Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
313/22.0PFAMD.L1-5
Relator: SARA ANDRÉ DOS REIS MARQUES
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
CUMPRIMENTO DAS INJUNÇÕES
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
VÍCIO DO ART.º 410.º N.º 2 AL. A) DO CPP
REENVIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
- Sob pena de nulidade, nos termos dos artºs 120º n.º 2 al. d) e 61º n.º 1 al. b) do CPP, o arguido tem de ser ouvido em inquérito, em ordem a averiguar se existiu incumprimento da SPP e seus respectivos motivos e aferir da existência e medida da culpa e, em face disso, decidir pela revogação, modificação ou prorrogação da suspensão do processo.
- Em caso de revogação da SPP, só em sede de julgamento é que pode ser sindicada a decisão do MP de julgar incumprida a suspensão provisória do processo e de deduzir acusação.
- Caso o juiz de julgamento verifique que o arguido cumpriu as injunções que lhe haviam sido fixadas para a SPP, deve proferir despacho absolvendo o arguido da instância.
– A alegação feita pela arguida em audiência de julgamento de que o incumprimento não ocorreu ou que, tendo ocorrido, não é culposo, não pode ser ignorada na sentença, sendo este vício subsumível à alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório:
Foi proferida sentença pelo Juízo Local Criminal da Amadora - Juiz 3, em processo abreviado, que decidiu do seguinte modo (transcrição):
“ a. Condenar AA, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º n.º 1 e artigo 69º nº 1 alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de 5 (cinco) euros, o que perfaz o montante global de €250,00 (duzentos e cinquenta) euros.
b. Ordena-se o desconto de 1 (um) dia de detenção sofrido pela arguida, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 80º, nº 2, do C. Penal.
c. Condenar a arguida na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 3 (três) meses, p. e p. pelo art.º 69º, nº 1, al. a), do Código Penal, e sob pena de incorrer em responsabilidade criminal se violar tal proibição.
d. Condenar a arguida no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 1UC – reduzida a metade, face à confissão e simplicidade da causa - cfr. arts. 344º, nº 2, alínea c), 513º e 514º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, e artigo 8º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais, com referência à Tabela III a este anexa – sem prejuízo de eventual pedido de apoio judiciário que venha a requerer.
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Inconformada, a arguida interpôs recurso, apresentando motivações e concluindo do seguinte modo (transcrição):
“1. A ora recorrente veio a ser condenada nos autos acima indicados, pela prática como autora do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido no artigo 292.º do CP, com a pena de:
a. 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco) euros, descontado um dia de detenção;
b. 3 meses de inibição de condução, a título de pena acessória.
2. Tendo a submissão da recorrente a julgamento, sob a forma abreviada, resultado do seu cumprimento parcial das injunções que lhe foram impostas pelo Ministério Público (MP), a saber:
a. «Entregar a quantia de 400,00€ (quatrocentos euros) ao Estado, fazendo prova nos autos do cumprimento da injunção durante o período da suspensão provisória do processo.» (Sublinhado nosso)
b. «Pagamento da quantia de €102,00 (cento e dois euros) a favor do Fundo para a Modernização da Justiça, devendo efectuar o referido pagamento mediante entrega de DUC nos autos no referido prazo.» (Sublinhado nosso)
c. «Proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 (três) meses, devendo fazer a entrega da carta de condução no prazo de 10 dias a contar da notificação do despacho que determinou a suspensão provisória do processo.»
A
3. A recorrente confessou que o valor de €102,00 (cento e dois euros), a favor do Fundo para a Modernização da Justiça, não foi pago, pese embora tenha procedido à sua entrega ao anterior mandatário, para cumprimento da alegada injunção, tendo cumprindo as demais injunções.
4. Todavia, a recorrente não poderia ter sido condenada em julgamento, sob a forma abreviada, uma vez que o MP não cumpriu o prazo 90 dias para deduzir a acusação (03.03.2023), uma vez que a data limite para a verificação do incumprimento ocorreu em 19.10.2022.
5. Com efeito, constitui nulidade insanável, nos termos do art.º 119.º/f), do CPP, que aqui expressamente se argui, para todos os efeitos legais, o emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.
6. A decisão quanto ao cumprimento ou incumprimento das injunções e regras de conduta impostas para efeitos de suspensão provisória do processo cabe ao JIC, e não ao MP.
7. Resulta da interpretação dos artigos 281.º e 282.º, do CPP, que legislador não subtraiu o controlo jurisdicional do JIC atinente ao cumprimento ou não das injunções e regras de conduta por parte de um arguido; não se esgotando a atividade jurisdicional no mero controlo formal operado através do despacho de concordância a que alude o artigo 281.º/1, do CPP; mas abrange também o controlo material inerente à execução das injunções e regras de conduta impostas a um arguido, pois estas são sempre suscetíveis de contender com direitos fundamentais, tal como é o entedimento da jurisprudência indicada na presente motivação e que aqui se dá por integralmente citada e reproduzida.
8. É inconstitucional a interpretação da norma contida no artigo 282.º/4/al. a), do CPP, em particular, e desta norma, integrada no arco normativo compreendido entre os artigo 281.º e 282.º, do CPP, quando daí resulte que a decisão quanto ao incumprimento das injunções e regras de conduta cabe exclusivamente ao MP, sem a intervenção do JIC, pois tal viola o disposto no artigo 32.º/4 e do artigo 219.º/1, ambos da CRP, na medida em que subtrai à competência do juiz de instrução, a disponibilidade do processo, para verificação da legalidade da decisão do MP relativa ao cumprimento ou não das injunções e regras de conduta impostas ao arguido, as quais são suscetíveis de contender com direitos fundamentais, independentemente de ter havido a anuência do arguido quanto ao seu cumprimento.
9. É inequívoco que cabe exclusivamente ao MP decidir se deve ou não deduzir acusação penal, todavia, a partir do momento em que este, atendendo aos contornos do caso concreto, considera oportuna, em deterimento da legalidade, a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, não poderá essa decisão sobre o cumprimento ou incumprimento das injunções e regras de conduta ser inimpugnável judicialmente; é que no caso dessa decisão propender para o incumprimento, se trata inequivocamente de uma decisão que é desfavorável ao arguido e, neste sentido, a norma acima invocada e esta, inserida no arco normativo também acima indicado, quando interpretada no sentido de que o arguido não poderá recorrer de uma decisão que considere não cumpridas as injunções e regras de conduta que lhe foram aplicadas no âmbito de uma suspensão provisória do processo, é insconstitucional, mostrando-se violado o artigo 32.º/1, da CRP.
C
10. Ademais, a imposição da injunção referente ao pagamento de €102,00 ao Fundo de Modernização da Justiça afigura-se como sendo ilegal.
11. Ilegal, na medida em que atento os exatos termos do disposto no artigo 5.º do DL n.º 14/2011, de 25 de Janeiro, que criou o Fundo para a Modernização da Justiça, não se vislumbra que a aceitação por parte da recorrente daquela alegada injunção de natureza pecuniária possa vir a ter como destino o financiamento do aludido fundo, dando-se aqui por reproduzida a motivação demonstrativa ad nauseam dessa impossibilidade.
12. Ilegal, na medida em que não tem enquadramento no disposto no artigo 281.º/2/m), do CPP, porquanto esta norma consagra um exemplo-padrão exclusivamente aplicável para as “regras de conduta”, já não para injunções, conforme acima se motivou.
13. Mas mesmo que assim não fosse, não se vislumbra que o pagamento (àquele fundo) - isto já depois de ter sido imposto à recorrente o pagamento de uma outra quantia ao Estado - se traduza num comportamento especialmente aplicável ao caso, faltando o elo de ligação entre o cumprimento dessa alegada injunção, as finalidades inerentes ao cumprimento de uma injunção ou regra de conduta como meio de suspensão provisória do processo e a conduta indiciada à arguida (condução de veículo automóvel em estado de embriaguez).
14. Na verdade, a imposição dessa alegada injunção reconduz-se a uma instrumentalização do instituto da suspensão provisória do processo para a obtenção de um financiamento ilegal daquele fundo, sem que dessa decisão resssalte a minima finalidade ressocializadora e reintegratória.
15. Em todo o caso, essa finalidade reintegradora ou de socialização se esgotaria na imposição na outra injunção que foi aplicada à arguida: «Entregar a quantia de 400,00€ (quatrocentos euros) ao Estado.»
16. Por conseguinte, havendo a previsão legal que admite a imposição ao arguido da entrega de uma determinada quantia ao Estado (artigo 281.º/2/c), do CPP), jamais poderá ter como destinatário o aludido fundo – muito menos com fundamento no disposto no artigo 281.º/2/m), do CPP, nos termos acima expedidos – que tem a «natureza de património autónomo, sem personalidade jurídica, com autonomia financeira», cfr. artigo 2.º/2, do DL n.º 14/2011, de 25 de Janeiro, e que “funciona” junto do IGFEJ, I. P., cfr. artigo 14.º/3, do DL n.º 123/2011, de 29 de Dezembro; sendo que este último é «um instituto público, integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio».
17. Ora, se tivesse sido realmente essa a vontade do legislador, por certo no artigo 281.º/2/c), do CPP, constaria expressamente no rol de beneficiários de uma injunção: «outras pessoas coletivas de direito público».
18. Em qualquer caso, caso vingue a tese que não há que distinguir Estado, das demais pessoas coletivas de direito público, então teria sido completamente injustificável a decisão operada pelo MP ao cindir as injunções de natureza pecuniária aplicadas à recorrente, entre Estado stricto sensu e Fundo de Modernização da Justiça.
19. Consequentemente, é nulo o despacho do JIC, na parte atinente à concordância com a promoção do MP quanto à imposição à arguida da injunção que consistiu no «Pagamento da quantia de €102,00 (cento e dois euros) a favor do Fundo para a Modernização da Justiça, devendo efectuar o referido pagamento mediante entrega de DUC nos autos no referido prazo», por violação do artigo 2.º e 18.º/2, da CRP, ex vi do artigo 18.º/1, da CRP, na medida em que foi imposto à arguida um encargo financeiro que não tem qualquer respaldo LEI.
Sem conceder,
D
20. Considerando que a arguida cumpriu parte significativa do quantum pecuniário que lhe foi imposto pelo MP – sendo até certo que apelando às regras da experiência comum, é muito pouco crível que tendo pago 400,00€, não tivesse disponibilizado os meios financeiros (102,00€) ao seu anterior mandatário para que este liquidasse aquele valor;
21. que a TAS de 1,330 g/l é muito próxima do valor mínimo para que se pudesse qualificar a conduta como crime;
22. e o facto de já ter estado inibida de conduzir durante um período de 3 (três) meses;
23. Afigurar-se-ia como proporcional, e sem desconsiderar as elevadas necessidades de prevenção geral que a gravidade da conduta suscita, mas atentendo ao grau diminuto das necessidades de prevenção especial, que a pena tivesse sido fixada muito próxima do mínimo legal, propugnando-se para esta seja de 20 dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros).
Termos em que se requer que o presente recurso venha a merecer provimento, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente:
a) Ser julgado como cumpridas as injunções impostas à recorrente,
sem conceder,
b) Condenar a recorrente, a título de pena principal, em multa 20 dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros).
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
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O Ministério Público apresentou resposta pugnando pela manutenção do decidido, oferecendo as seguintes conclusões: (transcrição)
“1. Alega a arguida/ recorrente que foi deduzida acusação em processo especial abreviado decorridos mais de noventa dias sob a data da verificação do incumprimento da injunção de entregar a quantia de €102,00 ao Fundo para a Modernização da Justiça, aplicada à arguida no âmbito da suspensão provisória do processo, o que constitui uma nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 119.º, n.º1 do Cód. de Processo Penal;
2. O regime do instituto em causa está regulado nos artigos 281.º e 282º do Código de Processo Penal, resultando da sua análise que não pode haver suspensão sem imposição de injunções e/ou regras de conduta, as quais o arguido é livre de aceitar, ou não, mas que, aceitando-as, torna o seu cumprimento obrigatório, sob pena de o processo prosseguir, conforme resulta do disposto no artigo 282º, nº 4, que dispõe:
“O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:
a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou
b) Se durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma
natureza pela qual venha a ser condenado”;
3. No caso dos autos, constata-se que, decorrido o prazo da suspensão provisória do processo, o Magistrado Titular do Processo, depois de ter verificado que se encontrava por documentar o comprovativo da injunção de entregar a quantia de €102,00 ao Fundo para a Modernização da Justiça, determinou, por despacho datado de 27.09.2022, a notificação da arguida para proceder à sua liquidação, sob pena dos autos prosseguirem com a dedução da acusação;
4. Apesar de regularmente notificada, a arguida nada juntou ou alegou em sua defesa, nomeadamente que havia procedido à entrega da quantia em apreço ao seu Ilustre Mandatário;
5. Nessa sequência, em 03.03.2023 foi determinada a revogação da suspensão provisória do processo e determinado o prosseguimento dos autos com a dedução da acusação em processo especial abreviado;
6. Apenas em 03.03.2023 foi verificado que a arguida não cumpriu a injunção supra e nessa altura formulado pelo Ministério Público um juízo sobre a culpa daquela no incumprimento, pelo que o prazo de 90 dias a que se refere o n.º 4 do artigo 384.º do Cód. de Processo Penal, para a dedução de acusação em especial abreviado, iniciaram-se naquela data;
7. Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª Edição, Universidade Católica, fls. 741, “Não há revogação automática da suspensão provisória do processo, pois ela depende de uma valoração da culpa do arguido no incumprimento. O critério estabelecido é o do incumprimento das injunções e regras de conduta com culpa grosseira ou reiterada do arguido, tal como prevê o artigo 56º do Código Penal”;
8. Do exposto decorre que quando foi deduzida acusação em processo especial abreviado ainda não tinha decorrido o prazo de 90 dias sob a verificação do incumprimento, devendo, por isso, improceder, nesta parte, o recurso quanto à nulidade invocada pela arguida/recorrente;
9. Sem prescindir, caso se venha a considerar que foi preterida a audição da arguida, para se aferir se o seu incumprimento era culposo, sempre se dirá que tal consubstancia a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, al. d) do Cód. de Processo Penal;
10. Ora, o conhecimento desta nulidade depende de arguição, dispondo o seu n.º 3 que, havendo acusação sem instrução, o prazo para a sua invocação é até cinco dias após a notificação do despacho de acusação que encerra o processo;
11. Atenta a forma especial abreviada que seguiu, no início da audiência de julgamento a arguida poderia invocar tal nulidade por força da alínea d) do n.º 3 do artigo 120.º do Código de Processo Penal, contudo não o fez;
12. Concluímos, pois, que tal nulidade – prevista nos artigos 120.º, n.º 2 al. d) e 61.º, n.º 1 al. b) ambos do Cód. de Proc. Penal - se encontra sanada.
13. Alega, ainda, a arguida/recorrente que “a verificação da legalidade da decisão do MP sobre o cumprimento ou não de uma determinada injunção ou regra de conduta, ainda que o seu teor formal tenha merecido a prévia concordância do JIC, terá sempre que depender de uma decisão deste, promovida pelo MP, tanto nos casos de cumprimento como de incumprimento das injunções ou regras de conduta”.
14. Terminado o prazo de suspensão do processo, a autoridade judiciária que preside à respectiva fase em que é aplicado o instituto da suspensão provisória do processo (o Ministério Público ou o Juiz) deve apreciar e averiguar, procedendo às diligências necessárias para o efeito, o cumprimento das injunções e/ou regras de conduta, sem estar à espera da colaboração do arguido;
15. No caso em apreço, o Ministério Público determinou a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, mediante a imposição à arguida do cumprimento de injunções e regras de conduta, com as quais aquela concordou, tendo-se, ainda, obtido a concordância da Mm.ª Juiz de Instrução;
16. Pelo que, a decisão de revogação da suspensão provisória do processo compete exclusivamente ao Ministério Público, sendo a jurisprudência unânime nesse sentido;
17. Veja-se a título de exemplo o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de
04.10.2022, disponível em www.dgsi.pt ao considerar que “Contrariamente ao que sucede com a decisão de suspensão provisória do processo, a decisão de revogação dessa suspensão compete em inquérito, exclusivamente, ao Ministério Público – sendo também pacífico o entendimento de que a revogação da suspensão do processo não decorre automaticamente de qualquer incumprimento” (negrito e sublinhado nosso).
18. Acresce que, não se vislumbra qualquer violação do disposto no artigo 32.º , n.º4 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que assumindo os presentes autos a forma especial abreviada e não havendo lugar a fase da instrução, cabe ao juiz do julgamento apreciar da verificação de “patologias processuais” suscetíveis de atingir as garantias de defesa do arguido e os seus direitos fundamentais (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-10-2019, Processo n.º 25/15.1GTCSC.L1-3, disponível em www.dgsi.pt), podendo e devendo o juiz do julgamento sindicar “a decisão do Ministério Público em deduzir acusação pondo termo à suspensão provisória do processo, quando questionada” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15-06-2016, Processo n.º 391/14.6PIPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt);
19. A arguida foi notificada da acusação, conformou-se com tal decisão final e não invocou qualquer nulidade a sindicar a decisão do Ministério Público, pelo que não assiste razão à arguida ao considerar inconstitucional a interpretação da norma do artigo 282.º, n.º4, al. a) do Código de Proc. Penal, no sentido em que a decisão de revogação da suspensão provisória do processo, pelo incumprimento das injunções e regras de conduta, compete exclusivamente ao Ministério Público, violando os artigos 32.º, n.º4 e 219.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa;
20. Mais alega a arguida/recorrente que a injunção ao Fundo de Modernização da Justiça
é ilegal, na medida em que não tem enquadramento no disposto no artigo 281.º, n.º 2, al. m) do Cód. de Processo Penal, reconduzindo-se a sua imposição a uma instrumentalização do instituto da suspensão provisória do processo para a obtenção de um financiamento ilegal do Fundo, que tem “natureza de património autónomo, sem personalidade jurídica, com autonomia financeira” e que “funciona” junto do IGFEJ, IP, pugnando pela nulidade do despacho do Juiz de Instrução, na parte em que concordou com a referida injunção.
21. Considerando que o Fundo para a Modernização da Justiça foi criado no âmbito do Ministério da Justiça e que “Estado” para efeitos do disposto na alínea c) do artigo 281.º do Código de Proc. Penal inclui qualquer entidade pública, não se verifica, salvo melhor entendimento, qualquer ilegalidade na imposição à arguida da injunção em apreço;
22. Do exposto decorre que o despacho da Mm.ª JIC de Instrução ao manifestar a sua concordância com injunção que constitui o pagamento de uma quantia ao Fundo para a Modernização da Justiça não padece de qualquer nulidade;
23. Mesmo que assim não se entenda, sempre se dirá que a verificar-se algum vício, o mesmo apenas constituirá uma mera irregularidade, encontrando-se, contudo, a mesma sanada, nos termos disposto no artigo 123.º do Código de Processo Penal.
24. Por fim, sustenta ainda a recorrente que a manter-se a decisão recorrida, a pena concreta aplicar à arguida deverá ser fixada em 20 dias de multa, à taxa diária de €5,00;
Afigura-se-nos que todo o processo de escolha e determinação da pena não merece qualquer reparo, quer pelo estrito cumprimento do preceituado na nossa lei penal, quer pela rigorosa análise do factualismo a que aplicou esses mesmos critérios legais, pelo que o recorrente não tem qualquer motivo para a reputar excessiva, desproporcionada ou inadequada.
Pelo que deverá negar-se provimento ao recurso ora interposto, mantendo-se a sentença recorrida nos precisos termos fazendo, desta forma, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa a costumada JUSTIÇA.”
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Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto deu parecer no seguinte sentido:
“1. O Recurso:
A arguida AA interpôs recurso da sentença, de 20/06/2023, proferida pelo Juiz 3 do Juízo Local Criminal da Amadora que, em processo abreviado, a condenou pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1 e art.º 69.º n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de 5 (cinco) euros, o que perfaz o montante global de €250,00 (duzentos e cinquenta) euros, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 3 (três) meses, p. e p. pelo art.º 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal sob pena de incorrer em responsabilidade criminal se violar tal proibição.
A recorrente fundamenta o recurso na nulidade da sentença por ter sido utilizada a forma de processo abreviado fora dos casos previstos na lei, uma vez que decorreu o prazo de 90 dias sobre a verificação do incumprimento da injunção – arts. 384.º, n.º 4, 282.º, n.º 4, al. a), e 119.º, al. f), todos do CPP; na inconstitucionalidade da interpretação do art.º 282.º, n.º 4, al. a), do CPP que retira da competência do JIC a apreciação sobre o incumprimento das injunções ou regras de condutas aplicadas no âmbito da suspensão provisória do processo, deferindo-a ao MP; na nulidade do despacho de concordância do JIC, no âmbito da suspensão provisória do processo, na parte que se refere à injunção proposta pelo Ministério Público de entregar ao Fundo para a Modernização da Justiça a quantia de €102,00, por constituir uma forma de financiamento ilegal; no excesso da pena de multa.
2. Resposta do Ministério Público na 1.ª instância
O Ministério Público respondeu ao recurso rebatendo os seus fundamentos, pugnando pelo seu não provimento.
3. Posição do Ministério Público no TRL
Recurso Penal
Questão prévia:
O MP deduziu acusação em processo abreviado por a arguida/recorrente não ter satisfeito uma das obrigações pecuniárias que permitiram a suspensão provisória do processo.
Com efeito, demonstrou a arguida/recorrente, através do seu mandatário, o pagamento de €400,00, não o tendo feito quanto aos €120,00 a entregar ao Fundo para a Modernização da Justiça, ainda que tenha sido notificada para esse efeito.
Cumpriu igualmente a arguida/recorrente a obrigação de não conduzir.
A arguida/recorrente, apenas em sede de audiência de julgamento, declarou ter entregue ao mandatário, que a assistia, o valor global correspondente às duas obrigações e que quando foi notificada do despacho que designou dia para julgamento se deslocou ao Tribunal para esclarecer a situação, tendo-lhe sido dito para o fazer aquando do julgamento. Nesse dia, foi nomeado defensor à arguida/recorrente.
O Tribunal a quo, todavia, não apurou da veracidade da afirmação produzida, pois que não apurou, designadamente, se a arguida/recorrente tinha o comprovativo, ou outra prova, de ter entregue ao mandatário o valor global das obrigações pecuniárias, tanto mais que o MP, em face da ausência de resposta à notificação, quanto à não entrega da quantia de €120,00, não tomou declarações à arguida/recorrente sobre o não cumprimento atempado da injunção e a falta de junção do comprovativo.
Ademais, o Tribunal a quo dessa afirmação, conjugada com a circunstância de a arguida/recorrente ter cumprido com as demais obrigações a que estava sujeita, não retirou qualquer consequência, designadamente por efeito da aplicação do princípio in dubio por reo, nem a verteu na decisão.
Afigura-se-nos, por isso, s.m.o., que a sentença não observou o disposto no art.º 389.º-A, n.ºs 1, als. a) e b), por remissão do art.º 391.º-F, do CPP, sendo nula quer por essa via, quer porque omitiu pronúncia relativamente a questão que o Tribunal deveria ter apreciado, conforme disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
A não se entender assim, consignamos que acompanhamos integralmente o teor da resposta apresentada pela nossa Colega na 1.ª instância, com a qual concordamos, atenta a sua proficiência e clareza.
Pelo exposto, somos de parecer que o recurso merece provimento nos termos acima defendidos”.
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Proferido despacho liminar e, colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II- Questões a decidir:
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995(1), o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada, as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:
-> recurso da arguida:
- nulidade do processo por uso da forma de processo abreviado fora dos casos previstos na lei – arts. 384.º, n.º 4, 282.º, n.º 4, al. a), e 119.º, al. f), todos do CPP;
- inconstitucionalidade da interpretação do art.º 282.º, n.º 4, al. a), do CPP que retira da competência do JIC a apreciação sobre o incumprimento das injunções ou regras de condutas aplicadas;
- na nulidade do despacho de concordância do JIC, no âmbito da suspensão provisória do processo;
- medida da pena de multa.
-> parecer do MP:
- nulidade da sentença por inobservância do disposto no art.º 389.º-A, n.ºs 1, als. a) e b), por remissão do art.º 391.º-F, do CPP e por omissão de pronúncia relativamente a questão que o Tribunal deveria ter apreciado, conforme disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
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III – Factos relevantes para a decisão das questões suscitadas:
Definidas as questões a tratar, importa considerar a factualidade que resulta da análise dos autos com interesse para a respectiva decisão:
1. Em 2/03/2022, o Ministério Público submeteu à apreciação do Mm.º Juiz de Instrução Criminal uma proposta de suspensão provisória do processo pelo período de 6 meses, nos termos do disposto pelo artigo 281º do CPP, com a imposição à arguida das seguintes injunções:
A- Entregar a quantia de 400,00€ (quatrocentos euros) ao Estado, fazendo prova nos autos do cumprimento da injunção durante o período da suspensão provisória do processo;
B- Pagamento da quantia de €102,00 (cento e dois euros) a favor do Fundo para a Modernização da Justiça, devendo efectuar o referido pagamento mediante entrega de DUC nos autos no referido prazo.
C- Proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 (três) meses, devendo fazer a entrega da carta de condução no prazo de 10 dias a contar da notificação do despacho que determinou a suspensão provisória do processo.
2. A referida proposta mereceu a concordância do Mmº. Juiz de Instrução Criminal e a suspensão provisória do processo nos termos que haviam sido propostos, foi notificada à arguida por via postal simples com prova de depósito.
3. A arguida procedeu à entrega nos autos da carta de condução e cumpriu injunção de proibição de conduzir por 3 meses e procedeu ao pagamento da quantia de €400,00 ao Estado, comprovando nos autos tal pagamento.
4. Por despacho proferido a 27/9/2022, foram notificados a arguida e o mandatário de que se encontrava em falta o pagamento de 1 UC, conforme despacho de suspensão, e que deve proceder ao pagamento, no prazo de dez dias, sob pena da suspensão ser considerada incumprida e os autos prosseguirem com a dedução de acusação.
5. A notificação em apreço foi depositada, em 04.10.2022, no recetáculo da morada indicada pela arguida aquando da prestação do TIR.
6. Não tendo dado entrada nos autos nenhum requerimento nem documento comprovativos do pagamento da quantia em causa, o M.º P.º proferiu despacho, determinando o prosseguimento dos autos nos termos do disposto nos arts 282º, n.º 4, al. a) e 384.º, n.º 4, ambos do CPP, seguindo-se a acusação da arguida para julgamento sob a forma de processo abreviado, pela prática do crime de condução de veículo estado de embriaguez, previsto e punido pelo art.º 292.º nº 1 e 69.º nº 1 alínea a) ambos do Cód. Penal.
7. A 19/4/2023, foi proferido despacho de recebimento de acusação para julgamento em processo abreviado tendo sido expresso inexistirem “nulidades, questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra conhecer”.
8. Em sede de julgamento, invocou a arguida ter procedido à entregue ao mandatário que a representava os €:102,00 necessários para o pagamento da injunçãoo e que, quando recebeu o despacho de acusação, lhe telefonou mas que este nunca lhe atendeu o telefone veio a comparecer no julgamento e que se deslocou ao Tribunal, tendo explicado a situação a uma funcionária.
9. Nesse dia foi proferida sentença oral, que de acordo com a transcrição feita tem o seguinte teor:
“A Senhora vinha acusada da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelas posições conjugadas do Artigos 292 n.º 1, 69 n.º 1 alínea a), ambos do Código Penal, não contestou, não requereu produção de prova.
Realizou-se o julgamento.
Não existem nulidades, questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer e que obstem à posição do mérito da causa.
Factos provados: provaram-se todos os factos da acusação.
Mais se provou que a arguida sofreu um dia de detenção à ordem dos presentes autos, trabalha com part-time na restauração, ganha cerca de 480 euros por mês, tem três filhos e mora com eles, a mãe e o pai de um dos filhos.
Paga cerca de 240 euros por mês com despesas da casa.
Deu a sua concordância para a suspensão provisória do processo, tendo cumprido a totalidade da injunção de proibição de condução.
Não averba qualquer condenação no certificado do registo criminal.
Factos não provados; não existem.
Motivação dos factos:
O Tribunal formou a sua convicção quanto às circunstâncias de tempo e lugar no auto de notícia, no auto de notícia por detenção, de folhas 3 a 5 conjugados pelas declarações confessórias da arguida, que prontamente confessou os factos de que vinha acusada.
A concreta taxa foi obtida pelo talão de folhas 12.
A prova do elemento subjectivo e da culpa faz-se por inferência dos factos quanto ao elemento objectivo e neste caso, atendendo às declarações confessórias da arguida.
As suas condições pessoais e económicas resultaram das suas declarações e teve-
se ainda em consideração o CRC junto aos autos.
Direito:
Vem a arguida acusada deste crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
Consideram-se a factualidade provada, encontra-se preenchidos os elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime.
Mais se provou que, mais se provou não, a arguida agiu na modalidade de dolo directo, e no presente caso não se verifica qualquer causa de exclusão de ilicitude ou da culpa, os factos não preenchem outro tipo de crime, encontra-se por isso verificada a prática do crime de condução em estado de embriaguez pela arguida.
Pena.
O crime de condução em estado de embriaguez é punido com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
Na escolha da pena, o Tribunal tem em atenção as prevenções, as necessidades de prevenção geral e especial que se fazem cumprir, bem como a culpa.
Relativamente ao caso em análise, as necessidades de prevenção geral são elevadas.
Já as necessidades de prevenção especial, são muito reduzidas, considerando que a arguida não averba qualquer condenação no seu registo criminal, estando o Tribunal em crer que a prática deste facto consubstancia um acto isolado na sua vida.
Pelo exposto a pena a aplicar, é uma pena … imperceptível … na … imperceptível … da medida concreta da pena o Tribunal tem em atenção o grau de culpa e as demais circunstâncias atenuantes e agravantes que no caso se verifiquem. Neste caso a culpa é reduzida, considerando que o crime de que a arguida vem acusada não é reflexo de uma personalidade desconforme ao direito, tratando-se neste caso mais dum crime de oportunidade, fruto de alguma imponderação, desde logo porque esta é a sua primeira condenação. Por outro lado, a concreta a taxa de álcool verificada ainda é relativamente perto do limite a partir da qual a conduta é considerada crime e aqui chegados, cumpre analisar as circunstâncias que depõe a favor e contra a arguida. A favor, o facto de ter assumido posteriormente aos factos, a responsabilidade pelos mesmos, ainda que parcial, porque quando cumpriu parte das injunções determinadas em sede de suspensão provisória do processo, pelo que apresenta uma menor necessidade da pena e também a confissão. Contra a arguida, apenas o dolo que é directo. Tudo ponderado, o Tribunal entende de ser necessário, adequado e proporcional a fixação de 50 dias de pena de multa, à razão diária de cinco euros que perfaz o valor de 250 euros. Ordena-se ainda o desconto dum dia de detenção na pena de multa.
Relativamente à pena acessória, tendo em conta o acórdão de fixação de jurisprudência que não admite o desconto do tempo cumprido, em sede de injunção, por suspensão provisória do processo, não há qualquer desconto a fazer e vai a arguida condenada na pena acessória de proibição de condução de veículos a motor pelo período de 3 meses.
Custas: Vai a arguida condenada em custas, que se fixam em 1C.
Pelo exposto o Tribunal decide julgar a acusação procedente por provada e em consequência condenar AA em autoria material e na forma consumada de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 292 n.º 1, 69 n.º alínea a) do Código Penal, na pena de 50 dias de multa, à razão diária de 5 euros, que perfaz o quantitativo global 250 euros, condenar a arguida à pena acessória de proibição de condução de veículos a motor pelo período de 3 meses.
Ordenar ainda o desconto de um dia de detenção na pena de multa.
Condenar nas custas do processo que se fixam cuja taxa de justiça se fixa em 1C.”
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IV- Apreciando o mérito do recurso:
Porque no conhecimento das questões o tribunal de recurso deve seguir uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras, tendo por referência a ordem indicada nos artigos 368.º e 369.º do Código de Processo Penal, passa-se a conhecer, em primeiro lugar, dos vícios do processo e da sentença e, de seguida, da medida da pena.

Das nulidades invocadas: uso da forma de processo abreviado fora dos casos previstos na lei (arts. 384.º, n.º 4, 282.º, n.º 4, al. a), e 119.º, al. f), todos do CPP), a inconstitucionalidade da interpretação do art.º 282.º, n.º 4, al. a), do CPP que retira da competência do JIC a apreciação sobre o incumprimento das injunções ou regras de condutas aplicadas e a nulidade do despacho de concordância do JIC, no âmbito da suspensão provisória do process
Invoca a arguida nulidade do processo por uso da forma de processo abreviado fora dos casos previstos na lei (arts. 384.º, n.º 4, 282.º, n.º 4, al. a), e 119.º, al. f), todos do CPP), a inconstitucionalidade da interpretação do art.º 282.º, n.º 4, al. a), do CPP que retira da competência do JIC a apreciação sobre o incumprimento das injunções ou regras de condutas aplicadas e a nulidade do despacho de concordância do JIC, no âmbito da suspensão provisória do processo.
Considerando que, antes da interposição deste recurso, os arguidos não suscitaram junto da primeira instância as nulidades e inconstitucionalidade que aqui invocam, não podem as mesmas ser conhecidas pelo Tribunal.
Como se lê no Ac RP de 27/5/2009, processo n.º 104/22.9PAVCD-A.P1, disponível em www.dgsi.pt:
“Com efeito, os recursos têm por objeto a decisão recorrida e não a questão por ela julgada; são remédios jurídicos e, como tal, destinam-se a reexaminar decisões proferidas pelas instâncias inferiores, verificando a sua adequação e legalidade quanto às questões concretamente suscitadas, e não a decidir questões novas, que não tenham sido colocadas perante aquelas. Assim, se os recorrentes pretendiam que fosse corrigido o procedimento adotado (…), tinham de arguir primeiramente o vício perante o tribunal onde ele foi cometido e só depois, caso a decisão que viesse a ser proferida lhes fosse desfavorável, interpor o competente recurso, só então estando reunidas as condições para que este tribunal apreciasse a questão».
Em conformidade, improcede o recurso neste segmento.
Dos vícios da sentença:
No parecer proferido nesta Relação, o MP invoca a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, por o Tribunal ter deixado de apreciar uma questão suscitadas pela ora recorrente em audiência de julgamento, concretamente o facto do incumprimento das injunções impostas na suspensão provisória do processo não se dever a culpa sua.
Vejamos.
Como ensina Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Editorial Verbo 1994, III, p. 109-110, «A suspensão provisória do processo assenta essencialmente na busca de soluções consensuais para a protecção dos bens jurídicos penalmente tutelados e a ressocialização dos delinquentes, quando seja diminuto o grau de culpa e em concreto seja possível atingir por meios mais benignos do que a pena criminal os fins que presidiram à incriminação, em abstracto dos factos».
Nas palavras de Maia Costa, in Código de Processo Penal comentado, 4ª edição revista, p. 950, «A suspensão provisória constitui uma forma alternativa de processamento do inquérito, na sua fase final, sendo, por isso, um caso de «diversão». Constatada a existência de indícios suficientes do crime e da identidade do seu autor, o inquérito não desemboca numa acusação com vista ao julgamento do arguido, antes fica suspenso, pelo prazo previsto no art.º 282º, ficando o arguido sujeito a «injunções e regras de conduta» decretadas pelo Ministério Público.»
De acordo com o disposto no n.º 3 e n.º 4 do art.º 282.º do CPP:
“3 - Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto.
4 - “O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:
a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou
b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.”
É atualmente unânime o entendimento de que, perante a ocorrência de um qualquer incumprimento, a opção pela dedução de acusação em vez do arquivamento não é automática, envolvendo antes um juízo de culpa ou vontade de não cumprir por parte do arguido.
(neste sentido veja-se, a título de exemplo, Ac RE de 21-06-2022 Proces: 276/19.0 GCSSB.E1 e de 11-05-202, Processo: 579/19.3T9EVR.E1, da RG de 11-01-2021, da RP de 09-12-2015 Processo: 280/12.9TAVNG-A.P1 e da RL de 18-05-2010, Processo:107/08.6 GACCH.L1 -5, todos disponíveis in www.dgsi.pt e, na doutrina, Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, IIº Vol, Rei dos Livros, 2004, anot. Artº 282; Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17ª ed., Almedina, 2009, anot. Art.º 282º; Maia Costa, CPP Comentado, 2014, Almedina, anot. Art.º 282º, Magistrados do Ministério Publico do Distrito Judicial do Porto, CPP Comentários e notas práticas, Coimbra Editora, art.º 282º).
O incumprimento das injunções ou regras de conduta pode conduzir à revogação da suspensão provisória do processo, à revisão das injunções ou regras decretadas – optando-se pela imposição de outras –, ou à prorrogação do prazo do prazo das anteriores até ao limite que a lei consente. Trata-se de aplicar aqui os mesmos princípios de garantia (substantiva) dos direitos de defesa do incidente de incumprimento da suspensão da execução da prisão, previstos nos Art.ºs 55.º e 56.º, ambos do Código Penal.
Nestas duas últimas hipóteses, terá que haver o acordo prévio do arguido, do assistente e do Juiz.
Já a opção pela dedução da acusação, cabe exclusivamente ao Ministério Público.
De qualquer forma, e como é entendimento unânime da jurisprudência, e sob pena de nulidade, nos termos dos artºs 120º n.º 2 al. d) e 61ºn.º 1 al. b) do CPP, o arguido tem de ser ouvido em inquérito em ordem a averiguar se existiu de facto incumprimento e seus respectivos motivos e aferir da existência e medida da culpa e, em face disso, decidir pela revogação, modificação ou prorrogação da suspensão do processo. (neste sentido, por todos, Ac. da RC de 12-05-2021 Processo: 48/19.1GBGRD.C1, da RE de 11-05-2021 Processo: 579/19.3 T9EVR.E1, da RP de 09-12-2015 Processo: 280/12.9 TAVNG-A.P1, disponíveis in www.dgsi.pt)
Interessa-nos, agora, a forma de sindicar a decisão do MP de declarar o incumprimento e deduzir acusação.
O arguido não pode recorrer de tal despacho pois, conforme resulta do disposto no artigo 399º do C.P.P., apenas as decisões judiciais (sentenças, acórdãos e despachos) admitem recurso.
Quando há acusação pelo MP em processo comum, o arguido que com esta não se conforme, pode requerer a abertura da instrução com o propósito de demonstrar, quer que não deixou de cumprir as obrigações ou injunções que lhe foram impostas, quer que, tendo havido incumprimento, ele não ocorreu por culpa sua. Se não o fizer, conclui-se que aceita o incumprimento culposo das obrigações que lhe foram impostas no âmbito da suspensão do processo e a sujeição a julgamento.
Contudo, quando esta acusação é em processo sumário ou abreviado, inexiste a fase da instrução – cfr. o artigo 286º, nº 3 do C.P.P.
E é opção legislativa expressa que o processo mantenha a forma abreviada no caso de revogação da suspensão provisória do processo – n.º 4 do artigo 384.º do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no n.º 2 do artigo 391.º-B do mesmo diploma legal.
Ora, nestas situações, que é a dos autos, só em sede de julgamento é que pode ser sindicada a decisão do MP de julgar incumprida a suspensão provisória do processo e de deduzir acusação.
Como se escreve no Ac RP de 15/6/2016, Processo n.º 391/14.6PIPRT.P1, in www.dgsi.pt, em apreciação de uma situação muito semelhante à presente:
«A não se entender assim, impede-se a sindicância da opção do Ministério Público de deduzir acusação em vez de arquivar o processo, violando grosseiramente o direito de defesa do Arguido, sendo que, no limite, se aceita, em simultâneo, o cumprimento de todos os deveres impostos no processo suspenso e a condenação nesse mesmo processo, que se considerou – incorrectamente – não dever ser arquivado».
Escreve-se no acórdão do TR de Coimbra, de 13.09.2017, processo n.º 81/14.0GTCBR.C1, in www.dgsi.pt, também a respeito de uma situação semelhante:
“O que ocorre, isso sim, é uma excepção dilatória inominada, que obstará a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (v. o subsidiário artº 576º, 2, do CPC).
Com efeito, verificado, embora em momento tardio, que o arguido cumprira atempadamente as injunções a que havia sido sujeito aquando da SPP, deveria o tribunal ter proferido despacho declarando tal e absolvendo-o da instância.
Nos termos do disposto no artº 282º, 4, a) do CPP, o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas «se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta» e, nos termos do disposto no nº 4 do artº 383º do mesmo CPP, o MP deduz acusação no prazo de 90 dias «a contar da verificação do incumprimento».
O prosseguimento do processo, está bom de ver, só acontecerá face ao incumprimento das injunções e regras de conduta e não de um qualquer prazo a que seja concedida natureza peremptória, sem o devido apoio legal. Seu pressuposto legal é, nos termos estritos da lei, aquele incumprimento.
No nosso caso, o arguido cumpriu as injunções que lhe foram fixadas e só não demonstrou postura colaborante para fazer prova de que o fizera, quando convidado para o efeito. E daí, poderia o MP considerar que, face a tal postura, incumprira ele as injunções? Cremos que não. O que deveria ter feito era, ‘motu próprio’ e impulsionado pelo seu dever de investigação, ter solicitado a necessária informação à entidade beneficiária do pagamento ou proceder à audição do arguido. Mas não o fez.
Não podemos, deste modo, deixar que as questões de ordem formal se sobreponham às questões de fundo, de modo a fazer prevalecer a justiça material.
Verificando que o arguido cumprira as injunções que lhe haviam sido fixadas para a SPP, o juiz de julgamento deveria ter proferido despacho em que, julgando esgotado o objecto do presente processo especial, desse sem efeito a audiência de julgamento designada, absolvendo o arguido da respectiva instância. Não poderia o MP, sem previamente se certificar de que a injunção em causa fora incumprida, proferir acusação e remeter os autos a juízo”.
(no mesmo sentido, Cfr. ainda o Acórdão desta Relação de 09-11-2021, Processo: 27/19.9PFSNT.L1-5 in www.dgsi.pt)
No caso dos autos, a arguida não foi ouvida em inquérito, como se impunha, em ordem a averiguar se existiu incumprimento e seus respectivos motivos. E, tendo sido notificada do recebimento da acusação, a arguida não apresentou contestação, mas em audiência de julgamento, quando foi interrogada, além de ter confessado a prática do crime, explicou também que entregou o dinheiro necessário para o cumprimento das injunções ao advogado que a representava, estando convencida de que tal tinha sucedido e dizendo ainda que este não lhe atende os telefonemas.
E na sentença proferida nos autos, vemos que o Tribunal não deu resposta à questão suscitada pela arguida na área dos factos provados ou não provados, nem dela se ocupou a motivação. Simplesmente foi ignorada, não decidindo a questão, nem fazendo qualquer referência a esta alegação.
Ora, este acontecimento – a alegação de que o incumprimento não ocorreu ou que, tendo ocorrido, não é culposo – não pode ser ignorado, sob pena de se poder vir a punir duplamente a mesma infração.
É para esta realidade que o parecer do Ex.mo Procurador Geral Adjunto chama a atenção.
Em suma: há omissão de pronúncia do tribunal sobre uma questão suscitada pela arguida em audiência de julgamento e há factos não apurados, referentes ao incumprimento da suspensão provisória do processo, que são relevantes para a decisão da causa e que o tribunal deixou de investigar, como devia e podia, tomando a matéria de facto insuscetível de adequada subsunção jurídica.
Este vício da sentença é subsumível à alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, da insuficiência para a decisão da matéria de facto, o que decorre precisamente da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.
Refere o Prof. Germano Marques da-, no “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pág. 325/326:
«é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.”
In casu, como vimos, o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal.
Vejamos que os factos que ficaram por apurar e que foram alegados pela arguida se, depois de averiguados pelo Tribunal - como deveria ter sucedido, atentos os princípios da investigação ou da verdade material e o artigo 340º, nº 1 do Código de Processo Penal - viessem a ser julgados provados, conduziriam, como vimos, a uma distinta solução jurídica.
Persistir no curso do processo, na linha de raciocínio da sentença recorrida, poderia significar assim, em última instância, e como já acima foi dito, punir o mesmo agente duas vezes pelo mesmo crime, em violação do princípio ne bis in idem e do disposto no art.º 29º, nº5 da CRP. De facto, a cada infração cabe apenas e só uma punição, não podendo o agente ser novamente perseguido criminalmente no âmbito do exercício do poder punitivo do Estado.
(cfr., neste mesmo sentido, Ac RE de 21-06-2022, processo 276/19.0GCSSB.E1 e de 03-08-2018, Processo: 790/16.9PBSTB.E1 e da RP de 15-06-2016 391/14.6PIPRT.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt).
O vício apontado, do art.º 410 n.º 2 al. a) do CPP, é de conhecimento oficioso (Acórdão n.º 7/95, de 28 de dezembro, Diário da República n.º 298/1995, Série I-A de 1995-12-28, páginas 8211 – 8213).
O suprimento deste vício não pode ser feito por este Tribunal da Relação, pois implica a produção da prova necessária à decisão da questão, como seja a da audição do mandatário da arguida e a realização de outras inquirições ou diligências de prova que venham a mostrar-se relevantes para averiguar as causas do incumprimento e aferir da sua censurabilidade, sendo dever do Tribunal apurar/clarificar o real quadro factual, ao abrigo do disposto no art.º 340 do CPP, em ordem a poder proferir uma decisão justa. A questão de facto é da competência do Tribunal do Julgamento.
Por último, deixa-se consignado que a decisão de reenvio afeta a apreciação das restantes questões suscitadas no recurso, razão pela qual se torna inútil prosseguir no seu conhecimento.
V. Decisão:
Pelo exposto, acordam as Juízas da 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em, nos termos dos artigos 374º, nº 2, 379º, nº 1 al. c), 410º, nº 2, alínea a), e 428º, nº 1, do CPP, oficiosamente declarar a insuficiência da matéria de facto para a decisão e determinar, conforme o disposto no artigo 426º do CPP, o reenvio do processo para novo julgamento, mas unicamente quanto aos aspectos atrás mencionados, valendo o critério estabelecido no artigo 426º-Aº, nºs 1 e 2, do mesmo código
As demais questões suscitadas no recurso estão prejudicadas atento o teor do decidido.
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Sem custas.
Notifique.
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Lisboa, 5 de março de 2024
Sara André dos Reis Marques
Sandra Ferreira
Ester Pacheco dos Santos