Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5578/09.0TVLSB.L1-7
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADMINISTRADOR COMERCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A letra do segmento normativo da alínea c) do nº 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, ao estipular que compete aos tribunais de comércio preparar e julgar as acções relativas a direitos sociais (sem distinguir) permite ao intérprete, em nosso entender, a consideração de que a norma abrange todas as acções, que envolvam a apreciação de questões de interesse societário, independentemente do seu desiderato finalístico, e não apenas as que vêm previstas nos arts. 1479º a 1501º, do CPC.
2. O Tribunal de Comércio de Lisboa é competente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente acção de efectivação da responsabilidade civil instaurada pela sociedade contra os seus ex-administradores, pelos danos alegadamente causados por estes, no âmbito das suas funções.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: 1. “B, SA” instaurou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra L e outros pedindo a condenação solidária dos réus a pagar-lhe:

- A quantia de € 482.514,10, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde 31/3/2009 e vincendos, até integral pagamento;

- A quantia que se vier a liquidar, a título de indemnização, pelos prejuízos sofridos pela A., respeitante ao acréscimo de encargos da sua responsabilidade emergente do aumento das remunerações dos RR no período de Janeiro a Junho de 2008, nomeadamente as contribuições para a segurança social, as prestações para outros sistemas de previdência e assistência social e os prémios de seguro de acidentes de trabalho.

Para tanto, alega, em síntese, que:

Os RR. foram  administradores da Autora até 24 de Junho de 2008, data em que cessaram funções;

Em Abril de 2008, o 1º Réu, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração da Autora, determinou à Direcção de Recursos Humanos da Autora que procedesse à alteração da remuneração dos Réus, com efeitos retroactivos a Janeiro daquele ano, por forma a que os respectivos valores brutos passassem a corresponder à sua remuneração líquida, o que efectivamente sucedeu;

Tal deliberação é nula por se tratar de matéria da competência da Assembleia-geral de accionistas;

Devido à actuação dos réus, violadora dos seus deveres de diligência (art. 64º, CSC), a autora sofreu diversos danos, que descrimina, e cujo ressarcimento pede nesta acção (art. 72º, n.º 1 do CSC).

2. A acção foi contestada. Além do mais, foi deduzida a excepção de incompetência material da Vara Cível para conhecer desta acção.

3. Findos os articulados, foi proferido despacho que julgou procedente a excepção de incompetência material do Tribunal Cível de Lisboa e absolveu os réus da instância.

4. Inconformada, apela a autora e, em conclusão, diz:

“I. A acção ut singuli prevista no art. 77º, do Código das
Sociedades Comerciais parte da iniciativa de um sócio, no exercício de um direito social a substituir-se à sociedade, para efeitos de legitimação na acção.

II. A acção assim intentada, porém, não é uma acção relativa ao exercício de direitos sociais, porque nela não se discute a legitimidade da demandante mas o pedido por esta formulado.

III. E o pedido formulado, dizendo respeito à vida da
sociedade, não consubstancia o exercício de um direito
social, pois que o administrador, enquanto tal, não tem
qualquer obrigação jurídica perante os sócios, mas apenas perante a própria sociedade.

IV. A responsabilidade dos administradores para com a
sociedade emerge do negócio jurídico da nomeação e tem
carácter obrigacional e delitual, gerando o incumprimento dos deveres um direito de crédito da sociedade sobre os administradores.

V. Quando o sujeito passivo é um administrador da
sociedade, credora contra ele duma indemnização, a
relação jurídica que está em causa liga a sociedade
credora ao administrador, ou ex-administrador, devedor.
Está em causa um direito da pessoa colectiva contra
terceiro e não um direito social.

VI. Aliás, o direito a essa indemnização tem os mesmos
pressupostos de qualquer outro, pouco interessando que o acto ilícito consista na atribuição pelo administrador a si mesmo de uma remuneração indevida.

VII. Quando a sociedade demanda os seus administradores, não existe o exercício de qualquer direito social (pois que estes são direitos dos sócios), mas o exercício de um direito da sociedade gerado no âmbito da relação jurídica que estabelece com os seus administradores.

VIII. Fácil é de concluir que a acção movida pela sociedade contra os administradores não cai no âmbito da al. c) do n.º 1 do art. 121.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto.

IX. Assim, pois, a competência para conhecer os presentes autos só pode pertencer aos Tribunais comuns.

X. A sentença recorrida viola assim a al. c) do n.º 1 do art. 121.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto.

XI. Deve, pois, ser revogada a sentença recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos.”

5. Não foram apresentadas contra-alegações.

6. O recurso é o próprio assim como o regime de subida e o efeito atribuído. Cumpre apreciar e decidir da questão da competência material do tribunal, nos termos do art. 705º, do C.P.C., sendo os factos a ter em conta os que constam do relatório.
 
7. Apreciando

A questão essencial decidenda é a de saber se a Vara Cível de Lisboa é competente em razão da matéria para conhecer da presente acção.

A autora alega que os réus, enquanto administradores da autora, violaram culposamente os deveres de diligência a que estavam legal e estatutariamente obrigados, provocando-lhe danos, com a sua actuação, pelo que pede a sua condenação no pagamento de determinada quantia, a título de indemnização, pelos prejuízos decorrentes dos actos de gestão danosa, nos termos do disposto nos arts. 64º, 72º e 73º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais.

A decisão recorrida entendeu que a competência material pertence ao Tribunal do Comércio.

A apelante, pelo contrário, entende que a responsabilidade dos (ex) administradores para com a sociedade emerge do negócio jurídico de nomeação, pelo que tem natureza contratual, sendo competente para conhecer desta acção a Vara Cível de Lisboa.

Vejamos, pois.

Para a determinação do tribunal competente, importa ter presente que «a competência se fixa no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente» (art. 22º, nº1, da LOFTJ) e  que a  competência em razão da matéria se afere em função do objecto do processo, delimitado pela causa de pedir e o pedido, nos termos configurados pelo autor, na petição inicial.

A competência material dos tribunais para as causas de natureza cível resulta de normas de atribuição directa ou indirecta, designadamente por via da afectação das causas que não sejam afectas a outros tribunais (cf. arts 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa e 18º, n.º 1, da LOFTJ).

Assim, consoante a matéria das causas que lhe são atribuídas, distinguem-se os tribunais de 1ª instância em tribunais de competência genérica, aos quais compete julgar as causas não atribuídas a outro tribunal, e tribunais de competência especializada aos quais cabe conhecer de acções relativas a determinadas matérias.

Ou seja:

Sempre que uma acção exorbite das matérias especificamente conferidas aos tribunais especializados, é competente para dela conhecer o tribunal de 1ª instância de competência genérica (v. arts. 64º, nº 2, e 77º, nº 1, alínea a), da LOFTJ).

De entre os tribunais de competência especializada, previstos na Lei, interessam-nos agora particularmente os tribunais de comércio (artigo 78º,alínea e), da LOFTJ, aos quais cabe, de acordo com o art. 89º, nº1, al. c), da LOFTJ, preparar e julgar, além do mais que ao caso não importa, as acções relativas ao exercício de direitos sociais.

Aqui chegados, importa saber se a presente acção respeita ao exercício de direitos sociais, para efeitos de atribuição da competência ao Tribunal de Comércio de Lisboa.

A lei não define o que sejam direitos sociais. Todavia, a letra do segmento normativo da alínea c) do nº 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, ao estipular que compete aos tribunais de comércio preparar e julgar as acções relativas a direitos sociais (sem distinguir) permite ao intérprete, em nosso entender, a consideração de que a norma abrange todas as acções, que envolvam a apreciação de questões de interesse societário, independentemente do seu desiderato finalístico, e não apenas as que vêm previstas nos arts. 1479º a 1501º, do CPC.[1]

A questão, aliás, foi apreciada em várias decisões dos tribunais superiores, em termos que nos merecem inteira concordância, e para cuja fundamentação, por isso mesmo, remetemos, permitindo-nos transcrever o seguinte trecho do Ac. Rel. Lisboa de 26/3/2009 (JusNet 1841/2009):

“O direito social  corresponde a um direito complexo, que integra poderes creditícios, poderes de domínio e poderes potestativos, nos quais se podem fundar pretensões jurídicas de diversa natureza, designadamente de indemnização. Na verdade, a pretensão de indemnização pode ter origem na responsabilidade civil contratual, nomeadamente quando se baseia na violação de relações pré-constituídas integrantes da relação social, como seja a relação entre a sociedade e os seus gerentes.

(…)

A concretização desta relação jurídica contratual é feita em função do interesse social da sociedade, sendo certo que o seu fim típico é a obtenção de lucro (art. 980.º do CC).

(…)

A deficiência de gestão, sendo susceptível de compreender, por vezes, a prática de actos ilícitos, pode fazer incorrer os gestores em responsabilidade civil perante a sociedade ou os sócios (artigos 72.º, 75.º e 79.º do CSC).

A efectivação da responsabilidade civil dos gestores das sociedades comerciais envolve, na maior parte das vezes, grandes dificuldades e complexidades, que podem repercutir-se também na respectiva solução, pelo que se compreende, por isso, a exigência de um tribunal com competência especializada, para preparar e julgar esse tipo de acção, com especificidades bem marcantes que a distinguem da comum  acção de  responsabilidade civil.

A acção social ut universi, que a sociedade pode instaurar, nomeadamente nos termos do art. 75.º do CSC, também pode ser proposta pelos sócios, quando a sociedade não tenha exercido o direito de acção, ao abrigo e nos termos do art. 77.º do CSC ( acção social ut singuli). O exercício da acção social ut singuli, considerada de natureza sub-rogatória oblíqua (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Dezembro de 2008), corresponde, nos termos da própria lei (art. 77.º, n.º 2, do CSC), ao exercício de um "direito social".

Neste contexto, evidencia-se que a efectivação da acção social ut universi traduz, efectivamente, o exercício de direitos sociais.”

No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos da Relação de Lisboa de 6 Outubro 2009 (JusNet 6302/2009) e do Supremo Tribunal de Justiça de 18 Dezembro 2008 (JusNet 6358/2008).

Conclui-se, portanto, que o Tribunal de Comércio de Lisboa é competente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente acção de efectivação da responsabilidade civil instaurada pela sociedade contra os seus ex-administradores, pelos danos alegadamente causados por estes, no âmbito das suas funções.

8. Pelo exposto, negando provimento ao recurso, decide confirmar-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Lisboa, 26 de Outubro de 2010

Maria do Rosário Morgado
Rosa Ribeiro Coelho
Maria Amélia Ribeiro
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[1] Cf. Ac. do STJ de 18 Dezembro 2008 (JusNet 6358/2008).