Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4106/11.2TCLRS-B.L1-8
Relator: CRISTINA LOURENÇO
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
AUTORIZAÇÃO DO ACOMPANHANTE
OUTORGAR TESTAMENTO
INADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.–A Lei nº 49/2018 de 14/08, que criou o regime jurídico do maior acompanhado e eliminou os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966, determinou no seu art. 26º, a aplicação imediata da nova lei aos processos de interdição (nº 1); estabeleceu que as interdições e inabilitações já decretadas passavam a estar sujeitas ao regime do maior acompanhado, com a atribuição ao acompanhante de poderes gerais de representação (nº 4); manteve a determinação dos atos que o acompanhado não pode praticar por si ou só por si, prevendo a possibilidade de tal determinação ser revista (nºs 4, 6, e 8); e definiu que os tutores passavam a ter o estatuto de acompanhantes.

2.–O maior incapaz mantém-se impedido de exercer os direitos que ficou impedido de praticar em consequência da declaração de interdição, designadamente, o direito a testar (vide art. 2189º, al. b), do CC na redação anterior à lei 49/2018, de 14/08), sem prejuízo de poder ser dirigido requerimento fundamentado ao juiz, pedindo autorização para a prática livre e direta do ato, e/ou de ser suscitada a revisão do acompanhamento anteriormente decretado à luz do regime atual (art. 26º, nºs 5, e 8, respetivamente, da sobredita Lei).

3.–O direito a testar insere-se na categoria dos direitos pessoalíssimos, sendo, como tal, insuscetível de ser praticado por terceiros, nomeadamente pelo acompanhante em representação do maior acompanhado, titular dos direitos e bens a testar, não podendo, por conseguinte, ser deferido o pedido de autorização do acompanhante, para testar em nome daquele, considerando o disposto nos arts. 2179º, nº 1, 2181, e 2182º, e bem assim, o disposto nos arts. 145º, 1938º, nº 1 e 1889º, nº 1, todos do mesmo Código.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa


      
I.Relatório


J. A. S., residente em ….., tutor do seu filho J.M.S.S, veio requerer, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 1014º, do Código de Processo Civil, autorização judicial para aceitar herança e testar, invocando, para tanto, o disposto nos arts. 145º, 147º, nº 2 e art. 2189º, al. b), do Código Civil, e 26º, nºs 4, e 5, da Lei nº 49/2018 de 14/08.

Alega, em síntese:
- O requerente foi casado no regime de comunhão de adquiridos com Paulina….., falecida no dia ….., que deixou como seus únicos herdeiros, para além do primeiro, o filho de ambos, J.M.S.S.;
- J.M.S.S. sofre de paralisia cerebral espástica desde o nascimento, com incapacidade motora e atraso cognitivo severo, tendo uma incapacidade permanente global de 100%, estando totalmente dependente de terceiros;
- Não tem capacidade para o exercício direto de quaisquer direitos pessoais, tendo sido declarado interdito a 21 de março de 2013, fixando a sentença como início da sua incapacidade, o dia 17 de janeiro de 1988, data do seu nascimento, tendo então sido nomeado como seu tutor o seu pai e ora requerente;
- J.M.S.S. reside habitualmente em instituição onde lhe são prestados todos os cuidados de que necessita, mediante o pagamento da quantia mensal de € 651,23;
- Por morte da sua mãe, é herdeiro, conjuntamente com o seu pai e tutor, do património por ela deixado, composto por prédios;
- Deve o tutor (ora acompanhante) ser autorizado a praticar todos os atos reportados à herança, nomeadamente aceitá-la, registar na Conservatória do Registo Predial os imóveis em nome do acompanhado, assinar a escritura de partilha, e tudo o mais que se mostre necessário ao requerido fim;
-  O requerente sente necessidade de deixar assegurado o futuro do filho, através de pessoas de confiança, pretendendo, por isso, deixar o seu património a quem sabe que vai tratar dele com dedicação;
- Para o efeito, pretende deixar testamento a favor dos sobrinhos M.T.S. (vogal do conselho de família) e V.M.S.L., da parte que lhe cabe do património deixado por sua mulher e que detém com o acompanhado em comum e sem determinação de parte ou direito, uma vez que a partilha não se mostra celebrada;
- O acompanhante pretende ver a sua vontade satisfeita, mas só pode testar no âmbito da quota disponível, uma vez que o acompanhado é seu herdeiro e não o pode deserdar (art. 2166º, nº 1, do Código Civil, a contrario);
- O acompanhado nunca casou e não teve filhos e nunca poderá gozar de tais direitos por falta de capacidade natural para o efeito;
- Da mesma forma que o acompanhante pretende celebrar um testamento, legando os seus bens aos dois sobrinhos, uma vez que estes são as pessoas de sua confiança, que vão amparar e tratar do acompanhado após a sua morte, faria todo o sentido que o acompanhado, seu herdeiro, detendo também parte do património por via da herança da mãe, na impossibilidade de exercer o seu direito, nos termos do artigo 147º do Código Civil, nomeadamente o direito pessoal a testar, deixasse em testamento aos mesmos legatários o seu património, impondo-se, por isso, que seja o seu tutor autorizado ao exercício desse direito em representação do seu filho;   
- A legislação à época em que foi declarada a interdição estipulava que o interdito por anomalia psíquica era incapaz de testar (art. 2189º, al. b) do Código Civil na versão anterior à Lei nº 49/2018, de 14/08);
- Neste momento, os maiores acompanhados podem testar, exceto nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine, assistindo assim ao requerente, acompanhante, o direito a pedir a autorização para a prática de direitos pessoais (art. 26º, nº 5, da Lei nº 49/2018), designadamente, autorização para a prática de testamento, em representação do maior acompanhado.
Termina, deste modo, pedindo que a ação seja considerada procedente por provada e que em consequência:
a)-Seja o acompanhante autorizado a aceitar em nome do acompanhado o seu quinhão na herança aberta por óbito de Paulina….., sua mãe, da qual fazem parte os imóveis identificados na petição, podendo assinar tudo o que se mostre necessário para o efeito;
b)-Seja o acompanhante autorizado a testar e a outorgar o testamento em nome do filho, maior acompanhado, aos mesmos legatários a quem vai deixar a sua quota disponível e com as seguintes condições:
- Que o testamento só terá efeito caso o testador faleça depois do seu progenitor;
- Que verificando-se tal situação, ainda assim ficaria dependente do facto dos legatários cuidarem do testador, prestando-lhe assistência médica e medicamentosa e alimentos, mantendo-o na instituição onde ora se encontra, tendo caráter resolutivo caso tais cuidados não lhe sejam prestados até à sua morte.

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Foram citados o Ministério Público, e o parente mais próximo do acompanhado, em cumprimento do disposto no art. 1041º, nº 2, do Código de Processo Civil, não tendo sido apresentada contestação.
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Realizada reunião do Conselho de Família em 21 de junho de 2021, foi dito, pelos vogais, que não se opunham ao requerido, porquanto a aceitação da herança e subsequente testamento eram do interesse do acompanhado, após o que o Ministério Público declarou concordar com a autorização judicial solicitada, tendo-se consignado que era esta a deliberação do conselho de família (cf. Ata de diligência – referência 48958092).  

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Perante tal deliberação, e por se ter considerada desnecessária a produção de outras diligências probatórias, foi proferida a seguinte decisão:
Atento o exposto,
(i)- Concede-se autorização ao Acompanhante J..M…DOS S…S…, para, em representação de J… M…DOS S… S… praticar todos os actos necessários à aceitação da herança aberta por óbito de Paulina…..,  falecida em 06.12.2012;
(ii)- Não se autoriza, por inadmissibilidade legal, o pedido do Acompanhante J… M… DOS S… S…, para, em representação de J… M… DOS S… S… outorgar testamento ou disposição de última vontade.

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Custas a cargo do Acompanhado.
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Valor: € 30.000,01 (cfr. arts. 303.º, n.º 1 e 306.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC.).
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Registe e notifique.”
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Não se conformando com a decisão na parte que indeferiu o pedido de autorização para outorgar testamento em representação do filho, maior acompanhado, veio o requerente interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
a)-O Recorrente requereu autorização judicial para ser admitida a aceitação da herança na qualidade de Acompanhante de J… M… dos S… S…, praticando todos os atos necessários à aceitação da herança aberta por óbito de Paulina ….. e requereu ainda para, na qualidade de Acompanhante de J… M… dos S… S…, por este outorgar testamento ou disposição de última vontade, em benefício dos seus primos.
b)-Apenas a prática de todos os atos necessários à aceitação da herança foi admitida pelo Tribunal “a quo”.
c)-O atual regime criou significativas alterações ao regime anterior e o sucesso na prática deste novo modelo depende, em grande medida, dos tribunais, pela responsabilidade acrescida que o novo regime lhes atribui, quer na definição, quer na revisão das medidas adequadas a cada grau de deficiência.
d)-Entre as ações que o Acompanhado pode realizar, mesmo que com autorização judicial, constam situações tão amplas como adquirir ou alienar bens imóveis, contrair ou solver obrigações, atos que podem causar perigos gravíssimos para o Acompanhado, podendo no limite ver-se desprovido de qualquer bem.
e)-Ora, utilizando um princípio basilar de direito, quem pode o mais pode o menos, assim poderia e deveria o testamento ser admitido, desde que autorizado pelo Tribunal, inexistindo perigos, até porque o testamento é livremente revogável a qualquer tempo.
f)-Ainda para mais, sendo este testamento feito a pessoas concretas e identificadas, as mesmas que atualmente auxiliam na educação e cuidados do Acompanhado e que futuramente ficam responsável pelo mesmo.
g)-Por fim, existindo diversos níveis de incapacidade, a impossibilidade de testar cria uma violação do princípio da igualdade, entre cidadãos em situações iguais.
Nestes termos e nos mais de direito requer-se a V. Exa. que seja dado admitido o presente recurso, por o Recorrente ser parte legitima, ter sido apresentado tempestivamente e processualmente admissível, devendo a decisão proferida pelo tribunal “a quo” ser substituída por outra que admita o Acompanhante efetuar testamento.”
  
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O Ministério Público apresentou alegações e concluiu nos seguintes termos:
“Por todo o exposto impõe-se concluir que a decisão recorrida ponderou devidamente a matéria submetida a apreciação, não enferma de qualquer vício, nem violou qualquer norma jurídica, designadamente os artºs 2182º, nº1 e 2189º do Código Civil ou, ainda, qualquer outra,
Por tudo quanto se deixou exposto, entendemos que se deverá negar provimento ao recurso e confirmar-se, na íntegra, a decisão recorrida, mantendo-se nos seus precisos termos.
Assim decidindo V. Exas. farão JUSTIÇA”.

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O recurso foi admitido pelo tribunal de 1ª instância e foi recebido neste tribunal nos mesmos termos.

Cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.

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II.– Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso em apreço cabe decidir se pode ser concedida autorização ao acompanhante para outorgar testamento em representação do maior acompanhado.

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III.–Matéria de Facto

O tribunal de 1ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto:
1.–O Acompanhado é co-herdeiro, na qualidade de filho, da herança aberta por óbito de Paulina ..…, falecida em 06.12.2012;
2.–A herança é constituída, entre outros, pelos seguintes imóveis:
- Prédio urbano sito na Rua ..., Lote ..., F____, descrito na Conservatória do Registo Predial de O____, sob o n.º 3... e inscrito na matriz predial da mesma freguesia sob o artigo 2...;
- Prédio urbano sito em C... - ..., freguesia de B_____, com 98 m2, destinado a arrecadação e arrumos, descrito na Conservatória do Registo Predial de V_____, sob o n.º 1..., freguesia de B_____ e inscrito na matriz predial da mesma freguesia sob o artigo 6...;
- Prédio rústico sito em R..., freguesia de B_____, com 349 m2, destinado a arrecadação e arrumos, descrito na Conservatória do Registo Predial de V_____, sob o n.º 9..., freguesia de B____ e inscrito na matriz predial da mesma freguesia sob o artigo 7...;
3.–O Acompanhado tem direito a 1/2 da herança;
4.–Não foi declarada a existência de passivo;
5.–À presente data, o Acompanhante é o único herdeiro legitimário do Acompanhado.

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Estão ainda provados os seguintes factos (evidenciados pelos autos principais, relativamente aos quais foi permitido a este tribunal o acompanhamento através do sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais judiciais (Citius)):
i.- Por sentença proferida em 21 de março de 2013, transitada em 2 de maio de 2013, foi decretada a interdição definitiva, por anomalia psíquica, de J… M… S… S…, tendo sido fixada como data do início da incapacidade o dia 17 de janeiro de 1998, e nomeado como seu tutor, o seu pai e ora requerente J… A… S….
ii.- Nessa decisão foram dados como provados os seguintes factos:
i.)- O requerido J… M…S… S… nasceu no dia 17 de janeiro de 1988, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa (…);
ii.)-O mesmo é filho de J…A…S… e de Paulina…. (…);
iii.)-O requerido sofre de Paralisia Cerebral Espástica, desde o seu nascimento, e tem capacidade motora grave e permanente, deambulando em cadeira de rodas, que não controla;
iv.)-Sofre também de epilepsia, além de um atraso cognitivo severo;
v.)-O requerido não fala, não sabe ler, nem escrever;
vi.)-Não compreende o que lhe é solicitado;
vii.)-Não conhece o valor do dinheiro;
viii.)-Não consegue distinguir as estações do ano;
ix.)-Não tem orientação espácio-temporal.”

Fundamentação de Direito
A única questão a abordar e a decidir, face ao objeto do recurso já enunciado, é aferir sobre a possibilidade de ser concedida autorização ao requerente para, na qualidade de acompanhante do filho - o maior acompanhado J…M…S…S… - outorgar testamento em sua representação, relativamente a bens/direitos de que este é titular.
E adianta-se, desde já, que a sentença recorrida fez o devido enquadramento jurídico dos factos, não nos merecendo qualquer censura.
Assim, J…M…S…S… foi declarado interdito, de forma definitiva, por sentença proferida em 21 de março de 2013, e nomeado como seu tutor o ora requerente e seu pai, J…A… S…. 
A Lei nº 49/2018 de 14/08, criou o regime jurídico do maior acompanhado e eliminou os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966).
O seu art. 26º determinou a aplicação imediata da nova lei aos processos de interdição (nº 1); estabeleceu que as interdições e inabilitações já decretadas passavam a estar sujeitas ao regime do maior acompanhado, com a atribuição ao acompanhante de poderes gerais de representação (nº 4); manteve a determinação dos atos que o acompanhado não pode praticar por si ou só por si, prevendo a possibilidade de tal determinação ser revista (nºs 4, 6, e 8); e definiu que os tutores passavam a ter o estatuto de acompanhantes.
O regime do maior acompanhado introduziu alterações significativas aos regimes da interdição e da inabilitação, decorrendo agora do nº 1, do art. 145º do Código Civil, que o acompanhamento limita-se ao necessário, a definir necessária e casuisticamente pelo juiz, em função das particularidades do acompanhado, só podendo ser atingidos direitos pessoais e “negócios da vida corrente” se a lei ou decisão judicial o impuser (art. 147º, nº 1, do mesmo Código), consagrando o nº 2, da mesma norma, como direitos pessoais, entre outros, o direito a testar.
O art. 2189.º, alínea b) do Código Civil, na redação anterior à que lhe foi dada pela sobredita lei, declarava os interditos por anomalia psíquica incapazes de testar; hoje, dispõe que os maiores acompanhados são incapazes de testar apenas nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine.

À luz do enquadramento enunciado, concluiu, então, e com acerto, a Mmª Juíza do tribunal a quo que, “No caso dos autos, atendendo a que o Acompanhado foi declarado interdito, à luz do regime então em vigor, julga-se que os direitos que o mesmo foi declarado incapaz de exercer manter-se-ão tout court, mas agora ao abrigo da nova lei.

De facto, da Lei n.º 49/2018 não se retira a intenção do legislador em repristinar o exercício de quaisquer direitos pessoais de que o interdito estivesse incapaz de exercer, mas tão só, por um lado, a de adaptar as medidas então decretadas à nova realidade legal, e, por outro, estabelecer um modelo mais flexível de medidas de acompanhamento a adoptar e a decidir casuisticamente, de acordo com a incapacidade verificada.”

A Lei 49/2018 forneceu instrumentos que permitem a reavaliação do exercício de direitos por parte de quem havia sido interditado, facultando ao acompanhante, entre outros, o direito de pedir a revisão do acompanhamento anteriormente decretado, à luz do regime atual (art. 26º, 4, 6, e 8), de forma a obter sentença que defina o regime a cometer ao acompanhante e avalie sobre a possibilidade do livre exercício de direitos pessoais e negócios da vida corrente pelo acompanhado, faculdade que terá de ser exercida no âmbito do processo de interdição.

No caso, o requerente propôs ação de autorização judicial para a prática de ato, invocando o disposto no nº 5, do mesmo art. 26º, que prevê:
O juiz pode autorizar a prática de atos pessoais, direta e livremente, mediante requerimento justificado”.

Resulta inequivocamente de tal disposição, nomeadamente, das expressões “direta e livremente”, que o pedido que pode ser dirigido ao juiz visa a autorização para a prática de ato pelo próprio acompanhado e que este está impedido de realizar por força da interdição anteriormente decretada.
Ora, no caso, o que o requerente pretende é coisa diversa, é a obtenção de autorização para ser ele, em representação do maior acompanhado, a outorgar testamento relativamente a bens/direitos de que este é titular.
O testamento é um ato unilateral e irrevogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles (art. 2179º, nº 1, do Código Civil).
Podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer (art. 2188º, do Código Civil).

O caráter pessoal do testamento, quer quanto à vontade, quer quanto à declaração é consagrado, por seu turno, no art. 2181º, nº 1, do Código Civil, ao dispor que:O testamento é ato pessoal, insuscetível de ser feito por meio de representação ou de ficar dependente do arbítrio de outrem, quer pelo que toca à instituição de herdeiros ou nomeação de legatários, quer pelo que respeita ao objeto da herança ou do legado, quer pelo que pertence ao cumprimento ou não cumprimento das suas disposições”.

O direito a testar insere-se na categoria dos direitos pessoalíssimos que, como se lê na decisão recorrida, afirmam-se  “(…) como originários ou adquiridos, oponíveis erga omnes, intransmissíveis, perenes e imprescritíveis, bem como dotados de um carácter extrapatrimonial, em regra indisponíveis ou irrenunciáveis, uma vez que não são, em princípio, reconhecidas faculdades jurídicas que permitam a sua extinção, a sua disposição a favor de outrem, ou, ainda, a sua obrigação perante outrem de exercer tais poderes”.

E tanto assim é, que do elenco dos atos relativamente aos quais o acompanhante deve solicitar prévia autorização judicial, em representação do acompanhado, não consta efetivamente o direito a testar, como se alcança da leitura conjugada dos arts. 145º, 1938.º, n.º 1 e 1889.º, n.º 1, do Código Civil, restando concluir pela impossibilidade de autorizar o requerente a outorgar testamento em representação do filho/acompanhado, por se tratar de ato vedado pela lei, concluindo-se, como na sentença recorrida, a cujos fundamentos se adere, que “ (…) não está previsto na lei que o Tribunal possa autorizar terceira pessoa a fazer testamento, em nome e representação do titular de direito de testar. Assim como não poderá autorizá-lo, v.g., a votar, porque inerentes a uma vontade, consciência e decisão próprias, não compatíveis com o exercício por terceiros, ainda que judicialmente autorizado.

Veja-se, neste mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de  15.12.2020, Proc. n.º 19055/18.5T8SNT-A.L1-7, disponível in www.dgsi.pt, onde se concluiu que: «III. Por se tratar de acto pessoalíssimo e “insuscetível de ser exercido por terceiros, mesmo que pelo representante do titular dos bens e direitos a testar”, não é legalmente admissível o deferimento de autorização judicial, apresentada pelo acompanhante de um maior acompanhado, para testar em nome daquele - artigos 2179.º, n.º 1, 2181.º e 2182.º, n.º 1, do Código Civil.»

Ainda um terceiro argumento se pode chamar à colação e relativo à livre revogabilidade do testamento. Na verdade, como se garantiria, neste caso, a livre revogabilidade do testamento, se, atenta a incapacidade do Acompanhado, o mesmo estaria sempre dependente de um acto do Acompanhante (o ora designado ou outro)?
Não se pode, pois, autorizar o pretendido acto, na medida em que tal autorização não se encontra legalmente prevista e, bem ainda, por não ser possível garantir que a mesma corresponde a uma vontade própria do Acompanhado e que este possa, em qualquer momento, revogar a sua pretensão.”

Decisão

Na sequência do exposto, acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a douta decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.



Lisboa, 13 de janeiro de 2022



Cristina Lourenço- (Relatora)
Ferreira de Almeida- (1º Adjunto)
António Valente- (2º Adjunto)