Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7357/19.8T9SNT.L1-5
Relator: JORGE ANTUNES
Descritores: LEGITIMIDADE PASSIVA
DESPACHO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA CÍVEL ENXERTADA
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Sumário: Um despacho que decide acerca da legitimidade passiva da demandada, por o valor do pedido cível formulado não ultrapassar o capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório, nos termos do disposto no art. 64 nº 1 al. a) do Dl. 291/2007, concluindo pela falta de tal pressuposto processual e absolvendo a mesma da instância cível enxertada, constitui um acto decisório e não despacho de mero expediente.
Não tendo sido alvo de impugnação recursiva, formou-se caso julgado que, no âmbito dos presentes autos impede que a questão volte a ser apreciada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
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I – relatório
1. Os presentes autos, com o nº 7357/19.8T9SNT, iniciaram-se com a queixa apresentada por AA contra BB, por factos que seriam suscetíveis de configurar, para além do mais, a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148º, nº 1, do Código Penal.
No decurso do inquérito (cfr. auto de fls. 69), o denunciante veio desistir do procedimento criminal. Perante a não oposição da arguida (cfr. fls. 91), essa desistência veio a ser homologada, declarando-se extinto o procedimento criminal pelo sobredito crime, ao abrigo do disposto nos artigos 148º, nº 4, e 116º, ambos do Código Penal, e 51º, nrs. 1 e 2, e 277º, nº 1, do Código de Processo Penal.
2. Tendo o Ministério Público encerrado o respetivo inquérito com a dedução de acusação contra a arguida BB, imputando-lhe o cometimento, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291º, nº 1, als. a) e b), e nº 3, e 69º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, por referência aos artigos 30º, nº 1, 35º, nº 1, 44º, nº 1, e 81º, nrs 1 e 5, do Código da Estrada, foi deduzido pedido de indemnização pelo lesado AA contra a referida arguida e contra a Seguradora Lusitania, Companhia de Seguros, S. A. (nos termos de fls. 216 e segs. dos autos). O Demandante deu por reproduzidos os factos da acusação e alegou os factos relativos aos danos sofridos, tendo peticionado a condenação das Demandadas a pagar-lhe a quantia a apurar em liquidação de sentença, não inferior a € 40.000,00 (quarenta mil euros), a título de danos patrimoniais, e a quantia de € 397,60 (trezentos e noventa e sete euros e sessenta cêntimos) a título de danos patrimoniais.
3. Por despacho judicial proferido nos autos em 14 de dezembro de 2020 (cfr. fls. 309 e segs.), do qual não foi interposto recurso, foi decidido o seguinte:
“III. Do pedido de indemnização civil de fls. 216 e seguintes:
AA formulou pedido de indemnização civil contra a arguida BB e a Seguradora Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A., no montante de € 40.000,00 (quarenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de €. 397,60 (trezentos e noventa e sete euros e sessenta cêntimos) a título de danos patrimoniais.
Nos artigos 71.º e 72.º do Código de Processo Penal encontra-se consagrado o princípio da adesão obrigatória da acção civil ao processo penal, segundo o qual, o direito à indemnização por perdas e danos sofridos com o ilícito criminal deve ser exercido no próprio processo penal, enxertando-se o procedimento civil a tal destinado na estrutura do procedimento criminal em curso.
De acordo com o artigo 129.º do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime será regulada pela lei civil, encontrando-se o regime da responsabilidade civil extracontratual decorrente da prática de actos ilícitos estabelecido no artigo 483, n.º 1, do Código Civil, nos termos do qual, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
A confirmar-se a factualidade indicada na acusação, de fls. 199 a 201, verificar-se-ão os pressupostos da responsabilidade civil relativamente à arguida BB, dada a circunstância de o facto constitutivo de tal responsabilidade ter sido pela mesma produzido no decurso do acto de condução de viatura automóvel com a matrícula ..-HC-...
Sucede que por via de (…) contrato de seguro celebrado entre o proprietário da viatura ..-HC-.. (CC) e a companhia Lusitânia Seguros, a que corresponde a apólice n.º ...01, o primeiro transferiu para a segunda a responsabilidade civil resultante da circulação daquele veículo, contrato esse de seguro de responsabilidade civil obrigatório que vigorava à data dos factos indicados na acusação até ao limite de €6.070.000,00 (seis milhões e setenta mil euros de danos corporais) e €1.220.000,00 (um milhão duzentos e vinte mil euros) por danos materiais.
Importa ter presente que, nos termos do artigo 64.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, as acções destinadas à efectivação de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório.
Também o art. 4, nº 1, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, impõe a obrigação de segurar a toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre, não estabelecendo qualquer diferenciação consoante tais danos sejam causados a título doloso ou negligente.
Nem poderia ser de outro modo, pois o seguro é obrigatório antecipadamente a qualquer evento danoso ocorrido com uso do carro. É obrigatório o seguro automóvel para se poder circular com o veículo.
Por outro lado, prevendo-se no art. 27.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Decreto-lei, que satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente, forçoso é de concluir que também caem no âmbito da responsabilidade das seguradoras o pagamento das indemnizações devidas por acidentes provocados dolosamente.
Também, o art. 15 (Pessoas cuja responsabilidade é garantida) refere:
“1– O contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 4 e dos legítimos detentores e condutores do veículo.
2– O seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte”.
Assim, contendo-se a indemnização peticionada pelo demandante nos limites do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório [cf. artigo 12, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto], pelo seu pagamento apenas responderá a seguradora demandada.
Atento o exposto, julgando verificada a supra referida excepção dilatória e por os valores do pedido cível formulado não ultrapassar o capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório, será a arguida/demandada BB, parte ilegítima, nos termos do disposto no art. 64 nº 1 al. a) do Dl. 291/2007.
Termos em que determino a sua absolvição da instância cível.
Custas da parte cível, a suportar pelo demandante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que possa vir a beneficiar.
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4. Realizado o julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 14 de outubro de 2021, decidiu:
“i) Absolver a arguida BB da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução perigosa de veículo.
ii) Julgar o pedido civil formulado pelo demandante AA totalmente improcedente por não provadop, absolvendo a demandada do peticionado.
iii)Valor da acção cível: €40.397,60 (quarenta mil, trezentos e noventa e sete euros e sessenta).
iv) Sem custas crime.
v) Custas cíveis pelo demandante.
Após a leitura da presente sentença, proceda-se ao respectivo depósito.
Registe e notifique.”
5. Inconformado com a decisão final, dela interpôs recurso o Demandante AA, pedindo que seja revogada a decisão recorrida, considerando-se a arguida responsável pelo pagamento de todos os prejuízos sofridos pelo demandante e condenada no pedido de indemnização civil formulado, no montante peticionado no valor de €40.000,00 a título de “danos morais” e € 397,60 a título de danos patrimoniais.
Extraiu o recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões (transcrição):
“III- DAS CONCLUSÕES

A sentença recorrida, carece na opinião do recorrente, de evidente e claro erro notório na apreciação da prova, uma vez que, absolve a arguida da prática dos crimes de que vinha acusada e do correspectivo pedido de indemnização civil, deduzido, pelo demandante uma vez que faz tábua rasa de documentos juntos aos autos, essenciais, para a prolação de uma decisão de condenação da arguida, nomeadamente, omite, alegando não ter sio junta no PIC, pelo demandante, quando toda a prova já se encontrava junta aos autos, nomeadamente, toda a documentação clinica, respeitante às lesões à integridade física sofridas pelo demandante, que foi junta aos autos, a fls. 142 e segs. fornecida pelo Hospital Professor Doutro Fernando da Fonseca, EPE, nomeadamente, os documentos clínicos, juntos a fls. 142 a 166, (junta ao recurso com certidão) que provam, as lesões sofridas, bem como, todo o historial clinico do demandante, e todas as graves intervenções cirúrgicas a que foi submetido e o respectivo período de recuperação, mediacamentação ministrada, em consequência do acidente provocado pela arguida, que provocou ao demandante uma grave factura exposta do joelho esquerdo, tendo à data do acidente, ficado com a sua rótula inclusivamente, espalhada pelos destroços do acidente.

Ao invés, a sentença recorrida, indefere o PIC do demandante, alegando não ter sido junta prova das lesões sofridas pelo demandante, quando toda a prova das lesões estava já juntas aos autos, tendo sido omitida e nem sequer apreciada pelo tribunal recorrido, como se tal prova nem sequer, existisse, o que não se pode aceitar, padecendo, nesta parte, a sentença recorrida de omissão de pronúncia e de claro erro na apreciação da prova.

Exactamente, pelos mesmos motivos e fundamentos, a sentença recorrida, omite e faz
“tábua rasa” do relatório toxicológico, junto aos autos, por nem sequer se ter pronunciado sobre o mesmo, além e sobretudo, do parecer pericial, junto aos autos, pelo Instituto de Medicina Legal, a lfs.115 e 116, assinado, pelo Dr. DD, Assessor Principal de Medicina Legal do Serviço de Quimica e Toxicologia Forense, que:
“As concentrações limite (cut off) de A9-tetrahidrocanabinol (THC) no sangue actualmente previstas na maioria dos países europeus variam entre 1 ng/ml e 3 ng/ml.”;
“Face ao exposto consideramos que a presença de A9-tetrahidrocanibol (THC) numa concentração de 1,4 ng/ml e do seu metabolito activo 11-Hidroxi-A9-tetrahidrocanabinol (11-OH-THC) numa concentração de 1,8 ng/ml, constitui um factor de risco de acidente e de impairment, e por isso negativo para uma condução em segurança.”

Apesar do parecer pericial junto aos autos, a fls. 115 e 116, pelo INML, que não foi impugnado por qualquer outro perito ou por qualquer outro meio de prova, demosntrar claramente e de forma inequívoca, que a quantiadade de canabinoides existentes no sangue da arguida, dever ser considerada uma concentração que constitui um factor de risco de acidente e negativo para uma condução em segurança, o tribunal recorrido, conclui, sem qualquer fundamentação e de forma inconsistente, que as referidas concentrações de canabinoides existentes no sangue da arguida, não diminuíram significativamente as capacidades de reflexo e de controlo do veiculo, concluindo, apenas que a arguida sabia que não podia conduzir veículos na via publica com as pontadas substancias no sangue, o que consideramos ser uma vez mais um erro notório na apreciação da prova, que a ser normalmente avaliada, implicaria forçosamente a condenaççao da arguida, quer na pratica dos crimes de que veio acusada, quer no pedido de indeminzação civil peticionado pelo demandante.
10º
Uma vez mais, o relatório toxicológico e o parecer pericial do perito médico do INML não foram, criteriosamente, avaliados pelo tribunal recorrido, uma vez que o tribunal recorrido chega a uma conclusão, imcpmpreensivel, contrária à conclusão e ao parecer dos dos peritos médicos, especialistas na matéria, o que fez, sem qualquer fundamentação, sobretudo pericial, que a pudesses sustentar,
11º
devendo, nesta medida, ser revogada a decisão recorrida, considerando-se a arguida, responsável pelo pagamento de todos os prejuízos sofridos pelo demandante, que provocaram-lhe varias semanas de internamento hospitalar, vemo como, vários meses de impedimento de trabalhar em consequência de baixas médicas sucessivas, sofrendo, ao longo de semanas, dores fortíssimas em consequência das graves lesões provocadas pelo acidente, sofrendo, actualmente, sequelas, que se mantêm, desde então, até hoje, no que diz respeito à condição de saúde do demandante que com pouco mais de trinta anos, deixou de conseguir andar a pé, normalmente, andando, sempre a coxear, não conseguindo mais praticar desporto, andar de mota, e em suma, viver normalmente, como fazia até sofrer o grave acidente provocado pela arguida.
12º
Por outro lado, a arguida, deveria ter sido condenada no pedido de indmenização civil formulado pelo demandante, no montante peticionado no valor de €40.000,00 euros a titul de danos morais e €397,60 euros a titulo de danos patrimoniais, por ter sido claramente a a arguida culpada pela verificação do acidente, tendo inclusivamente, ela própria se confessado culpada pelo acidente, conforme se provou, uma vez que o veiculo automóvel conduzido pela arguida, violou culposamente as regras da estrada, uma vez que a arguida ao aproximar-se do cruzamento, para proceder à mudança de direcção à esquerda e aceder à aludida avenida, a arguida reduziu a velocidade e imobilizou o seu veículo e após, e no momento em que o referido motociclo, conduzido por AA, se encontrava a transpor aquele cruzamento, pela faixa central da aludida E.N. ..., a arguida iniciou a marcha do seu veículo e avançou com o mesmo, a uma velocidade não concretamente apurada, mais concretamente rodou-o da direita para a esquerda, sem ceder a prioridade ao aludido motociclo, que se encontrava pela sua direita e na sequência daquela manobra de mudança de direcção, a arguida invadiu a via da esquerda destinada ao trânsito de veículos em sentido oposto e embateu com a parte angular direita do seu veículo na parte frontal do aludido motociclo.
13º
Além do mais, ficou claramente provado, que no referenciado local, onde se deu o acidente, existia um cruzamento, com boa visibilidade, que dá acesso à Av. ... e que o piso encontrava-se seco e limpo e o tempo estava de noite, mas oferecia boas condições de visibilidade para a prática da condução e que os identificados veículos não padeciam de qualquer anomalia ou avaria mecânica, que inviabilizasse ou interferisse com a sua condução, razões pelas quais, a arguida, com canabinoides no sangue, deveria ter continuado parada, no cruzamento, deixando, a mota do demandante passar, por esta ter prioridade, o que não fez, avançando, com o seu veiculo automóvel, justamente, no momento, em que a mota se aproximava de si, invadindo a faixa de rodagem onde a mota do demandante transitava, originado o grave acidente.
14º
Portanto a arguida violando de forma flagrante as regras estradais com canabinoides no sangue, provocou, culposamente o acidente, veirificando-se “in casu” todos os requisitos da responsabilidade civil, uuma vez que a arguida, culposamente, avançou com o seu veiculo automóvel para a faixa de rodagem onde transitava a mota do demandante, provocando o grave acidente que veio a originar graves lesões à sua integridade física, devendo, nesta medida, a arguida ser responsabilizada pelo seu comportamento, a titulo de responsabilidade civil, por se verificarem todos os respectivos requisitos legais, não podendo, a arguida, ser absolvida da totalidade dos factos por si praticados e do pedido de indemnização civil peticionado, que orignaram graves lesões à integridade fisica ao demandante civil, que não poderão passar incólumes, devendo, ser a arguida condenada, nesta medida, no pedido de indemnização civil peticionado pelo demandante, fazendo-se assim JUSTIÇA!”
6. O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.
7. O Ministério Público veio aos autos consignar que tratando o recurso exclusivamente de matéria cível, não lhe cumpre responder ao mesmo.
8. A arguida / recorrida BB, apresentou resposta ao recurso interposto pelo demandante, pugnando pela sua improcedência. Retirou das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
“I. Irresignado com a absolvição da arguida, veio o demandante AA interpor recurso da decisão, pugnando, a final, pela condenação da arguida “no pedido de indemnização civil peticionado pelo demandante”.
II. Nos termos do art. 64º nº 1 da al. a) do D.L. nº 291/2007 de 21 de Agosto, foi a arguida / demandada BB considerada parte ilegítima, pelo que salvo o devido respeito, labora em erro, o demandante.
Sem embargo, sempre se dirá o seguinte,
III. Vem o demandante, ora recorrente, desde logo, sindicar – exaustivamente – pela sua legitimidade na apresentação de recurso “nos termos em que o faz”.
IV. Salvo o devido respeito e, desde logo, sempre se dirá que, à parte civil está reservada a faculdade de recorrer apenas relativamente a aspectos que se prendam com a acção civil, como sejam os prejuízos decorrentes do facto ilícito e o quantum indemnizatório.
V. Assim e, sem mais considerações, salvo o devido respeito por opinião contrária, tendo o lesado, ora recorrente deduzido pedido de indemnização civil, nos termos do disposto no nº 1 do art. 74º do C.P.P., uma vez que o mesmo impugna matéria de facto que é referente à responsabilidade criminal da arguida, não tem o mesmo legitimidade para apresentar recurso nos termos em que o fez, devendo o mesmo ser rejeitado nos termos conjugados do disposto nos arts. 401º nº 1, al. c), 417º nº 6 al. b) e 420º, nº 1, al. b) do C. P. Penal.
Caso assim não se entenda, o que não se aceita e apenas se admite por mero dever de patrocínio,
VI. Vem o recorrente alegar que: “A sentença recorrida, carece na opinião do recorrente, de evidente e claro erro notório na apreciação da prova, uma vez que absolve a arguida da prática dos crimes de que vinha acusada e do correspectivo pedido de indemnização civil, deduzido pelo demandante uma vez que faz tábua rasa de documentos juntos aos autos, essenciais para a prolação de uma decisão de condenação da arguida, nomeadamente, omite, alegando não ter sido junta ao PIC, pelo demandante, quando toda a prova já se encontrava junta aos autos, nomeadamente, toda a documentação clínica, respeitante às lesões à integridade física sofridas pelo demandante que foi junta aos autos pelo Hospital (...)
VII. E, ainda : “Exactamente, pelos mesmos motivos e fundamentos, a sentença recorrida, omite e faz tábua rasa do relatório toxicológico, junto aos autos, por nem sequer se ter pronunciado sobre o mesmo, além e sobretudo, do parecer pericial, junto aos autos, pelo Instituto de medicina Legal (...).
VIII. A arguida reproduz (e acompanha) a fundamentação da douta sentença a respeito.
IX. Designadamente e, no que ao parecer do INML respeita, concluiu doutamente o Tribunal a quo que: “Não é muito seguro a alcançar esta correlação sem segurança / consumo de estupefacientes e fá-lo de forma conclusiva. Já a defesa junta um exame pericial elaborado por EE, médico legista, que conclui que “as concentrações de THC obtidas são muito baixas e inferiores ao intervalo em que se observam os primeiros indícios de diminuição da capacidade para a condução rodoviária (2 e 5 ng/ml) pois que existem estudos epidemiológicos que sustentam que as concentrações séricas de THC inferiores a 10ng/ml não estão associadas a um risco elevado de acidente”.
X. Por outro lado, o signatário do relatório em causa, Dr. EE, médico legista, há 16 anos, especialista em avaliação do dano corporal, confrontado com o mesmo em sede de audiência e julgamento, confirmou que foi por si elaborado, bem como todo o seu teor, tendo prestado todos os esclarecimentos necessários à dissipação de todas e quaisquer dúvidas sobre a matéria em causa, designadamente tendo sido peremptório ao afirmar que as concentrações de THC detectadas à arguida não afectam a (capacidade de) condução.
XI. Acresce que, o douto Tribunal a quo vem considerar que :(...) não ficou demonstrado que, em concreto, a substância detectada no sangue da arguida tenha tido efeitos perturbadores na sua aptidão física, mental e psicológica: desde logo, nenhum interveniente no local se recorda de ver a arguida com reflexos mais lentos ou com sinais físicos, designadamente no olhar, de consumo de estupefacientes. Resulta ainda provado que efectuou a manobra parando o veículo, ligando o pisca e depois prosseguiu a marcha, não virando à esquerda de forma desabrida ou em excesso de velocidade. Parou, inclusive, à chegada à encruzilhada (...). Por outro lado, o exame pericial elaborado pelo INML não discute a baixissima concentração de estupefaciente no sangue, pelo que nem a quantidade por si é suficientemente demonstrativa, em face da experiência comum, da razoabilidade da vida e da normalidade das coisas, de que a arguida não se encontrava em condições de efectuar uma condução segura.
XII. Em suma, não existe qualquer prova de que a presença de canábis nas quantidades dadas como provadas perturbaram as percepções sensoriais da arguida e exerceram uma influência nefasta no acto de condução não lhe permitindo atenção e tempo de reacção de um condutor num estado considerado normal”.
XIII. No que concerne ao pedido de indemnização civil, nenhuma prova documental ou testemunhal foi produzida que permita dar como provado, designadamente que o demandante foi submetida a uma intervenção cirúrgica no Hospital ... e esteve internado por três dias, após o que foi transferido para o Hospital ..., onde ficou internado cerca de duas a três semanas, tendo feito fisioterapia (desde logo e, a título meramente exemplificativo, a mãe do demandante, arrolada como testemunha, poderia ter prestado esclarecimentos quanto aos factos mencionados e não o fez), pelo que andou bem o tribunal a quo ao dar como “factos não provados” a referida matéria.
XIV. Ora, a prova dos factos constantes da acusação compete ao Ministério Público e, quanto ao pedido de indemnização cível, ao demandante, mediante a produção de prova cabal apresentada em audiência de julgamento e, para além de qualquer dúvida razoável – o que não sucedeu no caso dos autos !
XV. Socorremo-nos das normas do processo penal e das garantias de defesa do arguido, em especial das normas ínsitas no nº 1 e 2 do art. 355º do C.P.P., segundo o qual, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. Ora, tal regra resulta dos princípios da oralidade, do contraditório e da imediação. Acresce que, tal prova é apreciada segundo as regras da convicção da entidade competente (onde deverá ter na devida conta o pro reo), à luz do disposto no art. 127º do Código de Processo Penal.
XVI. Ora, se atentarmos na motivação do recurso apresentado, ora em apreço, apercebe-se, facilmente que o recorrente não atentou nestes princípios basilares do processo penal (da oralidade e da imediação), nem no citado princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do C.P.P.), pretendendo que o Tribunal (quer o Tribunal a quo, quer este Tribunal ad quem) acolha a versão dos factos que mais lhe convém.
XVII. Face ao exposto, bem andou o Tribunal a quo ao decidir pelo não preenchimento dos elementos típicos do crime de que a arguida vinha acusada, quer no que respeita à violação grosseira das regras estradais, quer quanto à condução sem condições de segurança por conduzir sob o efeito de estupefacientes.
XVIII. Dir-se-á, ainda que, para que este Venerando Tribunal pudesse proceder às pretendidas alterações da decisão fáctica tomada na sentença revidenda, era necessário que a prova produzida em audiência de julgamento não apenas aconselhasse ou permitisse ou consentisse, uma alteração, mas isso sim, impusesse essa alteração da decisão a que o Tribunal recorrido chegou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto.
XIX. Em suma, analisando a sentença revidenda, na motivação da respectiva decisão fáctica, verificamos, sem dificuldade, que as provas produzidas não “impõe” uma decisão diversa daquela que foi proferida em sede de primeira instância.
XX. Ou seja, o Tribunal a quo ao considerar que não se logrou provar a matéria vertida nas als. a) a h) do ponto 9 da douta sentença não decidiu ao arrepiu da prova produzida, ou contra tal prova, nem valorou a prova produzida contra as regras da experiência ou, de modo aleatório e discricionário.
XXI. No que respeita especificamente ao pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante, não fez o mesmo prova dos pressupostos de responsabilidade civil extracontratual, nos termos do disposto no art. 483º do Código Civil, ex vi art. 129º do Código Penal, pelo que sempre seria o mesmo improcedente.
XXII. Termos em que, bem andou o douto Tribunal a quo ao dar como “não provados” os factos constantes da sentença recorrida de que o demandante ora recorre, nos termos em que o fez, não merecendo qualquer juízo de censura a decisão proferida, já que fez uma correcta interpretação da prova produzida e, bem assim, a subsunção dos factos ao direito, pelo que, não padecendo de qualquer vício, nem tendo violado qualquer disposição legal, deve ser mantida na íntegra, improcedendo o alegado pelo recorrente, pelos fundamentos expostos.”
9. A Demandada Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A., apresentou também resposta ao recurso interposto pelo Demandante, pugnando pela sua improcedência. Retirou das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
“1. Inconformado com a douta sentença, veio o demandante AA interpor recurso da decisão, pugnando, a final, pela condenação da arguida “no pedido de indemnização civil peticionado pelo demandante”.
2. Repete-se e reafirma-se que o pedido de indemnização civil é deduzido exclusivamente contra a arguida.
3. Não havendo, ao longo do recurso, qualquer referência à Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A., nem tendo o pedido cível sido deduzido sido deduzido contra a mesma, é óbvio que a douta sentença transitou em julgado relativamente à Lusitânia, com todas as suas legais consequências, o que, expressamente se invoca.
4. Sem conceder, e por mera cautela e dever de patrocínio, dirá a Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A., que considera que a douta sentença deve ser confirmada e mantida perfeita e inatacável.
5. E que, com a devida vénia, acompanha, se necessário se julgar, as superiores motivações e conclusões do articulado de resposta da Arguida.
Termos em que deverá o aqui invocado trânsito em julgado da douta sentença ser julgado procedente e provado com as suas legais consequências, devendo, pelo contrário, o recurso interposto pelo recorrente ser julgado improcedente, confirmando-se a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.”
10. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto consignou que não assiste legitimidade ao Ministério Público para emitir parecer.
11. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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II – questões a decidir.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a sentença final proferido nos autos –, as questões a examinar e decidir prendem-se com a possibilidade de condenação da arguida demandada BB no pedido de indemnização civil formulado pelo Demandante AA.
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III – Transcrição do teor da decisão recorrida. 
Da decisão recorrida, consta o seguinte:
“III. F U N D A M E N T A Ç Ã O D E F A C T O
8.Da discussão da causa e produção da prova vieram a resultar provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:
1) No dia 18 de Junho de 2019, pelas 01:40 horas, na E.N. ..., KM 70,00, em área desta Comarca ..., a arguida BB conduziu o veículo, com a matrícula ..-HC-.., no sentido .../....
2) A arguida conduziu o aludido veículo sob a influência de canabinóides, respectivamente nas seguintes quantidades: 17 ng/ml para 11-NOR-9-carboxi-D9- tetrahidrocanabinol (THC-COOH); 1,8 ng/ml para Hidro-tetrahidrocanabinol (11-OH-THC), e 1,4 ng/ml para D9-Tetrahidrocanabinol (THC).
3) Nessas circunstâncias de tempo e lugar, AA circulava no seu motociclo, com a matrícula ..-VQ-.., em sentido contrário ao do veículo da arguida, no sentido .../....
4) A aludida via é composta por uma recta, com duas faixas de rodagem, cada uma em sentido contrário, com marca longitudinal contínua, delimitada por linha mista, separadora de sentidos de trânsito.
5) No referido local, existe um cruzamento, com boa visibilidade, que dá acesso à Av. ....
6) O piso encontrava-se seco e limpo e o tempo estava de noite, mas oferecia boas condições de visibilidade para a prática da condução.
7) Os identificados veículos não padeciam de qualquer anomalia ou avaria mecânica, que inviabilizasse ou interferisse com a sua condução.
8) Ao aproximar-se do referido cruzamento, e para proceder à mudança de direcção à esquerda e aceder à aludida avenida, a arguida reduziu a velocidade e imobilizou o seu veículo.
9) Após, e no momento em que o referido motociclo, conduzido por AA, se encontrava a transpor aquele cruzamento, pela faixa central da aludida E.N. ..., a arguida iniciou a marcha do seu veículo e avançou com o mesmo, a uma velocidade não concretamente apurada, mais concretamente rodou-o da direita para a esquerda, sem ceder a prioridade ao aludido motociclo, que se encontrava pela sua direita.
10) Na sequência daquela manobra de mudança de direcção, a arguida invadiu a via da esquerda destinada ao trânsito de veículos em sentido oposto e embateu com a parte angular direita do seu veículo na parte frontal do aludido motociclo.
11) Depois do embate, ambos os veículos ficaram imobilizados na faixa de rodagem no sentido .../....
12) O condutor do motociclo, AA, sentiu dores e precisou de receber tratamento hospitalar.
13) Como consequência directa e necessária do referido embate, que foi provocado exclusivamente pela conduta da arguida, o condutor do motociclo, AA, sofreu as seguintes lesões: fractura exposta da rótula do joelho esquerdo.
14) As lesões traumáticas referidas determinaram um período não concretamente apurado de doença para AA, mas com afectação da sua capacidade para o trabalho.
15) A arguida sabia ainda que, ao iniciar manobra de mudança de direcção, deveria certificar-se da possibilidade da sua execução, sem perigo de colisão com outros veículos que circulassem na via em sentido contrário.
16) O demandante teve de ser operado para colocar um fixador externo.
17) O demandante ficou com o seu capacete e vestes destruídos.
18) Após o acidente a arguida ligou para os serviços de emergência, comunicando às autoridades a ocorrência do sinistro, mantendo-se sempre junto do demandante.
19) Desde o acidente que a arguida acompanha a evolução do sinistrado, mantendo contacto regular, telefónico e pessoal com o mesmo.
20) O demandante recebeu €14.500,00 a título de adiantamentos por conta da indemnização por parte da demandada seguradora.
21) A arguida encontra-se no estado civil de solteira e reside com os pais em casa destes.
22) A arguida é estagiária na área do ... auferindo mensalmente a quantia de €800,00.
23) A arguida tem uma Licenciatura em ... e Mestrado em ....
24) A arguida não tem antecedentes criminais.
9. Não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados. Designadamente não se logrou provar que:
a) A arguida bem sabia que, antes de iniciar a sua condução, havia previamente consumido substâncias psicotrópicas e, apesar de ciente de que tal consumo lhe poderia determinar, como determinou, uma diminuição da sua destreza na condução, afectando o seu sentido de orientação e retardando os seus reflexos e que esse estado lhe diminuía significativamente as suas capacidades de reflexo e de controlo do veículo, a arguida decidiu conduzir na via pública o referido veículo.
b) Não obstante saber que, com as apontadas substâncias no sangue, não podia conduzir veículos na via pública, ainda assim, a arguida não se coibiu de actuar da forma descrita.
c) A arguida por conduzir sob a influência de canabinóides não cuidou de actuar com o cuidado que lhe era exigível, tendo circulado de forma temerária, revelando imperícia, desatenção e imprudência na sua condução, o que fez com que não reparasse no motociclo que, naquele momento, circulava na via de trânsito em sentido contrário, que a mesma invadiu para executar a manobra de mudança de direcção, não tendo sido capaz de impedir o embate.
d) Ao agir do modo descrito, a arguida não procedeu com o cuidado e com atenção devidos e que lhe eram exigíveis e actuou sem observar as mais elementares regras estradais que se impunham a qualquer condutor que circulasse na mencionada via de trânsito e a si em particular, tendo gerado, desse modo, o risco de acidentes rodoviários e inerentes lesões da integridade física dos demais utentes daquela via onde circulava. E ao ter iniciado a aludida manobra de mudança de direcção, sem se certificar que o podia fazer em segurança, e embater no motociclo que seguia na via de trânsito que lhe era destinada, a arguida deu causa ao acidente e a sua conduta teve como consequência necessária e directa a produção das lesões descritas em AA, resultado esse não pretendido por aquela, mas que lhe é pessoalmente imputável.
e) A arguida agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal como crime e tinha capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento
f) O demandante foi operado no Hospital ... e esteve internado por três dias, sendo que, após foi transferido para o Hospital ..., onde ficou internado cerca de duas a três semanas.
g) O demandante iniciou a fisioterapia um mês depois de ter retirado os ferros, sendo que entre Setembro e Dezembro de 2019, teve várias consultas nas quais não obteve bons resultados pelo que deixou a fisioterapia até finais de Fevereiro, inícios de Março de 2020, tendo feito ainda vários raios-X e ido a diversas consultas, o que culminou numa nova operação para a retirada de ferros e o levou ao internamento por mais cinco dias.
h) O demandante foi operado no Hospital ... em 1 de Julho de 2020.
i) O acidente deveu-se à fraca visibilidade existente no local do sinistro, pois que o tempo estava húmido e havia nevoeiro baixo típico do microclima de ....
j) No local existe um poste de iluminação pública que, conjugado com o nevoeiro, ampliou a intensidade das fontes luminosas e provocou o encandeamento da arguida.
10. O Tribunal norteou a sua convicção quanto à matéria de facto provada na valoração da prova produzida e examinada em audiência, conjugada com o princípio da livre apreciação da prova.
A arguida não contesta a forma como o acidente se deu, no dia, hora e local dados como provados: refere que pretendia efectuar uma manobra de viragem à esquerda, tendo parado o veículo no entroncamento, feito o “pisca”, avançando nessa direcção porquanto não viu nenhum veículo, mais esclarecendo que bem sabia que teria que ceder a prioridade a quem viesse da direita; não vendo nenhum veículo, tão pouco viu o motociclo conduzido pelo demandante, vindo este último a embater no carro da arguida. Esta dinâmica é confirmada pelo demandante AA, que é categórico ao dizer que viu a arguida parar o veículo, fazer o sinal de mudança de direcção à esquerda e reiniciar a marcha, mas também é claro ao dizer que da mesma forma que viu a arguida, também estava confiante que esta o teria visto, razão pela qual não moderou a velocidade e seguiu, pois que teria prioridade e a arguida tinha acabado de parar o veículo.
Está assente o acidente e a forma como o mesmo se deu, facto confirmado por FF, cabo da GRN que acorreu ao local e elaborou o relatório do mesmo e que consta de fls. 41 a 44, sendo óbvio que a causa do acidente – aliás, para todos os inquiridos – se deveu ao desrespeito da regra de prioridade por parte da arguida ou, mais concretamente, que esta não a cedeu ao motociclo conduzido pelo demandante.
Contudo, vem imputada à arguida uma condução perigosa do veículo nas duas modalidades previstas pelo tipo: violação grosseira de regras estradais e condução com falta de condições de segurança por se encontrar sob o efeito de estupefacientes. É neste ponto que a defesa assenta: na ausência de uma actuação perigosa por parte da arguida, porque foi a fraca visibilidade no local que contribuiu para o acidente e não uma actuação imprudente da arguida, pois que estava um tempo húmido, nevoeiro cerrado e baixo que, aliado à luz do candeeiro público, ofuscou a arguida e impediu-a de ver o motociclo na sua direcção. O demandante recorda uma zona com boa iluminação nocturna, vários candeeiros públicos e nenhum nevoeiro. FF admite que tendo chegado meia hora depois ao local, o tempo estava ligeiramente húmido e já chovia um pouco, mas não consegue precisar as condições meteorológicas ao tempo do acidente e nada refere quanto a nevoeiro. A mãe do demandante, GG, que acorreu ao local, também se lembra de nevoeiro; em suma, nenhuma testemunha ocular indica a presença desta neblina cerrada além da arguida. Foi ouvida HH, jurista especializada em acidentes de viação há dezoito anos, que elaborou um relatório do acidente de viação a pedido da defesa, e que consta de fls. 359 a 367, no qual, sumariamente, conclui que o acidente se pode ter ficado a dever, com grande probabilidade, ao factor encandeamento nevoeiro/candeeiro, pois que se deslocou várias vezes ao local, já posteriormente e para a elaboração do dito relatório, e apercebeu-se da existência de algum nevoeiro em determinados dias, sendo que, quando isso acontecia, julga que a luz do candeeiro que se encontrava mais próximo do local do sinistro era excessiva. Ora, é por demais evidente que não sendo testemunha ocular e muito menos perita em questões de física, dificilmente se pode atribuir qualquer credibilidade àquilo que não é, senão, uma opinião. Mas ainda que o Tribunal valorasse estas conclusões, estas sempre soçobrariam, pois que inexiste qualquer prova, à excepção das declarações da arguida, que no dia, hora e local do acidente existia nevoeiro baixo e cerrado.
O que se sabe, com toda a certeza, é que nessa altura a arguida conduzia sob a influência de canabinóides, respectivamente nas seguintes quantidades: 17 ng/ml para 11-NOR-9-carboxi-D9- tetrahidrocanabinol (THC-COOH); 1,8 ng/ml para Hidro-tetrahidrocanabinol (11-OH-THC), e 1,4 ng/ml para D9-Tetrahidrocanabinol (THC), conforme resulta do relatório pericial de fls. 25 e 26.
De acordo com o parecer elaborado pelo INML de fls. 115 e 116 no sentido de saber se a quantidade de estupefaciente detectada é susceptível de afectar as capacidades físicas, mentais ou psicológicas na condução do veículo automóvel, “os efeitos provocados pela presença no sangue do Δ9-tetrahidrocanabinol (THC) é susceptível de afectar capacidades congnitivas e psicomotoras necessárias ao acto de conduzir (…) Embora o consumo recente e ou concentrações de THC entre 2 e 5 ng/ml estejam associadas a uma deterioração substancial do desempenho, especialmente em consumidores ocasionais, em alguns casos, as alterações de desempenho podem verificar-se em concentrações inferiores a 1ng/ml, assim como decorrentes do efeito de “ressaca” que se pode prolongar por diversas horas.” Determina ainda que “ao contrário do que se verifica com o álcool, as variáveis associadas à farmacocinética e farmacodinâmica das substâncias estupefacientes e psicotrópicas tornam difícil estabelecer uma relação directa entre a concentração sanguínea das substâncias e as alterações cognitivas e psicomotoras que afectam a capacidade para conduzir.” Conclui, no entanto, que “as concentrações limite (cut-off) de Δ9-tetrahidrocanabinol (THC) no sangue actualmente previstas na maioria dos países europeus variam entre 1ng/ml e 3ng/ml. Face ao exposto, consideramos que a presença de Δ9-tetrahidrocanabinol (THC) numa concentração de 1,4ng/ml e do seu metabolito activo 11-Hidroxi-Δ9-tetrahidrocanabinol (11-OH-THC) numa concentração de 1,8ng/ml constitui um factor de risco e de impairment e por isso negativo para uma condução em segurança”. Ou seja, não é muito seguro a alcançar esta correlação condução sem segurança/ consumo de estupefacientes e fá-lo de forma conclusiva. Já a defesa junta um exame pericial elaborado por EE, médico legista, que conclui que “as concentrações de THC obtidas são muito baixas e inferiores ao intervalo em que se observam os primeiros indícios de diminuição da capacidade para a condução rodoviária (2 e 5 ng/ml)” pois que existem “estudos epidemiológicos que sustentam que as concentrações séricas de THC inferiores a 10ng/ml não estão associadas a um risco elevado de acidente.” No fundo, também de forma conclusiva, refere que só a partir de 2ng/ml se pode começar a falar de uma correlação condução sem segurança/ consumo de estupefacientes.
Muito se abordou em julgamento o resultado destes exames periciais mas, salvo o devido respeito, a conclusão de que a arguida conduzia influenciada pelo consumo de estupefacientes e que esse consumo a impedia de o fazer em segurança, é algo que transcende a perícia médico-legal, importando olhar as circunstâncias do caso concreto aliadas às regras da lógica, senso comum e experiência.
E, em suma, cremos que não ficou demonstrado que, em concreto, a substância detectada no sangue da arguida tenha tido efeitos perturbadores na sua aptidão física, mental e psicológica: desde logo, nenhum interveniente no local se recorda de ver a arguida com reflexos mais lentos ou com sinais físicos, designadamente no olhar, de consumo de estupefacientes. Resulta ainda provado que efectuou a manobra parando o veículo, ligando o pisca e depois prosseguiu a marcha, não virando à esquerda de forma desabrida ou em excesso de velocidade. Parou, inclusive, à chegada à encruzilhada, pelo que, à excepção de ter efectivamente embatido no motociclo, sem qualquer prova adicional, não se pode concluir por nenhuma violação grosseira das regras estradais ou que foi a condução sob o efeito de estupefacientes que a impediu de ver o motociclo – única parte que falhou na sua manobra de condução e que pode sugerir uma lentidão de raciocínio proveniente deste consumo, mas não é o bastante para estabelecer qualquer correlação- .
Por outro lado, o exame pericial elaborado pelo INML não discute a baixíssima concentração de estupefaciente no sangue, pelo que nem a quantidade por si é suficientemente demonstrativa, em face da experiência comum, da razoabilidade da vida e da normalidade das coisas, de que a arguida não se encontrava em condições de efectuar uma condução segura. Convém não esquecer que estamos perante uma concentração de Δ9-tetrahidrocanabinol (THC) de 1,4ng/ml e do seu metabolito activo 11-Hidroxi-Δ9-tetrahidrocanabinol (11-OH-THC) numa concentração de 1,8ng/ml, não sendo raro ver situações de concentração de 50ng/ml onde aí é bem mais evidente que um sujeito não se encontre em condições de conduzir em segurança.
Em suma, não existe qualquer prova de que a presença de canábis nas quantidades dadas como provadas perturbaram as percepções sensoriais da arguida e exerceram uma influência nefasta no acto de condução não lhe permitindo atenção e tempo de reacção de um condutor num estado considerado normal.
No que respeita ao pedido de indemnização civil, o Tribunal atendeu ao declarado pelo demandante AA, no sentido que foi alvo de internamentos e intervenções cirúrgicas, assim como que recebeu um adiantamento da seguradora no valor total de €14.500,00, facto confirmado pelo funcionário da demandada, II. Mas quanto ao demais, inexiste prova que o confirme, designadamente os dias de internamento. Quanto ao peticionado a título de danos patrimoniais, o Tribunal está balizado pelo princípio do pedido, nada tendo sido alegado em concreto, quanto a valores de danos patrimoniais.
A matéria dada como não provada quer da acusação, quer da contestação resulta da ausência de prova quanto à mesma ou da flagrante contradição com os factos dados como provados.
As condições pessoais da arguida foram pela própria relatadas e na medida do dado como provado lograram convencer o Tribunal. A consideração que detém junto da família e comunidade foi atestada por AA, que atestou o acompanhamento que a arguida lhe prestou desde o acidente, JJ, KK, LL e MM.
Relativamente aos antecedentes criminais da arguida o Tribunal formou a sua convicção com base no teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
IV. E N Q U A D R A M E N T O J U R Í D I C O - L E G A L
11. A arguida encontra-se acusada pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º n.º 1 al. a) e b) e 3 e 69.º n.º 1 al. a) do Código Penal por referência ao artigo 30.º n.º 1, 35.º n.º 1, 44.º n.º 1, 81.º n.º 1 e 5 do Código da Estrada.
Dispõe o referido artigo 291.º, no que ao caso importa, que “quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada: a) não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, se o perigo referido no n.º 1 for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.”.
Tal como no tipo incriminador da condução de veículo em estado de embriaguez, visa-se tutelar, ao abrigo do artigo 291.º do Código Penal, a segurança rodoviária e bens jurídicos de natureza pessoal, como sejam a integridade física e a vida e, bem assim, bens jurídicos patrimoniais, desde que os mesmos tenham valor elevado. Mas ao contrário do artigo 292.º do Código Penal, que é um crime de perigo abstracto, o crime de condução perigosa de veículo rodoviário não prescinde da criação de uma situação de perigo concreto para a vida, integridade física ou para o património de valor elevado, pelo que não havendo tal situação de perigo concreto, o tipo incriminador não estará preenchido.
No que concerne ao tipo objectivo de ilícito, o mesmo é susceptível de preenchimento através de dois tipos de conduta do agente, tratando-se de crime de execução vinculada, pois que o modo de execução vem descrito no tipo: falta de condições para conduzir em segurança, no que ao caso importa, mercê do estado de influência de estupefacientes e violação grosseira das regras de circulação rodoviária.
Comecemos pelo fim, ou seja, pela falta de condições para conduzir em segurança, que se consubstancia na violação grosseira das regras de circulação rodoviária, sendo in casu a mesma constituída, em tese, por uma condução temerária, com desatenção pelos mais elementares deveres de cuidado empregues no acto de conduzir.
Tais factos a resultarem provados seriam por si infracções estradais isoladamente consideradas como contra-ordenações graves e muito graves, a saber a não cedência de passagem aos veículos que se apresentem pela direita nos cruzamentos e entroncamentos, a não realização de manobras de mudança de direcção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha sem provocar perigo ou embaraço para o trânsito, a mudança de direcção à esquerda sem obedecer ao legalmente estatuído e à condução sob o efeito de estupefacientes (artigos 30.º n.º 1, 35.º n.º 1, 44.º n.º 1 e 81.º n.º 5 do Código da Estrada.)
Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, a incriminação é susceptível de ser preenchida mediante actuação dolosa ou negligente, em quaisquer das suas formas (cfr. artigos 14.º, 15.º e 291.º, n.º 3 e 4, todos do Código Penal). Cabe aqui referir que os n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo distinguem-se por via do desvalor da acção, isto é, se a acção foi perpetrada de forma dolosa (n.º 3) ou negligente (n.º 4), sendo que, em ambos os casos, a situação de perigo concreto é criada de forma negligente. Assim, e fazendo uso das palavras de Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 1088, enquanto no caso do art.º 291.º n.º 3, do Código Penal, o “agente sabe, tem plena consciência da sua incapacidade para conduzir, mas não representa (negligência inconsciente), ou representa e afasta a possibilidade (negligência consciente), da criação de um perigo para os bens jurídicos”, no caso do n.º 4 deste artigo “o agente actua com total negligência, isto é, desconhece negligentemente a sua incapacidade e dessa forma se dispõe a conduzir”.
Ora, revertendo ao caso concreto, poderemos concluir que da actuação da arguida resultou um perigo concreto? Relativamente à forma como esta conduzia, sob a influência de estupefacientes e violando a regra de circulação referente à cedência de prioridade, seria legítimo concluir que estava a colocar em perigo os demais utentes da via?
A este propósito o ac. R.L de 26.9.disponível em www.dgsi.pt, relatado pelo Desembargador José Adriano: “Os maiores problemas surgem, porém, quando se coloca a questão de saber como há-de configurar-se ou como deve comprovar-se esse resultado de perigo concreto, questão sobre a qual a jurisprudência nacional não se tem debruçado, sendo também pouco clara e escassa a doutrina que a tal respeita. Rebuscando, mais uma vez, na jurisprudência alemã, de que nos dá conta Roxin, diz-nos esta que o conceito de perigo escapa a uma “descrição científica exacta”, e que o mesmo é “predominantemente de natureza fáctica e não jurídica”, ou ainda que “o conceito de perigo concreto não se pode determinar com validade geral, senão apenas segundo as circunstâncias particulares do caso concreto”. De todo o modo, ainda segundo o mesmo autor, daquela jurisprudência “podem extrair-se os pressupostos de um perigo concreto geralmente reconhecidos: em primeiro lugar, há-de existir um objecto de acção e ter este entrado no âmbito da acção de quem o põe em perigo e, em segundo lugar, a acção típica tem que ter criado um perigo iminente de lesão desse objecto da acção” .Dando preferência à “teoria normativa do resultado de perigo”, defende o mesmo ilustre penalista “que existe um perigo concreto quando o resultado lesivo não se produz só por casualidade”, devendo entender-se esta “não como o inexplicável segundo as ciências naturais, mas sim como uma circunstância em cuja produção não se pode confiar”. Assim, “todas aquelas causas salvadoras que se baseiam numa extraordinária destreza do ameaçado ou numa feliz e não dominável concatenação de outras circunstâncias, não excluem a responsabilidade pelo delito de perigo concreto”. Na mesma linha de pensamento se situa o Supremo Tribunal Federal alemão, ao exigir um perigo “que indica que está iminente um acidente caso não haja uma mudança repentina, por exemplo porque o sujeito ameaçado adopte uma medida protectora em consequência de uma adivinhação ou percepção mais ou menos sensível ao perigo”. Havendo ainda quem entenda o “perigo como crise aguda do bem jurídico”, produzindo-se essa crise “quando for ultrapassado o momento em que poderia evitar-se um dano com segurança mediante medidas defensivas normais”.
A descrição fáctica relativa à condução sob o efeito de estupefacientes também não é suficiente, por si só, para a imputação de um perigo concreto. Também da manobra de mudança de direcção, nos termos em que é dada como provada, não se vislumbra que constitua uma violação grosseira, ostensiva e temerária da regra de circulação de onde se infira, isoladamente, a criação de um perigo concreto, mas tão somente uma forma normal de violação de regras estradais, sendo que não é qualquer violação dessas regras que permite concluir pelo preenchimento do crime, pois que para que se preencha o tipo legal e se verifique o perigo concreto, a condução deverá reflectir algo mais face à simples violação de uma regra estradal e a matéria de facto provada não fornece esse elemento adicional.
Não há dúvidas que a arguida produziu um resultado danoso, ao ofender fisicamente o demandante, mas nada na manobra da arguida permite categorizá-la como concretamente criadora de perigo.
O simples facto de ter resultado um dano poderia levar à constatação da criação de perigo, mas isso não é o suficiente para excluir a necessidade de alegação e prova desse elemento, pois que é indispensável ao preenchimento do crime.
Por outro lado, e no que respeita ao elemento subjectivo, resulta claro que a arguida não previu a possibilidade de ofender alguém na sua integridade física, cometendo o crime na sua forma negligente. Mas será que previu que com a sua conduta poderia criar perigo real para os restantes utentes? Também não existe prova nenhuma concreta quanto a isto, pelo que não estão preenchidos os elementos típicos do crime em apreço, nem no que respeita à violação grosseira de regras estradais nem quanto à condução sem condições de segurança por conduzir sob o efeito de estupefacientes.
Neste aspecto, não basta, para o preenchimento do crime, que o condutor se encontre sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas, sendo necessário provar que isso o impede de exercer a condução com segurança.
O exame pericial realizado limita-se a assegurar que o condutor conduzia influenciado pelo consumo de estupefacientes, mas valorar se esse consumo a impede ou não de exercer a condução em segurança, transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.
Não se trata de estabelecer um nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de estupefacientes e o acidente ocorrido, nem tão pouco de concluir simplesmente que quem conduz influenciado sob o efeito destas substâncias está a colocar em perigo, não só a sua vida e integridade física, mas também, a vida e a integridade física de todos aqueles com quem se cruza na estrada.
Ora, não foi cabalmente demonstrado que esse consumo a impediu de conduzir com segurança. A cannabis é considerada como idónea a perturbar e influenciar as capacidades e aptidões humanas, nomeadamente as sensoriais, mas desconhece-se exactamente a partir de que grau – contrariamente ao álcool – é potenciadora da criação de perigo e falta de segurança na actividade de conduzir.
Salvo melhor opinião, não ficou demonstrado que, em concreto, a substância detectada no sangue da arguida, nas quantidades em que o foram, teve efeitos perturbadores da sua aptidão física, mental e psicológica e que esta sabia que não se encontrava em condições de conduzir com segurança.
Afastado o preenchimento dos elementos típicos do crime de condução perigosa, apenas subsistem os elementos típicos constitutivos do crime de ofensa à integridade física negligente previsto e punido pelo artigo 148.º do Código Penal, que foi alvo de desistência de queixa e o crime previsto no artigo 292.º n.º 2 do Código Penal que também soçobra pela ausência de prova da condução com falta de condições de segurança.
Assim sendo, em face do exposto, impõe-se, sem mais, a absolvição da arguida.
V. DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL
12. Em casos de responsabilidade civil conexa com a criminal, a causa de pedir da pretensão ressarcitória, surge pela prática de crime, uma vez que é o seu facto constitutivo.
A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, nos termos do artigo 377.º, n.º 1 do Código de Processo Penal), pois que determinado acto pode não ser punível criminalmente, por não estarem reunidos os factos típicos ou os elementos subjetivos do crime, mas ainda assim pode constituir um ilícito de outra natureza, gerador de responsabilidade civil. (cfr. neste sentido Ac. STJ de 27 de Abril de 2011, proc. N.º 712/00.9JFLSB.L1.S1, in dgsi.pt).
Veio o ofendido deduzir pedido de indemnização cível contra a seguradora demandada pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de €40.000,00 reportada a danos não patrimoniais, acrescida de €397,60 a título de danos patrimoniais.
De acordo com o artigo 483.º n.º 1 do Código Civil “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Como claramente se deduz da factualidade provada, não resulta que a arguida tenha praticado qualquer acto voluntário violador do direito do ofendido, que tenha actuado de forma ilícita ou de disposições legais destinadas a proteger tais interesses. Acresce que o demandante não fez prova dos poucos factos que alega, não juntando qualquer documentação quanto aos locais e tempo de internamento ou dias que teve de baixa; quanto a danos patrimoniais nem sequer é alegado o montante dos mesmos, limitando-se, a final, a peticionar o valor de €397,60 por “capacete e veste completamente destruídos, o que fez ainda com que tivesse prejuízos económicos”.
Ora, é possível a dedução de pedidos genéricos quando não é possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, o que levará, inevitavelmente, a uma liquidação em execução de sentença.
Mas, neste caso, o lesado conhece alguns danos sofridos, senão a maior parte, pelo que se impunha que os viesse quantificar devidamente. Acresce que, também porque não alegou devidamente o que pretende, é complicado descortinar o que seriam danos indemnizáveis e aquilo que foi ressarcido a título de adiantamento por parte da seguradora.
Assim sendo, na ausência de alegação concreta e prova adequada quanto aos factos, impõe-se, sem mais, a absolvição da demandada.
13. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 299.º n.º 1, 297.º n.º 1 e 306.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, fixo à causa cível o valor de €40.397,60 (quarenta mil, trezentos e noventa e sete euros e sessenta).”.
*
iv – fundamentação.
O recorrente insurge-se contra a decisão recorrida argumentando que a mesma deve ser revogada, para se considerar a arguida BB responsável pelo pagamento de todos os prejuízos sofridos pelo demandante, condenando-a no pedido de indemnização civil formulado, no montante peticionado no valor de €40.000,00 a título de “danos morais” e € 397,60 a título de danos patrimoniais.
Ao lançar mão desta via de impugnação recursiva, olvidou, certamente a decisão proferida nestes autos em 14 de dezembro de 2020 que, como resulta do teor supra transcrito, absolveu a demandada BB da instância, e a circunstância de não ter, atempadamente impugnado tal decisão.
Faz, assim, o recorrente, tábua rasa do instituto do caso julgado formal, esquecendo que o despacho proferido em 14.12.2020 é um despacho decisório (e não um despacho de mero expediente) que, não sendo alvo de impugnação, transita em julgado, tornando a questão que apreciou em res judicata.
Pese embora o Código de Processo Penal não se debruce sobre a distinção entre despachos decisórios e despachos de mero expediente, tal omissão deve ser suprida por recurso ao Código de Processo Civil, nos termos previstos pelo artigo 4º daquele primeiro código.
O artigo 152.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Dever de administrar justiça - Conceito de sentença” estabelece (sublinhado nosso):
1 - Os juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes e cumprindo, nos termos da lei, as decisões dos tribunais superiores.
2 - Diz-se «sentença» o ato pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa.
3 - As decisões dos tribunais colegiais têm a denominação de acórdãos.
4 - Os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes; consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador.
Seguindo entendimento jurisprudencial e doutrinal pacífico, terá a natureza de despacho de mero expediente o despacho que, cumulativamente, não decidindo qualquer questão de forma ou de fundo, tem a finalidade de determinar o regular andamento do processo, fundando-se no pressuposto de que do seu conteúdo não surge qualquer interferência no conflito de interesses entre as partes ou, no caso do processo-crime, qualquer alteração ou diminuição de garantias de defesa.
O despacho de 14 de dezembro de 2020, constituiu um despacho decisório, decidindo quanto à legitimidade passiva da demandada BB, concluindo pela falta de tal pressuposto processual e absolvendo a mesma da instância cível enxertada.
Não tendo sido alvo de impugnação recursiva, formou-se caso julgado que, no âmbito dos presentes autos impede que a questão volte a ser apreciada.
Como se explicitou no Acórdão do STJ de 24 de Maio de 2006[1], “…O caso julgado formal constitui noção separada do caso julgado que, como categoria geral (caso julgado material) está construída para a decisão definitiva do direito do caso, nas condições da sua existência, conteúdo e modalidades de exercício; no processo penal respeita à declaração sobre a culpabilidade e determinação da sanção, bem como da não culpabilidade (seja por não pronúncia ou por absolvição).
O caso julgado que fixa, no processo e fora dele, a vinculação de efeitos materiais quanto à definição e concretização judicial da relação controvertida ou objecto material do processo, é o caso julgado material - fixado e estável com fundamento na vinculação às decisões e na realização dos valores da justiça, certeza e segurança, também no âmbito do exercício do direito de punir do Estado em relação ao cidadão arguido da prática de uma infracção penal.
Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.
O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial.
O caso julgado formal traduz-se em mera irrevogabilidade de acto ou decisão judicial que serve de continente a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento, isto é, em inalterabilidade da sentença por acto posterior no mesmo processo (cfr. Castro Mendes, "Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil", pág. 16).
No caso julgado formal (art. 672° do Cód. Proc. Civil), a decisão recai unicamente sobre a relação jurídica processual, sendo, por isso, a ideia de inalterabilidade relativa, devendo falar-se antes em estabilidade, coincidindo com o fenómeno de simples preclusão (cfr. Alberto dos Reis, "Código de Processo Civil, Anotado", vol. V, pág. 156).
Há, pois, caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicatï) - cfr. Acs. do Supremo Tribunal de 23 de Janeiro de 2002, Proc. 3924/01, e de 3 de Março de 2004, Proc. 215/04.
O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.
Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade - a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão.
No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual.”.
Por via do caso julgado formal, as decisões têm força obrigatória dentro do processo.
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O recurso interposto da sentença proferida em 14 de outubro de 2021, visando a responsabilização de BB pelo pagamento de todos os prejuízos sofridos pelo demandante, condenando-a no pedido de indemnização civil formulado, no montante peticionado no valor de €40.000,00 a título de “danos morais” e € 397,60 a título de danos patrimoniais, faz tábua rasa do caso julgado formal.
Não tendo o Demandante, no tempo devido, interposto recurso do despacho de 14.12.2020, no qual se decidiu julgar verificada a excepção dilatória de ilegitimidade passiva da demandada/arguida (por o valor do pedido cível formulado não ultrapassar o capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório), nos termos do disposto no art. 64 nº 1 al. a) do Dl. 291/2007, e se determinou a sua absolvição da instância cível, formou-se caso julgado nessa matéria – a decisão de 14.12.2020 tem força obrigatória dentro do processo.
Assim sendo, mostrando-se prejudicada a apreciação nestes autos de todos os aspectos da questão da demanda cível dirigida contra BB, o recurso que visa obter o efeito de condenação da parte que já foi absolvida da instância, não poderá deixar de ser rejeitado, nos termos do disposto no artigo 420º, nº 1, do Código de Processo Penal.
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V. DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em rejeitar o recurso interposto pelo Demandante AA, condenando-o no pagamento da soma de 3 (três) UC, nos termos do disposto no artigo 420º, nº 3, do Código de Processo Penal.
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D.N.
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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Lisboa, 28 de junho de 2022
Juiz Desembargador Relator: Jorge Antunes  
Juíza Desembargadora Adjunta: Sandra Oliveira Pinto
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[1] Cfr. o Acórdão do STJ de 24 de Maio de 2006 - Relator Henriques Gaspar, acessível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cb5eb715658ce2ae802572110031b484?OpenDocument.