Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
589/23.6GCMTJ-A.L1-9
Relator: CRISTINA SANTANA
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PROTECÇÃO DA VÍTIMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I - A Lei nº 112/2009, de 16.9, não impõe o deferimento da prestação de declarações para memória futura mas o deferimento deve ser a regra.
II - Na verdade, o escopo de tal diligência é não apenas evitar a perda de prova mas também proteger a vítima.
III - Nas situações de violência doméstica, com frequência, a prestação de depoimento em julgamento tem grande potencialidade traumática, pelo que, em regra, o interesse das vítimas aconselha a prestação de depoimento de forma mais resguardada - com vista a evitar a vitimização secundária e, também, com vista a garantir a prestação de depoimento sem constrangimentos, de forma mais espontânea, contribuindo para a realização da justiça.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, nesta 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.
Em 23.1.2024, o Senhor Juiz de Instrução proferiu despacho indeferindo a tomada de declarações para memória futura de AA, BB e CC – Ref 432194720.
Inconformado, em 24.2.2024, de tal decisão recorreu o Ministério Público: Ref.433549703.
Da motivação, extraiu as seguintes conclusões:
CONCLUSÕES
a) Os factos denunciados nos autos constituem a prática de três crimes de violência doméstica, p. e p. pelo Artº 152º do Código Penal, pelo que aplicável o Artº 33º da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro;
b) O Ministério requereu a tomada de declarações para memória futura das três vítimas, com fundamento na essencialidade do respectivo depoimento para o apuramento e prova dos factos, na necessidade de garantir a integridade desses depoimentos e na necessidade de impedir a sua revitimização;
c) Nestes autos existe já arguido constituído, pelo que não se coloca sequer a questão da limitação do exercício do contraditório;
d)A tomada de declarações para memória futura não obsta a que, caso se venha a revelar necessário, as vítimas voltem a ser inquiridas em audiência de julgamento, avaliação que deverá ser feita em fase de julgamento e não pelo juiz de instrução criminal;
e) As declarações que venham a ser prestadas para memória futura serão apreciadas e avaliadas juntamente com a demais prova, em audiência de julgamento por quem a ela presidir, pelo que não existe nenhuma distorção do princípio da concentração da produção da prova que possa fundamentar o indeferimento do requerido;
f) A directiva 5/2019 da PGR não foi invocada pelo Ministério Público como fundamento para o requerido e, mesmo que o tivesse sido, a não verificação das circunstâncias que, nos termos dessa directiva, impõem a tomada de declarações para memória futura não significa que a diligência não possa ser requerida;
g) O Artº 33º, nº 1 da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro transforma as declarações para memória futura numa diligência comum quando está em causa o crime de violência doméstica, retirando-lhes o carácter de excepcionalidade que lhes é conferido pelo Artº 271º do Código de Processo Penal para a quase generalidade dos outros tipos de crime;
h) A decisão recorrida indeferiu o requerimento do Ministério Público sem se pronunciar sobre os fundamentos que dele constam, assim violando o disposto no Artº 33º, nº 1 da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro.
Nestes termos deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a tomada de declarações para memória futura a AA, BB e CC, nos termos do disposto no Artº 33º da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro.
Junta: duplicados legais (Artº 411º, nº 5 do C.P.P.).
Seixal, 26 de Fevereiro de 2024
O recurso foi admitido, por despacho proferido em 1.3.2024, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo – Ref 433425754.
2.
Remetidos os autos a este Tribunal, foi aberta vista, tenho o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido o seguinte parecer - Ref 21355555:
“Visto – artigo 416.º, n.º 1 do C. P. Penal.
*
- O recurso é próprio e tempestivo ( ), interposto por quem tem para tanto a necessária legitimidade ( ).
- O momento e a forma da sua subida e o efeito que lhe foi fixado são os legais ( ).
II
1 - Do recurso:
1.1 – A questão essencial objecto do presente recurso – que vem interposto pelo M.º Público do despacho proferido em 23 de janeiro de 2023 (refª Citius 432194720)– resume-se a esta, de saber se, o Sr. Juiz de Instrução dispunha de fundamento normativo para indeferir a tomada de declarações para memória futura, de três testemunhas, alegadamente vítimas de crimes de violência doméstica, baseando-se na falta de “circunstancias de excepcionalidade para a sua realização…” .
1.2 – Na sua motivação, e pelos fundamentos densificados nas respectivas conclusões, defende a Ex.mª magistrada do Ministério Público recorrente, em suma, não poder o Sr. Juiz indeferir tal requerimento do MP, porque a diligência em causa é imprescindível para a aquisição/antecipação de prova e procura evitar o fenómeno de revitimização, com as sucessivas diligências de inquirição; com a referida diligência, procura apurar-se as circunstâncias de tempo e lugar, sendo que o arguido, em nada é prejudicado, já que estará presente, tal como o respectivo defensor.
Ademais, estamos na fase embrionária do inquérito, sendo carreados para os autos, oportunamente, as certidões de nascimento, casamento, relatórios médicos e exames periciais.
III
2 - Do Mérito
Consultados os elementos dos autos, verifica-se que em investigação, estão três crimes de violência doméstica, perpetrados pelo arguido, DD, marido e pai das vítimas (artºs 152º, n.º 1, al.s a) e e) e 2, al.a) do CP e 67º-A, n.º 1, al.s) i) e iii) CPP.
Na verdade:
a. AA, ofendida e mãe dos ofendidos BB e CC, denunciou DD, marido e pai dos ofendidos, pela prática de factos subsumíveis aos ilícitos supra referidos;
b. Ora, o arguido negou expressamente os factos;
c. As declarações de AA são apenas corroboradas, até ao momento, por um relatório médico e testemunhos dos dois filhos.
d. Um dos filhos, o CC tem 12 anos de idade.
É certo que, quando o MP requereu tais diligências, o inquérito estava ainda numa fase embrionária, referindo o Exmº JIC que não existem nos autos, sequer, certidões de casamento e/ou de nascimento, bem como relatório de risco.
Porém tal como acentua o MP, junto da 1ª instância nenhum dos intervenientes (nem o arguido) colocaram em causa as relações familiares que os unem.
Também quanto à alegada inexistência de relatório de risco, ele existe e foi junto com a participação nos autos (risco médio).
Por fim, não podemos esquecer que no art.º 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, que institui a Lei de Proteção de Testemunhas, aplicável ao caso atento o disposto no art.º 20.º, n.º 8 da LVD, Lei 112/2009, o qual dispõe, sobre a Intervenção no inquérito, que:
1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.
Nos termos do artigo 33.º da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro «O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.»
É consabido que as declarações para memória futura constituem uma exceção ao princípio da imediação, pois as provas recolhidas pelo juiz de instrução podem ser tomadas em conta no julgamento. Trata-se, no fundo, de uma antecipação parcial do julgamento.
Subjacente à admissibilidade deste instituto – declarações para memória futura – está o interesse público da descoberta da verdade material, a conservação da prova e o interesse da vítima.
Como é bom de ver, tal meio probatório reveste um caráter excecional, devendo ser sopesados os interesses da investigação com outros interesses que devam ser protegidos.
Tal ocorre justamente no caso de as declarações para memória futura deverem ser prestadas por uma criança, circunstância que exige uma prévia ponderação sobre a necessidade de a mesma ser utilizada como meio probatório e, como tal, sujeitá-la à tensão inerente à prestação de um depoimento em Tribunal, no âmbito de uma ação penal.
Não obstante a natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica, não se pode ignorar que os mesmos, muitas vezes, demandam uma investigação que acaba por ser demorada, e em que os depoimentos das vítimas são essenciais na descoberta da verdade material, importando que os seus depoimentos sejam tomados com celeridade (sob pena de se poderem perder factos essenciais), sobretudo quando estamos perante uma criança.
A audição desta testemunha (ofendido menor) em inquérito e em sede de declarações para memória futura permitirá evitar uma contaminação do seu depoimento assim como a perda de memória dos factos na sua plenitude.
Por outro lado, sendo o crime de violência doméstica punível com pena de prisão de máximo igual a cinco anos integra a noção de criminalidade violenta definida no art.º- 1.º, alínea j), do C.P.P.
Haverá, então, que considerar a ofendida uma vítima especialmente vulnerável, e, isto, sem necessidade de averiguar se a mesma preenche algum dos critérios indicados na alínea b) do nº 1 do art.º 67.º-A do ou outros que igualmente evidenciem tal especial vulnerabilidade.
A par do direito de audição em declarações para memória futura das vítimas especialmente vulneráveis, reconhecido pela Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro — diploma aplicável a qualquer vítima de criminalidade mostra-se também legalmente reconhecido o direito de audição em declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, nos termos constantes do referido artº 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
Acresce que o art.º 67.º-A do C.P.P., no qual se considera, como dissemos, vítimas especialmente vulneráveis, para além do mais, as vítimas de criminalidade violenta, foi introduzido precisamente pela referida Lei n. 130/2015, de 04 de Setembro.
Ainda por força do disposto no art.º 14.º, n.º 1 da Lei 112/2009 de 16 de setembro, apresentada a denúncia da prática do crime de violência doméstica, não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes atribuem à vítima, para todos os efeitos legais, o estatuto de vítima.
A audição da testemunha/ofendida/ vítima especialmente vulnerável é fundamental para a realização das finalidades do processo penal, para a descoberta da verdade material, uma vez que a mesma é uma das principais testemunhas dos factos, sendo fundamental ouvi-la sobre o que efetivamente aconteceu, só assim se podendo fazer justiça.
Ora, a prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável constitui um direito seu, como se verifica do disposto nos art.ºs 21.º, n.º 2, al. d) do Estatuto da Vítima, e no caso das crianças expressamente consagrado no art.º 22.º do mesmo Estatuto.
Para além de um direito seu, as declarações para memória futura constituem meio de prova e por isso pode revelar-se essencial para que a partir delas se possa desenvolver a investigação de modo mais concreto e eficaz, ao mesmo tempo que constituem um meio de proteção da própria vítima – cfr ainda art.º 20.º, ainda da LVD.
Por fim (mas não por último), não podemos deixar de mostrar a nossa surpresa pelo facto de o Exmº JIC, aludindo à Diretiva 5/2019 da PGR (ponto A do Capítulo IV, aplicável por via do ponto B), concluir que não se encontram sequer reunidos os pressupostos relativos à essencialidade e necessidade da diligência, constantes naquela Directiva que apenas impõe a obrigatoriedade da tomada de declarações nas situações de vítima de risco de nível médio, associada a circunstâncias que, objectivamente, sejam susceptíveis de agravar a vulnerabilidade da vítima, seguindo-se o termo “designadamente”, após o que se elencam algumas situações daquele agravamento.
Ora, posto isto, se o MP está obrigado, naquelas e outras circunstâncias, que considere suscetíveis de agravar a vulnerabilidade da vítima, a requerer a diligência de declarações para memória futura, tal não acarreta que considere, ainda assim, reunidos todos os pressupostos que supra se elencaram, requerer tal diligência.
Consequentemente e por todo o exposto e normas supra referidas, estão reunidos os pressupostos para a audição para memória futura dos ofendidos, nos autos.
Neste sentido, entre outros, os Ac.s TRL - Proc. 382/19.0PASXL-A.L1 9ª Secção, Relatora, Juiz Desembargadora, Leonor Botelho; e da Relatora, Juiz Desembargadora, Amélia Carolina Teixeira, de 12-10-2023; Ac. TR Évora de 6/2/2024, in www.dgsi.pt
3 – Termos em que, e remetendo no mais para a argumentação do recorrente, se emite parecer no sentido de que, a nosso ver, o despacho proferido, ora impugnado, não pode deixar de ser revogado, declarando-se procedente o recurso do Ministério Público.
Lisboa, 28 de março de 2024.”
*
Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Pelo que cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso:
É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (art. 410.º n.ºs 2 e 3 do CPP).
Assim sendo, as questões a apreciar por este Tribunal ad quem consistem em saber se:
Deve ser determinada a peticionada tomada de declarações para memória futura.
2. A decisão recorrida - Ref 432194720 (transcrição):
“Pedido de tomada de declarações para memória futura
Vem solicitada pelo titular do inquérito a tomada de declarações para memória futura dos filhos do casal e da mãe, alegadas vítimas_
É invocada a necessidade de audição dos filhos e da vitima, porque se tratam das únicas pessoas que terão presenciado os factos e porque com tal diligencia visa-se minimizar o impacto psicológico das pessoas visadas e o provável ascendente que o pai terá sobre os filhos, mormente um deles com 12 anos de idade.
Quanto aos meios de prova e factos relativamente aos quais recairá o depoimento nada é referido.
*
Solicita-se, pois, a audição da esposa do arguido, do filho BB, maior de 18 anos e do filho menor de 12 anos, CC.
A esposa já foi ouvida em 08.11.2023, o filho BB em 14.11.2023 e o arguido 06.12.2023.
Não nos embrenhando, por ora, quanto à forte indiciação da prática de crime de V.D pelo arguido, verifica-se que:
Do processo não consta qualquer ficha de risco a que alude a instrução n.º 2/2014, de 30.10.2014 da PGR aplicável aos processos de V.D.
Não constam certidões de nascimento nem de casamento das pessoas envolvidas nestes autos.
Segundo os dados dos autos a ofendida está a residir em … com o filho mais novo, CC e o filho mais velho, BB, manterá residência com o pai, ora arguido.
*
Sendo estes os dados dos autos e se é certo que o processo é uma realidade dinâmica e que compete ao M.P apreciar da essencialidade das diligencias de inquérito, do qual é titular, tratando-se de diligencia de tomada de declarações para memória futura, ou seja de processo antecipatório de prova, diligencia relativamente à qual o legislador impôs a obrigatoriedade de intervenção judicial, sujeita às regras previstas nos art.ºs 352º, 356º, 363º, 364º, ex vi do art.º 271º, n.º 6 do CPP, porque contende com direitos liberdades e garantias e porque o que está em causa não é uma modalidade de pura e simples agremiação de prova, nem tão pouco a mera obtenção de melhores e mais cabais esclarecimentos tendo em vista uma decisão futura, ou o risco de eventual perda de prova, mas sim evitar-se o comummente conhecido como fenómeno da revitimização, ou vitimização secundária, fenómeno relativamente ao qual, que se saiba, o titular do inquérito, na sua apreciação, não se erige como entidade situada num patamar superior ao juiz das liberdades e garantias, o tribunal tem o dever de proceder à sua apreciação.
Com efeito, uma coisa é a diligencia antecipatória de prova objectivamente considerada, mormente tendo em atenção a tipologia criminal e o disposto no art.º 33º da Lei 112/2009, de 16/09, outra é a essencialidade da diligencia tendo em vista o fenómeno da revitimização, é que o pedido antecipatório de prova tem a sua génese neste fenómeno que, porque muito presente neste tipo de criminalidade, por regra, torna-se essencial, mas suprimir ao juiz a possibilidade de apreciação dessa essencialidade corresponderá ao esvaziar de conteúdo à sua função, a qual não passa apenas pela garantia dos direitos liberdades e garantias das pessoas arguidas nos processos crime, mas também pela garantia de que nas circunstancias reais do processo a diligencia em causa, não se revela contraproducente, na medida em que não evita aquilo que o legislador pretendeu evitar, vulgo o fenómeno da revitimização.
Ora se assim é, como nos parece ser, como é que se pode vedar ao tribunal a possibilidade de apreciação dessa realidade?
A resposta, quanto a nós, só pode ser uma, o tribunal tem forçosamente que se debruçar sobre esta matéria, devendo o titular do inquérito expor, com base nos dados concretos dos autos, quais os motivos do pedido antecipatório da diligencia de prova, as matérias relativamente às quais as testemunhas irão depor, nem que seja por mera remissão relativamente aos dados já colididos nos autos e, por regra, explicitar porque motivo pretende que a diligencia ocorra sem arguido constituído (situação ultima que aqui não se coloca), pois só assim se observa o propósito do legislador, permitindo ao juiz apreciar da essencialidade da diligencia, tendo em vista o fenómeno da revitimização e a garantia dos direitos de defesa, mormente o do contraditório.
Com efeito, somos confrontados com dezenas de pedidos de tomada de declarações, e por regra deferimos as diligencias solicitadas, contudo, recusamo-nos a fazê-lo de forma "cega" e "surda", porque entendemos que com o disposto no art.º 33 supra mencionado o legislador não visou apenas confinar a actividade do Juiz de instrução a uma actividade vinculada de controlo formal dos pressupostos e não da verificação de qualquer outro elemento formal ou substantivo (discordando-se respeitosamente do Acórdão da Relação de Lisboa in processo n.º 535/22.4PFSXL-A.L1 de 23.11.2023 do Exmo Sr Desembargador Antero Luis), aliás, o legislador poderia ter permitido que as declarações das testemunhas, desde que prestadas perante autoridade judiciária e com assistência de defensor, seguisse o regime do art.º 357º, n,º1 al b) do CPP, previsto para as declarações do arguido, mas não o fez, e não o fez, diremos nós, porque se trata de uma diligencia que deve seguir, na medida do possível, o regime de uma audiência de discussão e julgamento, não estamos perante uma mera dinâmica inquisitória típica do inquérito, mas contraditória1,.
O arguido pode intervir no processo e ser chamado a prestar declarações sobre os factos sempre que deles deva tomar conhecimento para exercer o seu direito de defesa, outro tanto já não pretende o legislador quanto ás vitimas particularmente vulneráveis, quer tal decorra ope legis, ou por via de despacho que nos reconduza a essa conclusão (vide Lei 112/2002, de 16/09 - art.º 33, Lei 130/2015, de 04/09 — art.º 20 e art.º 67-A, n.º 3 e art.º 1 al j), ambos do CPP)2, motivos pelos quais o juiz tem de poder aquilatar da necessidade e essencialidade da diligencia, tendo em vista evitar-se o tal fenómeno da revitimização, não nos parecendo entendfvel que se trate de realidade exclusiva do julgamento, cada vez que se descurar o requisito da essencialidade, tendo em vista evitar-se a revitimização da vitima, com a sua audição por múltiplas vezes em sede de inquérito, ainda que perante juiz, tal realidade estará sempre presente, aliás, sendo o processo urna realidade dinâmica e tratando-se de criminalidade associada a uma reiteração de actos, caso se descure esse cuidado, a vitima poderá ter de ser chamada a depor várias vezes ainda que em sede de inquérito perante juiz de instrução, realidade não pretendida pelo legislador.
Salientando-se a este propósito o Ac da RG in procºn.º 846/20.3PBBRG.G1 de 12/10/2020 em que foi Relator o Exma Sr Desembargador António Teixeira, citando outro acórdão da RL, sobre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo (cfr. artigo 16º/2 da lei 112/2009) e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça, avançando-se como critérios orientadores:
A complexidade do processo, que em muito resulta da personalidade das pessoas envolvidas;
A importância que a inquirição da queixosa tem para o apuramento da verdade em toda a sua extensão;
A relevância que para a correcta valoração da prova tem, especialmente neste caso, o contacto directo do juiz de julgamento com as fontes de prova (princípio da imediação em sentido estrito) e a produção concentrada de todos os meios de prova na audiência de julgamento;
A circunstância de a tomada de declarações da vítima para memória futura durante a fase de inquérito não evitar, muito provavelmente, uma nova inquirição no decurso da audiência;
O facto de essa inquirição, desde que realizada com as cautelas previstas na lei, não pôr previsivelmente em causa, de uma forma signfficativa, a saúde psíquica da vítima;
Por fim, embora não mencionado no requerimento do titular do inquérito, e até discordemos do seu teor3 mas porque vinculativa para uma Magistratura hierarquizada como é a do Ministério Público, não se encontram sequer reunidos os pressupostos relativos à essencialidade e necessidade da diligencia constantes na Diretiva 5/2019 da PGR (ponto A do Capítulo IV, aplicável por via do ponto B), segundo a qual teremos de estar perante circunstâncias que "objectivamente sejam susceptíveis de agravar a vulnerabilidade da vitima", ali se estatuindo, além do mais, que o Ministério Público requer obrigatoriamente a tomada de declarações para memória futura nas situações de: (...) ii) avaliação de risco da vítima de nível médio associada a circunstâncias que objectivamente sejam susceptíveis de agravar a vulnerabilidade daquela, designadamente qualquer uma das seguintes: a) aumento do número de episódios violentos e/ou da gravidade dos mesmos, em particular no último mês, acompanhado da convicção da vítima de que o denunciado ou arguido pode matá-la; b) existência de processo(s) contra o denunciado ou arguido pela prática de crime(s) contra a vida, integridade física ou de ameaça, bem como a repetida verbalização perante familiares ou pessoas próximas da vítima da intenção de a matar".
**
*
Face ao exposto, sopesando os interesses das vitimas, os interesses do arguido, os princípios da mediação em que se alicerça o processo penal, a excepcionalidade do instituto e a situação narrada nos autos indefere-se as diligencias de tomada de declarações para memória futura requeridas pelo Ministério Público, por se entender que não se mostram reunidas as circunstancias de excepcionalidade para a sua realização, não decorrendo dos autos, na opinião do tribunal, nenhuma das circunstancias factuais que as poderiam determinar.
Notifique.
Seixal 23.01.2024 “
III – Apreciando e decidindo:
Para cabal compreensão, impõe-se transcrever o requerimento apresentado pelo Ministério Público sobre o qual recaiu a decisão recorrida:

Até ao momento apenas consta dos autos o depoimento dos ofendidos e as declarações do arguido, sendo que este nega os factos que lhe são imputados e/ou apresenta versões alternativas dos mesmos.
A ofendida relata factos dos quais terá sido vítima CC, filho de ambos actualmente com 12 anos de idade, cuja prática o arguido nega.
Resulta ainda das declarações prestadas por todos que os factos terão ocorrido na residência da família, inexistindo outras testemunhas.
A única prova que será possível recolher é testemunhal e consiste nas declarações dos ofendidos, que poderão ser corroboradas quanto às lesões sofridas (sendo que o arguido admitiu ter atingido um dos filhos num olho com um cinto, mas afirmou ter-se tratado de um acidente), mas não já o modo como fora, infligidas.
Importa assim recolher essas declarações de forma processualmente válida noutras fases processuais, de forma a minimizar o contacto dos ofendidos com os presentes autos, particularmente os filhos do casal. Um deles tem apenas 12 anos e o outro é ainda muito jovem, estão em causa conflitos familiares que os afectam necessariamente e o constante confronto com os factos é fonte de sofrimento psicológico que se pode e deve evitar. Por outro lado, considerando a relação próxima entre todos e o provável ascendente do pai sobre os filhos, a possibilidade de que os seus depoimentos venham a ser condicionados é real e elevada.
No que respeita à ofendida, e pese embora tenha sido ela a denunciante, o crime em investigação caracteriza-se em grande medida pela relação emocional existente entre a vítima e o agressor, sendo comum o ascendente deste sobre a primeira que não só a mantém presa num relacionamento abusivo como condiciona a sua posição processual e as declarações que presta nos autos em casa fase do processo.
Assim, e nos termos do disposto nos Artºs 33º da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro, importa tomar declarações para memória futura a AA, BB e CC.
Face ao exposto, remeta os autos à Mmº Juiz de Instrução Criminal, Secção de Instrução Criminal do Barreiro, a quem requeiro a tomada de declarações para memória futura a AA, BB e CC, nos termos do disposto no Artº 33º da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro.
Mais requeiro que, em cumprimento do disposto no nº 3 da referida norma, se proceda à nomeação de técnico para acompanhamento das vítimas.
Requeiro que ainda que, e nos termos do disposto no nº 5 da referida norma e 352º do Código de Processo Penal, se determine o afastamento do arguido no momento da tomada de declarações, a fim de evitar que a sua presença condicione a espontaneidade e veracidade dos depoimentos.
…, 5 de Janeiro de 2024”
Apreciando:
Foi requerida a tomada de declarações para memória futura à mulher e a dois filhos do arguido, um dos quais com 12 anos de idade e o outro com 18 anos.
Após análise dos elementos contantes dos autos, decidiu o JIC indeferir a realização de tal diligência e dessa decisão recorreu o Ministério Público.
Vejamos o quadro legal:
Em princípio, toda a prova deve ser produzida em audiência, a prestação de declarações para memória futura em fase de inquérito ou de instrução constitui uma excepção ao referido princípio, um desvio ao princípio da mediação e da publicidade da audiência.
Estando em causa crimes de catálogo ou verificando-se que a urgência não é compatível com a espera pelo momento do julgamento, dado o risco de a prova se perder, a lei consagra o regime constante dos artigos 271º, nº1, e 294º, ambos do CPP, face ao qual o JIC pode determinar a tomada de declarações para memória futura, após avaliação da situação. Determina a realização de tal diligência no caso do nº2 do primeiro dos referidos preceitos legais.
Na verdade, estipula o art.º 271.º do C.P.P. que:
“1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento dó Ministério Público, dó arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder á sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e. o. local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4 - Nos casos previstos, no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
- A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6 - É correspondentemente. aplicável o disposto nos artigos 352.0, 356.º, 363.º e 364.º
7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a. acareações.
.8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores, não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possivel e não puser em causa a saude física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.»
Mas, no caso do crime de violência doméstica consagrou-se um regime formalmente autónomo4 quanto à prestação de declarações para memória futura – vide Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece o Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência às suas Vítimas.
No artigo 33º da mencionada Lei, com a epígrafe Declarações para memória futura, estipula-se que:
“1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do acto processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.
4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352º, 356º, 363º e 364º. do Código de Processo Penal.
6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.
7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”.
O artigo 2ºda referida Lei 112/2015, nas alíneas a) e b), define o que, para efeito da mesma, se entende por vítima e vítima particularmente vulnerável.
Atento o teor do artigo 1º, al. j), do CPP, o crime de violência doméstica integra o conceito de criminalidade violenta.
Por seu turno, nos termos do disposto no nº3 do artigo 67ºAdo CPP, as vítimas de criminalidade violenta, são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeito do disposto na alínea b) do nº1.
Por fim, os artigos 17.º n.º 1, 21º, nº 2, al. d), e 24º da Lei 130/2015, de 04 de Setembro, diploma que aprovou o Estatuto da Vítima, determinam que a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, prevendo a possibilidade de prestação de declarações para memória futura.
A doutrina e a jurisprudência que seguimos:
“No âmbito do crime de violência doméstica o artigo 33º prevê um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura.
(…)
O objectivo perseguido pelo legislador foi, claramente, o de reforçar a tutela judicial da vítima, consagrando um direito que visa uma protecção célere e eficaz [artigo 3º, al. e)] e assegurando-lhe uma protecção jurisdicional igualmente célere e eficaz [artigo 3º, alínea h )].
Está em causa o propósito de proteger a vítima, prevenindo a vitimização secundária e a sujeição a pressões desnecessárias.
Como se referiu na longa exposição de motivos da Proposta de Lei nº 248/X/4ª que esteve na base da citada Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro: “Sendo a prevenção da vitimização secundária um aspecto axial das políticas hodiernas de protecção da vítima, estabelece-se, sempre que tal se justifique, a possibilidade de a vítima no decurso do inquérito a fim de que o depoimento seja tomado em conta no julgamento, ou ainda, no caso da vítima se se encontrar impossibilitada de comparecer em audiência, a possibilidade de o tribunal ordenar, oficiosamente, ou a requerimento, que lhe sejam tomadas declarações no lugar onde se encontra, em dia e ora que lhe comunicará.
No domínio das declarações para memória futura, o propósito da lei de violência doméstica terá sido o de consagrar a possibilidade de inquirição antecipada da vítima de violência doméstica, conferindo-lhe a este nível um estatuto equivalente ao das vítimas de crimes de tráfico de pessoas ou de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual (art.º 271º, nº 1), reforçado ao nível da legitimidade para requerer a produção antecipada de prova.
Por isso que também quanto à vítima de violência doméstica se deva entender que a sua inquirição antecipada é admissível mesmo que não seja previsível o impedimento de comparência em julgamento. (…)5.
E, a tomada de declarações para memória futura não viola o essencial do princípio do contraditório, princípio consagrado no artigo 32º da CRP:
6“… III - As declarações para memória futura, verificados os pressupostos em que a produção é processualmente admitida (art. 271.º, n.º 1, do CPP), constituem um modo de produção de prova pessoal, submetido a regras específicas para acautelar o respeito por princípios estruturantes do processo, nomeadamente o respeito pelo princípio do contraditório.
IV - O princípio do contraditório – com assento constitucional no art. 32.º, n.º 5, da CRP – impõe que seja dada oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte, designadamente que seja dada ao acusado a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação.
V - A construção da verdadeira autonomia substancial do princípio do contraditório leva a que seja concebido e integrado como princípio ou direito de audiência, dando «oportunidade a todo o participante processual de influir através da sua audição pelo tribunal no decurso do processo» (cf. idem, pág. 153).
VI - A densificação do princípio deve, igualmente, relevante contributo à jurisprudência do TEDH, que tem considerado o contraditório um elemento integrante do princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no art. 6.º, § 1.º da CEDH.
VII - Na construção convencional, o contraditório, colocado como integrante e central nos direitos do acusado (apreciação contraditória de uma acusação dirigida contra um indivíduo), tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação.
VIII - No que respeita especificamente à produção das provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência pública e segundo um procedimento adversarial; as excepções a esta regra não poderão, no entanto, afectar os direitos de defesa, exigindo o art. 6.º, § 3.º, al. b), da Convenção que seja dada ao acusado uma efectiva possibilidade de confrontar e questionar directamente as testemunhas de acusação, quando estas prestem declarações em audiência ou em momento anterior do processo (cf., v.g., entre muitas referências, o acórdão Vissier c. Países Baixos, de 14-02-2002).
IX - Os elementos de prova devem, pois, em princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, em vista de um debate contraditório. Todavia, este princípio, comportando excepções, aceita-as sob reserva da protecção dos direitos de defesa, que impõem que ao arguido seja concedida uma oportunidade adequada e suficiente para contraditar uma testemunha de acusação posteriormente ao depoimento; nesta perspectiva, os direitos da defesa mostram-se limitados de maneira incompatível com o respeito do princípio sempre que uma condenação se baseie, unicamente ou de maneira determinante, nas declarações de uma pessoa que o arguido não teve oportunidade de interrogar ou fazer interrogar, seja na fase anterior, seja durante a audiência. São estes os princípios elaborados pela jurisprudência do TEDH a respeito do art. 6.º, §§ 1 e 2, al. d), da CEDH (cf., v.g., acórdãos Craxi c. Itália, de 05-12-2002, e S. N. c. Suécia, de 02-07-2002).
X - Em certas circunstâncias pode ser necessário que as autoridades judiciárias recorram a declarações prestadas na fase do inquérito ou da instrução, nomeadamente quando a impossibilidade de reiterar as declarações é devida a factos objectivos, como sejam a ausência ou a morte, ou a circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa (crimes sexuais); se o arguido tiver oportunidade, adequada e suficiente, de contraditar tais declarações posteriormente, a sua utilização não afecta, apenas por si mesma, o contraditório, cujo respeito não exige, em termos absolutos, o interrogatório directo em cross-examination.
XI - O princípio do contraditório tem, assim, uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspectiva processual, significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afecte o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar; no plano da igualdade de armas na administração das provas, significa que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, nomeadamente o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que os outros sujeitos processuais (a “parte” adversa).
XII - O modo de prestação de declarações para memória futura respeita os elementos essenciais do contraditório, dadas as garantias que o n.º 2 do art.º 271.º do CPP estabelece: o arguido pode estar presente na produção, e assegura-se a possibilidade de confrontação em medida substancialmente adequada ao exercício do contraditório (art.º 271.º, n.º s 2 e 3, do CPP).
XIII - Para salvaguarda do exercício do contraditório também não é necessária a leitura das declarações em audiência, nem dela depende a validade da prova para memória futura.
XIV - No caso das declarações para memória futura, o princípio da imediação mostra-se respeitado sempre que a prova é apreciada pelo conjunto e não elemento a elemento, pressupondo a conjugação sistémica com todos os elementos de prova processualmente admissíveis e produzidos nas condições da lei.”;
Face ao supra exposto, conclui-se que nos casos de violência doméstica o escopo da tomada de declarações para memória futura às vitimas não se prende ( ou não se prende apenas) com a necessidade de evitar a perda da prova, visando a protecção da vítima, a prevenção de situações de vitimização secundária, permitindo que a vítima encerre o episódio de que foi vítima, já que só será prestado novo depoimento em casos excepcionais7.
Baixando ao caso dos autos:
Embora de forma sucinta e remetendo para os elementos constantes do inquérito, fundamenta o Ministério Público o pedido alegando que foi denunciada uma situação de conflito no seio da família do arguido, composta por este, pela mulher e pelos dois filhos do casal. Concretamente, alega que foi denunciado que, no interior da residência da família, ocorreram ofensas à integridade física, perpetradas pelo arguido. Mais alegou o Ministério Público que os factos denunciados são geradores de sofrimento psicológico, especialmente para o filho mais novo do casal, que conta 12 anos.
E, peticionou a tomada de declarações para memória futura com vista a salvaguardar a prova (temendo que o arguido possa vir a condicionar os depoimentos quer dos filhos do casal quer da denunciante, face ao provável ascendente deste sobre aqueles.) bem como com vista a minimizar o contacto entre o arguido e os ofendidos e o sofrimento destes mesmos.
Ora, da análise do inquérito decorre que:
Os autos iniciaram-se com um auto de notícia elaborado pela GNR na sequência de uma deslocação à residência do agregado familiar do arguido.
Mostra-se junta a ficha de avaliação de risco - fls 6 e 7.
Quer a denunciante, AA, quer o filho mais velho do casal, BB, foram inquiridos (a primeira por duas vezes e o segundo uma vez) pela GNR.
AA afirmou, em síntese, que:
- Por várias vezes e desde o tempo de namoro, o arguido lhe chamou porca, gorda, mentirosa e ordinária, por vezes na frente dos filhos.
- Por várias vezes, na sequência de discussões, o arguido agrediu-a: apertando-lhe pescoço, empurrando-a, apertando-lhe os braços ou dando-lhe uma bofetada, os filhos não presenciaram, mas ouviram os gritos da mãe.
- O filho mais novo disse-lhe que o pai lhe tinha dito que por vezes os casamentos acabavam em tragédia e também que “o pai ameaçou-te a ti e ao EE de morte”.
- Saiu de casa levando o filho mais novo.
BB afirmou, em síntese, que:
- Em Outubro de 2023, ouviu o pai chamar à mãe puta vaca e ordinária
- Uma vez o pai bateu-lhe com um cinto.
O denunciado foi constituído como arguido e foi interrogado em 6.12.2023, tendo, em síntese, dito que:
- Confirma ter dado uma bofetada à denunciante por esta lhe ter chamado Cabrão.
- Confirma já ter chamado puta, maluca, impura, imatura à denunciante, por vezes na presença dos filhos.
- Ter dito aos filhos que a mãe merecia que alguém a matasse.
- Para assustar o filho, pegou num cinto, atingiu-o, mas não queria atingi-lo.
Ou seja, foi denunciado que, desde o namoro e durante a vivência em comum, o arguido desrespeitou a honra e integridade física da mulher. Como o próprio admite, os filhos assistiram a algumas situações em que o arguido injuriou a mulher e disse aos mesmos que a mãe merecia morrer. Mais foi denunciado que o arguido atingiu o filho mais velho com um cinto.
Assim, os factos denunciados são susceptíveis de integrar a previsão do artigo 152º, nº 1, al. a) e c), e 2, al. a), do CPP, sendo que não apenas AA e BB mas também CC ( este pela exposição prolongada ao conflito e situações supra descrita ) assumem a condição de vítimas de crime de violência doméstica, nos termos do artigo 2º da Lei 112/2009.
Os factos denunciados, pela sua natureza e tendo em conta o tempo pelo qual terão perdurado, são muito traumáticos.
Os factos denunciados revestem-se de gravidade, tendo as vítimas sido alvo de violência psicológica e, no caso da mãe e do filho mais velho, de violência física.
Nestas situações, a prestação de depoimento em julgamento tem grande potencialidade traumática.
O interesse destas concretas vítimas aconselha a prestação de depoimento de forma mais resguardada. Isto tendo em vista não apenas a protecção das mesmas, mas também com vista a garantir que as vítimas prestem depoimentos sem constrangimentos, de forma mais espontânea, contribuindo para a realização da justiça.
E, a tomada e declarações para memória futura, que se pretende seja o mais completa possível, poderá, ainda, ter a virtualidade de evitar que as vítimas venham a ser de novo inquiridas em inquérito e também em julgamento, tudo com vista a prevenir a vitimização secundária.
No caso das crianças, como é o caso de CC, a tomada e declarações para memória futura “evitará não só a perda de memória dos acontecimentos que presenciou e vivenciou ( e que tenderá a esquecer) com o rigor necessário à descoberta da verdade material , permitindo a preservação da integridade da prova, como também salvaguardará a vítima de exposição em julgamento, minimizando a sua vitimização secundária vitima.”8
Perfilha-se o entendimento de que nos casos de vítimas de violência doméstica, tendo em atenção a necessidade de protecção das mesmas, a tomada de declarações para memória futura, não sendo obrigatória, deve ser a regra, só assim não se decidindo quando for desnecessária a recolha antecipada de prova.9
De qualquer forma, in casu, ponderando o interesse do arguido ( na realização de um julgamento em que toda a prova seja no mesmo produzida, beneficiando da imediação), a necessidade de protecção destas concretas vítimas ( com vista a garantir que prestem depoimentos sem pressões ou constrangimentos e a evitar a vitimização seundária) e o interesse da investigação ( na obtenção de depoimentos espontâneos com vista ao apuramento da verdade e à boa realização da justiça) , entende este Tribunal que deve ser deferida a peticionada tomada de declarações para memória futura.
Devendo, assim, ser julgado provido o recurso.
*
III – DECISÃO
Por todo o exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Lisboa, em julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogam o despacho proferido, o qual será substituído por outro que defira ao requerido pelo MP e designe data para realização da peticionada tomada de declarações para memória futura.
*
Lisboa, 18 de Abril de 2024
(Consigna-se que o presente acórdão foi processado e revisto pela relatora e primeira signatária, nos termos do disposto no artigo art.º 94º, nº 2 do CPP).
Cristina Santana
Micaela Rodrigues
Carla Carecho
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1. Vide ainda o estudo do Exm2 Conselheiro Cruz Bucho no estudo intitulado "Declarações para memória futura" de 02.04.2012, consultável em
www.trg.pt/ficheiros/estudos/declaracoes para memoria futura.pdf, relativamente ao objecto do processo, há diferença entre a diligencia de tomada de declarações para memória futura e a produção de prova em julgamento, a excecionalidade do instituto e da sua produção sem arguido constituído.
2. Se atentarmos no teor do artº 33 da Lei 112/2009, de 16/09, o que o nº 1 deste preceito legal estatui é que tal depoimento pode, "se necessário", (realidade consonante com o n.º7 deste mesmo preceito legal), ser tomado em conta no julgamento, não impedindo a sua nova audição em julgamento, e na Lei 130/2015 de 04/09 o que se estatui é que tal diligencia impede a repetição das declarações em audiência, salvo se "for indispensável" à descoberta da verdade.
Entendemos, por isso, que estamos perante regimes distintos, no caso das vitimas de violência doméstica a especial vulnerabilidade decorre da lei, sendo o legislador menos exigente quanto à obrigatoriedade da diligencia e quanto à tomada ulteriora de declarações em sede de audiência de discussão e julgamento, por isso a Proposta de Lei º 248/X/4º, que esteve na base da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, menciona que tal diligencia deverá ter lugar sempre que tal se justifique, não impondo a sua realização tout court, estabelecendo que a diligencia visa, se necessário, que o depoimento possa ser tido em conta no julgamento e que tal não prejudica a prestação de depoimento em julgamento, a menos que se ponha desta forma em causa a saúde física e psíquica de pessoa que o deva prestar.
Relativamente ao regime da Lei 130/2015, de 04/09, a especial vulnerabilidade tem de ser alegada e atribuída, realidade que terá de decorrer da avaliação da casuística do processo e de decisão nesse sentido, motivos pelos quais o legislador estatuiu no art.º 24º deste diploma que, quanto a estas vitimas, só deverão prestar depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde flsica ou psíquica de pessoa que o deva prestar, ou seja, só em circunstancias excecionalissirnas é que serão chamadas a depor em audiência de discussão e julgamento.
3. Concordando-se com o decidido no douto Ac do TRL de 11.04.2023, proferido no âmbito do processo n.º 813/22.2SXLSB-A11-5 em que, foi Relator do Sr. Desembargador Manuel Advínculo Sequeira, consultável in www.dgsi.pt onde se decidiu que:
A possibilidade de tomada de declarações para memória futura sem que haja arguido constituído, é excepção às correspondentes regras, designadamente à que prevê o contraditório pleno.
Como assim, o requerimento da respectiva diligência terá de ser, sob pena de indeferimento, fundamentado caso a caso e com factos concretos que justifiquem a necessidade e proporcionalidade do procedimento.
Por isso é inadmissível que, seja por que forma for, se constitua em regra geral nos processos por crime de violência doméstica, ou em qualquer outro, tal como a obrigatoriedade de tomada de declarações para memória futura.
Nesta conformidade e quanto a esta matéria, a Directiva 5/2019 da PGR é ilegal.
4. Expressão usada no Ac. TRL de 11.1.2012, processo 689/11.5PDPDL, como referido em Declarações para memória futura (elementos de estudo), Cruz Bucho – 2.4.2012, P. 60
5. Declarações para memória futura (elementos de estudo), Cruz Bucho – 2.4.2012, P. 60-62
6. Sumário do Ac. do STJ de 07/11/2007, relatado por Henriques Gaspar, no proc. 07P3630, in www.dgsi.pt.
7.Vide, neste sentido, Ac TRL de 7.3.2023, Proc 658/22.0T9LRS-A.L1-5
8. Ac TRL de 12.10.2023, Proc. 167/22.7PASXL-A.L1-9, Ac TRL de 30.4.2002, Proc. 14
9. Neste sentido, vide: Ac TRL de 5.3.2020, Proc 779/19.6PARGR-A.L1-9 e Ac TRL de 30.4.2020, Proc. 14/20.4PBRGR-A.L1, Ac TRLde12.10.2023, Proc 167/22.7PASXL-A.L1 e Ac TRL de 4.6.2020, Proc 382/19.0PASXL-A.L1.
Contra: Ac TRL de 31.10.2023, Proc 246/22.0PGSXL-A.L1-5.