontrar totalmente infundado.
Decidindo:
Concorda-se, no essencial, com a fundamentação da sentença recorrida e ela responde a todos os argumentos dos réus, no essencial assentes em factos que não se provaram, razão pela qual foi transcrita quase na íntegra.
Mas levantam-se outros problemas que importa referir.
I
Os autores sugeriam, na PI, que o imóvel seria comum e que teria sido prometido vender pelos dois réus, mas só um teria assinado o contrato. Sugestão que tem reflexos nas alíneas C, F e G dos factos provados. No entanto, no contrato-promessa consta que é o réu que é o proprietário do imóvel e que é ele o promitente vendedor; é ele que declara ter recebido os 8000€ de sinal e que dá a quitação e a conta bancária onde será depositado o preço é identificada como a conta do promitente vendedor. Por outro lado, no contrato, ele diz actuar em representação da mulher, mas não diz em que é que a representa. Nos autos não consta uma certidão predial da qual se pudesse retirar de quem é que era o imóvel. Portanto, podemos estar perante a promessa de venda de um imóvel próprio do réu (que também existem nos casamentos celebrados sob o regime de comunhão geral de bens: artigos 1722, 1733 e 1734, todos do CC – Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 5.ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pág. 644), em que a referência à representação da ré mulher apenas teria por fim assegurar que, na data da venda definitiva, a mulher consentiria na venda (art. 1682-A do CC). Para além disso, está-se perante uma simples promessa de venda, ao qual não se aplicam as regras da venda de bens alheios, porque com ela não se dá a transmissão da propriedade (art. 410/1 a contrario). Não há razão, por isso, perante os factos provados, para se ter como indiciada qualquer nulidade de conhecimento oficioso do contrato-promessa, relacionada com os dados introduzidos pelos autores relativamente à propriedade do imóvel, à ré mulher e à procuração não junta, nulidade que os réus dizem não arguir, também assim sugerindo que ela poderia existir.
Mas as referências que os autores fazem à mulher do réu salientam a ausência de razões para a sua condenação: ela não foi parte no contrato, não se diz que ela é proprietária do imóvel ou que tenha prometido vender, nem se diz que ela deu o consentimento para a celebração do contrato, nem que foi ela que recebeu o sinal, ou que o réu seja comerciante, ou que tenha actuado no exercício do seu comércio ou que o tenha feito em proveito comum do casal ou para ocorrer aos encargos normais da vida familiar. Ou seja, não se alegou nada que permita o preenchimento da previsão da responsabilização de ambos os cônjuges (art. 1691 do CC).
É certo que os autores dizem que “deram, a título de sinal da compra do referido imóvel a quantia de 8.000€, aos promitentes vendedores” e que “os promitentes vendedores apresentaram-se como legítimos proprietários do imóvel” e tal ficou dado como provado em B e C, mas aquelas são afirmação conclusivas contrárias ao que resulta do contrato, onde, como já se viu, foi o réu que recebeu o sinal, e onde a ré mulher não é promitente vendedora, nem se diz que é proprietária.            
Assim sendo, a ré mulher terá de ser absolvida do pedido (embora não tenha recorrido, o recurso do seu marido, seu litisconsorte necessário nos termos em que foi demandado, aproveita-lhe: art. 634/1 do CPC).
*
Ouvidas as partes sobre a hipótese de absolvição da ré não ser condenada por não ser parte no contrato, por força de um acórdão interlocutório com o voto de vencido do relator signatário do actual, os autores vieram dizer (em síntese e tirando-se algumas das muitas repetições):
O contrato promessa junto aos autos foi assinado pelo réu por si, e na qualidade de procurador e em representação de mulher. Não obstante no contrato se referir apenas “promitente vendedor”, no singular, tal não significa que a ré não seja parte no contrato dado o acabado de referir. A ser de outra forma, ficaria apenas a constar “outorga por si”. Terá ficado a constar “promitente vendedor”, no singular, porque seria apenas ele a assinar. Conforme consta do contrato, os réus são casados no regime geral da comunhão de bens, pelo que o bem imóvel seria sempre um bem comum do casal, logo o réu por si só não teria legitimidade para dispor do bem (artigo 1682-A do CC). Caso assim não fosse, em sede de contestação teria sido alegada excepção de ilegitimidade da ré, o que não aconteceu. Tal como, de igual forma em sede de recurso, em momento algum foi alegado que a ré não seria parte no contrato promessa. Mais, tal facto foi dado como assente, porque em momento algum foi impugnado.
Os réus responderam – também em síntese - que nunca tendo a ré assinado o contrato promessa, não assumiu ela qualquer obrigação. Inexistindo junta ao contrato celebrado qualquer procuração que outorgasse poderes ao réu quaisquer poderes de representação para o acto praticado; não se pode vincular a ré à prática de um acto a que nunca se obrigou, tal como não se pode responsabilizar a mesma.
*
O que antecede não põe em causa a conclusão anterior.
Pondo as coisas de outro modo:
O contrato promessa de compra e venda de um imóvel está sujeito à forma escrita (artigos 410/2 e 875 do CC). As partes num contrato escrito são aquelas que constam como tal. No contrato dos autos quem se diz proprietário e promitente vendedor é apenas o marido. A referência à mulher é só porque o promitente vendedor é casado. Dizer-se que o promitente vendedor é casado com a mulher, não transforma a mulher em parte no contrato. Nem a transforma em proprietária. A referência à procuração – de que nem sequer se prova a existência, sendo que tinha que ter sido passada por escrito (art. 262/2 do CC) e estar junta para provar a representação - não pode ter qualquer outro efeito útil potencial que não aquele que lhe foi dado acima.
Quem recebeu o sinal, segundo consta do contrato, foi o réu, não o réu e a ré. A ré não estava presente. O sinal foi dado no acto da formalização do contrato. A entender-se que o pagamento a que se refere o ponto 3 do contrato se refere ao pagamento do sinal, a conta bancária aí referida é identificada como sendo a conta bancária do vendedor.
As alegações dos autores referentes aos promitentes vendedores, ou seja, que estes se apresentaram como proprietários e que os autores entregaram o sinal aos proprietários – decorre apenas da leitura errada que eles fazem do contrato.
Ora, a leitura que os autores fazem de um contrato escrito – e que tinha de ser celebrado por escrito -, em desconformidade com o que consta do contrato, tendo apresentado o contrato e constando ele dos autos, não se sobrepõe ao que consta do contrato.
Nem se invoque contra isto o que foi dito na contestação: a mulher do réu não se transforma numa parte do contrato, apenas porque estes concordam com a leitura errada que os autores fizeram de um contrato necessariamente sujeito a escrito.
Por outro lado, mesmo que a ré mulher tivesse recebido, materialmente, o sinal, junto com o marido, não quer dizer que ela o tenha integrado no seu património nem que, por força do contrato-promessa celebrado, tivesse direito a ele.
Acrescente-se que não há prova que os réus sejam casados no regime geral da comunhão de bens – mas apenas que o réu escreve no contrato que é esse o regime do seu casamento – e que, mesmo que o regime de bens fosse aquele o imóvel não seria, só por isso, um bem comum do casal, como já se disse acima. E, resumindo o que foi dito acima, não é facto de um acto ser praticado por alguém que é – se for - casado em regime de comunhão geral de bens que, só por si, obriga o seu cônjuge. Tem que se verificar algo mais para que se possa dizer preenchida a previsão de alguma das hipóteses do art. 1691 do CC.
Por fim, os negócios sujeitos a forma legal não podem ser interpretados ou integrados de modo a colocaram nele um outro sujeito que nele não é parte formal, o que decorre do art. 238 do CC, porque as razões determinantes da forma do negócio se opõem a essa validade: veja-se o lugar paralelo do negócio dissimulado, o qual, se se tratar de uma simulação subjectiva, por exemplo, por interposição fictícia de pessoas, não é válido, precisamente por uma questão de exigência de forma: art. 241/2 do CC (a pessoa real não consta do contrato; assim, por exemplo, Ana Filipa Morais Antunes, em anotação ao art. 241, do Comentário ao CC, UCP/FD/UCE, 2014, pág.561: “[…] estando em questão uma simulação subjectiva, em particular, uma hipótese de interposição fictícia de pessoas, o negócio dissimulado tem de ser sancionado com a nulidade porquanto não é possível aproveitar a forma observada na celebração do negócio simulado (em que tiveram intervenção sujeitos diversos daqueles que efectivamente celebraram o negócio oculto ou dissimulado). Na jurisprudência, v. acs. do STJ de 27/05/2004 (04A1442) e de 25/03/2010 (983/06.7TBBGR.G1.S1).”
Em síntese: a ré não é parte num contrato formal apenas porque o réu diz que está a assinar o contrato por si e em representação da mulher. Nos contratos escritos as pessoas obrigam-se com a sua assinatura (como no caso, em relação aos dois autores, pelo que a situação deles não tem comparação com a ré mulher), ou com a assinatura de outrem com poderes de representação para o efeito e, se estes resultarem de procuração, esta também tem de resultar de um documento escrito e estar junta aos autos (pois que é o tribunal que tem de dar como provada a relação de representação e, portanto, é perante ele que a procuração tem de ser exibida).
*
II
Outro problema que a sentença levanta é que, para a condenação no pagamento do sinal em dobro, não basta o incumprimento definitivo do contrato por parte do réu. O incumprimento definitivo é a situação a partir da qual o credor promitente fiel pode resolver o contrato e pedir, contra o promitente faltoso, o pagamento do sinal em dobro.
Ou seja, quando a maioria da jurisprudência e da doutrina dizem - em coerência com o regime geral do incumprimento dos contratos - que o incumprimento previsto no art. 442/2 do CC é o incumprimento definitivo e não a mora, aquela posição maioritária tem como pressuposto que o incumprimento definitivo vai dar origem à resolução do contrato-promessa e à subsequente exigência do pagamento do sinal em dobro.
Ou seja, a lei pressupõe, na interpretação que é seguida pela posição maioritária, que depois de, através da interpelação que vai converter a mora em incumprimento definitivo – se o interpelado nada fizer no período concedido -, o promitente fiel ter ficado com a faculdade de exigir a penalização do promitente infiel, o exige realmente, extinguindo o contrato (através da sua resolução) e pedindo o pagamento do sinal em dobro.
Neste sentido, o preâmbulo do DL 236/80, de 18/07, diz: “relativamente à resolução do contrato mantém-se, em princípio, a regra actual – havendo sinal passado – da perda deste ou da sua restituição em dobro, conforme o outorgante causador da resolução” (lembrado por Calvão da Silva, Sinal e Contrato-promessa, 11.ª edição, Almedina, 2006, páginas 112 a 128, esp. pág. 114).
Calvão da Silva (obra citada, páginas 113 a 115, entre outras) por outro lado, diz que o disposto no art. 442/2 do CC -: “se o não cumprimento do contrato for devido… tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou” - significa que o tradens tem o direito de exigir a restituição do sinal entregue como efeito da resolução por incumprimento (se o sinal for confirmatório) ou da desistência do contrato pelo exercício do direito de retractação ou arrependimento (se o sinal for penitencial), mais uma quantia de montante igual ao sinal como indemnização compensatória pré-fixada ou correspectivo (preço) do droit de repentir (Reugeld).
[…] a primeira parte do n.º 3 pode também confirmar a mesma conclusão […] Só relativamente ao direito de resolução (e respectiva indemnização) que acarreta a destruição do contrato e a restituição do que as partes houverem recebido (arts. 433 e 434), a execução específica é alternativa […].
[…]
Logo que haja incumprimento definitivo, não tem cabimento a execução específica, recorrendo o credor à resolução (extinção) do contrato, com a indemnização determinada nos termos do art. 442.”
Galvão Telles, Direito das obrigações, 7.ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 129, em relação àquelas frases do art. 442/2 do CC, diz: “Isto pressupõe, no entanto, que haja incumprimento definitivo, e não simples mora, e que o contraente agravado, comunicou ao outro a sua decisão de resolver o contrato, dando-o como desfeito. […]
Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, 2.ª edição, UCE Porto, 2017, págs. 424-425, diz: “[…N]ão podendo recorrer à execução específica, tendo ou não perdido o interesse no cumprimento, ou não a julgando conveniente (por ex., nas hipóteses de recusa antecipada de cumprimento ou de fracasso da interpelação cominatória), o promitente fiel terá que resolver o contrato e fazer valer um pedido indemnizatório pelo incumprimento [definitivo] da promessa.
[…P]or razões de coerência do sistema a frustração da prestação de facto jurídico deve conduzir à aplicação conjunta das normas genéricas relativas ao tipo de incumprimento (por ex., o art. 808 para a conversão da mora em incumprimento definitivo) e da norma especial do n.º 2 do art. 44, esta atinente ao conteúdo indemnizatório.”
Posto isto,
No caso dos autos, a carta de 29/09/2018 é, como a sentença disse, o passo necessário para a conversão da mora em incumprimento definitivo mas com ela os autores não exigiram o pagamento do sinal em dobro; limitaram-se a referir que “caso […] não cumpra [n]o novo prazo estabelecido terá que restituir o sinal prestado no valor de 8000€ em dobro nos termos do n.º 2 do artigo 442 do Código Civil.”
Nesta carta, para um destinatário normal, colocado na posição dos réus (art. 236/1 do CC), não seria perceptível que os autores estavam desde logo a resolver o contrato para o caso de o réu não marcar a escritura no prazo suplementar de 30 dias e a exigir-lhe o pagamento do sinal em dobro. O que a carta sugere é que com ela os autores querem converter a mora em incumprimento definitivo do contrato e dar conhecimento ao réu da consequência legal do incumprimento definitivo.
E o comportamento posterior dos autores, nada mais fazendo durante mais de 7 meses, aponta também para esta leitura do teor da carta. E aponta nesse sentido, ainda, o facto de o réu ter continuado a actuar como alguém que espera que os autores ainda venham a aceitar a celebração do contrato de compra e venda, apesar daquele incumprimento definitivo: fazendo as entregas de Out2018 e de Jan2019 (factos 21 e 22).
Só com a carta de 30/04/2019 é que os autores, finalmente, usando a faculdade que o art. 442/2 do CC lhes dá, resolveram exigir o sinal em dobro, mesmo aí sem terem o cuidado de expressamente referirem a resolução do contrato, embora esta se possa retirar, implicitamente, daquela exigência.
Assim, concorda-se com a sentença que o incumprimento definitivo ocorreu com o decurso do prazo de 30 dias depois da carta de 29/09/2018, mas a resolução do contrato, com exigência do sinal em dobro, que é outro pressuposto do direito a este, só ocorreu com a carta de 30/04/2019.
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O último problema que a sentença levanta decorre do que antecede: dada a importância da carta de 29/09/2018, tem que se saber se ela foi recebida pelo réu e não há, nos factos provados, nenhum que expressamente diga que tal ocorreu. Isto na sequência de os autores não terem feito, na PI, tal afirmação – a da recepção da carta – ao contrário do que fizeram com a outra carta, a de 30/04/2019.
Mas a leitura dos factos provados permite retirar deles o pressuposto implícito que aquela carta foi recebida, o que também estava implícito nas alegações de facto feitas pelos autores na PI. Pois que só assim tem sentido dizer que os réus não responderam à carta do ponto 5 (ponto 8). De resto, na carta da alínea K também se faz referência à carta do ponto 5 e os réus, que receberam esta carta (ponto 13), nada dizem contra isso. Mais: na contestação, os réus assumem expressamente que receberam a carta de 29/09/2018 e alegam factos concordantes com tal pressuposto. 
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Posto isto,
Os autores fizeram converter a mora em incumprimento definitivo por carta de 29/09/2018. Em 30/04/2019 exigem o pagamento do sinal em dobro, implicitamente resolvendo o contrato.
O réu sugere que o exercício da faculdade de exigir o sinal em dobro com a carta de 30/04/2019 depois de todo o tempo decorrido, em que os autores teriam dado razões ao réu para pensar que eles não iam exigir o sinal em dobro, é abusivo, ou contra a boa fé, violador das expectativas que com o seu comportamento os autores criaram no réu.
Mas, no essencial, nada do que alegou a esse propósito se provou, sendo válida a argumentação da sentença contra estas razões do réu, inclusive ao sugerir que o réu, durante todo este tempo, podia ter tentado celebrar o contrato de compra e venda, o que não fez. E assim é: são mais de 7 meses desde a carta de 29/09/2018 e o réu nada fez para celebrar o contrato de compra e venda, tal como ainda nem sequer fez a prova de que tivesse a necessária licença de utilização da fracção.
Ora, nada tem de abusivo, perante a falta de provas de quaisquer factos que apontem em sentido contrário, que os autores, 7 meses depois de terem escrito uma carta a dar um prazo de 30 dias para a marcação da escritura, sem que o réu se tenha aproveitado desse prazo – de que os réus nunca discutiram a razoabilidade (o réu tenta discutir a razoabilidade do prazo de 5 dias da carta de 30/04/2019, mas esse é irrelevante para o caso) -, tirem agora a consequência da conversão da mora em incumprimento definitivo.
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Finalmente, em termos sumários, diga-se que: (i) o réu insiste na questão da falta de prova da perda do interesse sem a mínima preocupação de rebater a explicação que a sentença recorrida já deu e que não se repetirá; (ii) não há nenhum facto alegado e provado que permita qualificar de desrazoável o prazo de 5 dias para o pagamento do sinal em dobro mas, de qualquer modo, já se disse que este prazo não é o prazo da conversão da mora em incumprimento, dado na anterior carta; (iii) a sentença não entendeu que o prazo constante do contrato-promessa fosse um termo essencial e a questão não tem, no caso, qualquer interesse; (iv) a sentença já explicou – e o réu não argumenta contra isso – que o comportamento dos autores não revela renúncia aos seus direitos.
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso do réu, absolvendo-se a ré do pedido, mantendo-se, no resto, a sentença.
Custas, na vertente de custas de parte, quer na acção quer no recurso, em 50% pelo réu e 50% pelos autores (visto que perdem a acção contra a ré mulher).

Lisboa, 11/03/2021
Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas, com a seguinte
Declaração de voto
Votei vencida quanto à decisão de absolvição da Ré do pedido (com fundamento em que esta não é parte no contrato e não estava, por isso, obrigada a restituir o sinal em dobro, e nada ter sido alegado que permitisse o preenchimento da previsão da responsabilização de ambos os cônjuges - art. 1691.º do CC).
As questões que emergem das conclusões da alegação de recurso são as seguintes:
1.ª) Modificação da decisão da matéria de facto;
2.ª) Obrigação de pagamento do sinal em dobro – pelo incumprimento definitivo do contrato-promessa;
3.ª) Abuso do direito por parte dos Autores.
Tendo em vista a resolução da 2.ª questão, foi oficiosamente suscitada nesta Relação, a (sub)questão de direito da interpretação, isto é, determinação do sentido juridicamente relevante, da declaração negocial, vertida no documento que consubstancia o contrato-promessa, de saber se a Ré figurava como promitente vendedora no mesmo, a apreciar à luz do disposto nos artigos 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do CC.
Não foi suscitada nos autos a questão de facto da interpretação da vontade real das partes, estando plenamente provados os factos alegados na Petição Inicial e dados como provados na sentença dos quais resulta que a vontade real das partes era a de que os Autores/promitentes compradores prometiam comprar e os Réus/promitentes-vendedores prometiam vender-lhes [designadamente o alegado no art. 10.º da PI e dado como provado na alínea I) da sentença, ou seja, que ficou, de comum acordo, a chave do imóvel, de ser entregue aos promitentes-compradores somente na data da celebração da escritura, pois o imóvel estava em obras de remodelação total, estando combinado os promitentes vendedores só entregarem o imóvel quando as mesmas terminassem].
De referir que na Petição Inicial e na Contestação, as partes se referem sistematicamente a promitentes vendedores e promitentes compradores (e não foram convidadas a suprir qualquer insuficiência ou imprecisão a esse respeito). Os Réus confessaram-no, como resulta, designadamente, dos artigos 7.º e 15.º da Contestação, em que alegam que agiram (ambos) durante a fase pré-contratual e contratual de boa-fé e que na data em que a escritura devia ter ocorrido (15 de setembro de 2018) quer os promitentes vendedores, quer os promitentes compradores mantinham interesse na concretização do negócio prometido.
É sabido que nos negócios jurídicos formais, como é o caso do contrato-promessa, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso. Ora, fazendo uma interpretação das declarações vertidas no documento que consubstancia o contrato-promessa, em particular na parte em que o Réu declara que outorga “por si e na qualidade de procurador e em representação da sua referida mulher”, devidamente identificada, a qual não pode deixar de ter algum conteúdo útil, tudo indica que se pretendeu que a Ré mulher também figurasse no contrato como promitente-vendedora, não estando errada a interpretação que os Autores fizeram e que a própria Ré nunca questionou, designadamente na Contestação.
A circunstância de ter sido declarado no documento pelo qual o contrato-promessa foi formalizado que o promitente-vendedor era proprietário e/ou que este recebeu a quantia de 8.000 €, como sinal e princípio de pagamento, “por transferência bancária para a conta do Promitente Vendedor” em nada obsta a essa conclusão. Com efeito, o uso do singular apenas traduz uma falta de rigor (que não é a única – veja-se que, no documento, na identificação dos promitentes compradores, não figura a Autora, mas apenas o Autor, “NIF (…), casado no regime de comunhão geral de bens com Jorgina …(…)”), que é compreensível, atendendo a que se tratava de uma única pessoa a outorgar.
É certo que dos autos não consta uma certidão do registo predial da qual se pudesse retirar quem é o proprietário do imóvel, mas daí não se segue que possamos equacionar estar perante a promessa de venda de um imóvel próprio do réu, pois tal questão não se coloca. Aliás, tão pouco está provado se o Réu era (ou não) proprietário do imóvel, não tendo sido considerado necessária a junção aos autos de uma tal certidão.
A declaração de recebimento do sinal (como, aliás, o acordo de tradição) não está sujeita a forma escrita, devendo ser interpretado o que a esse respeito foi declarado no documento que consubstancia o contrato-promessa como significando que o sinal foi recebido pelos Réus/promitentes-vendedores. Sem embargo do que consta (ou da interpretação que se faça) do contrato promessa quanto ao recebimento do sinal e de, no documento de “transferência interbancária” junto com a Petição Inicial, o Réu figurar como beneficiário, a verdade é que está provado que a quantia foi depositada em conta bancária de que a Ré também era titular (ponto 16.).
Está provado que:
C) Os promitentes vendedores apresentaram-se como legítimos proprietários do imóvel.
B) Os autores deram, a título de sinal da compra do referido imóvel a quantia de 8.000€, aos promitentes vendedores.
5. Tendo os autores constatado que, em 15/09/2018 não tinha sido comunicada qualquer data para a celebração do contrato de compra e venda do imóvel, enviaram carta aos promitentes vendedores, a conceder mais 30 dias para diligenciarem na realização da escritura (…)
16. Os réus não tiveram mais contactos diretos com os autores após receberem o sinal de 8000€ nas suas contas bancárias.
20. Os réus comunicaram aos autores, por intermédio do Eng. JP, que, uma vez que o elevador do prédio onde se situa a fração objeto dos presentes autos se encontrava avariado, lhes fariam uma “atenção” no valor final no montante de 3000€.
21. Foram – por conta dos réus - fornecidos transportados e colocados na fração objeto do negócio, às 16h53 de 10/10/2018, móveis de cozinha, um forno e placa, lava-loiça e 2 roupeiros.
22. Também por conta dos réus, foram entregues, na fração, uma máquina de lavar roupa, outra de lavar loiça e um frigorífico, a 03/01/2019.
É igualmente certo que se provou não ter sido junta a procuração da mulher do promitente vendedor, a qual não esteve presente na assinatura do contrato. Mas a mera circunstância de tal procuração não ter sido junta com o contrato-promessa não obsta a que a representação possa existir e operar válida e eficazmente, como decorre do art. 260.º do CC, até porque nem há notícia de que os Autores tenham exigido ao Réu a justificação dos seus poderes de representação e nunca foi determinada a junção aos autos de tal documento.
Também não há dúvida que tal procuração carecia de constar de documento escrito, exigência que constitui formalidade ad substantiam cuja falta implica a respetiva nulidade (art. 220.º do CC). Porém, não foi suscitada, designadamente pelo Apelante ou mesmo oficiosamente nos autos, a questão da falta de poderes de representação (representação sem poderes) ou da nulidade da procuração, cuja (in)existência ou (falta de) redução a escrito não foi discutida e não está, por isso, provada ou não provada. Aliás, nem sequer no requerimento de 24-02-2021, em que o Réu se veio pronunciar sobre a questão em apreço (em termos nada esclarecedores), este alegou que uma tal procuração não existe, apenas referindo Inexistindo junta ao contrato celebrado qualquer procuração que outorgasse poderes ao cônjuge marido”.
Assim, a Ré é parte no contrato (e incumpriu o mesmo).
A entender-se que a Ré não é parte no contrato-promessa (não sendo esse o sentido da declaração negocial vertida no documento que consubstancia o contrato-promessa), então será forçoso considerar, ante os factos provados, em particular a matéria evidenciada no ponto 20. dos factos provados, que aquela deu o seu consentimento à celebração deste contrato.
Com efeito, a não ser interpretado o declarado no documento/contrato-promessa da forma acima propugnada, sempre se deverá considerar que a referência aí feita à representação da Ré mulher teria, pelo menos, por fim assegurar que esta consentia na promessa de venda. Tal resulta confessado pela própria Ré na Contestação, designadamente quando é afirmado que os Réus “nunca se iriam refugiar na alegação de vícios de forma do contrato promessa, porquanto sempre quiseram que o mesmo produzisse os seus efeitos normais, nomeadamente que fosse conducente à celebração do contrato prometido, transferindo a propriedade do imóvel para os AA.” (art. 6.º). Se a Ré sempre quis que contrato-promessa conduzisse à celebração do contrato prometido, então consentiu no mesmo.
Logo, a dívida é também da sua responsabilidade, nos termos do art. 1691.º, n.º 1, al. a), do CC.