Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2897/20.9T8ALM.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: VEÍCULO
GEOLOCALIZAÇÃO
FURTO
SEGURO FACULTATIVO
VALOR DO CAPITAL SEGURO
PERDA TOTAL DO VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1- Estando demonstrado o desaparecimento do veículo do local onde o A. o havia deixado estacionado, à porta de sua casa, enquanto foi jantar com amigos e pernoitar fora de casa, e tendo além disso o A. efectuado a participação de tal desaparecimento às autoridades policiais, mais tendo providenciado pelo accionamento do serviço de geolocalização do veículo, facultado as chaves digitais codificadas do mesmo e os registos da Via Verde, é de concluir pela verosimilhança da afirmação do furto do veículo, para efeitos de accionamento da cobertura desse risco no âmbito do contrato de seguro automóvel facultativo.
2- Tendo a R. (seguradora) aceite acriticamente o valor do veículo que foi indicado pelo A. (tomador do seguro), inscrevendo-o nas condições particulares da apólice como correspondendo ao valor de capital seguro (designadamente em caso de furto) e cobrando o prémio correspondente, em vez de contrapor qualquer outro valor ou exigir ao A. que demonstrasse como havia chegado a tal valor, é de concluir que é esse o valor do interesse seguro atendível para cálculo da indemnização devida em caso de perda total do veículo seguro (como sucede nos casos de furto), sem perder de vista a desvalorização do mesmo, em razão da aplicação da tabela de desvalorização a que respeita o art.º 4º do D.L. 214/97, de 16/8, e sem que igualmente se possa afirmar estar colocado em causa o princípio indemnizatório que subjaz aos seguros de danos.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

BM. intentou a presente acção declarativa de condenação, sob forma de processo comum, contra S.U., S.A. (entretanto incorporada por fusão na G. Seguros, S.A.), pedindo a condenação da R. no pagamento da quantia de € 41.332,18, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Alega para tanto e em síntese que:
- Celebrou com a R. um contrato de seguro automóvel com a cobertura facultativa de danos próprios, que incluía o risco do furto do veículo seguro;
- O veículo seguro foi furtado em 31/8/2019, quando se encontrava estacionado à frente da sua residência;
- Participou o furto à GNR e comunicou a ocorrência do sinistro à R.;
- A R. declinou a sua responsabilidade no pagamento do capital seguro, bem como da indemnização extra que foi contratada, correspondente a 20% do valor da apólice, e bem ainda das despesas efectuadas pelo A.;
- Com a sua conduta a R. impediu o A. de poder comprar outro veículo, o que lhe causou constrangimentos e prejuízos.
A R. apresentou contestação, aí aceitando ter celebrado com o A. o contrato de seguro em apreço, mas sustentando, em síntese, que o sinistro terá ocorrido em circunstâncias diversas das participadas pelo A., motivo pelo qual declinou a respectiva responsabilidade. Mais alegou que, caso se conclua pela ocorrência do sinistro, os valores a indemnizar ao A. são diversos dos indicados na P.I., invocando que o mesmo, com o intuito de obter um enriquecimento ilegítimo, abusivamente, sobrevalorizou o veículo, indicando um capital seguro superior ao valor que aquele tinha. Conclui pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.
A R. requereu ainda a intervenção principal provocada de C., S.A., alegando, em síntese, que o A. adquiriu o veículo seguro com recurso a financiamento concedido por essa instituição de crédito, a qual tem registada a seu favor reserva de propriedade, e estando ainda em dívida o capital de € 27.724,46, pelo que caso venha a ser condenada no pedido, o pagamento do capital seguro terá de ser efectuado à chamada.
Foi admitida a intervenção principal provocada e citada a chamada, que apresentou contestação onde, em síntese, invoca o seu desconhecimento quanto ao sinistro e confirma a reserva de propriedade, concluindo que, caso a acção seja julgada procedente, deve a R. ser condenada a pagar-lhe a indemnização devida, atenta a reserva de propriedade de que beneficia.
Com dispensa de audiência prévia foi proferido despacho saneador tabelar, mais sendo identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, pela qual a acção foi julgada improcedente, com a absolvição da R. do pedido.
O A. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1. Atenta a prova produzida em audiência final, e por ser relevante para a boa decisão da causa, o ponto 15) dos factos provados deverá ter a seguinte redacção: “O veículo não foi avaliado ou vistoriado pela Ré, porque a Ré nunca solicitou ao Autor essa avaliação ou vistoria.
2. Só por má interpretação ou mero lapso, o Tribunal a quo poderá ter dado como não provado o ponto A) dos Factos não provados, a saber:
A) No dia 31 de Agosto de 2019, entre as 00:30 horas e as 20:30 horas, a viatura automóvel (…), identificada em 1), foi furtada por desconhecidos quando se encontrava estacionada na Rua (…), junto ao n.º 18, (…), Charneca da Caparica.
3. Na verdade, conforme doc. 2, que se juntou com a petição inicial, no dia 31 de Agosto de 2019, pelas 20:50 horas apresentou participação criminal, no posto da GNR da Charneca da Caparica, sendo que só teve conhecimento do desaparecimento do veículo automóvel pelas 20.30 horas.
4. Acresce que, no dia seguinte, ou seja, no dia 01 de Setembro de 2019, pelas 13:37 horas, o A. contactou os serviços da BMW de forma a tentar saber se através do serviço de geolocalização conseguia encontrar o veículo, conforme documento que se juntou aos autos e que se torna a juntar, para mais fácil apreciação (Doc. 1).
5. Ora, o Tribunal a quo refere na sua douta Decisão que a formação da sua convicção para considerar tal facto como não provado, tomou em consideração os vários documentos juntos ao processo, bem como, o depoimento das várias testemunhas.
6. Diferentemente do que refere o Tribunal a quo na sua douta Decisão, a mãe do Autor depôs com bastante clareza sobre o que se passou naquele dia, sendo que referiu que não reside na mesma casa do filho, que reside na parte de baixo da casa e que se apercebeu que o carro do seu filho se encontrava em casa quando regressou da feira, tendo pensado que o seu filho estaria em casa.
7. Sucede que, no dia seguinte, pelas nove horas da manhã o carro do seu filho já não se encontrava em casa, o que a testemunha não estranhou, pois pensou que o seu filho tivesse saído cedo.
8. Na verdade são estes os conhecimentos directos desta testemunha sobre os factos, pois a mesma não controla a vida pessoal do seu filho, que na altura já tinha 34 anos e era um homem independente, que não presta satisfações à mãe sobre onde sai, com quem sai ou onde vai dormir.
9. Este depoimento é corroborado pelo depoimento da testemunha CC., sua actual companheira, mas com quem o Autor tinha, na altura do sinistro, um relacionamento mais íntimo.
10. A testemunha CC. depôs com total isenção, nunca faltando à verdade, tendo referido que foi de férias com a sua família mais próxima (pais, irmã e cunhado) e pediu ao seu amigo mais próximo, que já pernoitava algumas noites na sua casa para lhe tomar conta dos peixes, nesse período.
11. O Tribunal a quo refere na sua douta Decisão “Ora, neste contexto, não deixa de suscitar alguma estranheza a alegada pernoita do Autor em casa da testemunha, na ausência da mesma, assim como a utilização da sua viatura, comportamentos que, em regra, estão associados a relacionamentos já com alguma estabilidade.”. Ora, se dúvidas houvessem que esta versão corresponde à verdade dos factos, podemos até verificar que o Autor almoçou na casa da testemunha, conforme doc. 3 que se juntou.
12. Ainda que se considerasse esse tipo de relacionamento como “estranho”, não se vislumbra a razão pela qual este relacionamento contende com a prova do furto da viatura.
13. Efectivamente o que há que provar é: onde estava a viatura automóvel e se o Autor se viu desapossado da mesma por motivo alheio à sua vontade e por facto imputável a terceiros.
14. Da prova produzida resulta que nada mais era exigível ao Autor fazer para sustentar a prova do furto: o facto foi praticado sem que o mesmo tivesse assistido (tendo assistido estaríamos a falar de outro tipo de ilícito criminal); fez queixa às autoridades competentes sustentando onde a viatura se encontrava e de onde desapareceu; foi verificar a via verde do veículo, de forma a verificar se haviam passagens nas portagens, o que vem descrito no auto de notícia e que foi presenciado pela autoridade policial; após tomar conhecimento que a BMW tem um serviço de geolocalização, de imediato procedeu ao seu registo, sendo que lhe foi remetido um email no dia 01.09.2019, pelas 13:57 horas, mediante o qual se comprova que o Autor procedeu ao registo no BMW ConnectedDrive, de forma a saber se o serviço de geolocalização do veículo se encontrava activado e, em caso afirmativo, tentar saber onde o mesmo estaria localizado.
15. Os factos relativos à utilização das chaves da viatura demonstram que estas não foram usadas para circular com o veículo.
16. Estes factos provados pelo Douto Tribunal são por si só demonstrativos da violação do direito de propriedade do Autor, estando este risco seguro.
17. A leitura dos factos provados, à luz das regras da experiência comum, não permite outra leitura que não a da ocorrência de um furto: outra conclusão será a de resultar por alguma forma indiciado que o Autor, de forma algo “maquiavélica” e rebuscada definiu um plano – pelos vistos perfeito pois a viatura não foi encontrada – para, não obstante suportar as prestações do crédito e não obstante ter feito a revisão da viatura, se ver privado do direito de propriedade da sua viatura para obtenção de valores que acaba por suportar por exercer via judicial os seus direitos.
18. O Autor é uma pessoa de bem, que estudou, trabalha na Câmara Municipal de Almada como Técnico Superior e nunca teve qualquer problema com a justiça, que jamais inventaria um furto do seu veículo automóvel para receber uma indemnização.
19. Refere ainda o Tribunal a quo que, “(…) se nenhuma das circunstâncias isoladamente seria bastante para afastar integralmente a credibilidade das declarações do Autor, não assim quando analisamos as mesmas de forma concatenada entre si, para mais, se atentarmos na circunstância dos factos sob apreço terem ocorrido decorridos pouco mais de quatro meses desde a subscrição da apólice de seguro, contemplando uma cobertura de indemnização extra de 20% em caso de furto.”
20. Ora, tal conclusão não pode deixar de se colocar em crise, senão estaríamos a fazer um pré-juízo sempre que alguém contrata um seguro automóvel no qual subscreve a cobertura por furto ao roubo. Acresce que, já o anterior seguro contratado pelo Autor, subscrito na T., S. A., também assegurava o veículo em caso de furto ou roubo pelo valor de 31.991,79 Euros.
21. Relativamente ao valor da viatura, atente-se na postura da Ré Companhia de Seguros: a viatura é segurada por um determinado valor, o prémio de seguro é pago em conformidade com tal valor e quando há um problema como o dos presentes autos vamos discutir o valor da viatura? E o que acontece com o valor do prémio pago em conformidade com o valor seguro: é reembolsado ao tomador com base nessa alegada desvalorização?
22. Aliás, o Tribunal requereu aos serviços da BMW informação sobre o serviço de geolocalização, sendo que a BMW respondeu por ofício datado de 04.03.2022 a informar que “(…) as Autoridades Portuguesas executaram de imediato o protocolo estabelecido que consiste em solicitar a informação às Autoridades policiais federais Alemãs, acerca da eventual possibilidade de geolocalização do veículo em questão.
23. Esclarecemos que até à presente data, não foi dado resposta ao solicitado, pelo que e de acordo com as Autoridades Portuguesas indicam, equivale a dizer que não foi possível a obtenção de dados de geolocalização da viatura em questão.” – conforme documento que foi junto aos autos, mas que se junta como doc. 8.
24. Conforme refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/01/2022, no âmbito do processo n.º 981/19.0T8FLG.P1, acessível em www.dgsi.pt: “Normalmente, pela natureza das coisas, não haverá prova directa do furto, praticado de forma sub-reptícia, evitando a presença de testemunhas e câmaras de vigilância. Por essa razão tem-se entendido que, cabendo ao segurado lesado a prova do furto nos termos do artigo 342.º, n.º 1, CC, basta a existência de uma participação às autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança.
25. Assim, deveria o Tribunal a quo decidir que o sinistro ocorreu, pois apesar das autoridades policiais não terem descoberto o autor da prática dos factos, na verdade, os factos ocorreram e o Autor demostrou ao Tribunal tudo o que fez para tentar recuperar o seu veículo automóvel, sendo que sempre colaborou com a investigação e com os peritos do seguro.
Com a sua alegação de recurso o A. apresentou ainda nove documentos.
A R. apresentou alegação de resposta, sustentando a não admissão dos documentos apresentados pelo A. e a manutenção da sentença recorrida.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com a alteração da matéria de facto e com a subsequente verificação do sinistro coberto pelo contrato de seguro, e sendo que, em caso afirmativo, importa ainda conhecer da determinação do montante indemnizatório e da sua titularidade, conhecimento esse que ficou prejudicado na sentença recorrida.
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Previamente, porém, há que conhecer da admissibilidade da junção dos nove documentos apresentados pelo A. com a sua alegação.
Decorre do art.º 651º, nº 1, do Código de Processo Civil, que com as alegações as partes apenas podem juntar documentos nas situações excepcionais a que se refere o art.º 425º, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
Embora o A. nada invoque sobre a oportunidade da apresentação de tais documentos com a sua alegação, resulta do exposto na motivação da mesma alegação que esses nove documentos visam:
- Demonstrar as diligências efectuadas pelo A. para localizar o veículo a partir do serviço de localização instalado no veículo, e o resultado das mesmas (documentos 1, 7 e 8);
- Corroborar as suas declarações e os depoimentos das testemunhas CC. (actual companheira do A.) e IM. (mãe do A.), no que respeita à pernoita e estadia do A. em casa da referida testemunha, em 31/8/2019 (documentos 2 e 3);
- Contraditar o depoimento da testemunha MS., no que respeita às circunstâncias em que o A. adquiriu o veículo à “...” (documentos 4 e 5);
- Reforçar a credibilidade das suas declarações, no que respeita às circunstâncias que rodearam o desaparecimento do veículo (documentos 6 e 9).
Por outro lado, e compulsados os documentos em questão, logo se alcança que não está em causa a oportunidade de junção nos termos do disposto no art.º 425º do Código de Processo Civil, uma vez que os mesmos não se apresentam como objectiva ou subjectivamente supervenientes, mas apenas a necessidade de junção em sede de recurso, em virtude do julgamento proferido na instância recorrida (de acordo com a segunda parte do nº 1 do art.º 651º do Código de Processo Civil)
Todavia, e mesmo que se possa afirmar que se trata de documentos processualmente supervenientes, tal não justifica, por si só, a necessidade de junção, já que, como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 786), “tem-se entendido que a junção de documentos às alegações da apelação só pode ter lugar se a decisão da 1ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam”.
Como já se observou, aquilo que o A. pretende com a junção dos documentos agora apresentados mais não é que demonstrar o erro de julgamento da instância recorrida, no que respeita à afirmada falta de credibilidade das declarações do A. e dos depoimentos testemunhais prestados pela mãe do A. e pela sua actual companheira. Com efeito, na sentença recorrida é afirmado, para além do mais, que o depoimento da mãe do A. “não mereceu ao Tribunal inteira credibilidade, sendo que na ausência de outro elemento de prova bastante que o confirme o Tribunal não ficou convencido da realidade do afirmado por esta testemunha”. Do mesmo modo, relativamente ao depoimento da companheira do A., é afirmado que “não deixa de suscitar alguma estranheza” o relatado pela mesma quanto ao comportamento do A., em razão da natureza do relacionamento entre ambos, assim se afastando o contributo de tal depoimento para a demonstração das circunstâncias em que o veículo terá desaparecido. E, do mesmo modo, relativamente às declarações do A., as mesmas “revelaram-se, em muitos aspectos, imprecisas e pouco sustentadas, pautadas por um discurso a espaços defensivo, tendo suscitado, numa apreciação global, bastantes reservas ao Tribunal”. E é a partir dessa valoração negativa que o A. pretende produzir a prova documental em questão, para inverter a mesma valoração e tornar possível a afirmação da verosimilhança do que foi declarado por si e pelas testemunhas em questão.
Dito de outra forma, o que estará em causa, na perspectiva do A., é a possibilidade de produção ulterior de prova, dentro dos quadros das al. a) e b) do nº 2 do art.º 662º do Código de Processo Civil.
Como explica António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 332), “através dos nº 1 e 2, al. a) e b) [do art.º 662º do Código de Processo Civil] fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis”. Mas igualmente explica que tal poder/dever deve observar o “princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”, e que “entre as circunstâncias que devem ser ponderadas pela Relação, quando seja confrontada com tal iniciativa [de permitir a produção de um meio de prova superveniente, tendo em vista a (des)credibilização de depoimentos gravados], não pode deixar de se integrar também o modo como nos momentos processualmente ajustados (fase de instrução e audiência final) foram (ou não foram) accionados os mecanismos destinados precisamente a assinalar factores de descredibilização do depoente, como ocorre com os incidentes de impugnação, de contradita ou de acareação de testemunhas” (pág. 340), assim concluindo que “será, pois, com redobrado rigor, que a Relação deverá apreciar a “seriedade” das dúvidas eventualmente invocadas quanto à credibilidade do depoente ou relacionadas com o teor do depoimento” (pág. 341).
Revertendo tais considerações ao caso concreto dos autos, logo se alcança que não foi a forma como as declarações do A. e os depoimentos testemunhais em questão foram prestados que desencadeou a necessidade de assinalar os seus factores de (des)credibilização, desde logo porque não foi suscitado qualquer um dos mecanismos processuais destinados a tanto, acima melhor identificados. Pelo contrário, a circunstância que desencadeia a necessidade de produção dos meios de prova documentais agora apresentados pelo A. prende-se com a prolação da sentença recorrida e com o aí afirmado, no sentido da ausência de prova que corrobore o que foi afirmado pelo A. e pelas testemunhas em questão, por se entender, não só que os comportamentos relatados se apresentam como estranhos e incomuns, mas igualmente que deviam estar demonstrados outros comportamentos do A., sem os quais não é possível validar as declarações e depoimentos prestados.
Dito de outra forma, estando em causa a forma como o tribunal recorrido fez uso de juízos de experiência comum, não atendendo à factualidade instrumental relatada pelo A. e pelas testemunhas em questão para concluir pela verificação da factualidade essencial relativa à ocorrência do furto, e sendo da prova documental agora apresentada que, na perspectiva do A., se logra a verificação de factualidade instrumental apta a fazer concluir pela verificação da referida factualidade essencial, há que afirmar que é a partir da posição do tribunal recorrido, expressa na sentença recorrida, que decorre a necessidade de produção da prova documental em questão (e sem prejuízo de um dos documentos em questão já se encontrar junto aos autos), e não da inacção de qualquer uma das partes, designadamente do A.
O que faz concluir, sem necessidade de ulteriores considerações, que está preenchida a previsão legal da segunda parte do nº 1 do art.º 651º do Código de Processo Civil, assim se admitindo a junção aos autos dos documentos apresentados pelo A. com a sua alegação.
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Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto:
1. O A. é proprietário do veículo de matrícula (…), de marca BMW, modelo 1C, versão 220 D.
2. Entre a R., na qualidade de seguradora, e o A., na qualidade de segurado, foi celebrado o contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…), regulado pelas condições particulares e gerais que constam de fls. 10 a 32v. dos autos, que aqui se dão por reproduzidas, através do qual a R. assegurou o risco de circulação automóvel do veículo identificado em 1., na modalidade de responsabilidade civil obrigatória e, ainda, de danos próprios, com as coberturas de furto ou roubo e de complemento de indemnização extra, com o capital seguro de € 32.029,12, sendo de € 29.020,24 o capital seguro do veículo e de € 3.008,88 o capital seguro nos extras.
3. Quando accionada a cobertura de danos próprios provocados por furto ou roubo é aplicável ao segurado, nos termos do referido contrato, uma franquia de € 280,00.
4. Nos termos do aludido contrato, a cobertura de indemnização extra garante ao segurado, em caso de furto, o pagamento de um complemento de indemnização correspondente a 20% do valor venal do veículo seguro à data do sinistro.
5. Nos termos das condições particulares da apólice, o valor do veículo seguro ficou sujeito à tabela de desvalorização que consta de fls. 11v., que aqui se dá por reproduzida.
6. O referido contrato de seguro teve o seu início em 24 de Abril de 2019, sendo a sua duração anual, estando em vigor à data de 31 de Agosto de 2019.
7. No dia 31 de Agosto de 2019, pelas 20:50 horas, o A. apresentou queixa na Guarda Nacional Republicana – Posto Territorial da Charneca da Caparica, contra desconhecidos, comunicando a ocorrência de um furto do veículo automóvel identificado em 1., ocorrido entre as 00:30 horas e as 20:30 horas daquele dia.
8. A queixa referida em 7. deu origem ao processo n.º 1003/19.7GCALM, que correu termos na 5.ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Almada, que foi arquivado por não existência de indícios quanto à autoria dos factos denunciados.
9. No dia 3 de Setembro de 2019 o A. comunicou o furto do veículo identificado em 1. à R.
10. No dia 8 de Novembro de 2019, a R. remeteu ao A. a comunicação que se encontra junta a fls. 34, que aqui se dá por reproduzida, propondo uma indemnização de € 30.066,54, já deduzida a franquia de € 280,00, e solicitando o envio de documentação.
11. Perante tal comunicação o A. enviou à R. a documentação solicitada, bem como declaração para que esta liquidasse o valor em causa à C., e requerendo que o informassem como chegaram ao valor indicado, uma vez que não estaria incluído o valor relativo à indemnização extra.
12. No dia 28 de Janeiro de 2020 a R. enviou ao A. o escrito de fls. 39v., que aqui se dá por reproduzido, comunicando que “após análise aos elementos que integram o nosso processo, nomeadamente averiguação efectuada e respectiva peritagem, se constatou um conjunto de irregularidades que nos levam a concluir que o sinistro não terá ocorrido de uma forma aleatória, súbita e/ou imprevista, pelo que declinamos qualquer responsabilidade pela liquidação dos danos decorrentes do mesmo”.
13. Analisadas as chaves do veículo, foi verificado que:
- uma das chaves apresentava como data de utilização o dia 30/08/2018, pelas 23:36 horas, registando 153.307 km e 6 litros de combustível;
- a outra chave apresentava como data de utilização o dia 30/08/2018, pelas 14:04 horas, registando 153.274 km e 10 litros de combustível.
14. O valor do capital seguro, assim como os extras e o respectivo valor, do veículo identificado em 1. foram indicados pelo A. no momento da subscrição da proposta de seguro.
15. Na data da subscrição da proposta de seguro, o veículo não foi avaliado ou vistoriado pelos serviços da R. (alterado, nos termos adiante decididos)
16. O veículo identificado em 1. foi importado da Alemanha pela sociedade ..., (…), tendo sido declarada como data de entrada em território nacional a data de 7 de Fevereiro de 2018.
17. À data indicada em 16. o referido veículo tinha percorrido 115967 quilómetros.
18. A primeira matrícula do veículo (…) é de 17 de Dezembro de 2014.
19. O valor de aquisição do referido veículo declarado pela sociedade ..., Unipessoal, Lda. à Autoridade Tributária e Aduaneira aquando da apresentação da Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) foi de € 15.100,00.
20. O veículo foi adquirido pelo A. à sociedade ... em Novembro de 2018 pelo valor de € 26.500,00.
21. O A. celebrou, em 10 de Novembro de 2018, com a C. (Sucursal da S.A. francesa C.) o acordo denominado “contrato de mútuo”, a que foi atribuído o número 1209515, cuja cópia consta de fls. 95v. a 104 dos autos, que aqui se dá por reproduzido, nos termos do qual a C. emprestou ao A. a quantia global de € 29.226,48 para aquisição do veículo [identificado em 1.], sendo a quantia de € 26.500,00 destinada ao pagamento do veículo identificado em 1.
22. Para garantia do cumprimento do denominado “contrato de mútuo” foi estipulada uma reserva de propriedade a favor da C. sobre o veículo.
23. Em 10 de Dezembro de 2018 o veículo [identificado em 1.] registava 137.464 quilómetros.
24. Em 11 de Fevereiro de 2020 o A. pagou o Imposto Único de Circulação do veículo identificado em 1. no valor de € 224,33.
25. O A. despendeu a quantia de € 10,00 com o cancelamento da matrícula do veículo identificado em 1. e a quantia de € 18,00 com a emissão da declaração de não recuperação do veículo, cuja cópia consta de fls. 9 dos autos, pela Guarda Nacional Republicana.
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Na sentença recorrida considerou-se ainda como não provado que:
A. No dia 31 de Agosto de 2019, entre as 00:30 horas e as 20:30 horas, a viatura (…), identificada em 1., foi furtada por desconhecidos quando se encontrava estacionada na Rua (…), junto ao n.º 18, (…) Charneca da Caparica. (eliminado, nos termos adiante decididos)
B. O veículo identificado em 1. foi entregue ao A. com 117.000 quilómetros percorridos.
C. O valor de venda de um veículo com as mesmas características do veículo identificado em 1. era, no máximo, de cerca de € 22.000,00.
D. O A. percorreu cerca de 20.000 quilómetros com o veículo identificado em 1. até proceder ao registo do mesmo em seu nome.
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Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art. 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.
E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas. É que, face ao disposto no nº 1 do art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto tem por objecto, desde logo, os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas. Todavia, e porque do nº 2 do mesmo art.º 5º resulta que o tribunal deve ainda considerar os factos instrumentais, bem como os factos complementares e concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, e que resultem da instrução da causa, daí decorre que na decisão da matéria de facto devem esses factos ser tidos em consideração.
Tal não significa, no entanto, que a decisão da matéria de facto (provada e não provada) deve comportar toda a matéria alegada pelas partes e bem ainda aquela que resulte da prova produzida, já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objecto dessa decisão.
Isso mesmo enfatizam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 721),  quando explicam que o juiz da causa deve optar “por uma descrição mais ou menos pormenorizada ou concretizada, de acordo com as necessidades do pleito, desde que seja assegurada uma descrição natural e inteligível da realidade que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integra, permita a qualquer das partes a sua impugnação”. E mais explicam (pág. 722) que “o regime consagrado no CPC de 2013 propugna uma verdadeira concentração naquilo que é essencial, depreciando o acessório, sendo importante que o juiz consiga traduzir em linguagem normal a realidade apreendida, explicitando, depois, os motivos que o determinaram, com destaque para a explanação dos factos instrumentais que o levaram a extrair as ilações ou presunções judiciais”.
Assim, e como tal delimitação deve estar igualmente presente na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui que “o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só devam constar do elenco de factos provados e não provados, no respeito pelo disposto no art.º 5º, nº 1 e nº 2, al b), do Código de Processo Civil, mas igualmente correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso.
Por outro lado, e a respeito da enunciação dos factos instrumentais, decorre do nº 4 do art.º 607º do Código de Processo Civil que os mesmos não carecem de ser discriminados no elenco de factos provados, mas apenas referidos na medida das ilações que forem tiradas dos mesmos, para a demonstração dos factos essenciais alegados pelas partes.
Isso mesmo explicam igualmente António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 718‑719), afirmando a necessidade de enunciação dos “factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a acção ou a excepção proceda”, bem como a necessidade de “enunciação dos factos concretizadores da factualidade que se apresente mais difusa” (e sendo que “a enunciação dos factos complementares e concretizadores far-se-á desde que se revelem imprescindíveis para a procedência da acção ou da defesa, tendo em conta os diversos segmentos normativos relevantes para o caso”), mas afirmando igualmente que, quanto aos factos instrumentais, “atenta a função secundária que desempenham no processo, tendente a justificar simplesmente a prova dos factos essenciais, para além de, em regra, não integrarem os temas da prova, nem sequer deverão ser objecto de um juízo probatório específico”, já que “o seu relevo estará limitado à motivação da decisão sobre os restantes factos, designadamente quando a convicção sobre a sua prova resulte da assunção de presunções judiciais”.
Revertendo tais considerações para o caso concreto, constata-se que o A. conclui que o primeiro ponto de facto dado como não provado deve transitar para o elenco de factos provados, do mesmo modo concluindo que o ponto 15. dos factos provados deve ser alterado. Pelo que, relativamente ao referido ónus primário de delimitação do objecto do recurso, no que respeita à impugnação da decisão de facto, há que afirmar o cumprimento do mesmo pelo A.
Do mesmo modo, e no que respeita ao cumprimento do referido ónus secundário, o A. vem identificar as testemunhas que, no seu entender, afirmaram a verificação da factualidade que pretende ver dada como provada, mais identificando e transcrevendo as passagens das gravações onde se situam as afirmações em questão, e identificando ainda os documentos que conduzem às alterações pretendidas.
Assim, é em relação aos dois pontos de facto identificados que cabe conhecer da impugnação da decisão de facto.
***
Quanto à factualidade que o A. pretende aditar ao ponto 15. dos factos provados, e ainda que a mesma não tenha sido alegada por qualquer uma das partes nos seus articulados, constata-se que a mesma resulta da prova testemunhal produzida, desde logo a partir do depoimento da testemunha DF., que explicou que a R. não pediu ao A. qualquer elemento relativo ao valor do veículo que foi indicado pelo mesmo. E porque tal factualidade se apresenta como complementar da factualidade elencada no ponto 15., deve a mesma ser aí integrada, para que o referido ponto 15. expresse o que resulta da prova produzida, em toda a sua integralidade.
Assim, e nesta parte, procede a impugnação da decisão de facto, alterando-se o ponto 15. dos factos provados, que passa a ter a seguinte redacção:
15. Na data da subscrição da proposta de seguro o veículo não foi avaliado ou vistoriado pelos serviços da R., porque esta nunca solicitou ao A. tal avaliação ou vistoria.
***
Quanto à factualidade constante do ponto A. dos factos não provados, o tribunal recorrido sustentou a sua não verificação pela seguinte forma:
A testemunha IM., que reside na mesma morada do Autor, afirmou que na noite em que terão ocorrido os factos em apreço chegou a casa por volta da uma hora da manhã e que viu o veículo estacionado na rua, mas que quando saiu na manhã seguinte, por volta das nove horas da manhã, o mesmo já aí não se encontrava, tendo ficado convicta que o filho já teria saído com o veículo. Este depoimento não mereceu ao Tribunal inteira credibilidade, sendo que na ausência de outro elemento de prova bastante que o confirme o Tribunal não ficou convencido da realidade do afirmado por esta testemunha (sendo que, quanto às declarações de parte, remete-se para o que infra se dirá). Na verdade, as únicas questões a que a testemunha respondeu sem hesitações mais não são do que a reprodução quase integral da versão do Autor. Porém, sempre que questionada sobre algum outro aspecto, a testemunha revelou-se evasiva e pouco segura, referindo mesmo “não sei nada”, “não pergunto nada”. Não deixa, ainda, de causar alguma perplexidade a naturalidade com que descreveu que o filho se apercebeu do desaparecimento do veículo, quando, segundo refere, chegou a casa ao final do dia, e, bem assim, a alusão a ter chegado no carro da namorada, pessoa que à data nem mesmo conheceria. De todo o modo, sempre se dirá que a testemunha nem mesmo revelou saber se no momento em que afirmou ter chegado a casa o Autor aí se encontrava, nada revelando saber quanto ao que o mesmo terá feito nessa noite e no dia seguinte.
- O depoimento da testemunha CC. nenhum contributo útil teve relativamente ao que terá sucedido entre a meia noite e meia e as vinte e trinta do dia 31 de Agosto de 2019, na medida em que, quanto a esta matéria, não revelou conhecimento directo, limitando-se a referir o que lhe terá sido transmitido pelo Autor, posto que, segundo referiu, na altura estava de férias no estrangeiro. Não pode, contudo, deixar de registar-se que, de acordo com o declarado pela testemunha, à altura ainda não namorava com o Autor, existindo apenas uma relação de amizade, ainda que com alguma intimidade, entre ambos. Ora, neste contexto, não deixa de suscitar alguma estranheza a alegada pernoita do Autor em casa da testemunha, na ausência da mesma, assim como a utilização da sua viatura, comportamentos que, em regra, estão associados a relacionamentos já com alguma estabilidade. Em todo o caso, a testemunha nem mesmo revelou conhecimento directo sobre se tal efectivamente sucedeu.
(…)
No que concerne ao depoimento/declarações de parte não se pode, de todo, ignorar que o declarante não é desinteressado, nem imparcial, o que, obviamente não pode ser desconsiderado no momento da apreciação e valoração das suas declarações, que, em regra, devem ser corroboradas por outros meios de prova.
Ora, no depoimento/declarações de parte que prestou o Autor procurou, por um lado, sustentar a ocorrência do furto, e, por outro, a conformidade do valor do capital seguro e dos extras.
Sucede que as declarações do Autor revelaram-se, em muitos aspectos, imprecisas e pouco sustentadas, pautadas por um discurso a espaços defensivo, tendo suscitado, numa apreciação global, bastantes reservas ao Tribunal. Desde logo, é de notar que não obstante o Autor tenha sustentado que saiu com amigos na noite em que o veículo terá desaparecido, amigos estes que o apanharam em casa, onde teria deixado o veículo estacionado, nenhuma testemunha foi apresentada que corrobore tal versão, desde logo a pessoa à boleia de quem teria ido. Do mesmo modo, nenhuma testemunha foi arrolada que confirme que, após a referida saída nocturna, foi para local distinto da sua residência, concretamente para casa de um amigo, nas proximidades da residência da pessoa com quem estava amorosamente envolvido na altura – a sua actual companheira, a testemunha CC., mas que com quem na altura ainda não tinha uma relação de namoro – em cuja residência terá decidido pernoitar, não obstante a mesma aí não se encontrasse. Mais uma vez, ademais de alguma estranheza que suscita um tal comportamento, assim como o subsequente uso do veículo, face à natureza da relação então existente entre ambos, nenhuma prova foi apresentada de que tal efectivamente ocorreu (atente-se que a testemunha CC. apenas logrou confirmar que o Autor tinha as suas chaves de casa e acesso às chaves do seu veículo).
Por outro lado, não sendo de todo implausível a explicação dada pelo Autor para o uso de ambas as chaves do veículo na véspera do sinistro, não pode deixar de se assinalar que se trata de um comportamento bastante incomum, sendo certo que, em regra, a chave de reserva não se encontra em uso simultaneamente com a outra chave, existindo por parte da generalidade das pessoas a preocupação de mantê-la num local distinto e seguro (ressalvando os casos em que o veículo é usado por duas pessoas, em que é normal que cada uma fique com uma das chaves, o que não é o caso), precisamente como recurso em caso de perda, extravio ou avaria da que se encontra a uso.
Ademais, é de notar que nenhuma diligência é descrita pelo Autor, ademais da participação às autoridades policiais, com vista a apurar o que teria sucedido com o seu veículo, desde logo junto dos vizinhos ou porventura até nas redes sociais, meio cada vez mais usado pela ampla e rápida divulgação que permite. Refira-se que sendo a zona de onde o veículo teria desaparecido uma zona de vivendas, aparentemente familiar, como ilustram as fotografias de fls. 144, seria desde logo natural que o Autor tentasse apurar junto da vizinhança se alguém se apercebeu do sucedido.
(…)
Ora, se nenhuma das circunstâncias isoladamente seria bastante para afastar integralmente a credibilidade das declarações do Autor, não assim quando analisamos as mesmas de forma concatenada entre si, para mais, se atentarmos na circunstância dos factos sob apreço terem ocorrido decorridos pouco mais de quatro meses desde a subscrição da apólice de seguro, contemplando uma cobertura de indemnização extra de 20% em caso de furto.
Daí que o Tribunal, à falta de outras provas, e uma vez que o furto é um facto constitutivo do direito invocado, cuja prova compete ao Autor, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, tenha considerado não provada a sua ocorrência.
Neste circunspecto, afigura-se pertinente chamar à colação o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10/07/2019 (proc. n.º 1521/17.1T8AMT.P1, acessível em www.dgsi.pt), em cuja posição nos revemos, onde se escreveu o seguinte:
“I - Numa acção em que o autor invoca a titularidade de um direito indemnizatório que lhe assiste por via da celebração de um contrato de seguro com a ré, em consequência de se ter verificado um furto, é a ele que incumbe a prova da verificação do furto, uma vez que este surge como elemento constitutivo do seu direito.
II - Porém, como a prova da verificação do furto de um veículo é normalmente difícil de efectuar por este ocorrer de forma sub-reptícia, impõe-se ao autor não uma prova directa deste, mas sim que, tendo apresentado a respectiva queixa junto das entidades policiais, forneça ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente a essa queixa.
III - Se esses elementos probatórios coadjuvantes não são produzidos, a prova da verificação do furto não poderá ser feita apenas com base na participação que foi apresentada nas autoridades policiais.”.
Com efeito, como se refere no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 25/01/2022 (proc. n.º 981/19.0T8FLG.P1, acessível em www.dgsi.pt), “Normalmente, pela natureza das coisas, não haverá prova directa do furto, praticado de forma sub‑reptícia, evitando a presença de testemunhas e câmaras de vigilância.
Por essa razão tem-se entendido que, cabendo ao segurado lesado a prova do furto nos termos do artigo 342.º, n.º 1, CC, basta a existência de uma participação às autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança.”.
No caso, foi este último elemento que o Autor não logrou demonstrar.
É que, como assinala o já referido Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 10/07/2019, “O furto de um veículo automóvel, ainda para mais se estamos perante um Mercedes, classe … e mesmo que tenha perto de 10 anos, é para o cidadão comum um facto gerador de grande tensão, susceptível de provocar neste no dia do evento um estado de, pelo menos, alguma desorientação.
Imagine-se a reacção de um qualquer cidadão ao chegar ao local onde tinha deixado estacionada a sua viatura e ao deparar-se com o seu desaparecimento. O nervosismo e a perturbação imperariam. Procuraria indagar do sucedido no local, falando com vizinhos que lhe podiam ter fornecido alguma pista quanto à ocorrência.
Falaria com familiares e amigos próximos e não faltariam certamente testemunhas que em tribunal descrevessem um estado de nervosismo compatível com o desaparecimento de um estimado veículo automóvel e também as averiguações que sumariamente teria feito no local com vista a apurar desse desaparecimento.
Para um cidadão comum a subtracção de um veículo automóvel, a não ser que se trate de um veículo destituído de qualquer valor, é sempre, no plano negativo, um facto relevante na história da sua vida e, por isso, gerador de perturbação.
E não quer dizer que isso não pudesse ter sucedido com o B… e com o seu pai, aqui autor. Só que o referido B… não o confirmou no seu depoimento e nenhuma outra testemunha foi arrolada do círculo de familiares e amigos próximos, ou da vizinhança, que nos dissesse algo sobre o que foi a vida deste e do autor nas horas que se seguiram ao alegado desaparecimento da viatura.”.
De facto, como igualmente se refere no mesmo aresto, a prova do furto não pode bastar-se com uma simples participação que nesse sentido é apresentada junto das autoridades policiais, dispensando o Autor de qualquer actividade probatória subsequente, o que seguramente levaria à multiplicação das situações de simulação de furto visando pretensões indemnizatórias fraudulentas, justificando-se que o autor, tendo apresentado a queixa pela ocorrência do furto junto das entidades policiais, forneça ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente à queixa apresentada e que se objectivem factualmente na fundada probabilidade do veículo ter sido estacionado nas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas naquela queixa e de ter desaparecido daquele lugar sem motivo aparente.
E, no caso, reitera-se, essa prova coadjuvante não foi feita pelo Autor, motivo pelo qual se considerou não provada a factualidade descrita em A)”.
Começando por aferir do valor probatório das declarações prestadas pelo A., não é possível acompanhar o afirmado na sentença recorrida, no sentido da impossibilidade de as mesmas declarações servirem de meio de prova, por si só, em razão de serem prestadas por alguém interessado no desfecho da acção.
É que, estando em causa a prova por declarações de parte, não resulta da letra e do espírito do art.º 466º do Código de Processo Civil que as mesmas são insusceptíveis de, só por si, servir de meio de prova.
Com efeito, e como afirmam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 529 532), quanto à prova por declarações de parte, “ao invés de um mero poder/dever do tribunal, regula-se aqui um verdadeiro direito potestativo de natureza processual conferido a qualquer das partes, permitindo-lhe oferecer-se para prestar declarações”.
Do mesmo modo, “não se diga, de forma preconcebida, que a parte irá reproduzir a versão dos factos que o seu mandatário já terá exposto nos articulados. O poder da imediação não deve ser desconsiderado, do mesmo modo que não deve ser desprezado o relevo que pode ser atribuído a declarações mais ou menos espontâneas de alguém que não está condicionado necessariamente pelos efeitos jurídicos que podem ser extraídos das suas declarações. É que uma coisa é a versão da parte exposta pelo seu mandatário (…); outra, bem diversa, é a que pode emanar da própria parte quando depõe perante o juiz, tudo podendo decorrer de modo mais espontâneo e impressivo, permitindo porventura uma maior aproximação à realidade que subjaz ao litígio”.
E do mesmo modo, ainda, “a circunstância de, por princípio, este meio de prova resultar da iniciativa da parte que se propõe depor não é de molde a negar a sua utilidade, pois tudo decorrerá com sujeição ao teste do interesse que a parte tem no desfecho da acção, acrescendo que tais declarações, quando não tenham valor confessório, são livremente apreciadas pelo tribunal (…)”, pelo que “nada obstará a que factos que, de acordo com a lei substantiva, não estejam sujeitos a prova tarifada, sejam considerados provados com base nas declarações da parte, se acaso o tribunal se convencer da sua veracidade”.
E estando as declarações da parte sujeitas ao princípio da livre apreciação, “pese embora a sua especificidade, podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo um valor probatório autónomo”, havendo que “valorar em primeiro lugar as declarações de parte e só depois a pessoa do depoente, porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações de parte e incorrer no viés confirmatório”.
Também este Tribunal da Relação de Lisboa vem concluindo repetidamente pela auto suficiência e valor probatório autónomo das declarações de parte, como no acórdão de 26/4/2017 (relatado por Luís Filipe Pires de Sousa e disponível em www.dgsi.pt), quando se afirma que “no que excede a confissão, as declarações de parte integram um testemunho de parte; (ii) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (iii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente”, mais se afirmando que “em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação”. Ou ainda como no acórdão de 28/5/2019 (relatado por Ana Rodrigues da Silva e disponível em www.dgsi.pt), quando se afirma que “as declarações de parte estão ao mesmo nível que os demais meios de prova, sendo valoradas de forma autónoma e integrada, sem que se estabeleça qualquer hierarquia entre os vários elementos probatórios”, o que significa que “as declarações de parte devem ser valoradas, ponderando-se o seu conjunto com os demais elementos de prova, sem prejuízo da eventual confissão que ocorra”.
Assim, e reconduzindo tais considerações ao caso concreto, aquilo que importa apurar é se as declarações do A. são verosímeis, no que respeita às circunstâncias em que ocorreu o invocado desaparecimento do veículo, desde logo quando colocadas em confronto com a restante prova produzida e com juízos de experiência comum, aplicados ao caso concreto.
Nesta medida, importa recordar que o que está em causa é a subtracção do veículo do A. por terceiros não identificados. Ou, dito de outra forma, caso se consiga afirmar que o A. manteve o domínio do veículo, seja directamente, seja indirectamente, torna-se impossível afirmar tal subtracção.
Todavia, do conjunto da prova produzida não resulta qualquer indício, por mais ténue que seja, que após 31/8/2019 o A. tenha tido o domínio do veículo, ainda que por interposta pessoa.
Com efeito, apesar de o A. ter as duas chaves do veículo, está documentalmente demonstrado que as mesmas não mais foram utilizadas, depois das 23.36 h. de 30/8/2019.
Por outro lado a mãe do A., que não reside com o mesmo (como resulta claro do seu depoimento, quando afirma que “o meu filho mora na parte de baixo numa outra casa”, não se alcançando assim porque é que na sentença recorrida ficou afirmado que “reside na mesma morada do Autor”), explicou que na noite de sexta feira foi à “feira de Corroios” e voltou cerca da uma hora da manhã, constatando que o veículo estava estacionado à porta de casa do seu filho.
Como resulta da consulta ao site www.cm-seixal.pt/festas-populares-1/2019/festas-populares-de-corroios-2019, verifica-se que tal “feira” corresponde às festas populares de Corroios, tendo tido lugar em vários dias de Agosto de 2019 e, de entre eles, os dias 30 (sexta feira) e 31 (sábado). Assim, faz sentido a afirmação da mãe do A., no sentido de ter regressado à sua casa cerca da 1.00 h. de 31 de Agosto e, nessa medida, poder ver o veículo estacionado à porta de casa do seu filho (que se situa ao lado da sua). O que significa que o A. havia circulado com o mesmo até às 23:36 h. de 30 de Agosto, estacionando-o então junto à sua casa (na Rua (…), 20, na Charneca da Caparica). E aí se encontrava o mesmo quando a sua mãe regressou das referidas festas populares.
Aliás, tal utilização do veículo pelo A. nessa sexta feira vem corroborada pelo registo de utilização da Via Verde, onde se detecta uma passagem na portagem de Palhais (ou seja, no troço da A33 que serve a Charneca da Caparica), pelas 14.01 h. (de acordo com o documento 14 junto pelo A. com o seu requerimento de 13/7/2020).
Do mesmo modo, era o A. que tinha ambas as chaves do veículo, continuando em poder das mesmas até as ter entregado à R., no âmbito da averiguação promovida por esta, para apurar as circunstâncias em que ocorreu o desaparecimento do veículo.
Como já se verificou, o depoimento da mãe do A. merece credibilidade quanto às circunstâncias em que viu o veículo do A. pela última vez, pelo que deve ser afirmada essa mesma credibilidade quanto a mesma explica que no sábado (31 de Agosto) saiu de casa pelas 9.00 h. e o veículo já não estava no local onde antes o tinha visto estacionado (quando chegou das festas populares).
Mas como já se viu, no que respeita aos registos de utilização das chaves do veículo, nenhuma das mesmas serviu para circular com o veículo, depois das 23.36 h. de 30/8/2019.
Assim, é de afirmar que o veículo do A. foi deslocado do local onde estava estacionado, entre a 1.00 h e as 9.00 h de 31/8/2019, e não tendo sido deslocado pelo A. com recurso às chaves do veículo.
Aliás, e ainda a respeito da utilização indistinta das duas chaves do veículo, o tribunal recorrido afirma “que se trata de um comportamento bastante incomum, sendo certo que, em regra a chave de reserva não se encontra em uso simultaneamente com a outra chave”. Todavia, basta atentar no suporte fotográfico do relatório de averiguação, que corresponde ao documento 1 junto pela R. com o seu requerimento probatório de 22/10/2021, para constatar que não existe uma chave de reserva e uma chave principal, mas duas chaves absolutamente iguais, e que se caracterizam por ser chaves electrónicas codificadas, que não carecem de ser manuseadas para colocar o veículo em andamento, bastando que as radiofrequências que emitem sejam recebidas e descodificadas pelo veículo. Ou seja, tendo em atenção o tipo de chave em questão, deixa de ser incomum que o A. usasse indistintamente qualquer um das duas chaves, nos termos explicados pelo mesmo, e até porque nunca foi afirmada a existência de outro utilizador do veículo, para além do A.
Afirmado o desaparecimento do veículo, nos termos acima descritos, coloca-se então a questão do envolvimento do A. nesse desaparecimento.
Dito de outra forma, e tentando acompanhar as suspeitas da R. e do tribunal recorrido, que indícios permitem afirmar que foi o A. que promoveu tal desaparecimento?
É que, como já se disse, só na medida em que seja possível afirmar tal envolvimento do A. no desaparecimento do veículo é que é de negar a sua subtracção por desconhecidos (tendo presente que um veículo automóvel, pela sua própria natureza, não desaparece sem a intervenção humana).
Ora, e recuando até ao momento em que ocorreu a averiguação promovida pela R., tendente a confirmar o desaparecimento do veículo, no já identificado relatório de averiguação sustenta-se a tese da falta de elementos que confirmem o furto com recurso, por um lado, à afirmação de uma valorização excessiva e anormal do veículo, no que respeita ao capital seguro. E, por outro lado, à circunstância de os pais do A. de nada se terem apercebido, apesar de se tratar de uma zona residencial “muito calma”, sem “ocorrências semelhantes”, e onde os cães ladram à passagem de estranhos.
Quando à questão da eventual valorização excessiva e anormal do veículo, por parte do A., certamente que a R. não ignorava (como não ignorou) que sempre podia lançar mão do princípio indemnizatório a que respeita o art.º 128º e seguintes do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, não indemnizando o A. por valor superior ao que seria o valor do veículo. O que, por si só, não permite sustentar a tese da falta de elementos comprovativos do furto, entendida a mesma, como já se disse, como a afirmação da contribuição do A. para o desaparecimento do veículo.
Do mesmo modo, e quanto à circunstância de ninguém se ter apercebido do desaparecimento do veículo estacionado na via pública, numa madrugada/início de sábado, designadamente porque os pais do A. não ouviram o seu cão a ladrar (se é que o mesmo ladrou), fica por verificar se se torna “obrigatório” que um cão ladre a todos os transeuntes que se encontram na via pública, Mas, mais do que isso, não se pode afirmar, segundo as regras da experiência comum, que os pais do A. estavam “obrigados” a interromper o seu descanso nocturno sempre que o seu cão ladrasse, nessas circunstâncias, e para apurar porque é o mesmo tinha ladrado.
Ou seja, os indícios em questão de nada valem para afirmar o envolvimento do A. no desaparecimento do veículo.
Do mesmo modo, a circunstância relatada pelo A. para justificar porque é que só ao fim da tarde de sábado deu pelo desaparecimento do veículo não se apresenta com a estranheza ou anormalidade que o tribunal recorrido lhe imputa.
Assim, o A. explicou que ao fim do dia 30 de Agosto foi jantar com amigos e não levou o seu veículo, tendo sido transportado pelos mesmos amigos. A corroborar tal afirmação está a circunstância de o veículo ter ficado estacionado à porta de casa do mesmo, não sendo obrigatório que tivesse(em) de ser ouvido(s) como testemunha(s) o(s) amigo(s) em questão, mas antes parecendo perfeitamente normal que numa noite de sexta feira, no final de Agosto, o A. tenha optado por não ser condutor, mas passageiro, talvez (e parece plausível) para respeitar o sempre repetido conselho “se conduzir não beba, se beber não conduza”.
Quanto à circunstância de não ter regressado a casa, ficando a pernoitar em casa de uma amiga (a testemunha CC., sua actual companheira), da qual detinha a chave, a justificação para o A. deter a chave da casa da referida testemunha foi dada cabalmente pela mesma, quando no seu depoimento explicou que tinha ido de férias com os seus pais e deixou a chave com o A. para o mesmo dar de comer aos seus peixes.
Tendo presente que dos documentos agora juntos aos autos emerge a realização da viagem em questão, pela referida testemunha e demais familiares, entre 29/8/2019 e 5/9/2019, faz sentido que o A. tivesse consigo a chave da casa da mesma, para aí aceder diariamente e dar de comer aos peixes. E, nessa mesma medida, faz sentido que o A. se tivesse aproveitado dessa circunstância para pernoitar em casa da mesma, sem que essa situação criasse qualquer tipo de constrangimento a quem quer que fosse, por poder ser alvo de reprovação social ou familiar (recorde-se que a testemunha e a sua família estavam em viagem até 5/9/2019). Dito de forma mais simples, como o A. ia dormir sozinho em casa da sua amiga que estava em viagem de férias, não estaria colocada em causa a relação entre ambos, por qualquer comportamento pessoal que pudesse ser tido por “estranho”, por não assentar em relação de namoro ou idêntica. De todo o modo, a própria testemunha confirmou que o A. já antes tinha pernoitado em sua casa, pelo que a estranheza manifestada pelo tribunal recorrido para esse comportamento social não tem qualquer razão de ser, face à circunstância de se estar perante dois adultos, que dormem onde quiserem e como quiserem, sem que isso deva diminuir a credibilidade do que relataram.
Quanto ao motivo pelo qual o A. se aproveitou da circunstância de ter a chave da casa da testemunha, a explicação é a mais simples e, por isso, a mais plausível: tal local ficava mais próximo do local onde o A. esteve com os seus amigos, relativamente ao local onde se situa a sua casa.
Ou seja, tendo presente que se esteve perante um “jantar de amigos”, na acepção mais ampla dessa expressão, e tendo presente que o A. estava desonerado do exercício da condução, não seria de estranhar que o A. tivesse preferido “acabar a noite” em casa da sua amiga, assim se poupando (e aos seus amigos) a uma deslocação para sua casa, com a eventual sindicância de uma conduta menos “recomendável” por parte de vizinhos (incluindo os seus pais). O que é o mesmo que dizer que não causa qualquer estranheza a opção do A. de pernoitar em casa da sua actual companheira e de aí permanecer na manhã de 31 de Agosto, inclusive aí almoçando tardiamente, para o que recorreu a um serviço de entrega de refeições ao domicílio (como o comprova o documento 3 ora junto).
E torna-se assim verosímil tudo o que foi relatado pelo A., no sentido de só ao fim da tarde de 31 de Agosto ter chegado a casa e ter dado pela falta do seu veículo, no local onde o tinha deixado no final do dia anterior.
Estabelecida assim a verosimilhança das declarações do A., no que respeita ao desaparecimento do veículo e seu desconhecimento quanto à autoria desse desaparecimento, e face a tudo o que acima foi exposto, deixa de poder subsistir a valoração negativa dessas declarações, nos termos constantes da sentença recorrida, e não obstando a tanto o óbvio interesse que o A. tem na demonstração desse desaparecimento e do seu desconhecimento quanto à autoria do mesmo, pois que, como já se disse, tal circunstância, por si só, não é apta a permitir tal valoração negativa.
Acresce, ainda, que não corresponde à realidade que o A. não tenha realizado quaisquer diligências, no sentido de tentar apurar o paradeiro do veículo desaparecido.
Com efeito, e como se demonstra documentalmente, o que igualmente corrobora as declarações do A., este recorreu aos serviços da marca do veículo para tentar localizar o mesmo, o que resultou infrutífero. Do mesmo modo, o A. correspondeu a todas as solicitações da R., desde a entrega das chaves até ao cancelamento da matrícula e passando pela emissão da declaração para que a R. liquidasse a indemnização directamente à entidade que havia financiado a aquisição do veículo (a interveniente principal C.).
Aliás, e ainda no que respeita à intenção (nunca demonstrada, como já se afirmou) de o A. manter o domínio do veículo (ainda que por interposta pessoa) e, ao mesmo tempo, receber da R. a indemnização pelo seu declarado desaparecimento (e é disso que se trata quando, na sentença recorrida, se exemplifica com “situações de simulação de furto visando pretensões indemnizatórias fraudulentas”), tal só faria sentido na medida em que o A. pudesse receber tal indemnização.
Só que a existência do financiamento concedido pela C., e a subsequente necessidade de o valor indemnizatório ser entregue directamente à entidade mutuante, fazem com que a tese em questão deixe de fazer sentido. Com efeito, que retorno fraudulento lograria o A. retirar, quando nada receberia da R. e também não podia exercer os seus poderes de dono do veículo, porque não mais podia circular com o mesmo, em razão do cancelamento da matrícula respectiva? Nenhum, como se torna evidente.
Ainda que tal não tenha resultado claro da fundamentação constante da sentença recorrida (e ainda menos da posição manifestada pela R.), será que as dúvidas suscitadas sobre a circunstância em que o A. adquiriu o veículo automóvel se destinam a afirmar a existência de indícios de uma posição concertada entre o A. e a entidade vendedora do veículo, no sentido de ser obtido um qualquer benefício patrimonial com o desaparecimento do veículo, correspondente à sua venda subsequente em “mercado negro”?
Também aqui se trata de uma tese sem qualquer sustento probatório, directa ou indirectamente, e que não faz qualquer sentido. É que, a ser assim, o mais óbvio era que a posição concertada começasse logo pela circunstância de a compra e venda não ter sido feita com recurso a financiamento, mas antes pela simulação do pagamento do preço pelo A., permitindo depois às partes envolvidas nessa simulação (o A. e a entidade “vendedora”) repartir entre si o valor indemnizatório a entregar pela R.
Ou seja, o que se pretende concluir é que, para que se possa afirmar uma simulação de um furto, tem de existir um quadro circunstancial que justifique tal simulação, o qual tem de se tornar evidente em razão dos indícios que o caso manifesta. E no caso concreto os indícios que permitiam afirmar tal quadro circunstancial são omissos, nos termos que se vêm afirmando.
Do mesmo modo, não se pode aceitar a invocada falta de demonstração da situação de “grande tensão” e “alguma desorientação” do A., perante a constatação do desaparecimento do veículo, desde logo porque tais estados psicológicos não são necessariamente determinados de forma idêntica em todas as pessoas, quando colocadas perante a prática de crimes contra o seu património. Aliás, basta atentar que a circunstância de uma pessoa ter tal património garantido contra o risco do seu desaparecimento a fará encarar a situação de forma distinta, relativamente a uma outra que não tenha salvaguardado a ocorrência de tal risco, pois que para esta última a situação verificada representa uma perda total do valor do património desaparecido, o que não se verificará, relativamente à primeira.
Dito de outra forma, e transpondo tais considerações para o caso concreto, tendo o A. efectuado um contrato de seguro que salvaguardava as consequências patrimoniais da ocorrência do furto do seu veículo, necessariamente que a sua primeira preocupação era cumprir com as suas obrigações emergentes do referido contrato, fazendo a participação policial respectiva e accionando os meios de localização do veículo, em vez de “perder tempo” a falar com vizinhos e amigos próximos. E nem se diga que o A. não inquiriu o seu círculo de familiares sobre o desaparecimento do veículo, já que a sua mãe confirmou que o A. falou consigo sobre tal desaparecimento assim que chegou a casa, ao fim da tarde de 31 de Agosto.
Ou seja, também por esta via fica por afirmar a falta de verosimilhança das declarações prestadas pelo A., no sentido da constatação do desaparecimento do veículo e do desconhecimento quanto à identidade dos autores desse desaparecimento, e não sendo de acompanhar a jurisprudência mencionada na decisão recorrida, quando a partir da mesma se conclui que “a prova do furto não pode bastar-se com uma simples participação que nesse sentido é apresentada junto das autoridades policiais”.
Aliás, e como ficou já afirmado no acórdão de 22/11/2018 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado pelo ora 2º adjunto e disponível em www.dgsi.pt), bem como na restante jurisprudência aí identificada, “o segurado tem o ónus da prova de que o veículo foi furtado, mas para tal basta a existência de uma participação às autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança. É depois à seguradora que cabe a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita por aquela participação”.
Ora, no caso concreto é manifesto que a R. não fez prova de quaisquer circunstâncias capazes de afastar a referida prova de primeira aparência do furto do veículo do A., pelo que tal furto deve ser dado como provado.
Em suma, os excertos da prova gravada que foram identificados pelo A., quando conjugados com o remanescente dessa prova e com a restante prova produzida, são de molde a fazer afirmar a procedência da impugnação da decisão de facto, nesta parte, assim sendo de eliminar o ponto A. dos factos não provados, e mais sendo de aditar ao elenco dos factos provados o seguinte ponto:
26. Em 31/8/2019, entre a 1.00 h. e as 9.00 h., o veículo identificado em 1. foi furtado por desconhecidos, quando se encontrava estacionado na Rua (…), na Charneca da Caparica, junto à residência do A.
***
Depois de caracterizar o contrato celebrado entre o A. e a R. e de afirmar a necessidade de verificação do sinistro que desencadeia o direito do A. à indemnização contratual, sinistro esse que corresponde ao furto do veículo seguro, o tribunal recorrido entendeu não assistir ao A. tal direito indemnizatório, porque ficou por demonstrar a ocorrência do furto em questão.
Ora, face à factualidade apurada, tal como a mesma emerge agora do novo elenco de factos provados, não sofre qualquer controvérsia que está verificado o sinistro em questão, o qual se encontra coberto pelas garantias do contrato de seguro celebrado entre o A. e a R.
Com efeito, e como ficou afirmado na sentença recorrida, em termos que não merecem qualquer oposição, “o risco seguro realiza-se com o facto que a ele se subsume, desde que tal facto e as circunstâncias em que ocorreu coincidam com as previstas como riscos (na lei ou na Apólice) ou não coincidam com as previsões de riscos excluídos”.
Assim, e estando previsto contratualmente como risco coberto pelo seguro contratado o desaparecimento do veículo por furto do mesmo, estando verificado tal furto, e o correspondente prejuízo patrimonial, correspondente à perda total do veículo seguro, há que afirmar a obrigação contratual da R. a suportar a indemnização destinada ao ressarcimento desse prejuízo patrimonial.
***
Passando então à questão da determinação do montante indemnizatório e respectiva titularidade, a R. faz desde logo apelo às figuras do princípio indemnizatório e do sobresseguro, tal como as mesmas resultam dos art.º 128º e 132º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, para concluir que a indemnização não deve ultrapassar o valor que o veículo tinha, ao tempo do sinistro, e que se apresentaria como manifestamente inferior ao valor declarado pelo A. como valor a segurar.
Não obstante não ter resultado demonstrado que o valor de venda do veículo seguro não ultrapassava € 22.000,00, ainda assim resulta demonstrado que o veículo foi adquirido pelo A. pelo valor de € 26.500,00 (no estado de usado), mais resultando demonstrado que o valor de capital seguro inscrito pela R. nas condições particulares da apólice (no montante de € 32.029,12, correspondendo € 29.020,24 ao capital seguro do veículo e € 3.008,88 ao capital seguro a título de extras) é aquele que foi indicado pelo A. na proposta de seguro que subscreveu.
Será, então, que se pode afirmar que o valor do interesse seguro, considerado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 43º, nº 1 e 2, e 128º, ambos do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, não deve ultrapassar o valor que o A. despendeu com a aquisição do veículo?
A resposta deve ser negativa, nos termos que se passam a demonstrar.
Assim, e estando em causa um seguro facultativo do ramo automóvel, importa desde logo recorrer ao regime do D.L. 214/97, de 16/8.
Como resulta do preâmbulo do referido D.L. 214/97, está aí em causa a transparência (ou falta dela) das cláusulas contratuais gerais apresentadas pelas seguradoras e, de entre elas, “a que se refere às situações de sobresseguro, em que a aplicação menos clara de certas regras de carácter técnico, desacompanhadas da necessária informação e explicação, conduz a situações inesperadas e, por vezes, verdadeiramente injustas para os segurados no momento da liquidação das indemnizações em caso de sinistro automóvel”. Pelo que constituiu intenção do legislador “garantir uma efectiva protecção e defesa dos consumidores subscritores de contratos de seguro automóvel facultativo”, assegurando “maior transparência do clausulado das apólices de seguro em causa” e instituindo “a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio”. Do mesmo modo, e como consta de tal preâmbulo, fica garantida “a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total”, do mesmo modo que “as consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual”.
Ou seja, tratando-se de um conjunto de normas especialmente aplicáveis aos contratos de seguro automóvel facultativo, tal diploma não foi revogado pelo D.L. 72/2008, de 16/4 (que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro).
E mantendo-se em vigor o referido  D.L. 214/97, de 16/8, importa atentar no seu art.º 5º, que permite que as partes contratantes estipulem, por acordo expresso em sede de cláusulas particulares, qualquer outro valor segurável.
Do mesmo modo, resulta do seu art.º 8º o dever da seguradora fazer constar do contrato de seguro automóvel, com coberturas facultativas relativas aos danos próprios do veículo, o valor do mesmo, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total.
Assim, recuperando o disposto no art.º 131º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, de onde resulta a possibilidade de as partes acordarem no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, e conjugando tal preceito legal de carácter geral com o disposto especialmente para os contratos como o que está em causa nos autos, logo se alcança que a indicação, nas condições particulares da apólice, do montante do capital seguro, deve ser considerada como a expressão (convencional) do valor do interesse seguro atendível para cálculo da indemnização devida em caso de perda total do veículo seguro (como sucede nos casos de furto), sem perder de vista a desvalorização do mesmo, em razão da aplicação da tabela de desvalorização a que respeita o art.º 4º do D.L. 214/97, de 16/8, e sem que igualmente se possa afirmar estar colocado em causa o princípio indemnizatório.
Nesta linha de raciocínio, importa convocar o teor do acórdão de 26/1/2021 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Henrique Araújo e disponível em www.dgsi.pt), quando aí se afirma:
Segundo o princípio indemnizatório, o segurado deve ser ressarcido do prejuízo que efectivamente sofreu, não podendo o seguro constituir fonte de rendimento para os lesados. A principal finalidade desse princípio é evitar o sobresseguro e, desse modo, impedir que o segurado enriqueça com o sinistro.
Este princípio decorria do artigo 435º do Código Comercial (revogado pelo DL 72/2008) e foi transposto para a norma do artigo 128º do DL 72/2008, onde se estabelece que a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro. Esta regra é aplicável às situações de sobresseguro, por força da remissão do artigo 132º do mesmo diploma.
Mas o princípio indemnizatório não tem de ser aplicado a todas as situações de sobresseguro. Tudo dependerá do quadro contratual estabelecido pelas partes, já que o n.º 1 do artigo 131º do referido DL 72/2008, permite que, sem prejuízo do disposto no artigo 128.º e no n.º 1 do artigo anterior, as partes possam acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, desde que esse valor não seja manifestamente infundado.
Ora, como se sabe, além do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, pode ser contratado o chamado seguro de danos próprios, que abrange os prejuízos sofridos pelo veículo seguro, mediante várias coberturas.
A presente acção desenha-se precisamente no âmbito de responsabilidade contratual fundada num seguro deste tipo (danos próprios), portanto facultativo, submetido às regras contratuais convencionadas pelas partes.
Não se pode, por isso, pôr de lado o que vem disposto no DL 214/97, de 16 de Agosto (não derrogado pelo DL 72/2008), que instituiu uma série de regras destinadas a assegurar uma maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos de seguro automóvel facultativo. Nomeadamente o artigo 5º, no qual se prevê a estipulação por acordo do valor seguro, estatuindo-se que o disposto nos artigos 2º e 3º não impede as partes contratantes de estipularem, por acordo expresso em sede de cláusulas particulares, qualquer outro valor segurável”.
E aqui, como naquele caso, ficou a constar das condições particulares da apólice o valor de capital (do veículo e dos extras) indicado pelo tomador do seguro (o aqui A.), pelo que se tem o mesmo por “indubitavelmente aceite pela seguradora, que o fez inscrever na apólice, com consequente reflexo no prémio devido pelo tomador”.
Do mesmo modo, e como se conclui no acórdão de 3/5/2023 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por António Barateiro Martins e disponível em www.dgsi.pt), “Face ao que decorre do DL 214/97 – ou seja, no âmbito dos seguros que confiram coberturas facultativas a danos próprios de veículos automóveis – não é deixada à autonomia privada do tomador do seguro a indicação do valor ou capital que pretende seja considerado seguro, cabendo, isso sim, ao tomador de seguro fornecer ao segurador os elementos que permitam a este a determinação do valor da indemnização em caso de perda total e do capital seguro, tendo em conta as tabelas de desvalorização a que se refere o DL 214/97. Caso o segurador não proceda a tal determinação – caso aceite acriticamente o valor indicado pelo tomador do seguro e cobre o prémio correspondente ao valor indicado (superior ao valor do veículo) – responde, em caso de sinistro, pelo valor seguro à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à verificação desse mesmo sinistro (nos termos do art.º 3.º do DL 214/97), ou seja, satisfaz uma prestação superior ao valor do veículo (uma vez que tal art. 3.º do DL 214/97 constitui uma excepção ao “princípio indemnizatório” consagrado nos arts. 128.º, 130.º e 132.º do RJCS)”.
Do mesmo modo, ainda, como ficou afirmado no acórdão de 18/4/2013 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado pelo ora 2º adjunto e disponível em www.dgsi.pt), “o princípio indemnizatório deve ser “entendido em termos materiais”, ou seja, o que interessa não é o valor venal ou de mercado do bem, mas sim o valor de substituição”, competindo às seguradoras o “ónus de alegação e prova do valor real (de substituição) do bem”, e mais se afirmando que “embora para que haja um valor acordado não baste a aceitação da proposta do tomador pela seguradora, a situação normal, ao menos no seguro automóvel facultativo, será a de o valor seguro ser um valor acordado”.
E do mesmo modo, ainda, como ficou sumariado no acórdão de 30/1/2020 do Tribunal da Relação de Guimarães (relatado por Paulo Reis e disponível em www.dgsi.pt):
III- Em acção na qual é peticionada indemnização pela perda total do veículo seguro em consequência de furto, no âmbito de um seguro facultativo com tal cobertura, provando-se que o valor do bem objecto do seguro foi fixado por acordo das partes, correspondendo ao montante do capital seguro, não tem o segurado de provar o valor do bem na data do sinistro.
IV- Como tal, não se tendo apurado o valor real do bem à data do sinistro também não há que relegar o valor da indemnização para liquidação de sentença.
V- No contexto enunciado deve a indemnização corresponder ao valor do capital seguro, actualizado de acordo com a tabela de desvalorizações periódicas automáticas adoptada pela própria ré/recorrida para determinação do valor da indemnização em caso de perda total, sendo certo que foi em função desses elementos que a seguradora recebeu o respectivo prémio”.
Ou seja, e reconduzindo tudo o que acima ficou exposto ao caso concreto dos autos, desde logo se conclui que o valor global de capital seguro que a R. fez inscrever nas condições particulares da apólice (€ 32.029,12), correspondente ao valor indicado pelo A. na proposta de seguro (e a partir do qual a R. calculou o prémio devido pelo A.), é aquele que deve ser considerado como o valor convencionado do veículo seguro, para efeitos indemnizatórios.
E quanto à circunstância de o A. ter adquirido o veículo no estado de usado em Novembro de 2018, pelo preço de € 26.500,00, importa não perder de vista que o seguro em apreço só foi celebrado em Abril de 2019, desconhecendo-se o estado de conservação do veículo num e no outro momento. Ou seja, bem pode suceder que ao tempo da aquisição o veículo apresentasse um estado de conservação inferior ao que apresentava em Abril de 2019, o que permitiria afirmar que o A. fez aumentar o seu valor, através das intervenções a que sujeitou o veículo, destinadas exactamente a aumentar-lhe o valor através da colocação do mesmo num estado de conservação superior àquele em que se encontrava. Do mesmo modo, tendo o A. declarado um valor autónomo para os extras que o veículo apresentava, desconhece-se se tais extras já estavam incluídos no veículo quando o A. o adquiriu, ou se foram incluídos pelo A., após a aquisição, assim beneficiando o mesmo e aumentando-lhe o valor. E como está demonstrado que a R. prescindiu da realização de qualquer diligência, ao tempo da aceitação da proposta subscrita pelo A., no sentido de fixar como valor do veículo seguro qualquer outro distinto do indicado pelo A., designadamente aquele correspondente ao preço pago pelo mesmo em Novembro de 2018, a circunstância de o mesmo preço pago pelo A. ser inferior ao valor indicado pelo A. em Abril de 2019 torna-se irrelevante para a determinação do valor do interesse seguro atendível, para efeitos indemnizatórios.
Dito de outra forma, e acompanhando a jurisprudência acima identificada, tendo a R. aceite acriticamente o valor global do veículo que foi indicado pelo A., inscrevendo-o nas condições particulares da apólice como correspondendo ao valor de capital seguro (designadamente em caso de furto), em vez de contrapor qualquer outro valor, exigir ao A. que demonstrasse como havia chegado a tal valor ou providenciar por essa demonstração, é de concluir que é esse o valor do interesse seguro, para efeitos indemnizatórios.
Assim, e aplicando a tal valor (de € 32.029,12) a desvalorização de 6% identificada em 5. dos factos provados, correspondente ao quarto mês de vigência do contrato (ou seja, à data do sinistro), obtém-se um montante que ascende a € 30.107,37.
Deduzindo a tal montante a franquia contratual de € 280,00, daí resulta que o valor da prestação contratualmente devida pela R., a título de indemnização pelo furto do veículo do A., ascende a € 29.827,37.
Por outro lado, e tendo presente a cobertura complementar de indemnização extra identificada em 4. dos factos provados, daí decorre que acresce aos referidos € 29.827,37 o montante correspondente a 20% do valor do veículo à data do sinistro (ou seja, € 6.021,47). Pelo que o valor global da indemnização devida pela R. ascende a € 35.848,84.
Já quanto aos restantes montantes parcelares indemnizatórios identificados pelo A. na P.I., pese embora esteja demonstrado que o A. pagou o IUC do veículo em Fevereiro de 2020, no montante de € 224,33, e que suportou € 28,00 com a emissão de declaração de não recuperação do veículo e cancelamento da matrícula do mesmo, não emerge do clausulado contratual a obrigação da R. de suportar tais montantes, em caso de furto do veículo.
Ou seja, o valor indemnizatório global devido pela R. não ascende aos peticionados € 41.332,18, mas tão só aos referidos € 35.848,84, e sendo que tal valor indemnizatório não é integralmente devido ao A., mas apenas na parte remanescente, que não se destine à satisfação do crédito da interveniente principal, face à reserva de propriedade sobre o veículo de que a mesma é titular, constituída em garantia do cumprimento da obrigação do A. de restituição do capital mutuado pela referida interveniente principal.
***
Em suma, a sentença recorrida não é de manter, antes havendo que revogar a mesma e condenar a R. no pagamento da quantia de € 35.848,84, sendo da mesma quantia devida à interveniente principal a parte destinada à amortização do capital mutuado ao A. e ainda em dívida, e sendo devida ao A. a parte remanescente, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação e até integral pagamento.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso do A. e revoga-se a sentença recorrida, que se substitui por esta outra decisão em que se julga a acção parcialmente procedente e, em consequência, se condena a R. a pagar ao A. e à interveniente principal a quantia de € 35.848,84 (trinta e cinco mil oitocentos e quarenta e oito euros e oitenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação e até integral pagamento, na seguinte proporção:
a) Relativamente à interveniente principal, é devida a parte destinada à amortização do capital mutuado ao A. e ainda em dívida no momento do pagamento, e respectivos juros de mora;
b) Relativamente ao A., é devida a parte remanescente e respectivos juros de mora.
No mais peticionado, vai a R. absolvida do pedido.
As custas da acção e do recurso são suportadas por A. e R. na proporção do decaimento, que se fixa em 13,27% para o A. e em 86,73% para a R.

7 de Março de 2024
António Moreira
José Manuel Monteiro Correia
Pedro Martins