Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
384/19.7T8VFX.L1-4
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: ACÇÃO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
APENSO PARA FIXAÇÃO DE INCAPACIDADE
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: Em processo emergente de acidente de trabalho, atento o disposto nos arts. 135.º e 140.º, n.º 2 do CPT, bem como no art.º 613.º do CPC, o tribunal não pode decidir no processo principal o que está ou devia estar decidido na decisão já proferida no incidente de fixação de incapacidade, em atenção ao princípio elementar da imediata extinção do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
AA intentou acção emergente de acidente de trabalho contra COMPANHIA DE SEGUROS ALLIANZ PORTUGAL, S.A. e Associação X, pedindo a condenação das Rés nos seguintes termos:
a) Reconhecerem a IPP de 30% já determinada pela perícia médico legal, a partir da data da alta ocorrida em 19/07/2022;
b) Reconhecerem que a Sinistrada esteve com ITA de 27/09/2018 a 19/07/2022;
c) Pagarem à Sinistrada as indemnizações temporárias devidas até 19/07/2022, data da alta, encontrando-se em dívida a este título a quantia global de €29.869,03, acrescida dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa de juro de 4%;
d) Pagarem à Sinistrada a quantia de €26,50 referente a despesas de transportes, nas deslocações obrigatórias ao Tribunal e para realização da perícia médica;
e) Pagarem à Sinistrada as despesas por esta suportadas para a sua reabilitação no valor de € 1748,29, acrescido dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa de juro de 4%;
f) Pagarem à Sinistrada, a título de danos não patrimoniais, a quantia de €67.765,30.
Para o efeito alega, em suma, que sofreu um acidente de trabalho em 26/09/2018, tendo sofrido rotura do menisco interno com tendinite da pata de ganso, padecendo de IPP de 30% e dos períodos de incapacidades temporárias reconhecidas no exame médico singular. Mais alega que, após alta da entidade seguradora, tentou retomar as suas funções como auxiliar de acção educativa, o que se mostrou impossível com as limitações de que padece, permanecendo, por isso, de baixa médica desde Fevereiro de 2019. Acresce que a sinistrada recorreu a expensas suas a consultas e tratamentos médicos. A não regularização do sinistro implicou sequelas psicológicas para a sinistrada, tendo ainda exigido a contratação de auxiliar para as tarefas diárias.
O Instituto da Segurança Social, I.P. veio deduzir pedido de reembolso contra as Rés, alegando que, no período compreendido entre 26 de Fevereiro de 2019 e 27 de Fevereiro de 2022 (data em que atingiu o limite de concessão – 1095 dias), pagou à Autora o montante de €34.153,52, bem como as prestações compensatórias de subsídio de Natal de 2019 e de subsídios de férias e de Natal de 2020 e 2021, no valor de €2.359,65.
A Ré ALLIANZ veio apresentar contestação, mantendo a posição já expressa na fase conciliatória, ou seja, aceitando o acidente de trabalho e o nexo de causalidade com as lesões e sequelas constantes da nota de alta mas não com as demais reconhecidas no exame médico singular. Mantém que a data da alta da sinistrada é 22/01/2019, a partir da qual as lesões da sinistrada consolidaram com IPP de 3%.
A Ré Associação X apresentou contestação, excepcionando a sua ilegitimidade passiva e impugnando a factualidade alegada pela Autora.
Foi proferido despacho saneador, em que, além do mais, a Ré Associação X foi absolvida da instância por ilegitimidade passiva e a Ré ALLIANZ foi absolvida da instância quanto ao pedido de indemnização de danos não patrimoniais.
Procedeu-se à organização da matéria de facto assente e dos temas da prova.
Procedeu-se ao desdobramento do processo para fixação da incapacidade da sinistrada no respectivo apenso, no qual foi proferida decisão final em 24/04/2023, nos seguintes termos:
«(…)
IV. Fundamentação da matéria de facto:
Factos provados:
A. O Autor padece de uma IPP de 6%.
*
Motivação:
Para formação da sua convicção o tribunal atendeu ao relatório pericial, junto aos autos, inexistindo quaisquer elementos que levem o tribunal a divergir dos respetivos resultados.
*
V. Enquadramento jurídico:
Neste apenso cabe, apenas, a fixação da natureza e grau de incapacidade (já que as demais questões serão resolvidas no processo principal).
Da análise da factualidade provada constata-se que a Autora padece de uma IPP de 6% desde a data da alta.
***
VI. Decisão:
Pelos fundamentos de facto e de direito supra expostos, o tribunal julga o Autor afetado de uma IPP de 6% desde a data da alta.
Notifique.»
Após audiência de julgamento, foi proferida sentença em 16/08/2023, que terminou com o seguinte dispositivo:
«Por todo o exposto:
a) Fixa-se a Incapacidade Permanente Parcial (IPP) da sinistrada em 30% (desde 19/07/2022).
b) Condena-se a Ré COMPANHIA DE SEGUROS ALLIANZ PORTUGAL, S.A. a pagar à Sinistrada, deduzidos os valores a pagar ao ISS, IP:
- Quanto à IPP, uma pensão anual e vitalícia no montante de €2.405,77;
- €26,50 € a título de despesas de transporte;
- €558,17a título de reembolso com despesas médicas e medicamentosas;
- Juros de mora, à taxa legal, desde a data em que as obrigações se venceram até integral pagamento.
b) Condena-se a Ré COMPANHIA DE SEGUROS ALLIANZ PORTUGAL, S.A. no reembolso das pensões pagas pelo ISS, IP, no valor €36.513,17, acrescido de juros de mora desde a data da notificação do pedido da segurança social e até integral pagamento, até ao limite das indemnizações devidas ao sinistrado.
Nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 1.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho, será a Autora e a Seguradora responsáveis pelo pagamento das custas processuais na proporção do decaimento, sendo a Autora responsável por 55,50% e a Entidade Seguradora por 44,50%.»
A Ré ALLIANZ interpôs recurso da sentença, formulando, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
«1. Vem a presente apelação interposta da douta sentença de fls. , que declarou a sinistrada afectada de uma incapacidade permanente parcial de 30%, após um período de ITA compreendido entre 27/09/2018 e 19/07/2022 e, em consequência condenou a ora apelante a correspondente pensão anual e vitalícia, indemnizações por ITA e despesas médicas posteriores à data da alta, bem como no reembolso ao ISS, IP, das pensões por este pagas à sinistrada.
2. Salvo o devido respeito, entende a ora recorrente que a douta decisão recorrida decidiu mal ao considerar, assentando numa errada decisão proferida sobre a matéria de facto (decisão essa que, no entendimento da apelante, não se adequa à prova produzida), que a sinistrada se encontra afectada de incapacidade parcial permanente para o trabalho (IPP) de 30%, que teve alta em 19/07/2022, que sofreu um período de incapacidade temporária absoluta para o trabalho (ITA) de 1392 dias e que despendeu 558,17€ com despesas médicas e medicamentosas devidas ao acidente de trabalho dos autos – com as respectivas consequências patrimoniais – bem como ao julgar que o ISS, IP, tem direito a reembolsar da ora recorrente o montante das pensões por este pagas à autora, até ao limite das indemnizações devidas a esta e não pagas pela recorrente.
3. Na verdade, a decisão sobre matéria de facto pertinente àquela decisão não corresponde àquilo que, efectivamente, se provou no presente processo, pelo que a ora apelante pretende que sejam alterados alguns dos factos dados como provados – como o permite o facto de constarem do processo todos os meios de prova relevantes para essas decisões – a saber (respeitando a numeração da douta sentença relativa aos factos dados como provados):
“13. Como consequência direta e necessária do sinistro a Autora esteve em ITA de 27/09/2018 a 19/07/2022.
14. Como consequência direta e necessária do sinistro a Autora encontra-se afetada por uma IPP de 30,00%.
17. Com vista à sua reabilitação com recurso a acompanhamento externo, despendeu a Sinistrada da quantia de €558,17.”.
4. Ora, nunca poderia ter sido julgado provado que “14. Como consequência direta e necessária do sinistro a Autora encontra-se afetada por uma IPP de 30,00%.“, uma vez que, por despacho proferido no apenso de fixação de incapacidade pelo Mtº Juiz recorrido, em 14 de Abril de 2023 e com a referência 156508840, foi julgado provado que a autora “padece de uma IPP de 6%” e proferida decisão que julgou a autora afectada de uma IPP de 6% desde a data da alta,
5. Pelo que, proferida esta decisão naquele apenso, esgotou-se o poder jurisdicional do Mtº Juiz quanto à questão da natureza e grau da IPP da sinistrada, pelo que não podia o Mtº Juiz recorrido ter decidido de forma diversa na douta sentença recorrida, em contradição com a decisão anterior, sob pena de violar o disposto no art.º 625º-2 do Código de Processo Civil (CPC) e no art.º 140º do Código de Processo do Trabalho (CPT).
6. Assim, deve ser eliminado da factualidade dada como provada o facto constante do ponto 14 da fundamentação de facto da douta sentença recorrida, passando a ser a seguinte a redacção desse ponto 14: “14. Como consequência direta e necessária do sinistro, a Autora encontra-se afectada por uma IPP de 6,00%.”
7. Mas mesmo que, por absurdo, assim se não entendesse e se considerasse que o Mtº Juiz recorrido podia alterar a decisão constante do apenso de fixação de incapacidade, também não poderia ser julgado provado que “14. Como consequência direta e necessária do sinistro a Autora encontra-se afetada por uma IPP de 30,00%.”.
8. Com efeito, para fundamentar a decisão quanto a esta matéria de facto, o Mtº Juiz recorrido baseou-se na “perícia por junta médica de especialidade de ortopedia, e da conjugação da perícia singular” e no depoimento do médico, Dr. BB, que procedeu à intervenção cirúrgica à autora e que “explicitou que foi proposta uma cirurgia para corrigir a rutura do menisco, posteriormente foram realizadas duas artroscopias (realce nosso).”.
9. Ora, a perícia singular entendeu – embora sem o justificar – que a artoplastia do joelho se devia ao acidente de trabalho, pelo que lhe atribuiu uma IPP de 30%, e que, com base nas “baixas médicas” emitidas pelo médico de família, a autora sofrera um período de ITA desde 27/09/2018 (dia seguinte ao do acidente) até 19/07/2002, embora, contraditoriamente, também tenha entendido que nesse período de ITA se incluíam os períodos de ITP atribuídas pelos Serviços Clínicos da ora recorrente (de 20% entre 08/01/2019 e 21/01/2019 e a 5% no dia 22/01/2019, data da alta)…
10. Entendimento este que foi completamente refutado pelo resulta da perícia por Junta Médica de Ortopedia, que concluiu por unanimidade que, em consequência do acidente, a sinistrada apenas sofrera artrose do compartimento interno do joelho esquerdo e que esta não agravara as alterações degenerativas que já afectavam a autora à data do acidente, atribuindo-lhe a IPP de 6% desde a data da alta, que fixou em 21/01/2019.
11. Aliás, também assim o entendeu o Mtº Juiz a quo, que deu como provados, nos pontos 9 e 10 dos factos considerados provados que “9. Como consequência direta e necessária do sinistro a Autora sofreu artrose do compartimento interno do joelho esquerdo. 10. A Autora apresentava à data do sinistro alterações degenerativas evidenciadas numa fratura transversal do menisco interno do joelho esquerdo.”
12. E que considerou, no ponto 1 dos factos não provados, não se ter provado que “Em consequência do sinistro, a sinistrada sofreu rotura do menisco interno com tendinite da pata de ganso.”
13. Assim, também não se poderia extrair do depoimento da testemunha Dr. BB qualquer trecho que possa justificar o nexo causal entre as intervenções cirúrgicas – incluindo a artrosplastia total do joelho que determinou a IPP de 30% – e o acidente de trabalho, uma vez que resulta claro deste depoimento que todas as intervenções cirúrgicas foram efectuadas para “corrigir a rutura do menisco”, sendo que a realização de cada uma delas se tornou necessária devido à ineficácia da anterior para resolver a situação resultante da rutura do menisco e que, como já se referiu e encontra provado, essa rutura do menisco é anterior à data do sinistro e não foi por ele agravada.
14. Apesar de considerar que “da perícia resulta que a lesão do menisco teria natureza degenerativa” e de transcrever a resposta dada pela Junta Médica ao quesito 7 – que afasta por completo que do acidente de trabalho tenha resultado agravamento da lesão degenerativa já apresentada pela autora –, o Mtº Juiz recorrido conclui (“Considerando o disposto no n.º2 cumpre notar que a situação degenerativa do joelho da Autora foi agravada pelo sinistro”) pela existência desse agravamento em virtude de o art.11.º-2, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro (LAT) dispor que “Quando a lesão ou doença consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior, ou quando esta for agravada pelo acidente, a incapacidade avaliar-se-á como se tudo dele resultasse, a não ser que pela lesão ou doença anterior o sinistrado já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital de remição nos termos da presente lei.”.
15. Ou seja, serve-se deste dispositivo legal para presumir e dar como provado o agravamento da lesão degenerativa em consequência do acidente, quando, ao invés, este apenas pode ser aplicado depois de provado esse agravamento…
16. Assim, nunca poderia ser julgado provado o facto descrito sob o nº14 da fundamentação de facto da douta sentença, uma vez que os 30% de IPP aí referidos só poderiam ser considerados se a lesão degenerativa apresentada pela autora antes do acidente tivesse sido por este agravada.
17. Razão por que, também nesta hipótese de se não atender à primeira decisão proferida quanto à IPP que afecta a sinistrada – absurda, como se referiu e que apenas se considerou como mera hipótese académica – deve ser eliminado da factualidade dada como provada o facto constante do ponto 14 da fundamentação de facto da douta sentença recorrida, passando a ser a seguinte a redacção desse ponto 14: “14. Como consequência direta e necessária do sinistro, a Autora encontra-se afectada por uma IPP de 6,00%.”
18. Também nunca poderia ter sido julgado provado que “13. Como consequência direta e necessária do sinistro a Autora esteve em ITA de 27/09/2018 a 19/07/2022”, face aos factos que devem ser considerados provados.
19. Com efeito, e como já acima se referiu relativamente à matéria de facto constante do seu ponto 14., para fundamentar a decisão quanto a esta matéria de facto, o Mtº Juiz recorrido baseou-se na “perícia por junta médica de especialidade de ortopedia, e da conjugação da perícia singular” e no depoimento do médico, Dr. BB, que procedeu às intervenções cirúrgicas à autora.
20. Remetendo para as considerações então feitas, forçoso é concluir que o exame pericial por Junta Médica, da especialidade de Ortopedia, é o único meio de prova que deve ser tido em consideração para a determinação da data da alta e dos períodos de incapacidade temporária sofrida pela autora e imputáveis ao acidente dos autos, uma vez que apenas a perícia singular e a perícia por Junta Médica se pronunciaram quanto aos períodos de incapacidade temporária e data da alta.
21. Face aos restantes factos provados e ao resultado da Junta Médica, integralmente acolhido pelo Mtº Juiz recorrido no apenso de fixação de incapacidade (“Para formação da sua convicção o tribunal atendeu ao relatório pericial, junto aos autos, inexistindo quaisquer elementos que levem o tribunal a divergir dos respetivos resultados”), terá de ser dado como provado (por resultar da referida Junta Médica) ter ocorrido em 22/1/2019 a alta da sinistrada e que as lesões por esta sofridas no acidente de trabalho em causa nos autos originaram um período de ITA entre o dia seguinte ao do acidente e a data da alta, num total de 118 dias
22. Assim, deve ser eliminado da factualidade dada como provada o facto constante do ponto 13 da fundamentação de facto da douta sentença recorrida, passando a ser a seguinte a redacção desse ponto 13: “13. Como consequência directa e necessária do sinistro a Autora esteve em ITA de 27/09/2018 a 22/01/2019, num total de 118 dias.”
23. Não podia também ter sido julgado provado que “17. Com vista à sua reabilitação com recurso a acompanhamento externo, despendeu a Sinistrada da quantia de €558,17.”.
24. Com efeito, o Mtº Juiz recorrido deu como provado que a sinistrada despendera 558,17€ em consultas, intervenções cirúrgicas e medicamentos necessárias à sua reabilitação da lesão em causa nos autos, baseando-se, designadamente, nos documentos juntos a fls: 287, 286, 284, 281, 283, 280, 276, 260, 259, 256, 249, 228, 227, 226, 225, 349, 348, 350, 351, 352, 353, 355, 298, 293, 322, 295, 297, 326, 325, 328, 329, 321, 319, 317, 316, 315, 314, 313, 311, 312, 310, 309, 305, 306, 300, 301, 302, 303, 299.
25. Sendo essa decisão, de tais despesas serem relacionadas com a lesão em causa nos autos, assente na consideração de que a acima referida rutura do menisco era consequência do acidente dos autos e de que só fora dada alta à sinistrada no dia 19/07/2022.
26. Ora, como resulta da alteração da matéria de facto acima propugnada, a lesão sofrida pela autora no acidente de trabalho dos autos foi exclusivamente a artrose do compartimento interno do joelho esquerdo, que não agravou qualquer lesão anterior da sinistrada, e foi considerada curada, com uma IPP de 6%, a partir de 22/01/2019, data da alta.
27. Compulsando os documentos juntos aos autos e referenciados na douta sentença para justificação do montante apurado com despesas médicas, constata-se que são, todos eles, posteriores à data da alta, 22/01/2019, pelo que a ora apelante não tem qualquer responsabilidade pelo pagamento à autora dessas quantias, tendo-lhe prestado toda a assistência médica e medicamentosa até à data da alta.
28. Assim, deve ser eliminada a totalidade da matéria de facto dada como provada no ponto 17 da fundamentação de facto da douta sentença recorrida, passando tal matéria de facto a integrar o ponto 2. dos factos não provados, que deverá passar a ter a seguinte redacção: “2. Com vista à sua reabilitação com recurso a acompanhamento externo, despendeu a Sinistrada da quantia de €2.306,46 (dois mil trezentos e seis euros e quarenta e seis cêntimos).”
29. Por outro lado, verifica-se que, embora com relevância também para a decisão da presente acção, não foi contemplada na decisão da matéria de facto a indemnização por incapacidades temporárias já pagas pela ora apelante à autora.
30. Com efeito, consta do auto da tentativa de conciliação, na petição inicial (art.º 44º) e na contestação da ora apelante (art.º 12.) que esta já pagou à autora a quantia de 2.325,88€, a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária por esta sofridos, montante aceite por todas as partes.
31. Assim, deverá ser aditada à matéria de facto considerada provada um novo ponto (que será o 17. face à eliminação do anterior ponto da matéria de facto com este número), com a seguinte redacção: “A Companhia de Seguros Allianz Portugal, S. A. já pagou à autora, a título de indemnização por incapacidades temporárias, a quantia de 2.325,88€ (dois mil trezentos e vinte e cinco euros e oitenta e oito cêntimos).”.
32. Assim, ao decidir que a sinistrada, em consequência do acidente dos autos, está sinistrada afectada de uma incapacidade permanente parcial de 30%, após um período de ITA compreendido entre 27/09/2018 e 19/07/2022 e ao decidir, em consequência, que a sinistrada tem direito a uma pensão anual e vitalícia de 2.405,77€ e a 32.194,61€ de indemnização por ITA, bem como à quantia de 558,17€ por assistência médica e medicamentosa, a douta sentença recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no art.º 625º-2 do Código de Processo Civil e no art.º 140º do Código de Processo do Trabalho, bem como no art.º 10º- 1 e 2 da Lei 98/2009, de 4 de Setembro,, pelo que essas decisões devem ser revogadas e substituídas por outra que julgue que a sinistrada apenas sofreu, em consequência do acidente dos autos, apenas está afectad por uma IPP de 6% e sofreu um período de ITA entre o dia 27/09/2018 e 22/01/2022, absolvendo a ora apelante dos restantes pedidos contra si formulados.
33. A douta sentença recorrida, deverá também ser revogada na parte em que decide condenar a ora recorrente a reembolsar o Instituto da Segurança Social, I. P., das pensões por este pagas à autora, “no valor € 36.513,17, acrescido de juros de mora desde a data da notificação do pedido da segurança social e até integral pagamento, até ao limite das indemnizações devidas ao sinistrado.”
34. Com efeito, e como resulta da sentença recorrida, esta decisão de condenação no reembolso ao ISS, IP, da quantia de 36.513,17€ assenta na matéria de facto dada como provada nos pontos 7 e 13 da matéria de facto dada como provada: “7. O Instituto da Segurança Social, I.P., pagou à Autora no período compreendido entre 26 de fevereiro de 2019 a 27 de fevereiro de 2022, o montante de €34.153,52 (trinta e quatro mil, cento e cinquenta e três euros e cinquenta e dois cêntimos), bem como as Prestações Compensatórias de Subsídio de Natal de 2019, Subsídio de Férias e Natal de 2020 e de 2021, no valor de €2.359,65 (dois mil, trezentos e cinquenta e nove euros e sessenta e cinco cêntimos).” “13. Como consequência direta e necessária do sinistro a Autora esteve em ITA de 27/09/2018 a 19/07/2022.”
35. Com base nestes factos e invocando o disposto no art.º 7º-1 e 3 do Decreto-Lei 28/2004, de 4 de Fevereiro, a douta sentença recorrida condenou a ora recorrente a reembolsar o ISS de todas as quantias por este pagas ao sinistrado, no referido total de 36.513,17€, até ao limite das indemnizações devidas à sinistrada, que considerara ser 32.194,61€, por força do período de ITA que julgou compreendido entre 27/09/2018 e 19/07/2022.
36. O referido art.º 7º do Decreto-Lei 28/2004, de 4 de Fevereiro, dispõe, nos citados nºs 1 e 3, que: “1 - Nas situações de incapacidade temporária para o trabalho decorrentes de acidente de trabalho ou de acto da responsabilidade de terceiro, pelo qual seja devida indemnização, há lugar à concessão provisória de subsídio de doença enquanto não se encontrar reconhecida a responsabilidade de quem deva pagar aquelas indemnizações. … 3 - Sempre que seja judicialmente reconhecida a obrigação de indemnizar, as instituições de segurança social têm direito ao reembolso dos valores correspondentes à concessão provisória do subsídio de doença até ao limite do valor da indemnização.”.
37. Por sua vez, o art.º 70º da Lei 4/2007, de 16 de Janeiro, com as alterações introduzidas pela Lei 83-A/2013, de 30 de Dezembro, estipula que “No caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder.”
38. Por sua vez, o art.º 1º do Decreto-Lei 59/89, de 22 de Fevereiro, determina “1 - Em todas as acções cíveis em que seja formulado pedido de indemnização de perdas e danos por acidente de trabalho ou acto de terceiro que tenha determinado incapacidade temporária ou definitiva para o exercício da actividade profissional, ou morte, o autor deve identificar na petição a sua qualidade de beneficiário da Segurança Social ou a do ofendido e a instituição ou instituições pelas quais se encontra abrangido 2 - As instituições de segurança social competentes para a concessão das prestações são citadas para, no prazo da contestação, deduzirem pedido de reembolso de montantes que tenham pago em consequência dos eventos referidos no número anterior. 3 - A apresentação do pedido de reembolso é notificada às partes, que poderão, nos oito dias subsequentes, responder o que se lhes oferecer. 4 - Todas as provas devem ser oferecidas com a petição e as respostas. 5 - Se o autor não tiver dado cumprimento ao disposto na parte final do n.º 1, deve o juiz convidá-lo a fazê-lo no prazo que lhe fixar, sob pena de a instância ficar suspensa, findo esse prazo.”
39. Estando expressamente previsto no art.º 4º-1 desse mesmo diploma lega que “1 - Os devedores da indemnização são solidariamente responsáveis, até ao limite do valor daquela, pelo reembolso dos montantes que tenham sido pagos pelas instituições.” (realces nossos).
40. Resulta claro da legislação acima referida que a recorrente apenas está obrigada a reembolsar o ISS de quantia a fixar até ao limite do valor da indemnização que teria de pagar ao sinistrado a título de indemnização por incapacidades temporárias , uma vez que é neste direito do sinistrado que o ISS está sub-rogado (art.º 70º da Lei 4/2007, de 16 de Janeiro).
41. A apelante, na sua qualidade de seguradora de acidentes de trabalho, apenas é responsável pelo pagamento à sinistrada das indemnizações pelos períodos de incapacidade temporária sofridos por este em consequência do acidente de trabalho.
42. Como resulta da pretendida alteração da matéria de facto contida no ponto 13 da douta sentença, como consequência direta e necessária do sinistro a autora esteve em ITA de 27/09/2018 a 22/01/2019, pelo que o ISS não tem direito a qualquer reembolso por parte da apelante uma vez que, quanto a este período nada pagou à sinistrada, só tendo começado a pagar-lhe pensão a partir de 26/02/2019, data posterior à da alta, como resulta da pretendida alteração da matéria de facto.
43. Assim, a decisão de condenar a recorrente a pagar ao ISS a quantia de 36.513,17 €, a título de reembolso pelas prestações por doença por este pagas à sinistrada, viola o disposto nos arts. 1º e 4º do Decreto-Lei 59/89, de 22 de Fevereiro, e no art.º 70º da Lei 4/07, de 16 de Janeiro, com as alterações introduzidas pela Lei 83-A/2013, de 30 de Dezembro, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que absolva a apelante da totalidade do pedido deste Instituto»
A Autora apresentou resposta ao recurso da Ré, pugnando pela sua improcedência, formulando as seguintes conclusões:
«A) A douta Sentença é objecto de recurso por parte da ora recorrente, maioritariamente por não se conformar com a IPP de 30% atribuída à sinistrada ora recorrida.
B) Sucede, porém, que numa primeira fase, foi realizada uma perícia médica singular no Gabinete Médico Legal de Vila Franca de Xira, onde foi reconhecida à sinistrada e o ora recorrida, uma IPP de 30%, a partir da data da alta, que se verificou em 19/07/2022.
C) Contrariamente, a Ré e ora recorrente, atribuiu à sinistrada uma IPP de 3%.
D) Tal discrepância deu origem à realização de um auto de exame, por junta médica (especialidade ortopedia), realizado em 22/03/2023, no edifício do Tribunal a quo, onde se encontrava o Exmo. Senhor Juiz de Direito deste Tribunal – Dr. Rúben Oliveira Juvanes – e teve como peritos médicos a Dra. CC, Dr. DD e a Prof. Doutora EE.
E) A sinistrada e ora recorrida, foi avaliada tendo daí resultado uma IPP de 6%, tendo sido pelo Meritíssimo Juiz declarado encerrado o exame por junta médica.
F) Com base no supra referido exame, teve o Meritíssimo Juiz que proferir Sentença, por se tratar de uma fixação de incapacidade, que correu autonomamente, como Apenso aos presentes autos.
G) Pela natureza do Apenso, o mesmo teve que decidir, única e exclusivamente, com base no exame realizado e com os fundamentos apresentados pelos Senhores peritos médicos, não significando isso que, o Meritíssimo Juiz estivesse de acordo com a IPP fixada pelo exame realizado por junta médica, mas à data, e porque ainda estaria por realizar o julgamento nestes autos, este baseou-se no único elemento de prova que despunha para o efeito, razão pela qual, na douta Sentença, é essa a motivação que a justifica.
H) Assim, considerando a impossibilidade processual de recurso da Sentença de fixação de incapacidade (Apenso A), que apenas nesta fase processual é admitido, compreende-se, pelo espírito da lei, o porquê de a mesma ser susceptivel de recurso nesta fase, porquanto, realizado que foi o julgamento, foram produzidas provas, que permitem ao Meritíssimo Juiz, concluir que a incapacidade fixada no Apenso A, é manifestamente reduzida para a real situação da sinistrada e que lhe permite, com maior convicção, ajustar o grau de incapacidade da sinistrada ao seu real estado de saúde.
I) O que fez, na douta Sentença proferida no destes autos.
J) Ou seja, não se poderá igualar o nível de prova existente aquando da douta Sentença para a fixação do grau de incapacidade, com o grau de prova existente aquando da douta Sentença proferida no âmbito destes autos, pois não obstante outras questões existissem para dirimir, deixaria de fazer sentido a necessidade de realização de julgamento destes autos, no que a esta questão respeita.
K) Razão pela qual, permite a lei, no seu artigo 140º nº 2 do Código do Processo de Trabalho, a existência de recurso quanto ao grau de incapacidade fixado por Apenso, pois já se encontra realizado o julgamento destes autos principais, e consequentemente, conhecidos os demais elementos de prova, devidamente avaliados pelo Meritíssimo Juiz, que conjugados com o único elemento de prova existente, poderão abalar aquela que foi a decisão (numa fase prematura), proferida no âmbito do Apenso A (fixação da incapacidade).
L) Ora, não obstante o auto de fixação do grau da incapacidade ser um elemento de prova de manifesta relevância, não significa que no decurso do julgamento, não se possa produzir prova bastante suscetível de o abalar.
M) Até porque, a prova faz-se em sede de audiência de discussão e julgamento.
N) Nesta conformidade, realizada que foi a audiência de discussão e julgamento, e consequentemente, produzida toda a prova de que a sinistrada e ora recorrida dispunha, e porque a esta cabia tal ónus, é de se concordar integralmente, com douta Sentença ora recorrida.
O) Somos de concluir que, após produção da prova em sede de audiência de discussão e julgamento, que o grau de incapacidade fixado à ora recorrida, no âmbito do Apenso A, se encontrava muito aquém da realidade do estado de saúde em que a sinistrada se encontra, como resultado do acidente de trabalho de que foi vítima.
P) Assim, e conhecendo-se agora a decisão proferida no âmbito destes autos, e após a avaliação de toda a prova aí produzida, dúvidas não subsistem que, o grau de incapacidade a atribuído à sinistrada e ora recorrida, jamais se poderia ter fixado ou mantido, naquele que foi fixado no Apenso para fixação do grau de incapacidade.
Q) Não se podendo deixar de concordar, que o real estado de saúde da sinistrada se coaduna com o grau de incapacidade que lhe foi atribuído pela douta Sentença proferida nos presentes autos, que de resto corresponde aquele que foi peticionado para lhe ser reconhecido e que lhe havia sido determinado ad initio pelo médico do gabinete médico legal do Tribunal a quo.
R) Tanto mais, que o Meritíssimo Juiz que proferiu a douta Sentença no âmbito do Apenso A, foi o mesmo que proferiu a douta Sentença no âmbito do processo principal, não lhe tendo suscitado quaisquer dúvidas, após conjugação de toda a prova produzida, em alterar e ajustar o grau de incapacidade a atribuir à sinistrada, por ser esta merecedora de tal grau de incapacidade, por corresponder este à sua real condição física, decorrente do acidente de trabalho que a vitimizou, com efeitos a partir da data da alta ocorrida em 19/07/2022.
S) Ainda, como consequência direta e necessária do sinistro, entende-se que a ora recorrida, encontra-se perfeitamente afetada por um grau de IPP de 30,00%, grau este, inequivocamente ajustado à sua realidade actual, não sendo por acaso que a mesma, ainda se encontra de baixa médica desde fevereiro de 2019 até à presente data, porquanto a sua condição actual impossibilita-a de realizar determinadas tarefas domésticas, quanto mais profissionais.
T) De referir ainda, que sinistrada e ora recorrida, desde a data do acidente submeteu-se a diversas consultas, exames médicos, tratamentos e a três cirurgias, com vista à sua reabilitação com recurso a acompanhamento externo, situação que ainda actualmente se mantém.
U) Da perícia realizada resulta que a lesão do menisco teria natureza degenerativa.
V) Contudo, resulta igualmente provado, que foi no joelho com problema degenerativo que a ora recorrida sofreu o sinistro.
W) Considerando o disposto no nº 2 do artigo 11º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, cumpre notar que a situação degenerativa do joelho da ora recorrida foi agravada pelo sinistro, por outro lado, não resultam dos autos evidências, que a sinistrada e ora recorrida tivesse beneficiado anteriormente de períodos de baixa médica, de serviços adaptados ou tivesse apresentado qualquer limitação funcional, na sequência do problema degenerativo de que alegadamente padecia.
X) De resto, até ao sinistro, nunca a ora recorrida viu a vida minimamente limitada, por quaisquer problemas no joelho vitimado pelo acidente de trabalho ocorrido.
Y) A sua situação de baixa médica, cujos comprovativos se encontram juntos com a petição inicial no âmbito dos presentes autos, só passaram a existir após o acidente de trabalho e como causa resultante desse mesmo acidente de trabalho – lesão no joelho.
Z) Com a realização da audiência de discussão e julgamento, fez-se prova cabal que, sem prejuízo da alegada situação degenerativa, que a ora recorrida padecia, o sinistro foi uma ocorrência disruptiva na capacidade produtiva e de trabalho da sinistrada e ora recorrida.
AA) Na verdade, se anteriormente a ora recorrida funcionava e trabalhava, ainda que alegadamente, com o joelho frágil, o sinistro veio destabilizar o joelho e foi causa sine qua non da limitação funcional que a ora recorrida atualmente apresenta.
BB) Até se concluir pela realização da cirurgia, foi a ora recorrida, através do seu médico assistente, Dr. BB, (testemunha no âmbito dos presentes autos), submetida a tratamentos conservadores, nomeadamente fisioterapia e infiltrações, que não surtiram qualquer resultado de melhoramento no estado de saúde da sinistrada.
CC) Devido à continuidade sintomatológica foi proposta, pelo supra referido médico, a realização de uma cirurgia mais definitiva por causa da lesão da cartilagem, cirurgia essa que foi a artroplastia de substituição com a colocação de prótese, tendo como consequência actual, que a ora recorrida já não mantém a mesma estrutura anatómica.
DD) No entanto, reitera-se, que esta cirurgia foi a ultima ratio com vista a minimiar o sofrimento da ora recorrida.
EE) Nestes termos, não se poderá, jamais, deixar de considerar, que as limitações da ora recorrida, decorreram diretamente do sinistro.
FF) No caso em concreto, e após a realização da audiência de discussão e julgamento e, consequentemente da prova cabal aí produzida, a ora recorrida, provou inequívoca e inabalavelmente, o nexo causal entre as lesões e o sinistro, bem como, que a alegada condição degenerativa de que a ora recorrida supostamente padecia, foi manifestamente agravada pela ocorrência do sinistro.
GG) No caso em concreto, inexistindo qualquer incapacidade anteriormente fixada, inexistindo histórico clínico ou quaisquer queixas por parte da ora recorrida no que respeita à parte corporal sinistrada, ao agravamento da saúde e condição sofrida pela mesma, impõe-se fixar uma IPP, como se tudo resultasse do sinistro, e que da forma minuciosa como são descritas as lesões, da forma cabal como foram provadas, bem como a situação actual da sinistrada e ora recorrida, coaduna-se claramente com um grau de IPP a fixar-se nos 30%, não sendo este grau de incapacidade tido como absurdo.
HH) Claramente, dúvidas não subsistem ainda quanto ao nexo causal existente entre o acidente de trabalho ocorrido e as lesões de que a ora recorrida passou a padecer, com caracter definitivo na sua vida.
II) No que à condenação da ora recorrente respeita em pagar ao Instituto da Segurança Social I.P., as quantias por esta reclamadas, considera-se que o Tribunal a quo, fundamentou inteligentemente a sua decisão.
JJ) De resto, da mesma forma que toda a douta Sentença se encontra inteligentemente fundamenta, insuscetível de qualquer reparo.
Nestes termos e nos demais de Direito, e sempre com o Douto Suprimento dos Exmos. Venerandos Desembargadores, deverá, o presente RECURSO DE APELAÇÃO, não acolher provimento, vindo à final a manter-se integralmente a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, por ser esta insuscetível qualquer reparo.»
Admitido o recurso, e remetidos os autos a esta Relação, observou-se o disposto no art.º 87.º, n.º 3 do CPT, tendo o Ministério Público emitido parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumprido o previsto no art.º 657.º do CPC, cabe decidir em conferência.
2. Questões a resolver
Tal como resulta das conclusões do recurso, que delimitam o seu objecto, as questões que se colocam a este Tribunal são as seguintes:
- alteração da decisão sobre a matéria de facto;
- modificação dos termos da condenação da Allianz em conformidade com tal alteração.
3. Fundamentação
3.1. Os factos provados são os seguintes:
1. No dia 26/09/2018, pelas 11:45 horas, a Autora trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização de Associação X.
2. Com a categoria profissional de ajudante de acção educativa de 1.ª.
3. E o salário anual de €11.456,04 (salário base €583,00 x 14 meses + €57,64 x 11 (subsídio de alimentação) + €190,00 x 14 (diuturnidades).
4. No dia acima indicado quando se encontrava ao serviço da entidade empregadora supra referida, a Autora foi vítima de um acidente.
5. Que consistiu em, quando a sinistrada estava no refeitório a servir refeições, escorregou, caiu e teve traumatismo do joelho esquerdo.
6. A responsabilidade emergente de acidentes de trabalho estava totalmente transferida para a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A..
7. O Instituto da Segurança Social, I.P. pagou à Autora no período compreendido entre 26 de Fevereiro de 2019 e 27 de Fevereiro de 2022, o montante de €34.153,52 (trinta e quatro mil, cento e cinquenta e três euros e cinquenta e dois cêntimos), bem como as prestações compensatórias de subsídio de Natal de 2019, subsídios de férias e Natal de 2020 e de 2021, no valor de € 2.359,65 (dois mil, trezentos e cinquenta e nove euros e sessenta e cinco cêntimos).
8. A Autora despendeu, pelo menos, o valor de 26,50€ em deslocações para regularização do sinistro e/ou comparência em diligências judiciais.
9. Como consequência directa e necessária do sinistro, a Autora sofreu artrose do compartimento interno do joelho esquerdo.
10. A Autora apresentava à data do sinistro alterações degenerativas evidenciadas numa fractura transversal do menisco interno do joelho esquerdo.
11. A Autora foi sujeita a uma artroplastia total do joelho.
12. Como sequelas a Autora apresenta gonalgia residual, flexão do joelho a 110, sem edema e sem instabilidade.
13. Como consequência directa e necessária do sinistro, a Autora esteve com ITA de 27/09/2018 a 22/01/2019, num total de 118 dias. (alterado nos termos do ponto 3.3.)
14. Como consequência directa e necessária do sinistro, a Autora encontra-se afectada por uma IPP de 6%. (alterado nos termos do ponto 3.3.)
15. A Autora encontra-se de baixa médica determinada pelo médico de família desde Fevereiro de 2019 até à presente data.
16. A sinistrada submeteu-se a diversas consultas, exames médicos, tratamentos e três cirurgias.
17. (eliminado nos termos do ponto 3.3.)
18. A Companhia de Seguros Allianz Portugal, S. A. já pagou à Autora, a título de indemnização por incapacidades temporárias, a quantia de 2.325,88 €. (aditado nos termos do ponto 3.3.)
3.2. Os factos não provados são os seguintes:
1. Em consequência do sinistro, a sinistrada sofreu rotura do menisco interno com tendinite da pata de ganso.
2. Com vista à sua reabilitação com recurso a acompanhamento externo, despendeu a sinistrada a quantia de €2.306,46. (alterado nos termos do ponto 3.3.)
3.3. Conforme decorre das conclusões do recurso, a Apelante pretende que seja alterado o facto provado sob o ponto 14., no sentido de constar que, “Como consequência directa e necessária do sinistro, a Autora encontra-se afectada por uma IPP de 6,00%”, conforme decisão proferida no apenso de incidente de fixação de incapacidade e porque se esgotou o poder jurisdicional do juiz quanto a tal questão, para além de o resultado da perícia por junta médica de ortopedia, nos termos acolhidos pelo tribunal, designadamente nos factos provados sob os n.ºs 9 e 10 e não provado sob o n.º 1, assim o impor.
Pretende também a alteração do facto provado sob o ponto 13., no sentido de constar que, “Como consequência directa e necessária do sinistro, a Autora esteve em ITA de 27/09/2018 a 22/01/2019, num total de 118 dias”, conforme resultado da perícia por junta médica acolhida na decisão proferida no apenso de incidente de fixação de incapacidade, uma vez que apenas essa e a perícia singular incindiram sobre a questão.
Vejamos.
Como é sabido, na fase contenciosa do processo emergente de acidente de trabalho procede-se ao desdobramento do mesmo em processo principal e apenso para fixação da incapacidade para o trabalho sempre que, para além desta, tenham de ser decididas outras questões, as quais, nesse caso, são resolvidas no processo principal (arts. 117.º, 118.º, 119.º, 126.º, n.º 1 e 138.º, n.º 1 do CPT).
De acordo com o disposto no art.º 140.º, n.º 2 do CPT, no apenso de fixação da incapacidade, o juiz, realizadas as perícias referidas no artigo anterior, profere decisão, fixando a natureza e grau de incapacidade, decisão essa que só pode ser impugnada no recurso a interpor da sentença final.
E, no que respeita à sentença final, dispõe o art.º 135.º do mesmo diploma que o juiz aí considera definitivamente assentes as questões que não tenham sido discutidas na fase contenciosa, integra as decisões proferidas no processo principal e no apenso, cuja parte decisória deve reproduzir, e fixa também, se forem devidos, juros de mora pelas prestações pecuniárias em atraso.
Retornando ao caso dos autos, conforme descrito no Relatório supra, constata-se que se procedeu ao desdobramento do processo para fixação da incapacidade da sinistrada no respectivo apenso, no qual foi proferida decisão final em 24/04/2023, onde, reconhecendo que aí cabia, apenas, a fixação da natureza e grau de incapacidade, já que as demais questões seriam resolvidas no processo principal:
- o tribunal fixou à Autora uma IPP de 6% desde a data da alta;
- o tribunal não fixou as incapacidades temporárias que afectaram a Autora, devendo tê-lo feito, uma vez que também eram controvertidas e constituíam objecto das perícias médicas consideradas.
Ora, em face dos acima citados arts. 135.º e 140.º, n.º 2 do CPT, bem como do art.º 613.º do CPC, o tribunal recorrido não podia decidir no processo principal o que estava ou devia estar decidido no incidente de fixação de incapacidade, em atenção ao princípio elementar da imediata extinção do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Posto isto, importa abrir aqui um parêntesis para esclarecer o seguinte:
Atento o preceituado nos arts. 631.º, n.º 1 e 633.º, n.º 1 do CPC, nos termos dos quais os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido, só a Ré podia interpor recurso da sentença proferida nos presentes autos, uma vez que a Autora, como parte vencedora quanto ao aí decidido, carecia de legitimidade para interpor da mesma qualquer tipo de recurso.
Estabelece, contudo, o art.º 636.º do CPC:
Ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido
1 - No caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
2 - Pode ainda o recorrido, na respectiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.
3 - Na falta dos elementos de facto indispensáveis à apreciação da questão suscitada, pode o tribunal de recurso mandar baixar os autos, a fim de se proceder ao julgamento no tribunal onde a decisão foi proferida.
Compulsadas as contra-alegações da Recorrida, cujas conclusões se cuidou de acima transcrever, constata-se que nada foi requerido no sentido da ampliação do recurso da Ré Allianz com vista à impugnação, a título subsidiário, da decisão proferida no apenso, ou de outros pontos da matéria de facto, prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas por aquela na parte em apreço.
Ora, como se refere no sumário do Acórdão desta Relação de 29-04-20201, citado pelo Ministério Público no seu Parecer:
“1 – Se para fixação da incapacidade forem relevantes factos cuja prova depende da realização da audiência de discussão e julgamento deve sobrestar-se na decisão do incidente respetivo, relegando a decisão para a sentença final.
2 – Proferida sentença no âmbito do incidente em referência, a decisão aí proferida, não sendo impugnada, faz caso julgado, não podendo modificar-se mediante sentença a proferir no processo principal.
(…)”
Assim sendo, por um lado, impõe-se a alteração do facto provado sob o ponto 14., no sentido de, reproduzindo o decidido com trânsito em julgado no apenso, constar que, “Como consequência directa e necessária do sinistro, a Autora encontra-se afectada por uma IPP de 6%”.
Por outro lado, quanto ao ponto 13., compulsada a prova pericial produzida e atendível na decisão de fixação de incapacidade no apenso, concorda-se com o tribunal recorrido quando na mesma confere relevância fundamental para formação da sua convicção ao relatório da junta médica, por inexistirem quaisquer elementos que levem a divergir dos respectivos resultados, tanto mais que o mesmo foi alcançado por unanimidade e sem reclamações das partes e se mostra completo, coerente e fundamentado.
Ora, ao quesito 2., em que se perguntava quais os períodos de incapacidade temporária, absoluta e parcial, que as lesões originaram, os peritos responderam: ITA desde a data do acidente até 22/1/2019.
Deste modo, ao abrigo, ainda, do disposto no art.º 662.º, n.º 1 do CPC, impõe-se a alteração do facto provado sob o ponto 13. no sentido de constar que, “Como consequência directa e necessária do sinistro, a Autora esteve com ITA de 27/09/2018 a 22/01/2019, num total de 118 dias”.
A Apelante pretende ainda que seja considerado como não provado, por se tratar de factualidade e prova documental posterior à data da alta em 22/01/2019, que: “17. Com vista à sua reabilitação com recurso a acompanhamento externo, despendeu a Sinistrada a quantia de € 558,17.”.
Ora, efectivamente, uma vez que resulta da alteração da matéria de facto já atendida que a lesão sofrida pela sinistrada se consolidou clinicamente em 22/01/2019, com uma IPP de 6%, e, por outro lado, os documentos juntos aos autos e referenciados na sentença para justificação da decisão quanto ao facto em apreço são todos posteriores a tal data, impõe-se necessariamente dá-lo antes como não provado, nos termos do art.º 662.º, n.º 1 do CPC, passando a respectiva matéria a integrar o ponto 2. dos factos não provados, que passa a ter a seguinte redacção: “2. Com vista à sua reabilitação com recurso a acompanhamento externo, despendeu a sinistrada a quantia de € 2.306,46.”
Finalmente, a Recorrente pretende que, com base no acordo resultante do constante do auto de tentativa de conciliação, do art.º 44.º da petição inicial e do art.º 12.º da contestação, seja aditado à factualidade provada que: “A Companhia de Seguros Allianz Portugal, S. A. já pagou à Autora, a título de indemnização por incapacidades temporárias, a quantia de 2.325,88 €.”
Ora, compulsados os autos, constata-se que assim é, pelo que se impõe atender o peticionado também nesta parte.
Procede, pois, o recurso da Allianz no que concerne à impugnação da matéria de facto.
3.4. Vejamos, então, como se repercutem as alterações da matéria de facto na responsabilidade da Apelante perante a Autora e o Instituto da Segurança Social, I.P..
Resulta da factualidade provada que no dia 26/09/2018, pelas 11:45 horas, quando a Autora trabalhava por conta da Associação X, com a categoria profissional de ajudante de acção educativa de 1.ª, a servir refeições no refeitório, escorregou, caiu e teve traumatismo do joelho esquerdo, em consequência directa e necessária do que sofreu artrose do compartimento interno do joelho esquerdo, determinando-lhe, como sequelas, gonalgia residual e flexão do joelho a 110, sem edema e sem instabilidade, e afectando-a de ITA de 27/09/2018 a 22/01/2019, num total de 118 dias, e de IPP de 6% desde esta data.
Note-se que se provou também que a Autora apresentava à data do sinistro alterações degenerativas evidenciadas numa fractura transversal do menisco interno do joelho esquerdo, mas, ao contrário do alegado pela Autora, não se provou que, em consequência do sinistro, a sinistrada tenha sofrido rotura do menisco interno com tendinite da pata de ganso, sendo certo que não foi alegado nem provado de modo concretizado qualquer outro eventual agravamento da doença ou lesão pré-existente por causa do acidente.
Em suma, as consequências do sinistro a nível da capacidade de ganho da Autora, que se provaram, são apenas as acima descritas, não incluindo qualquer agravamento de doença ou lesão anterior.
Em face do exposto, atento o valor da retribuição anual auferida pela Autora e em função da qual a responsabilidade se encontrava transferida para a Ré Allianz, aquela tem direito a que esta lhe pague o capital de remição da pensão anual e vitalícia de 481,15€ (11.456,04€ x 70% x 6%), desde 23/01/2019, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde então até integral pagamento.
A Autora tem ainda direito à quantia de 26,50 € que despendeu em deslocações para regularização do sinistro e/ou comparência em diligências judiciais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Tendo em conta que a Ré já pagou à Autora, a título de indemnização por incapacidades temporárias, a quantia de 2.325,88 €, nada mais lhe é devido a tal título, uma vez que a sinistrada esteve afectada de ITA, em consequência do acidente, apenas entre 27/09/2018 e 22/01/2019, num total de 118 dias.
Ou seja, não se provou que a baixa médica a que se alude no ponto 15. da factualidade provada seja consequência do acidente de trabalho dos autos e, por conseguinte, nada deve a seguradora à Autora a tal título, nem, também, pelas mesmas razões, ao Instituto da Segurança Social, I.P., relativamente ao provado sob o n.º 7.
Finalmente, não obstante o provado sob o n.º 16, nada se provou quanto a consultas, exames médicos, tratamentos ou cirurgias que a Autora tenha despendido por causa das consequências decorrentes do acidente de trabalho dos autos (facto não provado sob o n.º 2), pelo que nada lhe é devido pela Recorrente a tal título.
Procede, pois, o recurso.
4. Decisão
Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência:
a. Declara-se que, em consequência do acidente de trabalho dos autos, a sinistrada ficou afectada de ITA de 27/09/2018 a 22/01/2019 e de IPP de 6% desde esta data;
b. Condena-se a Ré Allianz a pagar à sinistrada o capital de remição da pensão anual e vitalícia de 481,15 €, desde 23/01/2019, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde então até integral pagamento;
c. Condena-se a Ré Allianz a pagar à sinistrada a quantia de 26,50 € a título de deslocações, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
d. Absolve-se a Ré Allianz dos restantes pedidos.
Custas do recurso pelos Apelados (Autora e ISS, I.P.), na proporção do decaimento; custas da acção pela Autora, pelo ISS, I.P. e pela Ré Allianz, na proporção do decaimento.

Lisboa, 20 de Março de 2024
Alda Martins
Leopoldo Soares
Francisca Mendes
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1. Proferido no processo n.º 2271/18.7T8PDL.L1-4, disponível em www.dgsi.pt.