Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7/24.2YTLSB.L1-9
Relator: MARIA JOÃO FERREIRA LOPES
Descritores: LEIS COVID
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
PROCESSOS EM CURSO
CRIME DE BURLA
ESTADO DE ERRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: PROVIDO E NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I. A aprovação de legislação específica de prevenção e repressão da pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, criando medidas excepcionais e temporárias, aparece como elemento estranho e de distorção da lógica jurídica.
II. Quer o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, quer o artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei 4-B/2021, são aplicáveis aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência e também no que concerne à prescrição dos crimes, pois que a suspensão dos prazos aí prevista não radicou em qualquer objectivo de política criminal, não pretendendo o legislador com esta norma “prolongar” a sua atividade de prossecutor da ação penal, nem reparar uma situação de “inércia pretérita” do Estado, repondo um período de tempo em seu benefício
III. A aplicação imediata desta causa de suspensão a processos em curso não colide com as garantias asseguradas pelo princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, quando, como é o caso, no momento da sua entrada em vigor, o prazo de presrição já se tinha iniciado e, apesar de se encontrar em curso, não se havia ainda extinto, solução que cremos mais adequada e compreensiva da realidade e das especificidades que determinaram as ditas “Leis Covid”, crendo que tal solução não colide, com qualquer normativo legal.
IV. O tribunal de recurso não pode ordenar que a 1.ª instância adite à decisão recorrida a referência expressa, ao facto de que a não aplicação do regime legal previsto no artigo 7.º da Lei 1-A/2020 se fica a dever ao entendimento de que tal norma é inconstitucional.
V. No crime de burla, para que o engano seja causa adequada a produzir o erro é suficiente que possa exercer influência no ânimo do sujeito passivo, no entanto, o meio enganador não é suficiente: torna-se necessário que ele consubstancie a causa do erro, em que se encontra o burlado.
VI. Da mesma forma, não é suficiente a simples verificação do estado de erro; necessário, será, ainda, que nesse engano resida a causa da prática pelo enganado dos actos donde decorre o prejuízo patrimonial.
VII. Em termos dogmáticos, só excepcionalmente, a responsabilidade penal recai, que não, em pessoas singulares (artigo 11.º CP), sendo que o crime de burla é, um dos que pode ser praticado por uma pessoa colectiva (n.º 2 de tal norma) e as sociedades civis são consideradas para o efeito, equiparadas a pessoa colectivas (n.º 5.), desde que cometido em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nela ocupem uma posição de liderança.
VIII. Ocupam posição de liderança, nos termos do n.º 4, da norma supra citada os órgãos e representantes da pessoa colectiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua actividade) ou por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbam (alíneas a) e b) d referido n.º 2).
IX. O gestor de conta, que era a função do arguido no seio da entidade para quem trabalhava não exerce qualquer posição de liderança, de representante da instituição, em face do disposto nos artigos 163.º/1 e 996.º do Código Civil, do contrato de constituição da sociedade, do pacto social, dos estatutos, de quem a administração determinar ou de quem for por ela designado.
X. É de afastar o elemento subjectivo do crime de burla em relação a quem, está ele próprio, induzido em erro, por parte da instituição para quem trabalha e, por arrastamento, poder vir a induzir em erro o cliente da instituição.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
Proferida decisão instrutória,
1. Inconformado, com o segmento que decretou a extinção por prescrição do procedimento criminal dos crimes de infidelidade imputados aos arguidos AA e BB, recorreu o MP, pugnando pela pronúncia pelos referidos crimes, porquanto por força da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o prazo de prescrição se suspendeu desde dia 9 de Março e até ao dia 3 de Junho de 2020, razão pela qual a prescrição não ocorreu ou, subsidiariamente, deve passar a constar da fundamentação da decisão recorrida a não aplicação do regime previsto no artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março, alterada pela Lei n.º4-A/2020, de 6 de Abril, por se entender que a norma é inconstitucional, rematando o corpo da motivação com as conclusões que se passam a transcrever:
“1. O Mm.º Juiz de Instrução, não obstante ter pronunciado os arguidos por todos os factos descritos na acusação, decidiu, além do mais, julgar verificada a prescrição dos crimes de infidelidade imputados aos arguidos AA e BB.
2. E fê-lo por entender que a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal que vigorou desde 9 de Março de 2020 até 3 de Junho de 2020 não pode alargar os prazos de prescrição do procedimento criminal em curso, sem violar o princípio da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido, consagrada nos artigos 2.º/4 CP e 29.º/4 da CRP.
3. Mais defendendo esta posição jurídica com o argumento de que assim tem entendido a maioria da doutrina e jurisprudência.
4. O Ministério Público, na senda do que tem defendido ao longo destes autos, não concorda com essa posição.
5. E entende que o prazo de prescrição destes crimes ainda não ocorreu.
6. A Lei n.º 1-N2020, de 19 de Março, alterada pela Lei n.º 4-N2020 de 6 de Abril, no seu artigo 7.º, prevê que a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da epidemia vulgarmente conhecida como COVID-19, constitui causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
7. Se o Tribunal entendeu não aplicar esta lei porque a mesma viola o princípio constitucional da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido, então a única conclusão possível é a de que entende que a lei em causa é inconstitucional.
8. Mas não o disse expressamente na sua decisão o que, em nosso entender se impunha.
9. É que o Tribunal não parece questionar que a situação factual dos autos se enquadra nesta norma; o que diz é que entende que não é de aplicar a mesma por violação de um princípio constitucional.
10. O Ministério Público entende que a norma existe e como tal tem de ser aplicada.
11. Para não o ser, o julgador tem de alegar a sua inconstitucionalidade.
12. Acresce que embora exista diversa jurisprudência sustentando a mesma tese da decisão instrutória, esta está muito longe de ser unânime.
13. E mesmo acórdãos em que assim se decidiu têm votos de vencido.
14. Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem sustentado que não existe nenhuma inconstitucionalidade na interpretação do artigo 7.º/3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respectiva vigência.
(…)”
2. Respondeu a arguida BB, pugnando pela inexistência de fundamento para considerar aplicável in casu o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redacção original, como defende o Recorrente, por se tratar de normativo materialmente inconstitucional, concluindo a recorrida, nessa senda, pela expressa arguição de inconstitucionalidade com o seguinte recorte: o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redacção original, se interpretado no sentido de ser aplicável a processos crime pendentes à data da sua entrada em vigor e a factos ilícitos penais praticados em momento anterior a essa vigência, é materialmente inconstitucional por violação dos princípios da segurança e confiança jurídicas impostos pelo Estado de Direito Democrático e da não retroactividade de lei penal que seja desfavorável ao arguido, consagrados nos artigos 2.º e 29.º, n.º 4, da CRP, por violação da força jurídica dos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, prescrita pelo artigo 18.º da CRP e por violação da intangibilidade do princípio da irretroactividade da lei penal menos favorável ao arguido preconizada pelo artigo 19.º, n.º 6, da CRP, concluindo pela forma seguinte:
“(…)
a) O Meritíssimo Juiz a quo considerou esgotado, antes da notificação do despacho de acusação à ora Recorrida, o prazo de cinco anos previsto pelo artigo 118.º, n.º 1, alínea c), do CP para que se suceda a prescrição do procedimento pelo crime de infidelidade, não acolhendo nesse cálculo a suspensão de prazo prevista pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, por entender que a mesma não se coaduna com o princípio da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido, preconizada pelos artigos 2.º/4 CP e 29.º/4 da CRP – entendimento esse que a Recorrida subscreve na íntegra.
b) O Ministério Público, aqui Recorrente, não se conforma com tal douta decisão e cinge a sua motivação de recurso à aplicação do regime excepcional e temporário preconizado pela Lei n.º 1- A/2020, de 19 de março, que preconizou a suspensão dos prazos de prescrição no período compreendido entre os dias 9 de março e o dia 3 de junho de 2020, suspensão essa que considera aplicável ao procedimento criminal sub judice e que, a final, inibiria a verificação da respetiva extinção por prescrição quanto ao crime de infidelidade.
c) A título preliminar, importa realçar que a arguida suscitou no seu requerimento de abertura de instrução o escrutínio atinente à falta de uma condição essencial de procedibilidade da imputação da prática (entre outros) de um crime de infidelidade, previsto e punível pelo artigo 224.º/1 CP, em alegada coautoria com CC, AA, DD e EE, encontrando-se essa falta materializada na ausência de apresentação de queixa crime por iniciativa dos efectivos titulares dos direitos e bens cuja tutela o tipo penal em apreço visa proteger, bem como a não verificação dos elementos do tipo.
d) Não tendo tal matéria sido objecto de apreciação por parte do Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal (porque prejudicada pelo prévio, e liminar, julgamento da prescrição do procedimento criminal – o que a aqui Recorrida subscreve in totum), não prescinde a Recorrida de manter a arguição de tais inarredáveis vícios, na eventualidade de, em mera conjectura (no que, salvo o devido respeito, e em bom rigor, somente se alvitra mas nela não se concede, por não fundada), superiormente se venha a julgar não verificada a prescrição do procedimento penal pelo crime de infidelidade.
e) Além disso, a decisão recorrida, antes da incursão sobre a temática da prescrição, alinha argumentos claramente tendentes à consideração da não punibilidade dos comparticipantes não administradores no crime de infidelidade; a não comunicabilidade da qualidade do agente, por não aplicação ao crime de infidelidade do disposto no artigo 28.º/1 CP, importa à defesa da Recorrida, tanto mais que, atendendo à qualidade em que, alegadamente, interveio nos factos subjacentes ao dito ilícito, é evidente que não lhe pode ser assacável a prática de um crime de infidelidade, por falta de um elemento essencial do respectivo tipo.
f) Destarte, à semelhança do que antes se enunciou, assegurando um hipotético provimento do recurso sob resposta (note-se: no que não se concede, por absolutamente infundado, e somente se alvitra por cautela, e em mera tese), mais uma vez, nesse caso, não abdica a Recorrida do ulterior escrutínio conclusivo do mencionado fundamento para efeito de não pronúncia pelo crime de infidelidade.
g) No que ao recurso sub judice respeita, é de ter como assente que o prazo quinquenal de prescrição do procedimento criminal pelo crime de infidelidade, no caso da Recorrida, encontra-se precludido desde o dia 14 de maio de 2020, porquanto a constituição de arguido ocorreu em 14 de maio de 2015 e, desde então, não se verificou qualquer causa interruptiva ou suspensiva do procedimento até à data de notificação do despacho de acusação, que se consumou em 14 de julho de 2020.
h) Entende o Recorrente que a decisão recorrida não contemplou a eficácia do regime especial e temporário operado pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, maxime o seu artigo 7.º/3 e 4 (por via do qual considera aplicável ao cômputo do prazo de prescrição a suspensão pelo período de dois meses e vinte sete dias nele prevista) – que aquele considera ser de aplicação injuntiva –, mais aditando que, a ser assim, o Meritíssimo Juiz a quo teria de julgar inconstitucional o referido regime a fim de recolher legitimidade para rejeitar a sua aplicabilidade na situação sub judice.
i) Salvo o devido respeito, a menção à inconstitucionalidade do citado regime temporário existe na decisão recorrida, ainda que podendo estar imperfeitamente expressa, e supre o vício que o Recorrente lhe aponta.
j) Não pode a Recorrida deixar de discordar da constitucionalidade do mencionado regime, entendendo, outrossim, que a aplicação do regime temporário e excepcional que prorroga o prazo de prescrição do procedimento criminal instaurado pela prática de um crime em data anterior à sua vigência afronta o princípio da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido, postulado pelos artigos 2.º/4 CP e 29.º/4 da CRP.
Vejamos porquê:
k) O crime de infidelidade, tal como surge imputado à ora Recorrida, tem a sua sede legal no n.º 1 do artigo 224.º CP, e tem como moldura penal máxima a pena de três anos de prisão ou pena de multa, donde resulta que o prazo de prescrição do procedimento criminal é de cinco anos, nos termos previstos pelo artigo 118.º/1 alínea c) CP.
l) O início do prazo de prescrição, conforme dimana do artigo 119.º/1 CP, conta-se desde o dia em que o facto se tiver consumado, mas, no caso em apreço, não existe um dado cronológico objectivo no despacho de acusação que permita conhecer a data da prática do ilícito penal indiciariamente imputado à Recorrida; de qualquer forma, tendo in casu ocorrido a interrupção do prazo de prescrição (independentemente da data em que o mesmo se despoletou) com a constituição de arguido, e que tal se sucedeu no dia 14 de maio de 2015, dúvidas não restam de que aí se reinicia o prazo de cinco anos para efeito de prescrição do procedimento criminal – cfr. artigo 121.º/1 alínea a) e 2 CP – o que equivale a concluir que o mencionado prazo quinquenal terminou no dia 14 de maio de 2020, sem que entre a constituição de arguido e a notificação do despacho de acusação tenha ocorrido qualquer causa de suspensão do mesmo, incluindo a suspensão a que alude a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no seu artigo 7.º.
m) Tal asserção decorre da desconsideração da aplicação de tal diploma, por se entender que o mesmo, na parte em que pretende suspender o prazo de prescrição do procedimento criminal pelo período de oitenta e seis dias, é materialmente inconstitucional.
n) E isto porque, o artigo 7.º/3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redacção original, se interpretado no sentido de ser aplicável a processos crime pendentes à data da sua entrada em vigor e a factos ilícitos penais praticados em momento anterior a essa vigência, é materialmente inconstitucional por violação dos princípios da segurança e confiança jurídicas impostos pelo Estado de Direito Democrático e da não retroactividade de lei penal que seja desfavorável ao arguido, consagrados nos artigos 2.º e 29.º/4 da CRP, por violação da força jurídica dos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, prescrita pelo artigo 18.º da CRP e por violação da intangibilidade do princípio da irretroactividade da lei penal menos favorável ao arguido preconizada pelo artigo 19.º/6 da CRP.
o) Antes de mais, a previsão de uma suspensão, excepcional e interlocutória, do prazo de prescrição do procedimento criminal convoca uma dilação da duração do iter processual que não se compagina com a expectativa de qualquer arguido no sentido de o Estado cumprir, em tempo, a sua competência acusatória; admitir, assim, que um prazo de prescrição pode ser suspenso para além das regras legais existentes e aplicáveis à data da prática do facto reputado ilícito, diferindo no tempo o seu termo final, é frustrar a expectativa de um qualquer cidadão que, sendo arguido, confia na segurança jurídica do quadro legal vigente e no fiel funcionamento do Estado de Direito.
p) Por sua vez, vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio fundamental da aplicação retroactiva das leis penais mais favoráveis ao arguido, não podendo este merecer censura penal mais grave do que a preconizada à data da prática da conduta tida por ilícita – tal direito e garantia fundamental apresenta-se sob a égide da aplicação da lei criminal no tempo, conforme consagrado pelo artigo 29.º/4 da CRP, dispositivo constitucional do qual resulta que é retroactivamente inaplicável ao arguido uma lei que comporte conteúdo que, no caso concreto, lhe seja menos favorável do que aquela que se encontrava em vigor no momento da consumação do crime.
q) Este direito e garantia fundamental consubstancia um princípio tão importante, que o legislador constitucional o elegeu para o figurino de direitos intocáveis pela declaração de estado de sítio ou de emergência, conforme dita o n.º 6 do artigo 19.º da CRP, sob a epígrafe de suspensão do exercício de direito – intangibilidade que surge consolidada, senão decalcada, pelo legislador ordinário na Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, que disciplinou o regime do estado de sítio e do estado de emergência.
r) Mais: a não afectação da não retroactividade da lei criminal ficou expressa nos Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março (artigo 5.º/1), n.º 17-A/2020, de 2 de abril (artigo 7.º/1) e n.º 20-A/2020, de 17 de abril (artigo 6.º/1).
s) Acresce que os direitos, liberdades e garantias só podem ser comprimidos em situações excepcionais positivadas e observado que esteja o princípio da proporcionalidade, nos termos que constam do artigo 18.º da CRP; tendo (também) presente esse ditame constitucional é inarredável que a suspensão da prescrição do procedimento criminal contida no artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, com ele não se concilia, antes o pretere, na exacta medida em que não concatena qualquer proporcionalidade entre a violação do direito e garantia fundamental à irretroactividade da lei menos favorável ao arguido, por um lado, e os objectivos que aquele diploma visa alcançar, por outro.
t) Para essa conclusão concorrem, entre outros, as regras de interpretação previstas pelo artigo 9.º/1 CCivil, que postulam que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada; ancorado em tais premissas hermenêuticas, afigura-se pertinente recordar que a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março ocorreu num contexto específico de crise de saúde pública, no seguimento do surto originado pela propagação do vírus SARS-CoV-2 e, por via desta, da doença COVID-19, que conduziu à declaração de pandemia pela Organização Mundial de Saúde, em 11 de março de 2020; em tal enquadramento, foram impostas medidas excepcionais (de limitação e condicionamento de acesso, circulação e permanência de pessoas, de limitação e condicionamento de certas atividades económicas e de fixação de normas de organização de trabalho e de estabelecimentos em funcionamento) que visaram a contenção dos efeitos nefastos do vírus e suster a propagação da mencionada doença, mas, no que respeita ao foro judicial, não constituíram obstáculo à prossecução de alguns prazos processuais, nem impediram na totalidade a actividade dos tribunais – como se pode constatar nos presentes autos, em que no período de suspensão foram realizadas diversas diligências de prova e de normal tramitação processual, em escala muito expressiva.
u) Ou seja, em função das concretas circunstâncias em que a lei foi publicada e do específico desiderato que a animou, a continuidade da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal durante o período compreendido entre o dia 9 de março de 2020 e o dia 3 de junho de 2020 em nada prejudica, nem perverte, quer o espírito legislativo (a “mens legis”), nem o fim que a norma visa alcançar; e, nessa esteira, a imposição da suspensão do prazo de prescrição criminal configura um evidente atropelo, desproporcional, do direito e garantia fundamental do arguido a não ser sujeito à aplicação retroactiva de uma lei penal menos favorável, traindo a confiança que o mesmo depositou na segurança jurídica que o Estado de Direito não pode deixar de afiançar, e com a qual se conformou – situação que não capta tutela constitucional.
v) O instituto da prescrição do procedimento criminal não pode, por conseguinte, ceder perante a superveniência de circunstâncias que – sem que exista contributo do arguido (actuando com desvalor jurídico para a ocorrência desse circunstancialismo), e sem que as mesmas impeçam a prossecução, ainda que cerceada, do processo – possam diferir no tempo os prazos nele previstos, em particular quando à data da prática do facto esse prazo estava definido quanto à sua suspensão, interrupção e termo máximo, gerando uma expectativa firme de inalterabilidade e, muito mais, de não agravamento.
(…)”
3. Respondeu também o arguido AA pugnando pelo não provimento do recurso do M.P. e confirmação da decisão recorrida, concluindo nos termos que a seguir se transcrevem:
“A) Considerou-se na decisão recorrida que os crimes de infidelidade de que o arguido vinha acusado encontram-se prescritos, porquanto "a interrupção do prazo quinquenal da prescrição ocorreu aquando da constituição como arguido em 14 de maio de 2015 (fls, 3441) e tal prazo apenas voltou a interromper-se com a notificação da acusação, causa também suspensiva, em 14 de julho de 2020,"
B) Nas suas alegações sustenta o Ministério Público que, por força do disposto na Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março, alterada pela Lei n.º 4-A/2020 de 6 de abril se verificou uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal entre 9 de março de 2020 até 3 de junho de 2020 e também de 22 de janeiro e 6 de abril de 2021, embora este segundo período seja irrelevante para a questão que se coloca, contrariando a decisão recorrida na qual se entendeu que a insusceptibilidade de alargamento dos "prazos de prescrição do procedimento criminal ou das penas, já em curso, sem violarem o princípio da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido - artigos 2.º , n.º 4 do CP e 29.º , n o 4 da CRP);
C) Na circunstância de o recurso interposto pelo Ministério Público viesse a proceder sempre teria o tribunal de primeira instância que se pronunciar sobre a sobre a punibilidade ounão punibilidade dos comparticipantes não administradores, questão que não conheceu em razão de ter considerado os crimes prescritos;
D) Apesar de decisão recorrida se afirmar que “o arguido está acusado da prática de dois (?) crimes de infidelidade em 4.07.2014 (...), - cremos que a acusação aqui queria mencionar tratar-se de um crime, (para além do referente a ... em 1.12.2043), praticados em co-autoria com CC, DD, BB e EE (ponto 7.11 da acusação).", a verdade é que ambas as datas não podem ser consideradas como o momento em que o facto se consumou - artigo 119.º , n.º 1 , do Código Penal) - uma vez que não se encontram suportadas no texto da acusação;
E) Mais do que uma discordância substantiva com a decisão recorrida, parece resultar das alegações do Ministério Público uma divergência formal pelo facto de o tribunal a quo não ter expressamente afirmado que a norma contida no n.º 4 do artº 7.º da Lei n.º 1A/2020, de 19 de marco, se aplicada a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor;
F) O Ministério Público não indicou doutrina e/ou jurisprudência que expressamente defenda que a causa de suspensão dos prazos de prescrição do procedimento criminal prevista na Lei 1-A/2020, de 19 de março, alterada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, se encontram em curso e, por conseguinte, não aduz argumentos susceptíveis de abalar a decisão recorrida;
G) No período compreendido entre 9 de março de 2020 a 3 de junho de 2020, foram produzidos 5 Volumes do presente processo (Volumes 108 a 112), tendo, nesse mesmo período, sido praticados diversos actos processuais, incluindo inquirições de várias testemunhas, o que significa que os actos processuais não foram suspensos;
H) A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada Lei n.º 4-B/2021 de 1 de fevereiro ao prever que a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade “prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional/aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão" é susceptível de afectar o princípio da inadmissibilidade da aplicação retroativa da lei penal em sentido desfavorável ao arguido que emana do n.º 4 do art.º 29.º da Constituição da República Portuguesa;
I) Quer o n.º 6 do artigo.º 19.º da Constituição da República Portuguesa, quer o n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, na redação actualmente em vigor, ao preverem que "A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião,", impede que qualquer diploma, ainda que de aplicação temporária, ofenda os referidos princípios constitucionais maxime, para o que aqui nos ocupa, a não retroatividade da lei criminal;
J) O especial, específico ê transitório regime das leis temporárias apenas pode ser aplicadas a factos praticados durante a após entrada em vigor da lei temporária e não em momento anterior, caso da aplicação da lei temporária resulte a violação de princípios constitucionais;
K) O momento da prática do facto determina qual a lei substantiva e adjectiva, aplicável ao facto sendo que, qualquer alteração superveniente da lei, substantiva e adjectiva, só terá aplicação ao facto praticado se a lei nova não foi desfavorável para o arguido;
L) Como se diz no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.12.2022, tirado no processo n.º 804/03.2PCALM-A.L1-9, "II — Um dos princípios basilares do nosso ordenamento jurídico é o da não retroactividade das leis, salvo se, uma lei penal se mostrar, concretamente, mais favorável ao arguido - cfr. os artºs 18.º, n.º 3, e 29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa e o art.º 2.º do CP. Aliás o art.º 19.º, n.º 6, da CRP consigna, expressamente, que a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar a não retroactividade da lei criminal, como também ressalva o artigo.º 2.º, n.º 1, da Lei no 44/86, de 30-9, que estabeleceu o regime do estado de sítio e do estado de emergência.
E tal salvaguarda, ou seja, da não afectação da não retroactividade da lei criminal, também, ficou expressa, aquando da sobredita pandemia, nos respectivos Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18-3 (art.º 5.º, n.º 1), n.º 17-A12020, de 2-4 (art.º 7.º, n.º1) e n.º 20-A/2020, de 17-4 (art.º 6.º, n.º 1).”
M) Assim, a interpretação normativa do artigo 6.º -A, na redacção dada pela Lei n.º 16/2020, de 25 de maio, do artigo 6.º -B na redacção conferida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, assim como do artigo 5.º , na redação conferida pela Lei n.º 13-B/2021, nos termos sustentados pelo Ministério Público, de acordo com a qual o prazo de prescrição deverá considerar-se suspenso entre 09.03.2020 e 03.06.2020, é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 18.º , n.º 3 e 29.º , n.º 4, ambos da Constituição da República Portuguesa;
N) O concreto segmento da decisão recorrida não enferma de qualquer vício razão pela qual não é merecedora de qualquer censura
(…)”
4. Inconformados com a não pronúncia do arguido FF, recorrem os assistentes ..., ... e GG, pugnando pela sua pronúncia nos exactos termos que constam do RAI, rematando o corpo da motivação com as conclusões que se passam a transcrever:
“Aspectos Gerais
A. não oferece quaisquer dúvidas que os assistentes tiveram os prejuízos identificados no art.º 36.º, 1) do RAI, supra transcritos no n.º 13, 1) da presente motivação de recurso. O respectivo montante decorre dos documentos 9 a 16 juntos com a queixa (fls. 41 e ss. do apenso Q-122).
B. A questão controvertida pode resumir-se no seguinte:
i) os assistentes sustentam que foram enganados pelo arguido FF, quando lhes assegurou que as aplicações por si efetuadas no ..., ou através do ..., constituíam depósitos a prazo (ou aplicações equivalentes), quando as aplicações efectuadas na ... não tinham essa natureza nem seguiam regime equivalente;
ii) a decisão instrutória entende que essa matéria não se encontra indiciada e que os assistentes saberiam que as aplicações fiduciárias efectuadas não eram depósitos a prazo, não se lhes aplicando esse regime, razão pela qual não teriam sido enganados pelo arguido FF, que não os teria induzido a fazer, em erro, as aplicações que efectivamente efectuou, com os riscos inerentes.
C. A decisão instrutória baseia-se no seguinte:
i) nas declarações prestadas em instrução pelo assistente GG e pelo arguido FF, não dando crédito, para efeitos de indiciação, ao que GG afirmou e dando como justificadas as explicações dadas pelo arguido FF;
ii) na irrelevância dos depoimentos das testemunhas inquiridas (em instrução ou em inquérito);
iii) na análise da documentação consubstanciada nos e-mails trocados entre o assistente GG e o arguido FF, junta aos autos pelo assistente, constando do apenso A do Apenso Q-122.
Prova Por Declarações;
D) Ao contrário do que consta da decisão instrutória, as declarações do assistente GG são credíveis e consistentes, ao contrário das prestadas pelo arguido FF, que são incongruentes, chegando a ser absurdas.
E) Das declarações do assistente GG, cujo excerto relevante se transcreveu na motivação, retira-se o seguinte:
a) o assistente vendeu as empresas do ramo do negócio de grande distribuição a que estava ligado, tendo decidido aplicar o respectivo fruto em depósitos a prazo, como sempre fizera, uma vez que nunca quis correr riscos em negócios financeiros que não dominava;
b) em ..., o país corria o risco de cair numa situação de bancarrota, razão pela qual optou por fazer depósitos a prazo num banco estrangeiro (ou através dele), tendo optado pelo ..., a conselho de uma pessoa com quem há muito trabalhava, VL, que o apresentou ao arguido FF;
c) foi inequívoco no sentido de que só pretendia ter depósitos a prazo, cuja taxas de juro sempre quis discutir, embora com a consciência de que os bancos estrangeiros lhe proporcionavam taxas inferiores àquela que ele auferiria em Portugal, cujo risco sistémico ele não queria correr;
d) teve poucos contactos pessoais com o arguido FF (e sempre em Portugal), pelo que o essencial do relacionamento se fez à distância, fundamentalmente através de e-mails, tendo sempre esclarecido que só queria depósitos a prazo (no ... ou em instituições bancárias sugeridas pelo arguido FF), recusando quaisquer aplicações em ações, obrigações, títulos de crédito ou outros;
e) quando recebeu os extractos que mencionavam "aplicações fiduciárias", confrontou o arguido FF com essa situação, uma vez que não correspondia ao que tinha sido acordado, tendo dele obtido a resposta de que "aplicações fiduciárias" seria o termo utilizado na ... para referir "depósitos a prazo";
. Por cinco vezes FF refere, como alternativa, investimentos de outra natureza, como consta dos e-mails de 02/11/2010 (fls. 3); 05/11/2010 (fls. 5), 26/01/2011 (fls. 15), 17/03/2011 (fls. 10) e 28/11/2011 (fls. 54);
. Perante tais sugestões, GG ou não responde ou expressamente refere que não deseja outras aplicações, como se extrai dos seus e-mails de 02/11/2010 (fls. 2) e 27/03/2011 (fls. 11);
. GG sempre deixou claro que queria pagar os impostos que fossem devidos (IRS ou IRC), obtendo do Arguido a confirmação de que assim seria, como logo consta dos e-mails trocados em 02/11/2010 (fls. 2 e 3); e quanto à retenção na fonte a taxa seria de 21,5% (cf. e-mail de 30/03/2011, fls. 11);
. Quando é pela primeira vez confrontado com as notas de lançamento que mencionam “aplicações fiduciárias”, logo questiona FF, referindo-lhe que não percebe a referência a aplicações fiduciárias, porque sempre lhe transmitira que queria fazer depósitos a prazo (e-mail de 23/05/2011, fls. 35), ao que FF lhe responde que, no modelo bancário suíço a figura do depósito a prazo não se usa, sendo a designação equivalente "aplicação fiduciária" (e-mail de 23/05/2011, fls. 37);
. GG assumiu que a ... era uma entidade bancária, a par de outras, como o ..., como expressamente consta dos seus e­ mails de 30/11/2011 (fls. 57) e 29/12/2011 (fls. 60), onde a referência à ... consta da coluna "banco", o que nunca foi contrariado pelo FF;
. Nos seus depósitos a prazo, GG privilegiava a solidez do banco (cfr., por ex., e-mail de 13/09/2011, fls. 46) e a taxa de juro (cfr., por ex., e-mails de 15/03/2011 e 15/05/2011, fls. 9 e 29, respetivamente), tanto admitindo depósitos na ..., como fora dela (cfr., por ex., e-mail de 04/11/2010, 13/09/2011 e 28/11/2011, a fls. 4, 46 e 53, respetivamente);
. Quando foi confrontado com o mandato conferido ao ... para fazer depósitos noutros bancos, o Assistente quis esclarecer se ele (por si ou através das suas empresas) seria o credor, o que foi respondido afirmativa e satisfatoriamente, como consta dos e-mails trocados em 13/12/2011 (fls. 58);
. Quando, em Dezembro de 2011, foi surpreendido com uma retenção de 35%, quando a taxa em Portugal é de 21,5%, o que nunca acontecera nos depósitos até então efetuados, logo reagiu, não o aceitando, o que levou FF a dizer-lhe que o melhor era manter os depósitos na holding (cfr. troca de e-mails de 21/12/2011 e 22/12/2011, a fls. 59);
. Para GG, a holding - a ... - também era uma entidade bancária, como acima já se referiu - cfr. e-mails de 30/11/2011 (fls. 57) e 29/12/2011 (fls. 60);
. Nunca, em momento algum, o Arguido disse a GG que as aplicações que fazia não eram equivalentes a depósitos a prazo.
Outra Prova Documental
L) Há ainda outra prova documental que, embora acessoriamente, também releva.
M) A saber
. os documentos juntos aquando da inquirição do Assistente GG, em 30/05/2022, que constam do processo principal a fls. 72462 e ss.
(tais documentos demonstram que, em 2011/2012, GG obtinha em depósitos a prazo taxas de juro de 7% (..., fls. 72.465), 7,5% (HH2, fls. 72.472), 6,9% (II, fls. 72.474), enquanto, quando estabeleceu a sua relação com o ..., a taxa estipulada foi de 4% (cfr. e-mails de 04/11/2020 e 05/11/2020, fls. 4 e 5 do apenso A do apenso Q-122); isso confirma que aquilo que fez GG optar por fazer depósitos a prazo no estrangeiro teve a ver com a situação de pré-bancarrota que se vivia em Portugal, o que ele receava);
. os contratos celebrados pelo Assistente com o ..., referindo-se, a título de exemplo, o doe. 24 junto ao RAI, a fls. 1223 do apenso Q-122, donde consta, no art.º l.º do "mandat pour placements fiduciaires", o seguinte: "Le Cliente est toutefois autorisé, aux termes du présent mandat, à donner à la Banque des instrutions particulieres relatives à ces placements")
(foi assim expressamente consagrado que o cliente estava autorizado a dar ao banco instruções específicas relativamente às suas aplicações, razão pela qual o poder discricionário da gestão da conta as teria sempre de respeitar, sendo certo que, no caso de GG, as suas instruções foram sempre muito claras no sentido de que só constituía depósitos a prazo);
. o cartão de visita do Arguido, com que ele se identificava como diretor do ..., que constitui o doe. 2 junto com o requerimento dos Assistentes de fls. 73.238 dos autos principais;
(o que também contribuiu para que GG confiasse no estatuto do Arguido dentro do Banco);
. a correspondência trocada por GG com o ... a partir de Abril de 2014, a fls. 76, 77, 86, 87, 88, 89, 90 a 92, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100 a 102 e 104 a 107 do apenso A do apenso Q-122, em e­mail de 16/04/2014
(tal correspondência foi trocada após a saída do FF do ..., evidenciando que o Assistente continuou sempre a tratar as suas aplicações no ... (ou através dele) como depósitos a prazo, o que nunca foi contestado).
A Refutação da Tese da Decisão Instrutória
N. Os depósitos a prazo são o mecanismo tradicional e comum das pessoas colocarem, com segurança, as suas disponibilidades monetárias nas instituições de crédito. Em vez de depósitos à ordem, as pessoas têm a alternativa de fazer depósitos a prazo, que obedecem a certas regras, designadamente de resgate, mas que lhes conferem um juro superior ao dos depósitos à ordem. Os depósitos bancários (todos) gozam de um regime especial de protecção, com garantia de cobertura, até certo limite, pelo Estado.
O. Por outro lado, e mais importante, é do conhecimento geral que, a não ser em situações excecionalíssimas, nenhum Estado admite que tais depositantes possam perder as disponibilidades monetárias confiadas às instituições de crédito, sob pena de uma crise sistémica com consequências devastadoras.
Nas resoluções bancárias que tiveram lugar nas crises económicas do subprime e das dívidas soberanas, só em ... é que os depositantes perderam uma parte dos seus fundos. Em Portugal, como no resto da ..., isso não aconteceu. Veja-se, entre nós, os casos do ... e do ..., em que os depósitos à ordem ou a prazo foram sempre salvaguardados (sem limite).
P. Foi com essa consciência que GG, com uma atuação conservadora e prudente, sempre optou por depósitos a prazo, resistindo aos "cantos da sereia" dos bancos, incluindo o ..., que o queriam levar a fazer outras aplicações de maior risco. E fê-los no estrangeiro por recear que o risco de derrocada da economia portuguesa pudesse de alguma forma afetar a solidez dos bancos nacionais.
Q. O Arguido sabia que assim era.
Se GG desconfiasse que não estaria a fazer depósitos a prazo, assim formalmente consagrados ou com regime equivalente, perderia um cliente, com disponibilidades líquidas em montante superior a 20 milhões de euros.
Foi por isso que o Arguido não resistiu a mentir a GG, dizendo-lhe que, na ..., as aplicações fiduciárias que ele fazia correspondiam a depósitos a prazo, não passando a distinção de uma questão de terminologia.
R. A decisão instrutória andou à procura, na documentação junta de boa-fé pelo Assistente, de qualquer detalhe que pudesse "confundir" aquilo que cristalinamente decorre da correspondência trocada e dos compromissos assumidos pelo Arguido quanto às instruções de GG no sentido de se constituírem depósitos a prazo.
S. Porém, ressalvado o devido respeito, a argumentação expendida não resiste a uma contra-argumentação:
i) a decisão instrutória convoca e-mails que demonstrariam que GG saberia que estavam a ser feitos depósitos na ..., que seria uma holding, no ..., para daí concluir que GG bem saberia não estar a fazer depósitos a prazo;
é evidente o equívoco do Tribunal a quo;
nunca se disse que não se sabia que uma boa parte dos depósitos efetuados haviam sido feitos n ...(sic); quando GG confrontou FF sobre a razão pela qual a nota de lançamento refere aplicação fiduciária, se havia sido acertado que apenas seriam feitos depósitos a prazo, está a referir-se precisamente à aplicação de €19.500.000,00 efetuada na ..., sendo, nesse contexto, que o Arguido responde que "aplicação fiduciária" e "depósito a prazo" são a mesma realidade (cfr. fls. 35, 36 e 37 do apenso A do apenso Q-122); para GG a ... (fosse ou não uma holding) tinha o estatuto de uma entidade bancária apta a receber depósitos a prazo, razão pela qual, quando se referia à ..., qualificava-a como "banco" (cfr. fls. 57 e 60 do mesmo apenso A), o que nunca foi contrariado pelo Arguido;
ii) a decisão instrutória convoca o e-mail de GG de 11/12/2011 (fls. 58 do apenso A, do apenso Q-122), em que o Assistente diz ter consultado um escritório de advogados, para daí concluir que o Assistente bem saberia que o depósito fiduciário não seria um depósito a prazo "tanto assim que sentiu necessidade de maiores esclarecimentos";
o Tribunal a quo "distorce" o teor do e-mail;
GG estava esclarecido pelo FF de que aplicação fiduciária e depósito a prazo seriam equivalentes (cfr. fls. 37 do apenso A do apenso Q-122); a consulta feita ao escritório de advogados teve apenas a ver com a questão de se assegurar que, sendo os depósitos feitos através do ..., ele e as suas empresas se manteriam ou não como credores desses depósitos, como se retira da leitura do referido e-mail de fls. 58;
iii) a decisão instrutória explora ainda o e-mail do Arguido de 29/11/2011, onde é referido que o depósito a prazo no balanço do ... implicaria uma retenção de 35% (cfr. fls. 54 do apenso A do apenso Q-122), para daí concluir que GG não podia deixar de saber que as ditas aplicações fiduciárias seriam outra coisa, só elas permitindo uma tributação menor;
Tribunal a quo confunde o que é simples;
GG nunca quis fugir aos impostos; era-lhe indiferente que lhe fizessem uma retenção na fonte em linha com aquela que era feita em Portugal5, ou que o imposto fosse pago em Portugal, aquando da declaração de IRS, com a liquidação de uma taxa liberatória, como o próprio referiu no seu e-mail de 22/12/2011;
quando foi confrontado, em Dezembro de 2011, relativamente a uma determinada aplicação, com uma taxa de retenção de 35%, o Assistente logo reagiu, porque sempre lhe fora aplicada uma taxa de 21,5% (como, de resto, FF lhe assegurara no seu e-mail de 30/03/2011, fls. 14 do apenso A do apenso Q-122);
foi esse o contexto em que FF, já só no final de ... (e não antes), informou GG de que os depósitos em instituições suíças implicariam uma retenção de 35%, pelo que seria conveniente, para assegurar uma tributação mais baixa (consentânea com a taxa liberatória de 21,5%, praticada em Portugal), fazer depósitos fora da ... (embora por intermédio do ...), o que não causou especial engulho a GG, porque para o Assistente não era relevante que os depósitos fossem feitos na ... ou fora da ..., a sua preocupação era que fossem feitas aplicações em depósitos a prazo em instituições bancárias sólidas (como, para ele, embora em erro, aconteceria com a ..., com o ...: ou com as demais instituições para onde deu instruções que fossem feitos depósitos a prazo, sempre depósitos a prazo).
T. Por outro lado, a decisão instrutória ignora ou escamoteia os indícios incontornáveis da burla:
i) Primeiro, GG nunca deu instruções para outra coisa que não fossem depósitos a prazo, o que nunca foi contestado por FF; a diferente terminologia usada por um e por outro seria, segundo o FF, de natureza meramente semântica; aplicações fiduciárias seria o nome dado na ... aos depósitos a prazo;
ii) Segundo, nesse contexto, porque raio de razão é que GG deveria achar que não estava a fazer depósitos submetidos ao tradicional e comum regime dos depósitos a prazo, quando foi sempre essa a sua preocupação, quer nos contactos mantidos (desde 2010 até 2014) com o ..., quer no passado da sua relação com as instituições financeiras, como decorre dos depoimentos das testemunhas VL, JJ, KK e LL, e quando esse propósito nunca foi contrariado pelo Arguido?
iii) Terceiro, não pode duvidar-se de que GG, com inteira boa-fé, achava que a ... podia receber depósitos a prazo, como decorre da troca de e-mails entre Arguido e Assistente em 23/05/2011, com referência à aplicação de €19.500.000,00 feita na ...; de resto, é, por isso, que a designa como "Banco", tal como às outras entidades igualmente assim qualificadas nos seus e-mails de fls. 57 e 60 do apenso A do apenso Q-122, todas elas aptas a receber verdadeiros depósitos a prazo;
iv) Quarto, seria inexplicável que GG, tão prudente e conservador no risco financeiro, recusasse liminarmente aplicações em obrigações sólidas ou em ações de baixo risco (de que "fugia") para se ir "enfiar" em aplicações desprotegidas e de risco significativo, como eram aquelas que o Arguido fazia na ...; na verdade, isso só aconteceu porque GG sempre esteve convencido que estaria a realizar verdadeiros depósitos a prazo;
v) Quinto, são absurdas as explicações do Arguido, no sentido de que aplicações fiduciárias e depósitos a prazo seriam a mesma coisa, apenas se distinguindo pela taxa de retenção na fonte (determinada por serem feitas em bancos suíços ou em instituições fora da ...), as quais não podem convencer ninguém; de resto, é a própria decisão instrutória a reconhecer que são realidades distintas.
U. É por isso verdadeiramente extraordinário que o Tribunal tenha assumido como "boa" a insólita explicação do FF de que depósitos a prazo e aplicações fiduciárias seriam a mesma coisa, já que as aplicações fiduciárias também seriam depósitos a prazo, numa completa adulteração daquilo que, para um cidadão médio, é um depósito a prazo. Aliás, MM e NN, que trabalhavam no ..., estranharam que o Arguido tivesse feito tal equiparação, que bem sabiam ser incorreta. Se fosse como diz FF, então os depósitos na Dona Branca também seriam depósitos a prazo.
V. FF joga com as palavras. Na explicação capciosa do Arguido, qualquer entrega com reembolso a prazo seria um depósito a prazo, independentemente da natureza da entidade que o recebe e do regime a que está sujeito. Ora, como é evidente, a natureza da entidade que recebe o depósito - bem como o regime jurídico a que esse negócio está submetido - é que constitui a "linha de água" que distingue o depósito a prazo de outras aplicações.
Quando FF - perante a dúvida colocada por GG sobre porque é que se fizeram aplicações fiduciárias quando ele pedira depósitos a prazo - diz ao Assistente que aplicações fiduciárias são o termo utilizado na ... para os depósitos a prazo, o Arguido está, pura e simplesmente, a enganar, com uma astúcia manhosa, o Assistente.
W. O "palavreado" do FF é o de um vendedor de banha da cobra. Impressiona que o Tribunal - quiçá movido pela vontade de não mexer na acusação do Ministério Público - não tenha compreendido a patranha.
X. GG nunca quis fazer, no ... ou nas instituições intermediadas pelo ..., outra coisa que não fosse o tradicional, comum e conhecido depósito a prazo.
Y) E não foi isso que o FF fez, apesar de com isso se ter comprometido, assim enganando astuciosamente os Assistentes, ora Recorrentes, levando-os a acreditar que estavam a fazer depósitos a prazo, quando isso não acontecia, agindo com intenção de obter para o ..., bem como para o ... que o controlava, enriquecimento ilegítimo, de que ele, como funcionário da do ..., também acabaria por beneficiar.
Z) A burla é evidente. Ou, pelo menos, encontra-se solidamente indiciada.
Pelo exposto, o Arguido deve ser pronunciado nos exatos termos que constam do RAI, dando-se provimento ao recurso.
(…)”
5. Respondeu o MP pugnando pela improcedência do recurso, rematando o corpo da motivação com as conclusões que se passam a transcrever:
“1. Entendem os assistentes que a análise da prova recolhida em sede de inquérito e de instrução teria de conduzir a um despacho de pronúncia do arguido FF pela prática do crime de burla.
2. No entanto, tal não sucedeu pelo que visa o presente recurso corrigir tal situação.
3. Os assistentes entendem que o arguido FF os enganou, assegurando-lhes que o dinheiro estava investido em depósitos a prazo ou produtos equivalentes, pelo que deve o gestor de conta ser pronunciado.
4. Entende o Ministério Público que a factualidade em si não é controvertida.
5. O que difere é a interpretação que os assistentes dão aos indícios recolhidos versus aquela que foi dada pelo Mm.º Juiz de Instrução (e antes deste pelo Ministério Público, ao ter proferido despacho de arquivamento).
6. O despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público fundamentou-se no facto de as aplicações financeiras realizadas terem suporte documental em mandatos assinados pelos assistentes, aliado às demonstrações financeiras que à data eram conhecidas das entidades emitentes, cuja solidez não fazia suspeitar de qualquer risco de incumprimento.
7. Até porque CC e OO sempre asseguraram a solidez do banco, e garantiam, até Junho de 2014, a capacidade do ... em cumprir todas as suas obrigações para com os clientes.
8. E assim estavam convencidos os gestores de conta, e assim convenceram estes os respectivos clientes.
9. Nessa medida, não reuniam os autos indícios em como os gestores tenham atuado, no aconselhamento da subscrição de tais produtos, contrariamente à vontade manifestada pelos clientes no seu propósito de investirem em produtos financeiros de baixo risco, na medida em que os próprios também se encontravam induzidos em erro relativamente ao risco das emitentes.
10. Em sede de instrução, não foi produzida qualquer prova capaz de contrariar esta tese.
11. Os assistentes assentam a sua visão dos factos na insistência do seu legal representante se referir sempre a depósitos a prazo, e afirmar sempre, até por escrito, que só pretendia esse tipo de aplicação.
12. No entanto, o que resulta da prova documental é que este, logo em ..., verificou nos extractos que recebia que o dinheiro estava investido em aplicações fiduciárias.
13. Razão pela qual encetou várias diligências no sentido de apurar em que consistiam as mesmas.
14. Inclusivamente junto do seu gestor de conta, por mail e em contacto pessoal.
15. A sucessiva troca de mails com este revela que o legal representante das assistentes sabia que as aplicações em questão não eram verdadeiramente depósitos a prazo - é prova documental aqui junta; basta a sua leitura.
16. E a verdade é que as referidas aplicações fiduciárias se mantiveram até Abril de 2014, data em que o legal representante das assistentes quis proceder ao levantamento dos seus depósitos, o que já não foi possível.
17. A existir responsabilidade do arguido FF, esta não terá carácter penal.
18. Até porque trespassa do todo o processado que os assistentes nunca alegam que o arguido usou de ardil para os enganar; apenas que os enganou porque disse que o depósito era a prazo e afinal não era.
19. Ora, a burla exige muito mais.
20. A burla é um crime de execução vinculada: é praticada por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou. O meio enganoso tem de ser a causa efectiva pela qual a vítima se encontra em erro, exigindo ainda a lei a existência de um prejuízo patrimonial.
21. A que acresce a necessidade de se verificar um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pela vítima, dos actos de diminuição do seu património, e entre estes e o prejuízo patrimonial ocorrido.
22. No caso dos autos, resulta da própria versão apresentada pelos assistentes que não existiu ardil algum.
23. O que estes alegam é coisa diversa: que o arguido não cumpriu o mandato que lhe foi confiado e aplicou o dinheiro de forma diversa da que era pretendida, violando aquela que sabia ser a vontade dos seus clientes.
24. O que não se vislumbra é o uso do ardil que é imperativo na burla.
25. O arguido tinha a convicção da solidez do investimento formulado porquanto acreditava, sem motivos para duvidar, na solidez na marca ..., tal como os assistentes que por isso mantiveram as aplicações durantes anos.
26. Termos em que não se vislumbra que de modo algum o arguido tivesse conhecimento da real situação do ... e, ciente disso, deliberadamente, tivesse pretendido enganar os assistentes, levando-os a fazer ruinosas aplicações financeiras.”
6. Respondeu também o arguido FF, defendendo a rejeição do recurso interposto pelos assistentes e confirmação da decisão de não pronúncia recorrida, tendo apresentado as conclusões que a seguir se transcrevem:
“(…)
1. - Da simples leitura da parte da decisão instrutória de que os Assistentes recorrem resulta evidente os fundamentos de facto pelos quais deve ser mantida aquela, devendo concluir-se não padecer a mesma de qualquer erro de julgamento;
2. - Efetivamente, a prova documental nela citada não foi minimamente posta em causa pela prova testemunhal – pelo contrário, apenas foi reafirmada por esta e, designadamente, pelas declarações do arguido e documentação junta por este durante a instrução;
3. - Com efeito, dos documentos juntos aos autos resulta, sem margem para dúvidas, que, na ..., depósitos a prazo e depósitos fiduciários tem um grau de segurança idêntico, são ambos aplicações a prazo, por um determinado prazo, sujeitas a uma taxa de juro: “Frequente na ..., uma Aplicação fiduciária é um depósito a prazo e com taxa fixa, em moeda nacional ou estrangeira, de curto prazo (1 a 12 meses). Os fundos são muitas vezes postos à disposição de um banco no estrangeiro ou em outros estabelecimentos financeiros. Os juros são capitalizados no termo, de acordo com as condições do mercado monetário, e são isentos do imposto à cabeça de 35%. Os montantes mínimos a colocar são em geral de CHF 100.000 ou CHF 200.000, dependendo dos bancos. Outra particularidade de uma Aplicação fiduciária: os valores de liquidação são depositados pelo banco na conta do cliente, e é este último que suporta o risco (risco cambial, risco de incumprimento).” – como resulta, dos documentos juntos e, a título de exemplo, do site Finance du Marché.
4. - Estes documentos não foram minimamente contrariados por nenhuma prova;
5. - É, pois, evidente que a afirmação de que o depósito fiduciário é um depósito a prazo é verdadeira, assim se infirmando tudo quanto em contrário sustentam os Assistentes e que constitui o cerne da discordância e de fundamento do recurso;
6. - Mais: como é do conhecimento público, os depósitos a prazo também têm risco (não são seguros, ao contrário da tese defendida pelos Assistentes), só sendo garantidos até ao valor de 100.000,00€ em Portugal e 100.000,00 CHF, na ...;
7. - Daqui decorre a infirmação da tese, igualmente pugnada pelos Assistentes, de que estes teriam sido prejudicados pela realização de aplicações fiduciárias: com efeito, não apenas os mesmos já recuperaram (como foi admitido pelo Assistente GG) montantes superiores a isso, como, se tivessem optado por depósitos a prazo tout court, só teriam tido direito a, no máximo, 100.000,00 CHF (e não a 3 x 100.000,00 CHF) por na ..., sendo o mesmo o beneficiário efetivo (como sucedia neste caso) só ser garantido esse valor uma vez;
8. - Independentemente disto, é manifesto – pela troca dos emails junta com o RAI – que, ao longo de três anos, foram sempre os Assistentes que decidiu qual o valor a investir, onde, a que taxa, o prazo, etc.;
9. - Não faz, portanto, nenhum sentido imputar ao arguido a culpa pelas decisões de investimento que este se limitou a executar com base nas ordens dos Assistentes;
10. - Mais: dessa troca de emails, constata-se que os Assistentes sabiam que estavam a investir na ... e na ...;
11. - E, perante aquilo que os próprios Assistentes afirmam sobre o rigor, cuidado e conservadorismo de GG, não se pode deixar de concluir que este tinha conhecimento do que assinava; conhecia os termos dos contratos; sabia que a ... e a ... não eram instituições bancárias mas financeiras, e que não recebiam depósitos a prazo;
12. - Efetivamente, há prova documental (carreada, aliás, pelos Assistentes) que demonstra que GG conhecia e acompanhava as instituições de rating (entre elas, a ... e ...) e os ratings de Bancos e instituições financeiras internacionais e pediu cotações para investimentos em instituições bancárias e financeiras internacionais, tendo, no seguimento da comunicação das condições, decidido manter as aplicações fiduciárias que possuía – ao longo de três anos, durante os quais foi sistematicamente dando instruções sobre prazos, montantes e instituições onde investir o seu dinheiro;
13. - Não faz, por isso, qualquer sentido a tese veiculada pelos Assistentes no recurso apresentado, da naïveté de GG sobre onde e em que estava aplicado o seu dinheiro – quando era o mesmo a determinar sistematicamente onde e como o aplicar;
14. - Essa tese não é, desde logo, compaginável com a simples experiência de vida: não é minimamente crível que alguém que, do nada, reúne em 20 ou 30 anos, uma fortuna superior a 20 milhões de euros, invista a maior parte dessa fortuna no estrangeiro sem ter a certeza de onde, em que produto e em que condições podem ser movimentadas as verbas investidas;
15. - A menos que os Assistentes queiram fazer crer que o Sr. GG consultava a internet e acompanhava o índice ... e a ... e o rating de Bancos estrangeiros, mas nunca se deu ao trabalho de ver o que constava na net sobre a ...…!
16. - De resto, o Assistente GG era aconselhado tanto por advogados, como por um economista que possuía aplicações financeiras idênticas e que foi até quem lhe sugeriu a aplicação na ..., pelo que sempre teve a possibilidade de saber exatamente onde e em que é que aplicava efetivamente o seu dinheiro;
17. - Facilmente se percebe que alguém que podia ter depósitos a prazo em Portugal a uma taxa de juro superior a 7%, possa ter (por diversas razões…) interesse em ter o dinheiro na ... a uma taxa de 6,25%, mas que não esteja disposto a perder quase 1.000.000,00€ por ano de juros e ainda estar sujeito à taxa liberatória, à cabeça, de 35%, só para o ter na ...!
18. - Esta a razão pela qual o Assistente quis sempre manter as aplicações fiduciárias e não mudou para depósitos a prazo tout court: sabendo que um depôt fiduciaire era uma coisa semelhante a um depósito a prazo e com um risco relativamente reduzido (até pelo curto prazo dos investimentos pelo mesmo ordenados), que ele acompanhava diariamente e que podia resgatar antecipadamente, com rendimento quase idêntico ao dos depósitos a prazo em Portugal, não sujeito ao imposto de 35% sobre os juros, decidiu colocar e manter o dinheiro investido nestes instrumentos fiduciários.
19. - É inconcebível que os Assistentes pretendam que, com base em instruções tão diversas e tão precisas, com montantes e prazos tão diversificados, com taxas distintas, em instituições diversas e indicadas pelo Assistente, o arguido os pudesse ter burlado! Como poderia o arguido saber em que é que os Assistentes iriam investir o dinheiro ao fim de cada um dos prazos referidos, quanto, por quanto tempo e a que taxa, durante mais de três anos?
20. - O que se constata, aliás, entre as ordens dadas em 2012 e as dadas no final de 2013, é que os Assistentes alargaram o prazo dos seus investimentos!
21. - Ou seja, quando a situação do ... se agravou, os Assistentes foram dando ordens de investimento a prazos mais longos! O que não se deveu a nenhuma indicação dada pelo arguido: foi antes a vontade consciente dos Assistentes, jogando com as taxas mais atraentes que lhe possibilitavam os investimentos a prazos mais longos, e quando o aumento do risco fazia subir as referidas taxas, mas, contudo, mantendo sempre a possibilidade de resgate antecipado. O que reforça a ideia de terem todos esses investimentos sido cuidadosamente planeados pelos Assistentes, baseados eventualmente na já referida crença de que o ... era demasiado grande para cair e que haveria resgate em caso de necessidade.
22. - Dos documentos juntos aos autos pelo arguido (e das declarações do mesmo em sede de instrução) resulta provado que um “placement fiduciaire” corresponde, na ..., a um depósito a prazo. O que, de resto, justifica que, aquando das ordens de investimento, GG se referisse às aplicações fiduciárias como depósitos a prazo, sabendo, contudo, das diferenças (designadamente, de tributação) entre os depósitos a prazo stricto sensu e as aplicações fiduciárias.
23. - É, alias, inconcebível pretender que o arguido soubesse, em ..., qual a real situação económica das entidades financeiras componentes do ..., nem foi feita qualquer prova de que ele o soubesse ou de que, em ..., essa situação fosse a que se verificou em 2014;
24. - Como não foi feita nenhuma prova de que soubesse ou integrasse o núcleo restrito a quem o MP imputa as decisões de burla;
25. - O que se provou foi que o mesmo era um mero gestor de conta de uma instituição bancária ..., que executava as ordens nos precisos termos em que as mesmas eram dadas pelos Assistentes, e sem que conhecesse ou tivesse qualquer ligação privilegiada ao núcleo dirigente do ...;
26. - Tal como se provou claramente que o arguido nenhuma responsabilidade teve nos prejuízos sofridos pelos Assistentes e, mais ainda, que o mesmo tenha, voluntária e dolosamente, induzido em erro os Assistentes, com vista à obtenção para ele (arguido) ou para outrem de quaisquer benefícios, que os Assistentes nem sequer indicam quais foram
27. - Que os Assistentes mantenham a tese da burla alegadamente praticada pelo arguido mais não é do que uma reiteração de uma denúncia caluniosa;
28. - Donde se conclui que o que há (houve) foi uma tentativa manifesta (e reprovável) de fórum shopping pelos Assistentes e de imputação totalmente infundada de um crime a um indivíduo que viu (continua a ver) a sua vida profissional e pessoal estragada pela vontade consciente dos Assistentes em o prejudicar para prossecução de outros fins.
(…)”
7. Os recursos foram, ambos, admitidos como tendo subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
8. Subidos os autos a este Tribunal o MP pronunciou-se, tão, somente, quanto ao recurso do MP, acompanhando a argumentação aí aduzida.
9. Cumprido que foi o artigo 417.º/2 CPPenal, nada foi acrescentado.
10. No exame preliminar a relatora deixou exarado o entendimento de que o recurso foi admitido com o efeito adequado e que nada obstava ao seu conhecimento.
11. Seguiram-se os vistos legais.
12. Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
*
II. Fundamentação
1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, as questões aqui suscitadas, são as seguinte:
a) recurso do MP:
- saber se o procedimento criminal pelos crimes de infidelidade está, ou não, extinto por prescrição;
b) recurso dos assistentes:
- saber se se verifica, ou não, o elemento objectivo constitutivos do tipo legal de crime de burla, do erro ou engano criados astuciosamente.
2. Recurso do MP
2. 1. Atentemos primeiramente no teor da decisão recorrida.
“(…)
O crime de infidelidade preceitua que é punido «Quem, tendo-lhe sido confiado, por lei ou por acto jurídico, o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante».
É um crime específico próprio, tendo subjacente a ideia ética da confiança, resultante directamente da lei ou de acto jurídico, pelo que somente pode ter por agente a pessoa a quem foi confiado o dever de dispor, administrar ou fiscalizar interesses patrimoniais alheios (Neste sentido, Taipa de Carvalho, em anot. ao artigo 224º do CP, in “Comentário Conimbricense”).
No entanto a regra do artigo 28º, º 1 do CP em matéria de comparticipação continua a ser a de que basta que um dos co-autores tenha as qualidades ou relações especiais previstas no tipo para que as mesmas sejam transmitidas aos demais consortes, excepto se outra for intenção da norma incriminadora.
Assim, se Figueiredo Dias e Paulo Pinto de Albuquerque (ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª Edição, Universidade Católica Editora, 2010, p. 700) defendem que a qualidade do agente é comunicável, nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1, do Código Penal já Taipa de Carvalho, defende que considerando as preocupações do legislador em restringir a punibilidade da infidelidade administrativa, a decisão parece dever ser no sentido de exclusão da comunicabilidade e, portanto, no sentido de não punibilidade dos comparticipantes não administradores.
Certo é que tais crimes mostram-se prescritos.
Na verdade, a interrupção do prazo quinquenal da prescrição ocorreu aquando da constituição como arguido em 14 de maio de 2015 (fls. 3441) e tal prazo apenas voltou a interromper-se com a notificação da acusação, causa também suspensiva, em 14 de julho de 2020.
Ou seja, após se mostrar já completado o prazo de cinco anos.
Contrariamente ao sustentado pelo Ministério Público a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal que vigorou desde 9 de março de 2020 até 3 de junho de 2020 e também de 22 de janeiro e 6 de abril de 2021 (cfr. art.ºs 6.º-A, 7.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril) não pode alargar os prazos de prescrição do procedimento criminal ou das penas, já em curso, sem violarem o princípio da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido – artigos 2º, nº 4 do CP e 29º, nº 4 da CRP).
Maioritária tem sido por isso a posição da jurisprudência dos nossos Tribunais da Relação bem como da nossa doutrina a este propósito, considerando que tais normas temporárias e excepcionais decorrentes da pandemia epidemiológica de Covid-19 não podem alargar os prazos de prescrição do procedimento criminal ou das penas, já em curso, sem violarem o sobredito princípio - cfr. a título de exemplo o acórdão do TRG de 25/1/2021 (processo nº 179/15.9FAF.G2), o acórdão do TRP de 14/4/2021 (processo nº 300/19.6Y9PRT-B.P1),o acórdão do TRC de 7/12/2021 (processo nº 200/09.8TASRE.C3), os acórdãos do TRE de 23/2/2021 (processo nº 201/10.3GBVRS.E1) e de 26/10/2021 (processo nº 28/06.7IDFAR-A.E1) e os acórdãos do TRL de 24/7/2020 (processo nº 128/16.5SXLSB.L1), 26/10/2022 (processo nº 32/15.4PALSB.L1-3) e de 27/10/2022 (processo nº 902/16.2IDLSB-A.L1-9) todos publicados na internet; Germano Marques da Silva (“Ética e estética do processo penal em tempo de crise pandémica” em Revista do Ministério Público, número especial COVID-19, 2020, págs. 109-127); Rui Cardoso e Valter Baptista (“Estado de Emergência – COVID 19 – Implicações na Justiça – Jurisdição Penal e Processual e Processual Penal”, Centro de Estudos Judiciários, Abril de 2020, págs. 533-536); e também a doutrina seguida por José Joaquim Fernandes Oliveira Martins, (“A Lei nº 1- A/2020, de 19 de Março – uma primeira leitura e notas práticas” e “Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, e a terceira vaga da pandemia COVID-19” em Julgar online, respectivamente, Março de 2020 pág. 7 e Fevereiro de 2020 pág. 8).
Termos em que se julgam extintos, por prescrição os crimes de infidelidade imputados ao arguido nos termos do artigo 119º, 121º, nº 1, al. a) e nº 2 do CP.
O mesmo acontecendo quanto ao crime de infidelidade imputado em co-autoria à arguida BB (...) já que as causas interruptivas da prescrição são exactamente as mesmas e nos mesmos períodos temporais descritos. Julga-se por isso extinto o procedimento penal da arguida quanto a este crime por efeito da prescrição.”
2. 2. Vejamos.
Como vimos na decisão recorrida entendeu-se,
- estar extinto por prescrição o procedimento criminal, dado que a interrupção do prazo da prescrição ocorreu aquando da constituição como arguido em 14/05/2015 e que voltou a interromper-se com a notificação da acusação, causa também suspensiva, em 14/07/2020, ou seja, após se mostrar já completado o prazo de cinco anos de prescrição;
- contrariamente ao sustentado pelo MP, a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal que vigorou desde 9 de março de 2020 até 3 de junho de 2020 e também de 22 de janeiro e 6 de abril de 2021 (cfr. art.ºs 6.º-A, 7.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril) não pode alargar os prazos de prescrição do procedimento criminal ou das penas, já em curso, sem violarem o princípio da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido – artigos 2º, nº 4 do CP e 29º, nº 4 da CRP.
Discorda o MP do entendimento sufragado na decisão recorrida de julgar extinto por prescrição o procedimento criminal em relação aos crimes de infidelidade imputados aos arguidos, AA (dois) e BB (um) pugnando pela revogação de tal segmento da decisão recorrida.
Subsidiariamente, defende que deve ser ordenada a reparação da decisão recorrida, para que da mesma passe a constar a não aplicação do regime previsto no artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março, alterada pela Lei n.º4-A/2020, de 6 de Abril, por se entender que a norma é inconstitucional.
Por seu lado, defendem os arguidos que o instituto da prescrição do procedimento criminal não pode ceder perante a superveniência de circunstâncias que – sem que exista contributo do arguido (atuando com desvalor jurídico para a ocorrência desse circunstancialismo), e sem que as mesmas impeçam a prossecução, ainda que cerceada, do processo – possam diferir no tempo os prazos nele previstos, em particular quando à data da prática do facto esse prazo estava definido quanto à sua suspensão, interrupção e termo máximo, gerando uma expetativa firme de inalterabilidade e, muito mais, de não agravamento.
E, assim, entende que o recurso não pode deixar de sucumbir, porque manifestamente infundado, porque inexiste fundamento para considerar aplicável in casu o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação original, por se tratar de normativo materialmente inconstitucional, com o seguinte recorte: o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação original, se interpretado no sentido de ser aplicável a processos crime pendentes à data da sua entrada em vigor e a factos ilícitos penais praticados em momento anterior a essa vigência, é materialmente inconstitucional por violação dos princípios da segurança e confiança jurídicas impostos pelo Estado de Direito Democrático e da não retroatividade de lei penal que seja desfavorável ao arguido, consagrados nos artigos 2.º e 29.º, n.º 4, da CRP, por violação da força jurídica dos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, prescrita pelo artigo 18.º da CRP e por violação da intangibilidade do princípio da irretroatividade da lei penal menos favorável ao arguido preconizada pelo artigo 19.º/6 da CRP.
A questão aqui colocada é a de saber se é, ou não, caso de aplicação do regime excepcional e temporário aprovado pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, cuja publicação se contextualiza na pandemia gerada pelo vírus SARS-CoV-2 e na doença COVID-19 dele emergente, e que preconizou a suspensão dos prazos de prescrição no período compreendido entre os dias 9 de Março e o dia 3 de Junho de 2020.
Em concreto, saber se esta suspensão é aplicável ao caso concreto e se tem repercussão na contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal.
O crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.º/1 do CP, imputado aos arguidos, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Nos termos do disposto no artigo 118.º/1 alínea c) CP, em relação aos crimes punidos com penas de prisão cujo limite máximo é superior a 1 ano mas inferior a 5 anos, o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática tiverem decorrido 5 anos.
Nos termos do artigo 119.º/1 CP o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado e, nos termos dos artigos 120.º/1 e 121.º/1 CP, pode sofrer interrupções e suspensões, quando ocorram as situações aí previstas.
No caso concreto, o prazo de prescrição interrompeu-se, nos termos do disposto no artigo 121.º/1 alínea a) CP, com a constituição como arguido.
Assim em relação ao arguido:
Factos relativos a ..., Dezembro 2013, com início do prazo de prescrição a 01/12/2013 e factos referentes ao ..., Março/Julho de 2014, com início do prazo de prescrição a 01/07/2014 e em ambos os casos, com a interrupção do prazo de prescrição a 14/5/2015, com a constituição de arguido e a 14/07/2020, com a notificação da acusação.
Defende o MP que com a suspensão do prazo de prescrição entre 9/03/2020 e 03/06/2020 e com a notificação da acusação a 14/07/2020 e no máximo por 3 anos, até 14/07/2023, o prazo de prescrição no primeiro caso será atingido a 28/08/2024 e no segundo, a 28/03/2025.
Em relação à arguida, os factos, relativos ao ..., terão ocorrido entre Março/Julho de 2014, com o início do prazo de prescrição a 01/07/2014, com a interrupção do prazo de prescrição a 14/05/2015, com a constituição de arguido a 14/07/2020 com a notificação da acusação e com a suspensão do prazo de prescrição com a notificação da acusação e no máximo 3 anos, até 14/07/2023.
Defende o MP que com a suspensão do prazo de prescrição entre 09/03/2020 e 03/06/2020 e com a notificação da acusação a 14/07/2020 e no máximo por 3 anos, até 14/07/2023, o prazo de prescrição será atingido a 28/03/2025.
E defende o MP este entendimento, de suspensão da contagem do prazo de prescrição durante 87 dias, entre 09/03 e 03/06/2020, data da entrada me vigor da Lei 16/2020 de 29 de Maio, com base na aplicação da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março (resposta à situação epidemiológica provocada pelo vírus Sars-Cov-2).
Convoca o MP a favor da sua tese o acórdão do Tribunal Constitucional 500/2021, Processo n.º 353/2021, 3ª Secção, que decidiu “não julgar inconstitucional o artigo 7.º/3 e 4 da Lei n.º 1- A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência”.
E depois a propósito do acórdão deste Tribunal, de 26/10/2022, citado na decisão recorrida, refere que o mesmo foi tirado com um voto de vencido, numa clara demonstração de que a questão é controvertida.
A Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março, que veio depois a ser alterada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril, no seu artigo 7.º, sob a epígrafe "Prazos e diligências", dispunha o seguinte:
"1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS­ CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte.
2. O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.
3. A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4. O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional. (...)".
Apreciando.
Como já decidimos no processo 1222/21.6T9LRS.L1, de 11-01-2024, a propósito da caducidade do direito de queixa, mas com fundamentos aqui aplicáveis à situação de prescrição do procedimento criminal, com o seguinte sumário:
“III. A aprovação de legislação específica de prevenção e repressão da pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, criando medidas excepcionais e temporárias, aparece como elemento estranho e de distorção da lógica jurídica.
IV. Quer o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, quer o artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei 4-B/2021, são aplicáveis aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência e também no que concerne ao direito de queixa, sendo que entendimento diverso, concederia um injustificável benefício ao arguido, colhendo este, proveitos de uma interpretação da Lei n.º 1-A/2020 e da Lei 4-B/2021 que atentaria não só contra a sua letra, como, também, contra o seu espírito”.
De onde extraímos a seguinte fundamentação:
“(…) no caso dos autos, aparece como elemento estranho e de distorção da lógica jurídica a aprovação de legislação específica de prevenção e repressão da pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, criando medidas excepcionais e temporárias.
Assim, por força do disposto no art.º 15.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, em matéria de atos e diligências processuais e procedimentais, estabeleceu-se aí, a suspensão dos prazos para a prática de atos processuais ou procedimentos que devessem ser praticados junto de tribunais, designadamente judiciais, cujas instalações tivessem sido encerradas ou nas quais o atendimento presencial tivesse sido suspenso, por decisão de autoridade pública com fundamento no risco de contágio do COVID-19, enquanto perdurasse tal encerramento ou suspensão. O diploma entrou em vigor no dia 14 de março (artigo 36.º), produzindo efeitos a 3 de março de 2020 relativamente, entre outras, às normas previstas para atos e diligências processuais e procedimentais (artigo 37.º).
Ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020 seguiu-se a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que complementou a disciplina constante daquele primeiro diploma através da aprovação de um novo conjunto de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo novo coronavírus. Produzindo “efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março” (artigo 10.º) — efeitos estes que ratificou (artigo 1.º, alínea a) — a referida Lei veio estabelecer, no seu artigo 7.º, um conjunto de medidas relativas a prazos e diligências. Assim, os atos processuais e procedimentais que dev(essem) ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos a correr termos, designadamente, nos tribunais judiciais e Ministério Público passaram a estar sujeitos ao “regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19” (n.º 1), “em data a definir por decreto-lei, no qual se declara(ria) o termo da situação excecional” (n.º 2). Paralelamente, esta situação excepcional passou a constituir “igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos” (n.º 3), prevalecendo tal regra “sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional” (n.º 4).
A Lei n.º 1-A/2020 foi alterada, pela primeira vez, pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, de acordo com a qual o “artigo 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, deve(ria) ser interpretado no sentido de ser considerada a data de 9 de março de 2020, prevista no artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, para o início da produção de efeitos dos seus artigos 14.º a 16.º, como a data de início de produção de efeitos das disposições do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março” (artigo 5.º).
A Lei n.º 4-A/2020 procedeu, no seu artigo 2.º, à alteração dos artigos 7.º e 8.º daquela. No que diz respeito ao artigo 7.º (aquele que aqui releva), tal alteração consistiu na substituição da referência ao regime das férias judiciais que até então vigorava em matéria de prazos e de diligências, pela suspensão, pura e simples, “de todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que dev(essem) ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos” a correr termos, designadamente, nos tribunais judiciais e Ministério Público, “até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19” (n.º 1), a decretar nos termos que resultavam já da previsão do respetivo n.º 2. Assim, enquanto perdurasse, a situação excecional continuou a constituir causa de suspensão dos prazos de prescrição relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, regra cuja prevalência se manteve sobre quaisquer regimes que estabelecessem prazos máximos imperativos de prescrição (n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º, cuja redação não foi alterada), cujo regime se aplica naturalmente, aos procedimentos criminais, como resulta da expressão “todos os tipos de processos e procedimentos”, constante do n.º 3 do art.º 7 da Lei n.º 1-A/2020.
Tal situação só se alterou com a entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio. Com efeito, o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 veio a ser integralmente revogado pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, que alterou as medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença Covid-19, produzindo os seus efeitos a partir do dia 3 de junho (artigos 8.º e 10.º).
Posteriormente, entrou em vigor a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, o qual, no seu artigo 6.º-B, n.º 3 veio a prever norma com o mesmo alcance do art.º 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, ao estabelecer que “São igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos (…)”, sendo que, apesar da entrada em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (artigo 5.º), a produção dos seus efeitos retroagiu à data de 22 de Janeiro de 2021 (artigo 4.º).
Tais prazos apenas deixaram de estar suspensos a partir de 5 de Abril de 2021, uma vez que o referido artigo 6.º-B, foi revogado pelo artigo 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05 de Abril, e cuja entrada em vigor se deu a 06 de Abril de 2021 (artigo 7.º)
Desta forma, por força dos dispositivos legais “supra” citados, foi estabelecido um regime excecional de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, bem como da caducidade, introduzido pelo artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, que vigorou sem alterações desde o dia 9 de março de 2020 (artigo 5.º da Lei n.º 4-A/2020) até ao dia 3 de junho de 2020 (artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020) – num total de 87 dias – bem como, foi estabelecido um outro regime excecional de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal e caducidade, introduzido pelo artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, que vigorou sem alterações desde o dia 22 de Janeiro de 2021 (artigo 4.º, da Lei n.º 4-B/2021) até ao dia 5 de Abril de 2021 (artigo 7.º da Lei n.º 13-B/2021) – num total de 74 dias.
Aqui chegados, a questão que importa, agora, analisar é a de saber se as normas que estabeleceram as causas de suspensão do prazo de prescrição e caducidade do procedimento criminal introduzidas artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, que vigorou sem alterações desde o dia 22 de Janeiro de 2021 (artigo 4.º, da Lei n.º 4-B/2021) até ao dia 5 de Abril de 2021 (artigo 7.º da Lei n.º 13-B/2021) – podem aplicar-se aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência.
No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-07-2020 (Processo n.º 76/15.6SRLSB.L1-5, www.dgsi.pt) decidiu-se que “Independentemente de se tratar de uma lei temporária, ou não, a entrada em vigor da Lei n°1-A/2020, ao prever no seu art.º 7º, a suspensão de todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais, sempre configurará uma situação de sucessão de leis penais no tempo, pelo que a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroatividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade, nem sobrepor-se à aplicação do regime penal mais favorável em bloco ao arguido. (…) O regime em bloco mais favorável ao arguido é sem dúvida manter, como únicas causas de suspensão da prescrição da pena, as previstas no artigo 125° do Código Penal, afastando-se a aplicação ao caso concreto do artigo 7° da Lei n°1-A/2020, esta última sem dúvida mais gravosa para o arguido.”. Em igual sentido, pronunciou-se o Ac. TRE de 23-02-2021 (Processo n.º 201/10.3GBVRS.E1, www.dgsi.pt), o Ac. TRP de 14-04-2021 (Processo n.º 300/19.6Y9PRT-B.P1, www.dgsi.pt e o Ac. Ac. TRL de 09-02-2023) Processo n.º 690/21.0T9TVD.L1-9 www.dgsi.pt).
Também na doutrina, existem defensores desta tese (cfr. José Joaquim Fernandes Oliveira Martins “A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março – uma primeira leitura e notas práticas”, Revista Julgar Online, Março de 2020, disponível em http://julgar.pt/a-lei-n-o-1-a2020-de-19-de-marco-uma-primeira-leitura-e-notas-praticas/, p. 7, e Rui Cardoso e Valter Baptista, Estado de Emergência - COVID-19 Implicações na Justiça, Centro de Estudos Judiciários, disponível emhttp://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19_2Edicao.pdf, p. 533-536).
Contudo, em sentido contrário, pronunciou-se o TRL, o qual, por acórdão de 11 de fevereiro de 2021 (Processo n.º 89/10.4PTAMD-A.L1-9, www.dgsi.pt), sendo que as considerações aí feitas são, em tudo, aplicáveis à caducidade do direito de queixa, atenta a similitude entre a prescrição e a caducidade, ambos de natureza substantiva. Como se pode ler neste aresto “A suspensão em causa justifica-se, desde logo, pelo facto de as diligências processuais com vista à execução da pena em que o arguido foi condenado, por força da respectiva infecção epidemiológica, terem deixado de poder ser exercidas com a eficácia e prontidão previstas e exigíveis em circunstâncias normais. É que, por força da referida pandemia, como é facto público e notório, o país e o mundo quase pararam, facto esse que, aqui, levou à implementação das medidas excepcionais fixadas pela Lei n.º 1-A/2020, com reflexos, também, nos procedimentos processuais de natureza penal.”
(…)
Por outro lado, que o entendimento do Ministério Público também não pode merecer acolhimento extrai-se do que aconteceria, v.g., com a “extinção do direito de queixa”, previsto no art.º 115.º do Cód. Penal.
Se a Lei n.º 1-A/2020 se aplicasse só aos factos praticados na sua vigência, estando a decorrer o prazo para o exercício do direito de queixa por factos anteriores à entrada em vigor da citada lei, então, o mesmo prazo não se suspenderia, em claro benefício do arguido, enquanto que o titular do direito de queixa, por sua vez, se via impedido de formular esta, ante o disposto no art.º 7.º, n.º 1, da mesma lei.
Isto é, para além de se atentar contra a unidade do sistema jurídico, haveria “dois pesos e duas medidas”, criando-se uma situação de manifesta e incompreensível injustiça relativa. Se o processo penal assegura ao arguido todas as garantias de defesa, já não o pode fazer, como é óbvio, em prejuízo do ofendido, desde logo, porque todos são iguais perante a lei, como se prevê no art.º 13.º, n.º 1 da C.R.P.
Depois, não se está, aqui, perante uma sucessão de leis penais, mas, antes, perante um “regime temporário de excepção”, o qual, decorrido o tempo, ou deixadas de verificar as circunstâncias que o haviam determinado, cessará todos os seus efeitos, conforme o previsto no n.° 2 do citado art.° 7.°, fazendo com que o anterior “regime” retome a sua vigência e normalidade.
Finalmente, também não se poderá dizer que a suspensão do prazo de prescrição previsto no art.º 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020 se traduz numa decisão mais gravosa para o arguido. É que o prazo de prescrição da pena mantém-se rigorosamente o mesmo, antes e depois da vigência da citada lei. A única diferença é que, esta, por razões de superior interesse público, suspendeu-o temporariamente, para voltar, depois, a correr.”
Também, no mesmo sentido, se pronunciou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 500/2021, de 9 de Junho de 2021 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt, o primeiro a pronunciar-se sobre o tema), ao decidir (para além do mais, e com relevo para a questão em apreço) “Não julgar inconstitucional o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência”, cuja interpretação tem inteira aplicação, também, à prescrição do procedimento criminal, conforme referido no texto desse acórdão no seu ponto 31.
No mesmo sentido pronunciou-se o Ac. do TC n.º 660/2021 (Processo n.º 367/2021, de 29-07-2021, consultável em www.tribunalconstitucional.pt):
“Não podemos olvidar que o desiderato último do acervo de medidas implementadas pelo Estado, perante a ameaça pandémica à escala mundial, era restringir o contacto social entre indivíduos por forma a controlar a propagação da epidemia da doença Covid-19, através de restrições profundas à liberdade de circulação dos cidadãos, que obviavam à realização das normais atividades do Estado, como particular incidência na administração da justiça.
Estas medidas foram cogitadas e executadas no cumprimento da incumbência do Estado de proteger a vida e a integridade física de todos os cidadãos (artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da CRP), num quadro de pandemia à escala global.
Nesse conspecto, as atividades que se realizam através do contato pessoal e que exigem uma vertente gregária foram sustadas.
No quadro da administração da justiça, numa visão global das medidas concretizadas, podemos concluir que estas implicaram uma paragem forçada do andamento dos processos em curso, através da suspensão dos prazos para a prática de atos processuais. Mesmo no âmbito processual penal, nos processos de natureza urgente, as diligências apenas foram realizadas, mediante condições especiais. Ou através de meios de comunicação à distância, caso se afigurasse viável e possível a sua utilização por todos os intervenientes processuais, ou presencialmente, consoante estivesse reunido um conjunto de circunstâncias físicas e estruturais que permitissem cumprir as regras das autoridades de saúde referentes a distanciamento social entre intervenientes e cumprimento de etiqueta respiratória (cfr. 2.1.1., supra). Tudo isto implicou, até mesmo nos processos de natureza urgente, que contendem com direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, um retardamento óbvio da atividade judiciária.
Não poderemos olvidar que a regra geral consistiu na sustação e suspensão de todos os processos processuais e o prosseguimento apenas daqueles que contendessem com direitos, liberdades e garantias, desde que fossem asseguradas todas as regras sanitárias, ficando a sua realização dependente de condições físicas e estruturais (como, por exemplo, a dimensão das salas de audiências ou de realização de diligências, a existência de sistemas de ventilação e arejamento de divisões em tribunais, a lotação máxima de pessoas nos edifícios, etc.)
Esta perspetiva ampla das medidas em que se insere a causa de suspensão da prescrição permite-nos concluir que foram razões excecionais de ordem sanitária que conduziram, em primeira linha, à suspensão da atividade judiciária, mediante a suspensão do andamento dos processos. Tratou-se de uma medida implementada em benefício de todos os intervenientes processuais, sem distinção, incluindo os próprios arguidos.
Como consequência dessa paralisação forçada do andamento generalizado dos processos, o legislador determinou a suspensão dos prazos de prescrição dos procedimentos criminais, na medida em que a inatividade do aparelho judiciário, globalmente considerado, projetava-se, não só sobre todos os intervenientes processuais, mas também sobre o próprio Estado, na veste de prossecutor da ação penal, que se viu, em virtude da mesma situação excecional, obrigado a suster tal desiderato.
Na verdade, a causa de suspensão da prescrição prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, deve ser lida como uma decorrência necessária da paralisação da atividade dos tribunais portugueses e da sustação do rito processual, quase generalizado, durante o período de 9 de março a 3 de junho de 2020, dos processos de grande parte das jurisdições.
Naturalmente, a sua consagração não radicou em nenhum objetivo de política criminal, i.e., não houve uma alteração de ponderação de valores pelo legislador, no âmbito processual penal, que tenha presidido à implementação de uma nova causa de suspensão da prescrição. O legislador não pretendeu com esta norma “prolongar” a sua atividade de prossecutor da ação penal, nem reparar uma situação de “inércia pretérita” do Estado (Acórdão n.º 500/2021), repondo um período de tempo em seu benefício.
Esta causa de suspensão da prescrição distancia-se, com esta nuance, dos restantes casos sobre os quais a jurisprudência do Tribunal se debruçou, ostentando uma finalidade e um contexto muitíssimo excecionais (cfr. ponto 2.2.4. supra).
A razão de ser desta causa de suspensão derivou, única e exclusivamente, da situação de emergência sanitária e que originou o estancamento da atividade judiciária, por um determinado período.
Tal premissa conduz-nos à conclusão de que as finalidades subjacentes ao próprio regime da prescrição, que ditam a sujeição desta causa de suspensão ao princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, não se verificam, porquanto não presidiu à sua consagração uma finalidade de política criminal que reclame o freio do princípio da legalidade, como defesa do cidadão perante o ius puniendi do Estado: pelas razões descritas, nem está em causa reverter sobre o arguido as consequências da inércia pretérita do Estado, nem uma violação do princípio da confiança, já que o evento era imprevisível, para além do arguido, para qualquer outro sujeito processual e para o próprio Estado titular da ação penal, não sendo a situação de pandemia, pela sua imprevisibilidade, apta a constituir um quadro de referência sobre o qual se possa falar de “confiança” (essencialmente no mesmo sentido, v. o já citado Acórdão n.º 500/2021).
Acresce que nos parece evidente que a intenção do legislador era a aplicação desta causa de suspensão da prescrição a processos em curso, aquando da sua entrada em vigor, isto é, a factos cometidos antes dessa data, por serem esses mesmos procedimentos que sofreram uma “torção” na sua tramitação com a sustação da respetiva tramitação. Como tem sido evidenciado pela jurisprudência constitucional acima elencada, para além de não existir um direito subjetivo à prescrição do procedimento criminal, é também legítimo que o legislador contemple causas de suspensão em diplomas especiais, desde que sejam suficientemente precisas e emitidas pela Assembleia da República, o que se verifica neste caso (cfr. Acórdão n.º 449/2002).
Assim, consideramos que a aplicação imediata desta causa de suspensão a processos em curso não colide com as garantias asseguradas pelo princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, quando, como é o caso, no momento da sua entrada em vigor, o prazo de prescrição já se tinha iniciado e, apesar de se encontrar em curso, não se havia ainda extinto – aliás, encontra-se fora do respetivo âmbito de proteção (v., de novo, o Acórdão n.º 500/2021).
(…)”
Não desconhecemos a existência, neste último aresto, de uma declaração de voto da Sr.ª Juiz Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros (tendo votado a decisão mas não a fundamentação, ou a seja interpretação do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no sentido “de que a causa de suspensão dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, se encontram já em curso” “por considerar que a referida norma não é inconstitucional porque se inscreve no âmbito de um processo contraordenacional, está enquadrada por uma situação excecional de emergência e corresponde a uma situação em que a lei nova se aplica a um prazo já em curso, mas ainda não completado”).
No entanto, compreendendo as reservas aí levantadas pela Sr.ª Conselheira, não esquecemos o que consta do ponto 31. do Ac. do TC n.º 500/2021 e com o qual se concorda na íntegra:
“Tudo o que se disse até agora assentou na consideração da causa de suspensão da prescrição estabelecida nos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, independentemente da natureza criminal ou contraordenacional dos procedimentos em curso.
A circunstância de a interpretação sindicada se cingir aos procedimentos contraordenacionais pendentes por factos anteriores ao início da vigência da Lei n.º 1-A/2020 apenas serve para tornar mais evidente a conclusão que acima se alcançou. Com efeito, apesar de o direito das contraordenações, enquanto direito sancionatório público, ser influenciado ou “matizado” pelos princípios constitucionais do direito penal, a autonomia material do ilícito de mera ordenação social em relação ao ilícito penal obsta a que tais princípios possam ser transpostos deste para aquele de forma automática ou imponderada ou que possam aí valer com na mesma exata extensão ou com o mesmo grau de intensidade (cf. Acórdão n.º 76/2016; no mesmo sentido, a propósito da liberdade de conformação do legislador na modelação do instituto da prescrição, v. Acórdão n.º 297/2016). No que diz respeito à proibição constitucional da retroatividade in pejus, isso significa que ela se estenderá ao direito contraordenacional somente enquanto manifestação nuclear da função de garantia do princípio legalidade, exigida pela ideia de Estado de Direito e oponível ao arbítrio ex post facto.
Resta concluir, assim, que, ao proibir que qualquer cidadão seja «sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão» ou sofra pena que não esteja expressamente cominada «em lei anterior» ou mais grave do que a prevista «no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos», o artigo 29.º da Constituição, respetivamente nos seus n.ºs 1, 3 e 4, não se opõe à aplicação de uma causa de suspensão da prescrição com a função e o recorte daquela que foi prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2000, a procedimentos contraordenacionais pendentes por factos praticados antes do início da respetiva vigência.”
Com efeito, a suspensão em causa constituiu uma medida legislativa excecional e aprovada num quadro de elevada excecionalidade. Com efeito, por força da referida pandemia, como é facto público e notório, o país e o mundo quase pararam, facto esse que, aqui, levou à implementação das medidas excecionais fixadas pela Lei n.º 1-A/2020, com reflexos, também, nos procedimentos processuais de natureza penal; pelo que, a suspensão dos prazos, em todos prazos e procedimentos, é justificada, desde logo, pelo facto de as diligências processuais, terem deixado de poder ser exercidas com a eficácia e prontidão previstas e exigíveis em circunstâncias normais.
Entendimento diverso, com o devido respeito por opinião contrária, seria conceder-se um injustificável benefício ao arguido, colhendo este, proveitos de uma interpretação da Lei n.º 1-A/2020 e da Lei 4-B/2021 que atentaria não só contra a sua letra, como, também, contra o seu espírito. Com efeito, o prazo de caducidade do exercício do direito de queixa não se suspenderia e o arguido, também tinha a certeza, por outro lado, de que, por força da mesma lei, diligências processuais não poderiam, entretanto, ser desencadeadas. Ao não se aplicar a norma que estabeleceu a suspensão de prazos de caducidade, como se fez na sentença recorrida, vedou-se aos ofendidos a possibilidade de acederem à justiça para fazerem valer os seus direitos, considerando que, na prática, a não ocorrência de suspensão de um prazo (em curso) implicou a impossibilidade prática ou, pelo menos um forte constrangimento não imputável ao particular de este de aconselhar devidamente, preparar a sua queixa, bem como, por fim de a apresentar junto do MP.
Realce-se, a finalidade do instituto da prescrição reside “também (na) responsabilização do Estado pela inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto”. Ora, relativamente ao regime imposto, a não realização de atos ou diligências processuais, não se deveu, contudo, a uma inércia ou incapacidade do Estado em as desencadear, mas antes, tratou-se uma situação absolutamente excecional que levou a que o Estado, a bem da preservação da saúde pública dos cidadãos, se abstivesse de praticar atos e diligências processuais que pudessem colocar em causa, os esforços no controlo da pandemia.
No cumprimento do seu dever de proteção da vida e da integridade física dos cidadãos (artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da Constituição, respetivamente), o Estado, durante o período pandémico, adotou um conjunto de medidas destinadas a conter o risco de contágio e de disseminação da doença, baseado na implementação de um novo modelo de interação social, caracterizado pelo distanciamento físico e pela diminuição dos contactos presenciais. E por força desta paralisação da atividade judiciária, que se estendeu à justiça penal, os atos processuais interruptivos e suspensivos da prescrição ou da caducidade do direito de queixa deixaram de poder praticar-se no âmbito dos procedimentos em curso, pelo menos nas condições em que antes o podiam ser.
Foi, pois, neste contexto especial e excecional, que se fixou um regime transitório e temporário de suspensão dos prazos de prescrição e caducidade, o qual cessou assim que deixaram de subsistir as circunstâncias que o determinaram. E aqui, ao contrario do defendido na decisão recorrida, somos a concluir que, quer o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, quer o artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei 4-B/2021, são aplicáveis aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência.
Note-se que a decisão recorrida tem subjacente o entendimento que a aplicação da suspensão dos prazos de caducidade determinada pelas chamadas “Leis Covid” aos prazos em curso corresponderia a uma aplicação retroativa de lei penal mais desfavorável ao arguido, sendo, por esse motivo, inaceitável perante a nossa Lei Fundamental, atendendo a que o artigo 19.º/6 da Constituição da República Portuguesa impõe que “A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, a capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião” e, daqui, conclui que a suspensão da caducidade só opera relativamente aos prazos que tiverem início durante tais períodos.
E concordamos com a asserção dos recorrentes que este é um raciocínio demasiado simplista e que desatende diversos factores que não podem nem devem ser ignorados.
Como se referiu já, nos termos da decisão recorrida, o artigo 19.º/6 da CRP estabeleceria um impedimento à aplicação da suspensão dos prazos de caducidade. No entanto há que delinear correctamente o âmbito de aplicação de tal norma constitucional, o que foi efectuado de forma exemplar por parte do Tribunal Constitucional no Acórdão nº 500/2021, já referido:
“Ao estabelecer que a «declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião”, “o artigo 19.º/6 CRP dirige-se exclusivamente aos poderes de emergência que emergem do estado de exceção constitucional:
(i) ao poder de declaração, na medida em que veda ao Presidente da República a possibilidade de decretar a suspensão ou a limitação do exercício dos direitos, liberdades e garantias constantes do elenco;
e (ii) ao poder de execução, na medida em que o Governo, nas providências que lhe compete adotar, apenas pode atingir negativamente os direitos, liberdades e garantias especificados no decreto presidencial.”
“Tais considerações permitem demonstrar a razão pela qual o parâmetro extraído do n.º 6 do artigo 19.º da Constituição, aditado pelo recorrente em alegações, não é útil nem apropriado para contraditar a validade constitucional da solução impugnada. Esta não decorre de normas emitidas pelo Governo em execução da declaração do estado de emergência constante do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 ou de qualquer uma das suas sucessivas renovações; decorre antes de normas constantes de Lei aprovada pela Assembleia da República no exercício da sua normal competência legislativa, o qual não é inibido, nem condicionado pela declaração do estado de emergência. É por isso que o vício de inconstitucionalidade apontado pelo recorrente, a existir, só poderá resultar da confrontação direta com a proibição de aplicação retroativa da lei penal de conteúdo desfavorável, consagrada no artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição, do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, na interpretação segundo a qual a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência”.
Respalda-se ainda a sentença recorrida na alegada violação de “um dos princípios basilares do nosso ordenamento jurídico que é o da não retroactividade das leis, salvo se, uma lei penal se mostrar, concretamente, mais favorável ao arguido – cfr. os art.º 18º, nº 3, e 29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa e o art.º 2º do CP”.
A questão foi largamente analisada e esmiuçada no Acórdão n.º 500/2021 do TC, já amplamente referido, concluindo que “Apesar de o Tribunal vir perfilhando o entendimento de que o instituto da prescrição tem uma natureza, senão material, pelo menos mista, a ideia de que essa classificação é suficiente para determinar sem mais a sujeição de todos os elementos que integram o respetivo regime jurídico a todas as exigências que decorrem do princípio da legalidade, enquanto garantia pessoal de não punição fora do domínio de uma lei escrita, prévia, certa e estrita, não encontra respaldo, pelo menos inequívoco, na jurisprudência constitucional.”
Acrescentando, “As normas relativas à prescrição do procedimento criminal não se encontram incluídas, de modo literal, na proibição da retroatividade in pejus fixada para as normas incriminadoras (neste sentido, quanto à proibição da analogia, v. Acórdão n.º 205/1999). A sua recondução ao âmbito de aplicação do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4.º, da Constituição, só poderá fazer-se, por isso, com apoio em argumentos jurídico-constitucionais, os quais, por sua vez, haverão de extrair-se, não da classificação das normas atinentes ao instituto da prescrição segundo os critérios desenvolvidos no plano infraconstitucional, mas antes da ratio da proibição da retroatividade in pejus e, por conseguinte, dos próprios fundamentos do princípio da legalidade penal”.
Por um​ lado, as causas de interrupção e de suspensão de prescrição devem estar “fixadas em lei prévia”, o que se justifica por forma a ser possível controlar o “exercício do poder punitivo do Estado através do Direito que previamente criou”. Trata-se de uma norma de “autolimitação” do próprio Estado. E o Acórdão descreve os termos desta autolimitação:
“as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus, na medida em que se destinam a proteger o indivíduo contra possíveis abusos por parte do legislador, opõem-se à possibilidade de o Estado, através da ampliação retroativa do elenco das causas de interrupção ou suspensão da prescrição, mitigar ou até mesmo reverter a débito do arguido os efeitos da «sua inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto” .
Neste sentido, a proibição da aplicação retroativa das normas que estabelecem as causas de interrupção e de suspensão da prescrição do procedimento criminal partilhará dos fundamentos da proibição da aplicação retroativa das normas que estabelecem os pressupostos da responsabilidade: tal como esta, também aquela será imposta em nome da defesa do cidadão contra a discricionariedade e o arbítrio ex post facto.
Por outro lado, importa não perder de vista que a ratio da proibição da retroatividade in pejus se liga igualmente ao princípio da confiança, já que as garantias inerentes àquela proibição assentam numa ideia de previsibilidade (por sua vez enraizada no princípio da confiança) das normas, no sentido em que qualquer cidadão, para além de não poder ser surpreendido pela incriminação de um comportamento anteriormente adotado (n.º 1 do artigo 29.º da Constituição), também não pode ser surpreendido pela aplicação de uma sanção mais grave ou por normas processuais materiais de efeitos mais gravosos do que aqueles com que podia contar à data em que praticou os factos (n.º 4 do artigo 29.º da Constituição).
E, assim, conclui o Tribunal Constitucional ainda no Ac. 500/2021:
“Pois bem.
Mesmo não pondo em causa que, em matéria de prescrição, o conceito de retroatividade é dado tempus deliti e não pelo terminus do prazo – o que, conforme se viu, não corresponde sequer à orientação sufragada no Acórdão n.º 449/2002 – não restam dúvidas de que a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, pela sua singularidade, escapa totalmente a ambas as rationes com base nas quais é possível justificar o alargamento às normas sobre prescrição das garantias inerentes à proibição da retroatividade.” O que tem plena aplicação no âmbito da extinção do direito de queixa por caducidade.
(…)
“A suspensão do decurso do prazo de prescrição – e caducidade, acrescentamos - dos procedimentos sancionatórios pendentes durante o período em que vigoraram as medidas de emergência adotadas na Lei n.º 1-A/2020 não se destinou a permitir que o Estado corrigisse ou reparasse os efeitos da sua inércia pretérita no âmbito do exercício do poder punitivo de que é titular. Destinou-se apenas e tão só a responder aos efeitos de uma superveniente e não evitável paralisação do sistema de administração da justiça penal, imposta pela necessidade de controlar e conter a disseminação de um vírus potencialmente letal. Tratando-se de uma causa de suspensão e não de interrupção do prazo de prescrição, cuja vigência não excedeu o lapso temporal durante o qual se verificou a afetação ou condicionamento da atividade dos tribunais, nem conduziu — reticus, não tinha sequer a virtualidade de conduzir — à reabertura dos prazos prescricionais já integralmente decorridos, a sua aplicação aos procedimentos pendentes não exprime qualquer excesso, arbítrio ou abuso por parte do Estado contra o qual faça sentido invocar as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus: ao determinar a aplicação a procedimentos pendentes da suspensão da prescrição em razão da pandemia então em curso, a solução adotada limita- se, na verdade, a assegurar «a produção do efeito útil da norma de emergência» (idem, p. 313), não ingressando no âmbito da esfera defensiva que é assegurada pelo princípio da legalidade.
E como bem referem os recorrentes, “Não é diferente a conclusão a que se chega se encararmos a proibição da retroatividade in pejus a partir da proteção da confiança, como fez o Tribunal recorrido.
Se tal proibição visa garantir ao destinatário uma previsibilidade razoável das consequências com que se deparará ao violar o preceito penal, é relativamente evidente, quando se trate de estender o respetivo âmbito de incidência para além dos limites traçados pela letra dos n.ºs 1, 3 e 4, do artigo 29.º, que a sua invocação deixará de ter fundamento se o evento em causa se situar no mais elevado grau daquilo que não é por natureza antecipável, como sucede com a paralisação do sistema de administração da justiça penal ditada pelo súbito e inesperado surgimento de uma pandemia à escala global levando à paralisação dos tribunais portugueses e da sustação do rito processual, quase generalizado, durante o período de 9 de março a 3 de junho de 2020, dos processos de grande parte das jurisdições.”
O mesmo Tribunal Constitucional pronunciou-se ainda bastante recentemente nestes sentido na Decisão Sumária nº 256/2023, de 24/04/2023, Fernandes Costa (Processo nº 362/2023, 3ª Secção, www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20230256.html), decisão que transitou em julgado em 02/05/2023) da qual consta:
“Pelos fundamentos expostos, decide-se: a) Não julgar inconstitucional a norma extraível do artigo 7º, nºs 2, 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretados no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal aí prevista é aplicável a processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, vigorando até ao termo da situação excecional de infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e doença COVID-19.”
A suspensão dos prazos causa não radicou em nenhum objetivo de política criminal, i.e., não houve uma alteração de ponderação de valores pelo legislador, no âmbito processual penal, que tenha presidido à implementação de uma nova causa de suspensão da prescrição. O legislador não pretendeu com esta norma “prolongar” a sua atividade de prossecutor da ação penal, nem reparar uma situação de “inércia pretérita” do Estado, repondo um período de tempo em seu benefício.
Há que concluir que as finalidades subjacentes ao próprio regime da caducidade do direito de queixa, que ditam a sujeição desta causa de suspensão ao princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, não se verificam, porquanto não presidiu à sua consagração, na altura da pandemia, uma finalidade de política criminal que reclame o freio do princípio da legalidade, como defesa do cidadão perante o ius puniendi do Estado: pelas razões descritas, nem está em causa reverter sobre o arguido as consequências da inércia pretérita do Estado, nem uma violação do princípio da confiança, já que o evento era imprevisível, para além do arguido, para qualquer outro sujeito processual e para o próprio Estado titular da ação penal, não sendo a situação de pandemia, pela sua imprevisibilidade, apta a constituir um quadro de referência sobre o qual se possa falar de “confiança”.
Assim, consideramos que a aplicação imediata desta causa de suspensão a processos em curso não colide com as garantias asseguradas pelo princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, quando, como é o caso, no momento da sua entrada em vigor, o prazo de caducidade já se tinha iniciado e, apesar de se encontrar em curso, não se havia ainda extinto, solução que cremos mais adequada e compreensiva da realidade e das especificidades que determinaram as ditas “Leis Covid”, não se vislumbrando que a mesma colida, por tudo quanto se expôs, com qualquer normativo legal”.
E, assim sendo, porque nada se alterou entretanto e se mantêm pertinentes as considerações tecidas na nossa anterior decisão – tendo presente ainda os demais acórdão proferidos pelo Tribunal Constitucional, invocados pelo MP (660/2021 de 29.7 e 798/2021 de 21.10) - continuamos a entender ser de aplicar, a casos como o dos autos, o apontado regime legal, afastado na decisão recorrida.
Sendo válidos os argumentos aqui esgrimidos, apesar de reportados, em todos os casos a processos de natureza contra-ordenacional, pois que a ponderação ali efectuada se pode estender aos processos de natureza criminal, como o dos autos.
E, assim, é de concluir que o prazo de prescrição do procedimento criminal, no caso, esteve suspenso, desde logo, entre 09/03/2020 e 03/06/2020 (87 dias) – e, depois entre 22 de janeiro e 6 de abril de 2021 (74 dias) – a impedir se tivesse completado o prazo normal de prescrição de 5 anos, entre o momento da constituição como arguido e a notificação da acusação.
E, assim, forçoso é concluir que, neste momento ainda não se completou o prazo de prescrição.
E, nesta medida, o recurso interposto pelo MP tem que proceder.
2.3. Acrescentamos apenas uma pequena nota, que cremos ser útil, relativamente ao pedido subsidiário formulado pelo MP.
Embora o dito pedido se mostre prejudicado face à posição assumida quanto à prescrição dos crimes de infidelidade, como parece medianamente evidente, o tribunal de recurso não pode ordenar que a 1.ª instância adite à decisão recorrida a referência expressa, ao facto de que a não aplicação do regime legal previsto no artigo 7.º da Lei 1-A/2020 se fica a dever ao entendimento de que tal norma é inconstitucional.
Tal é o que resulta, de forma inequívoca, da decisão recorrida, segundo as regras da interpretação, atinentes com a impressão do destinatário, contidas no artigo 236.º Código Civil, aplicável às declarações negociais e às decisões judiciais, também.
Mas se não resultasse, não pode o tribunal de recurso ordenar a correcção do despacho recorrido, no sentido propugnado pelo MP.
A decisão recorrida contém a fundamentação que foi julgada suficiente e bastante para sustentar o decidido.
Se o é, ou não, cabe ao tribunal de recurso avaliar e decidir em conformidade.
Como o próprio MP, de resto, bem entendeu – o fundamento para a não aplicação do regime legal invocado pelo MP - ao referir que “não está em causa saber se a lei tem ou não aplicação no caso concreto dos autos. Disso, o Tribunal parece não ter dúvidas. O que se entende é que esta concreta norma viola o princípio da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido, princípio, este estruturante do direito penal, e consagrado na Constituição da República Portuguesa (doravante CRP). Ou seja, afigura-se-nos que o entendimento do Tribunal é o de que a norma contida no artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março, é inconstitucional”.
Não há, com efeito, margem para outra interpretação, atente-se nas notas de jurisprudência e da Doutrina a sufragar o entendimento ali exarado.
Como refere a arguida, sem que se exijam especiais regras hermenêuticas, é possível apreender da leitura do excerto supra transcrito, o Mm.º JIC considerou esgotado, antes da notificação do despacho de acusação, o prazo de cinco anos previsto pelo artigo 118.º/1, c) do CP para que se suceda a prescrição do procedimento pelo crime de infidelidade, não acolhendo nesse cálculo a suspensão de prazo prevista pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, por entender que a mesma não se coaduna com o princípio da não retroatividade da lei penal menos favorável ao arguido, preconizada pelos artigos 2.º/4 CP e 29.º/4 da CRP.
Não se pode, pois, acolher, nem o raciocínio, nem a pretensão do MP, atinentes com o facto de que, ou o Tribunal entende que a norma é inconstitucional e não a aplica com esse fundamento, o que tem de deixar declarado na decisão que proferiu.
É certo, porém, contudo, que existindo a lei, o tribunal não pode deixar de a aplicar.
O tribunal está sujeito e obriga à lei e às decisões dos Tribunais superiores, como é sabido.
A única hipótese de não aplicar a lei é julgá-la inconstitucional, como afinal, acabou por se decidir, sendo que a decisão recorrida, quando refere que a lei viola um princípio constitucional – ainda que sem expressamente o declarar - a considera inconstitucional.
Está expressamente declarada razão da não aplicação da norma em causa, sem o recurso, é certo, a qualquer fórmula tabelar, ainda, que imperfeitamente expressa, como refere a arguida.
Isto é o que se depreende, necessariamente, do excerto onde consta "não podem alargar os prazos de prescrição do procedimento criminal ou das penas, já em curso, sem violarem o sobredito princípio (leia-se, princípio da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido, nos termos dos artigos 2.º/4 CP e 29.º/4 da CRP)”.
A conclusão extraída no despacho recorrido decorre da desconsideração da aplicação de tal diploma, por se entender que o mesmo, na parte em que pretende suspender o prazo de prescrição do procedimento criminal pelo período de oitenta e seis dias, viola o princípio da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido, consagrado no artigo 29.º/4 da CRP.
E, assim, ainda que sem referência expressa, que é materialmente inconstitucional, o certo é que se não aplica tal regime legal.
A única conclusão admissível daquela asserção será a de que se não aplica o dito regime legal por se entender ser o mesmo inconstitucional.
3. Recurso dos assistentes.
3.1. O contexto do recurso.
Os assistentes apresentaram, em 21/07/2014, queixa-crime contra administradores, funcionários e outros colaboradores do ... e de outras sociedades do ... (...), tendo em conta a existência de indícios da prática, entre outros, de um crime de burla qualificada, uma vez que haviam sido levados ao engano de que estariam a fazer seguríssimas aplicações em depósitos a prazo, o que se veio a verificar não acontecer, do que resultou um prejuízo superior a 20 milhões de euros, que julgavam seguramente aplicados em depósitos a prazo, o que se verificou não ter ocorrido.
Findo o inquérito, foi deduzida acusação, mas em relação ao agora arguido FF, gestor das contas dos assistentes – apenas constituído como tal na fase da instrução - o processo foi arquivado.
Deste despacho consta a seguinte fundamentação:
“Muitos dos queixosos clientes do ..., insurgem-se contra os comerciais responsáveis pelas suas carteiras, pelo facto de estas se encontrarem investidas em produtos de dívida ..., quando, referem, no ato de abertura de conta, e nas conversações iniciais que ao mesmo conduziram, teriam mencionado ao gestor responsável que pretendiam investir as suas poupanças em produtos a prazo, que potenciassem uma boa remuneração, associada ao baixo risco dos seus investimentos.
Alegam que, contrariamente a tal, foram subscritos para as suas carteiras produtos de dívida do ... como sendo obrigações e ações preferenciais das holdings de topo do Grupo, produtos investidos nos anteriormente elencados (no caso concreto do ...), ou foram contratadas colocações fiduciárias junto da ES/, opções de investimento que se traduziram na assunção de um risco que não pretendiam.
Compulsada a documentação bancária obtida relativamente a cada uma das contas tituladas pelos queixosos, resulta que a documentação bancária pelos próprios assinada no ato de abertura, e os registos do banco, relativos às ordens de subscrição dos diversos produtos, conforma, do ponto de vista formal, os investimentos realizados para as carteiras dos clientes.
Na verdade, verifica-se que nos casos em que os investimentos se mostram realizados através de colocações fiduciárias, os clientes tinham subscritos mandatos fiduciários; no casos em que há subscrições de unidades de PP, os clientes subscreveram mandato protector, e as ordens com vista à subscrição de obrigações das emitentes ..., ... e ..., e mesmo de algumas ações preferenciais, mostram-se formalmente documentadas, quer através de e-mails, quer no sistema informático do próprio banco, com o registo da receção da ordem, por contacto telefónico.
Ofendidos investidos em obrigações emitidas pela ..., ... e ..., alegam, a maioria das vezes, ter informado o gestor sobre a sua pretensão de verem o seu dinheiro investido em depósitos a prazo ou aplicações de baixo risco.
As obrigações de caixa, as notes e o papel comercial são valores mobiliários representativos de dívida da sua emitente que conferem ao titular o direito ao recebimento periódico de juros durante a vida útil do empréstimo obrigacionista e o direito ao reembolso do capital na respetiva data de maturidade.
As obrigações emitidas pela ..., ... e ..., subscritas para as carteiras destes clientes, eram obrigações de curto a médio prazo, com taxa fixa, relativamente às quais estava subjacente o risco de flutuação do capital investido.
O risco associado àqueles produtos reconduzia-se, assim, ao de um eventual incumprimento pelas emitentes das suas obrigações na maturidade dos investimentos. Ora, as demonstrações financeiras das entidades emitentes que eram públicas à data em que ocorreram as subscrições, não evidenciavam o risco acrescido de incumprimento.
Do conjunto de inquirições realizadas aos responsáveis pelo ..., ... e ..., e aos gestores responsáveis pelas carteiras de tais clientes, em conjugação com a documentação das contas bancárias dos clientes que foi coligida, resulta a clara inexistência de indícios em como os gestores do ... que foram envolvidos na comercialização de dívida ES/, ... e ..., tivessem o conhecimento do real estado financeiro da holding de topo do ..., e, bem assim, das demais entidades que seriam irremediavelmente afetadas pelo estado financeiro daquela.
Mais, do conjunto da prova coligida ao longo do inquérito, entre ela, a documental, afigura-se que os gestores do ..., até ao primeiro incumprimento da ..., verificado em junho de 2014, porque ignoravam a real situação financeira da ... e de toda a área não financeira do Grupo, deliberadamente ocultada, como resulta dos factos descritos o ponto 2.2, mantinham a convicção de que a dívida emitida pela ... e suas subsidiárias, pela ... e pela ..., colocada nas carteiras dos clientes, tinha associado um baixo risco de insolvência das emitentes.
De tal modo, não se indicia que os gestores tenham subscrito, ou aconselhado a subscrição para as carteiras dos clientes daqueles produtos, cientes do real risco de incumprimento subjacente aos mesmos. Recorde-se que o ... aprovara a ... como contraparte para colocações fiduciárias, com base num critério de garantia de solvabilidade de primeira ordem, e que, até junho de 2014, CC e OO sempre sublinharam nas reuniões do CA do banco, a capacidade do ... cumprir com todas as suas obrigações para com os clientes da área financeira e investidores da área não financeira.
Nessa medida, não reúnem os autos indícios em como os gestores tenham atuado, no aconselhamento da subscrição de tais produtos, contrariamente à vontade manifestada pelos clientes no seu propósito de investirem em produtos financeiros de baixo risco, na medida em que os próprios também se encontravam induzidos em erro relativamente ao risco das emitentes.".
Requereram, então, os assistentes a abertura da instrução, pretendendo ver este arguido pronunciado pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 218.º/2 alínea a) CP, dado que entendiam ter tido uma particular responsabilidade nos danos que lhes foram causados, porque os induziu a aceitarem a informação de que as aplicações por si efectuadas constituiriam verdadeiros depósitos a prazo (ou realidade equivalente), o que não era verdade, com base nos seguintes factos:
- entre 2010 e 2014, os assistentes foram levados, no âmbito do ... (doravante ...), a proceder a aplicações junto da sociedade ... (...), as quais - considerando os últimos depósitos efectuados - se encontram demonstradas pelos does. 9 a 16 juntos com a queixa­ crime de fls. 2 do apenso Q-122 e demais documentação constante dos autos, nos seguintes montantes:
quanto à assistente ...:
- em 28/01/2013, por um denominado "contrato fiduciário" n.º …, foram aplicados €2.567.000,00, com taxa remuneratória de 5,19% e maturidade em 01/07/2014;
- em 30/07/2013, por um denominado "contrato fiduciário" n.º …, foram aplicados €10.500.000,00, com taxa remuneratória de 5,135% e maturidade em 30/07/2014;
- em 06/12/2013, por um denominado "contrato fiduciário" n.º 1…, foram aplicados €1.000.000,00, com taxa remuneratória de 5,084% e maturidade em 22/09/2014;
- em 16/12/2013, por um denominado "contrato fiduciário" n.º …, foram aplicados €2.900.000,00, com taxa remuneratória de 5,163% e maturidade em 16/12/2014;
- quanto ao assistente GG:
- em 23/01/2013, por um denominado "contrato fiduciário" n.º …, foram aplicados €1.628.000,00, com taxa remuneratória de 5,187% e maturidade em 01/07/2014;
- em 16/12/2013, por um denominado "contrato fiduciário" n.º …, foram aplicados €750.000,00, com taxa remuneratória de 5,163% e maturidade em 16/12/2014;
- quanto à assistente ...:
- em 18/11/2013, por um denominado "contrato fiduciário" n.º …, -foram aplicados €500.000,00, com taxa remuneratória de 5,097% e maturidade em 18/11/2014;
- em 22/04/2014, por um denominado "contrato fiduciário" n.º …, foram aplicados €1.450.000,00, com taxa remuneratória de 5,097% e maturidade em 18/05/2015,
num total de €21.295.000,00.
- os assistentes foram aliciados pelos funcionários do ... com a garantia de que se tratavam de aplicações seguríssimas junto de uma entidade bancária acima de qualquer suspeita, com uma robusta saúde financeira, sem qualquer margem de risco relevante (foi-lhes mesmo dito que se trataria do equivalente a depósitos a prazo), o que não correspondia à verdade.
- acontece, porém, que, na burla de que os assistentes foram vítimas, teve também participação activa e criminosa o ora requerido, uma vez que não só agiu nos termos supra referidos, sob as ordens, instruções e informações dos arguidos já identificados, como induziu os assistentes a aceitarem informação falsa que ele lhes prestava de que tais aplicações constituiriam verdadeiros depósitos a prazo.
- FF era o gestor de conta das contas abertas pelos assistentes no ... desde 2010 até meados de 2014, altura em que deixou de exercer funções naquela instituição bancária.
- os assistentes sempre deram instruções ao requerido no sentido de que as aplicações a efectuar constituíssem depósitos a prazo, o que este lhes garantiu, compromisso que manteve desde 2010 até 2014, enquanto foi gestor das contas dos assistentes.
- confrontado pelos assistentes com o facto de, nos extractos bancários, vir referido o termo "aplicação fiduciária", FF, por e-mail de Maio de 2011, assegurou-lhes que, no modelo bancário suíço, aquele termo equivaleria a um depósito a prazo, razão pela qual a sua fortuna estaria seguramente aplicada, com um rendimento fixo, não sendo possível solução mais transparente e segura, o que lhes continuou a assegurar enquanto foi gestor das suas contas.
- enquanto gestor das contas dos assistentes junto do ..., FF foi confrontado com sucessivos pedidos de constituição ou de resgate de depósitos a prazo, que nunca contestou, tendo sempre transmitido aos Assistentes a ideia de que estaria efectivamente a constituir ou a resgatar depósitos a prazo, o que ele bem sabia não corresponder à verdade.
- os depósitos a prazo são efectuados por instituições bancárias e comportam um baixo risco, uma vez que pressupõem rendimentos fixos, independentes de aplicações financeiras, estando ainda protegidos pela legislação que os salvaguarda de forma especial, atendendo à sua natureza.
- os assistentes confiaram que as aplicações levadas a cabo pelo requerido seguiriam o regime dos depósitos a prazo e foi nesse pressuposto que as constituíram, mantiveram, renovaram ou resgataram.
- FF sabia que, se os assistentes fossem informados de que não estavam a constituir aplicações em depósitos a prazo, não as fariam.
- o requerido sabia que os assistentes adaptavam um perfil conservador nas suas aplicações, pretendendo que as mesmas seguissem o regime dos depósitos a prazo.
- o requerido agiu no interesse do ... e do ..., assegurando aplicações vultuosas a favor da sua entidade patronal e em beneficio dela, bem sabendo que, se os assistentes fossem informados da verdadeira natureza das aplicações efectuadas, não as lograria obter.
- os assistentes efectuaram, mantiveram e renovaram as aplicações em causa porque confiaram que estavam a constituir depósitos a prazo em instituições aptas para esse fim, credíveis, seguras e organizadas de acordo com os melhores critérios de gestão, o que todavia não acontecia.
- os assistentes acabaram por perder a totalidade dos montantes acima enunciados no ponto 1) desta acusação, o que se ficou a dever não só à conduta dos arguidos CC, OO e QQ, que, nos termos constantes da acusação pública, os enganaram quanto à solidez financeira da ..., mas também à conduta do requerido FF, que os fez crer que estavam a constituir depósitos a prazo em instituição apta a esse fim, o que era falso, tendo todos concorrido para o prejuízo patrimonial causado aos assistentes em montante não inferior a €21.295.000,00.
- o prejuízo causado aos assistentes resultou assim não só do engano que astuciosamente foi provocado pelos ditos arguidos, quanto à situação financeira da ..., como do engano que astuciosamente foi provocado pelo requerido, quanto à natureza das aplicações por eles efectuadas.
- FF agiu com intenção de obter para a sua entidade patronal, o ..., bem como do ... que o controlava, enriquecimento ilegítimo, beneficiando-a com a captação de fundos vultuosos, por meio de engano que astuciosamente provocou, determinando os assistentes à prática de actos que ele bem sabia não corresponderem à sua vontade real, os quais acabaram por lhes causar prejuízo patrimonial relevante, traduzido na perda dos montantes aplicados em instrumento que eles julgavam constituir depósitos a prazo, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
3. 2. Instrução que culminou, com a prolação da decisão que aqui os recorrentes impugnam – no segmento atinente com a não pronúncia do arguido – que é do seguinte teor:
“(…)
Insurgindo-se contra o acima mencionado despacho de arquivamento do Ministério Público, alegam os assistentes, em apertada síntese, que sempre pretenderam investir somente em depósitos a prazo e que o arguido FF, ludibriando-os, investiu em depósitos fiduciários (placement fiduciaire), bem sabendo que não era isso que pretendiam.
Para sustentar a sua imputação, juntaram documentos (dando particular relevo a uma troca de emails onde o arguido FF refere que o placement fiduciaire corresponde ao depósito a prazo no âmbito da legislação suíça) e requereram a inquirição de testemunhas, tendo ainda sido interrogado o arguido, FF, e tomadas declarações ao assistente, GG.
Cumpre começar por salientar, a respeito das declarações do assistente, GG, por si e na qualidade de legal representante das restantes assistentes, declarou que o arguido lhe havia sido apresentado por um seu colaborados, VL e que, devido ao contexto económico em que se vivia (referindo-se à saída do euro, queda de bancos, etc.), acabou por abrir uma conta na .... Mais referiu que só estava interessado em depósitos a prazo e que em Portugal chegou a ter depósitos, a dar 7,5% e que na ... era menos. Acrescentou que, quando viu no extracto "aplicação fiduciária", confrontou o arguido, FF, tendo-lhe este dito que na ... não havia depósitos a prazo, mas sim aplicações fiduciárias. Declarou ainda que não sabia o que era a ... e que se soubesse onde o dinheiro estava aplicado, tinha-o tirado, imediatamente. Por fim, declarou (revelando claro apego à matéria em discussão nos autos) que "não sabia que estava a lidar com uma empresa de bandidos. Para mim, um banco, sempre foi uma coisa séria. "
De outro lado, adianta-se que, quanto às testemunhas inquiridas, as mesmas nada adiantaram nos autos susceptível de colocar em causa o sentido da decisão do Ministério Público acima mencionada.
Com efeito, VL, colaborador do assistente, no essencial prestou um depoimento de "ouvir dizer", referindo que viu num extracto uma menção a depósitos fiduciários e o assistente, GG, lhe perguntou se sabia o que era, mas, não sabia. O que permite a conclusão de que o assistente, GG, pelo menos sabia que um depósito fiduciário não era o mesmo que um depósito a prazo, porque, por os entender como diferentes, terá sentido necessidade de perguntar o que eram os depósitos fiduciários.
De seu lado, JJ, ..., num depoimento também de "ouvir dizer", declarou que não assistiu a nada, tendo acrescentado que, caso o assistente tivesse dúvidas podia ter falado consigo, mas que aquele não o fez.
Por seu turno, KK, ... das assistentes ... e ..., nada adiantou de relevo para a matéria em causa nos autos.
Já LL, bancário reformado, do ..., disse que o assistente, GG, nunca lhe disse que tinha conta no ..., nem lhe pediu opinião alguma. Referiu ainda que o ofendido também fazia investimentos, mas sempre com o capital garantido, acrescentando que o mesmo tinha um perfil conservador. Concluiu ainda que, na sua opinião, perante os emails que lhe foram mostrados, o assistente não podia ficar descansado.
Por fim, MM, que trabalhou no ... até 2014, declarou que a conta do assistente, GG, era uma conta normal. Acrescentou ainda que aplicações fiduciárias não é a mesma coisa que uma conta a prazo e que na ... os depósitos a prazo não são interessantes, porque além da baixa taxa de juro, ainda pagava um imposto de 35%. Confrontada com o doc. 8 do RAI ficou com a impressão que o ofendido pretendia depósitos a prazo e não aplicações fiduciárias.
Por outro lado, em sede de interrogatório, o arguido FF, em apertada síntese e com relevância para a decisão, declarou que a ... era uma das entidades que fazia placement fiduciaires. Declarou ainda nunca ter trabalhado para a .... Confirmou que o cliente (assistente, GG) surgiu por indicação de VL, que já tinha estas aplicações. Explicou que o depósito fiduciário é um depósito com taxa fixa, por um período de 1 a 12 meses, junto de uma entidade estrangeira, para evitar o imposto antecipé de 35% e que o GG, uma vez perguntou­ lhe qual era a diferença entre um depósito a prazo e um depósito fiduciário e que lhe explicou. Acrescentou que, a partir de determinada altura, o assistente, GG, abriu conta para mais duas sociedades, pelo que havia três contas, tipicamente com aplicações fiduciárias a 2 e 3 meses, pelo que havia renovações sucessivas. Avançou ainda que um gestor de conta não tem o poder de dizer que um investimento é completamente seguro e, naquele momento, para si, aquele (...) era um investimento seguro. Explicou ainda que propõe sempre um mandado de gestão discricionária, pois nestes casos, o banco cobrava 1% e no depósito fiduciário cobrava cerca de 0,015%. Explicou ainda que, em 2 momentos, propôs ao assistente fazer um investimento diversificado, numa carteira de obrigações. Afirmou ainda que não tinha qualquer ideia da situação da ... e que os gestores de conta, o maior interesse que têm, é manter os clientes e valorizar os activos. Confrontado com o documento 8 junto com o RAI dos assistentes, explicou que o depósito fiduciário é a mesma coisa que um depósito a prazo, mas um é numa entidade fora da suíça e outro é num banco suíço. Por fim, declarou ainda que se o ... tivesse falido e o assistente tivesse depósitos no banco, só teria direito a um total de 100.000,00€, pois a garantia é por ... e não por cliente, e acha que o assistente terá recebido mais do que esse montante.
Por outro lado, quanto aos elementos documentais, cumpre realçar que os documentos juntos aos autos não corroboram a versão do assistente quanto diz que "que não sabia o que era a ... “Se soubesse onde o dinheiro estava aplicado, tinha-o tirado, imediatamente".
Com efeito, ao longo das trocas de emails juntos aos autos, conclui-se que o ofendido faz sempre referência a depósitos a prazo, mostrando-se surpreendido quando é confrontado no extracto com a menção "aplicação" e "por sua conta e risco" e questionando o arguido a respeito, o qual lhe responde para ele não se preocupar, que é tudo a mesma coisa e que o dinheiro está seguro (emails de 23/05/2011, c.fr. fls. 37, do ap. A, do ap. Q-122).
Sendo que no dia seguinte, 24/05/2011, o ofendido diz que não se sente confortável com a explicação dada e solicita mais explicações (fls. 38), tendo sido agendada uma reunião.
Posteriormente, por email de 15/09/2011 (fls. 47), na sequência de pedido de cotação de juros para depósitos noutros bancos, as taxas fornecidas ao ofendido são entre 0.92 e 1.6% e relativamente a "depósitos fiduciários" no grupo, são fornecidas taxas de 6,25% (c.fr. mail de 28/08/2011, fls. 48).
Sendo certo que, em email de 28/11/2011 (fls. 54), o arguido diz que pode fazer um depósito no balanço do banco, mas que a taxa é de 3% e o imposto de 35% e apresenta proposta para diversificar os investimentos, uma parte no balanço do ..., uma parte no balanço de outros bancos ou uma parte na ... e uma parte no balanço ou distribuir por obrigações ou fundos de obrigações com diversidade cambial e geográfica. Realça-se que, como é consabido, depósitos a prazo ou à ordem são depósitos no balanço do banco.
Por outro lado, conforme o mesmo refere, o assistente já teve contas noutros bancos na ... (c.fr. email de 19/06/2011, fls. 42) e já após as explicações acima mencionadas solicita uma proposta para "um depósito a prazo na vossa holding do ..." (cfr. email de 29/11/2011, a fls. 55).
Ainda por outro lado, em resposta (cfr. email de 29/11/2011), o arguido refere que o assistente pode fazer um depósito na holding, mas o mais racional é ser mensal e ir renovando e que apesar de ... ser uma boa solução "ninguém, nem nenhuma instituição honesta deveria garantir aos clientes poder sair a meio de um depósito, pois se algo de muito grave acontecer ao nosso mundo económico não me parece que iram conseguir honrar esse período" (fls. 56), sendo que, em email de 12/12/2011 (fls. 58), o arguido dá uma breve explicação do que é um depósito fiduciário e, no email de fls. 59, explica por que é que os depósitos são feitos nas holdings e não no balanço dos bancos.
Cumpre ainda realçar que o próprio assistente, em email de 11/12/2011 (fls. 58) diz que consultou um escritório de advogados para esclarecer o que é um depósito fiduciário e que este não o soube esclarecer, o que reforça a ideia que o assistente sabia que um "placement fiduciaire" ou depósito fiduciário não era um depósito a prazo, sabendo que era no primeiro tipo que o seu dinheiro estava aplicado, tanto assim que sentiu necessidade de maiores esclarecimentos.
Ainda por outro lado, de fls. 78 a 85 do referido apenso, constam vários mandados de aplicação fiduciária na ..., mostrando-se os mesmos subscritos pelo ofendido.
Em igual sentido depõe a análise das datas dos emails acima mencionados, sendo que primeira troca de emails ocorreu em ... e dos elementos juntos aos autos (declarações do arguido, emails e mandados de aplicação) resulta que todas as aplicações são de curto prazo, mantendo-se as mesmas, pelo menos, até 2014, sendo que, então, o ofendido envia email a dizer que quer levantar os depósitos a prazo que tem no ... e na "contraparte que pertence ao vosso grupo" (cfr. email de 16/04/2014, fls. 87).
Conclui-se que, não obstante o assistente se referir às aplicações em causa como depósitos a prazo, o mesmo não podia ignorar que não estava perante um depósito a prazo, sendo, outrossim, certo que o arguido não só procurou explicar ao assistente que (por várias razões) o instrumento em causa era diferente dos depósitos a prazo, como aconselhou ainda o assistente a diversificar o seu investimento através de instrumentos diversos, o que o mesmo não fez, mantendo o seu investimento (de curto prazo, renovável sucessivamente, com indicação das taxas aplicáveis) nos mesmos moldes entre os anos de ... e 2014 (tendo sido alvo de inúmeras renovações).
Ora, atentos os elementos constantes dos autos, documentais e testemunhais, independentemente da possível indiciação dos restantes factos contantes do requerimento de abertura de instrução, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido, conclui-se não resultarem minimamente indiciados os factos (enumerados no separador “III. da acusação propriamente dita" do requerimento de abertura de instrução dos assistentes, fls. 963 e ss. do Apenso Q122, que aqui se dão por reproduzidos) constantes dos pontos 2, 3, 4, 6, 7, 9 (todos no que ao arguido diz respeito), 10, 12, 14 (na parte final), 16, 17, 18, 19, 21, 22 (no que ao arguido diz respeito), 23.
Conclui-se, da análise da factualidade indiciária mencionada, que não se mostra indiciada qualquer conduta do arguido que se traduza na utilização de um meio enganoso tendente a induzir os assistentes num erro, que, por seu turno, os levasse a praticar actos de que resultassem prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
Assim, concluindo-se, como no despacho de arquivamento do Ministério Público, a cujos fundamentos de facto e de direito se adere e aqui se dão por integralmente reproduzidos, pela não indiciação dos referidos factos, atento o critério probabilístico acima exposto quanto a uma eventual condenação do arguido em sede de julgamento, compete proferir despacho de não pronúncia do arguido pelo crime que lhe vem imputado no RAI dos assistentes (cfr. artigos 307.° e 308.º CPPenal)”.
3. 3. As razões dos assistentes.
Na decisão recorrida considerou-se que não se mostra indiciada qualquer conduta do arguido que se traduza na utilização de um meio enganoso tendente a induzir os assistentes num erro, que, por seu turno, os levasse a praticar actos de que resultassem prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
Discordam os assistentes desta decisão, desde logo, afirmando ser grande e, estar bem documentada, a evidência de que foram burlados (através do engano a que foram levados), manifestando a sua dificuldade em compreender a ligeireza com que MP, primeiro e, o JIC, depois, menosprezaram os sólidos e consistentes indícios da burla que os lesou, estruturada no engano do arguido:
- quando aplicou, o assistente, a maior parte do fruto de uma vida de trabalho, sob o compromisso escrito de que estaria a fazer aplicações em depósitos a prazo, ou com um regime equivalente, o que se veio a revelar falso, assim, perdendo mais de 20 milhões de euros;
- quando acreditava que estava a fazer aplicações equivalentes a depósitos a prazo, sem qualquer risco, o que lhe foi garantido por escrito;
- nunca quis fazer aplicações em acções, obrigações ou quaisquer títulos de dívida; nunca fugiu aos impostos, nem recorreu a contas sediadas em paraísos fiscais;
- tomou todas as cautelas para deixar expresso que queria depósitos a prazo (e não qualquer outro tipo de aplicação).
Isto apesar de acabar por compreenderem que o MP tenha deixado de fora os gestores das carteiras dos clientes, que muitas vezes se terão limitado a agir sob as ordens e instruções das administrações das empresas do ... e, até, que alguns dos chamados "lesados do ..." terão sido também vítimas da sua falta de cuidado e mesmo da sua "ganância", mas o que não é o seu caso.
Que deixaram sempre expresso, e por escrito, que só queriam fazer aplicações em depósitos a prazo, recusando quaisquer aplicações de risco. Nunca fugiram aos impostos. Nunca pediram outra coisa que não fosse depósitos a prazo. Aconteceu, porém, que, na realidade, não estavam a fazer aplicações equivalentes a depósitos a prazo, tendo-lhes o arguido assegurado - e por escrito - que estavam a fazer aplicações equivalentes a depósitos a prazo.
Para sustentarem a sua tese invocam os assistentes prova pessoal e documental, que analisam, especificadamente e, de onde retiram as seguintes conclusões:
- das próprias declarações do assistente, concluem eles que,
. o assistente vendeu as empresas do ramo do negócio de grande distribuição a que estava ligado, tendo decidido aplicar o respectivo fruto em depósitos a prazo, como sempre fizera, uma vez que nunca quis correr riscos em negócios financeiros que não dominava;
. em ..., o país corria o risco de cair numa situação de bancarrota, razão pela qual optou por fazer depósitos a prazo num banco estrangeiro (ou através dele), tendo optado pelo ..., a conselho de uma pessoa com quem há muito trabalhava, VL, que o apresentou ao arguido;
. foi inequívoco no sentido de que só pretendia ter depósitos a prazo, cuja taxas de juro sempre quis discutir, embora com a consciência de que os bancos estrangeiros lhe proporcionavam taxas inferiores àquela que ele auferiria em Portugal, cujo risco sistémico ele não queria correr;
. teve poucos contactos pessoais com o arguido (sempre em Portugal), pelo que o essencial do relacionamento se fez à distância, fundamentalmente através de e-mails, tendo sempre esclarecido que só queria depósitos a prazo (no ... ou em instituições bancárias sugeridas pelo arguido), recusando quaisquer aplicações em acções, obrigações, títulos de crédito ou outros;
. quando recebeu os extractos que mencionavam "aplicações fiduciárias", confrontou o arguido com essa situação, uma vez que não correspondia ao que tinha sido acordado, tendo dele obtido a resposta de que "aplicações fiduciárias" seria o termo utilizado na ... para referir "depósitos a prazo";
. cumpria as suas obrigações fiscais, quer em sede de IRS, quer em sede do IRC das empresas, não tendo recorrido a depósitos no estrangeiro para se furtar a pagar o que era devido;
. para o assistente, a ... tinha um regime equivalente ao de uma instituição bancária, tendo sempre partido do pressuposto de que as aplicações nela feitas através do ... eram depósitos a prazo, sujeitos ao regime comum aplicável aos depósitos a prazo;
- das declarações do arguido, que,
. o arguido confirmou que foi VL quem o apresentou ao assistente; não se recorda que este lhe tenha dito que só queria depósitos a prazo, mas recorda que tinha ficado claro desde início que era um cliente com "perfil defensivo";
. confrontado com a troca de e-mails, em que o Arguido, questionado sobre a razão de ser de ter feito aplicações fiduciárias quando tinha ficado acordado fazer depósitos a prazo, respondeu que depósitos a prazo e aplicações fiduciárias seriam a mesma coisa; a única diferença seria que um depósito a prazo era aplicado num banco na ..., com uma retenção na fonte de imposto de 35%, enquanto as aplicações financeiras seriam efectuadas numa entidade fora da ..., não estando sujeitas a essa taxa;
. disse que o risco dos depósitos a prazo e das aplicações fiduciárias era o mesmo;
. perguntado se a ... recebia depósitos a prazo, respondeu que não, porque não era um Banco, para logo a seguir, confrontado com o facto de o assistente ter sempre querido depósitos a prazo, esclarecer "nós fizemos depósitos a prazo do ... na ...;
. o arguido quer tomar os assistentes por "parvos": por um lado, diz que depósitos a prazo e aplicações fiduciárias são a mesma coisa, só se distinguindo pela taxa de imposto aplicável (35% para os depósitos em instituições suíças, uma taxa menor para as aplicações efectuadas em instituições sediadas fora da ...); por outro lado, reconhece que não podia fazer depósitos a prazo na ..., porque não era um banco, para logo a seguir dizer que as aplicações que lá fazia também eram depósitos a prazo;
- do depoimento da testemunha VL, concluem os assistentes que,
. depois da venda das empresas de GG, foi ele quem o apresentou ao arguido, estando presente na 1.ª reunião que teve lugar entre eles, tendo o assistente sido inequívoco no sentido de que só queria depósitos a prazo, porque não queria correr riscos em qualquer outro tipo de aplicações;
. confrontado o arguido quanto à possibilidade de fazer investimentos noutros produtos financeiros, ouviu a resposta peremptória de GG no sentido de que «não me venha cá falar em mais nada, eu só quero depósitos a prazo»;
. sabia que GG era avesso a fazer outras aplicações que não depósitos a prazo e sabia igualmente que, à época, até conseguia melhores taxas de juro em Portugal do que no estrangeiro, mas que GG estava assustado com o risco sistémico do sistema bancário português e, por isso, preferia aplicar o seu dinheiro em depósitos a prazo no estrangeiro, em bancos seguros e onde não corresse risco semelhante ao que então se corria em Portugal;
- do depoimento da testemunha JJ concluem os assistentes que,
. o assistente é uma pessoa bastante conservadora nas aplicações financeiras que faz, que sempre se resumiram a depósitos a prazo;
. o assistente recusava aplicações em produtos estruturados, pois só queria depósitos a prazo;
- do depoimento da testemunha KK, concluem os assistentes que,
. o assistente é um empresário à moda antiga, que aceita correr os riscos próprios do seu negócio;
. o assistente não tinha perfil para correr o risco financeiro.
- do depoimento da testemunha LL, concluem que,
. durante uma relação de muitos anos a acompanhar as contas do assistente no ..., nunca o viu fazer outras aplicações que não fossem depósitos a prazo;
. nas aplicações feitas no Banco, não se preocupava tanto com a rentabilidade, mas sobretudo com a garantia do capital investido (sempre em depósitos a prazo);
. nem valia a pena falar-lhe de aplicações que envolvessem o mínimo risco, porque o assistente as recusaria;
- do depoimento da testemunha MM, que,
. a testemunha reconheceu que não é verdadeira a afirmação de que, no modelo bancário suíço, a figura de depósito a prazo não se utiliza, sendo a designação equivalente aplicação fiduciária;
. um cliente normal, confrontado com a resposta dada pelo arguido ao assistente, cfr. doc. 8 junto à queixa, ficaria com a impressão de que tinha efectuado um depósito a prazo;
- do depoimento da testemunha NN, que,
. não consegue explicar a razão pela qual o arguido terá afirmado que depósito a prazo equivalia na ... a uma aplicação fiduciária, mas reconhece que a resposta não lhe parece correta;
. tendo-lhe sido pedido para esclarecer se a resposta do arguido induziria em erro o cliente no sentido de que o seu dinheiro estaria investido em depósitos a prazo, admitiu que a explicação não seria clara.
Do vários e-mails, trocados entre assistente e arguido – até ao 1.º trimestre de 2014, já que por e-mail de 16.4.2014, RR lhe comunicou a saída do arguido do ..., concluem evidenciarem a prova insofismável da burla de que foram vítimas, de onde retiram os assistentes que,
- o assistente nunca pediu ou deu instruções sobre outra coisa que não fossem depósitos a prazo, como se extrai desse conjunto de 47 e-mails, particularmente dos 27 e-mails em que o assistente dá instruções expressas sobre "depósitos a prazo";
- por cinco vezes, o arguido se refere, como alternativa, investimentos de outra natureza;
- perante tais sugestões, o assistente ou não responde ou expressamente refere que não deseja outras aplicações;
- o assistente sempre deixou claro que queria pagar os impostos que fossem devidos (IRS ou IRC), obtendo do arguido a confirmação de que assim seria; quanto à retenção na fonte, a taxa seria de 21,5%;
- quando é pela primeira vez confrontado com as notas de lançamento que mencionam "aplicações fiduciárias", logo questiona o arguido, referindo-lhe que não percebe a referência a aplicações fiduciárias, porque sempre lhe transmitira que queria fazer depósitos a prazo, ao que o arguido lhe responde que, no modelo bancário suíço, a figura de depósito a prazo não se usa, sendo a designação equivalente "aplicação fiduciária";
- o assistente assumiu que a ... era uma entidade bancária, a par de outras, como o ..., onde a referência à ... consta da coluna "banco", o que nunca foi contrariado pelo arguido;
- nos seus depósitos a prazo, o assistente privilegiava a solidez do banco e a taxa de juro, tanto admitindo depósitos na ..., como fora dela;
- quando foi confrontado com o mandato conferido ao ... para fazer depósitos noutros bancos, o assistente quis esclarecer se ele (por si ou através das suas empresas) seria o credor, o que foi respondido afirmativa e satisfatoriamente;
- quando, em Dezembro de 2011, foi surpreendido com uma retenção de 35%, quando a taxa em Portugal é de 21,5%, o que nunca acontecera nos depósitos até então efetuados, logo reagiu, não o aceitando, o que levou o arguido a dizer-lhe que o melhor era manter os depósitos na holding;
- para o assistente a holding - a ... - também era uma entidade bancária;
- nunca, em momento algum, o arguido disse ao assistente que as aplicações que fazia não eram equivalentes a depósitos a prazo.
Outra prova documental:
- documentos juntos aquando da audição do assistente, em 30/05/2022, que constam do processo principal a fls. 72462 e ss. – que demonstram que, em 2011/2012, o assistente obtinha em depósitos a prazo taxas de juro de 7% (..., fls. 72.465), 7,5% (SS, fls. 72.472, como decorre do doc. 22 junto ao RAI, a fls. 1220 do apenso Q-122, em Outubro de 2011, o ... remunerava-o, nesse depósito, com uma taxa de juro de 7,35%), 6,9% (II, fls. 72.474), enquanto, quando estabeleceu a sua relação com o ..., a taxa estipulada foi de 4% (cfr. e-mails de 04/11/2020 e 05/11/2020, fls. 4 e 5 do apenso A do apenso Q-122); isso confirma que aquilo que fez GG optar por fazer depósitos a prazo no estrangeiro teve a ver com a situação de pré-bancarrota que se vivia em Portugal, o que ele receava;
- os contratos celebrados pelo assistente com o ..., referindo-se, a título de exemplo, o doe. 24 junto ao RAI, a fls. 1223 do apenso Q-122, donde consta, no art.º l.º do "mandat pour placements fiduciaires", o seguinte: "Le Cliente est toutefois autorisé, aux termes du présent mandat, à donner à la Banque des instrutions particulieres relatives à ces placements") - "o cliente está, em qualquer caso, autorizado, nos termos deste mandato, a dar ao Banco instruções específicas relativas a estes investimentos" – ficando, assim, expressamente consagrado que o cliente estava autorizado a dar ao banco instruções específicas relativamente às suas aplicações, razão pela qual o poder discricionário da gestão da conta as teria sempre de respeitar, sendo certo que, no caso do assistente, as suas instruções foram sempre muito claras no sentido de que só constituía depósitos a prazo;
- o cartão de visita do arguido, com que ele se identificava como diretor do ..., que constitui o doc. 2 junto com o requerimento dos assistentes de fls. 73.238 dos autos principais - o que também contribuiu para que o assistente confiasse no estatuto do arguido dentro do Banco;
- a correspondência trocada pelo assistente com o ... a partir de Abril de 2014, a fls. 76, 77, 86, 87, 88, 89, 90 a 92, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100 a 102 e 104 a 107 do apenso A do apenso Q-122, em e­ mail de 16/04/2014 - trocada após a saída do arguido do ..., evidenciando que o assistente continuou sempre a tratar as suas aplicações no ... (ou através dele) como depósitos a prazo, o que nunca foi contestado.
Para assim concluírem que,
- os depósitos a prazo são o mecanismo tradicional e comum das pessoas colocarem, com segurança, as suas disponibilidades monetárias nas instituições de crédito. Em vez de depósitos à ordem, as pessoas têm a alternativa de fazer depósitos a prazo, que obedecem a certas regras, designadamente de resgate, mas que lhes conferem um juro superior ao dos depósitos à ordem;
- em Portugal, os depósitos bancários estão regulados pelo DL n.º 430/91, de 02/11, que estabelece que os depósitos de disponibilidades monetárias em instituições de crédito podem revestir a modalidade de depósitos à ordem, depósitos com pré­ aviso, depósitos a prazo, depósitos a prazo não mobilizáveis antecipadamente, depósitos constituídos em regime especial. Todos beneficiam de um regime especial de proteção, com uma garantia de cobertura, até certo limite, pelo Estado.
- por outro lado, e mais importante, é do conhecimento geral que, a não ser em situações excepcionalíssimas, nenhum Estado admite que tais depositantes possam perder as disponibilidades monetárias confiadas às instituições de crédito, sob pena de uma crise sistémica com consequências devastadoras.
- nas resoluções bancárias que tiveram lugar nas crises económicas do subprime e das dívidas soberanas, só em ... é que os depositantes perderam uma parte dos seus fundos.
- em Portugal, como no resto da ..., isso não aconteceu. Veja-se, entre nós, os casos do ... e do ..., em que os depósitos à ordem ou a prazo foram sempre salvaguardados (sem limite).
- foi com essa consciência que o assistente, com uma actuação conservadora e prudente, sempre optou por depósitos a prazo, resistindo aos "cantos da sereia" dos bancos, incluindo o ..., que o queriam levar a fazer outras aplicações de maior risco. E fê-los no estrangeiro por recear que o risco de derrocada da economia portuguesa pudesse de alguma forma afectar a solidez dos bancos nacionais.
- o arguido sabia que assim era.
- se o assistente desconfiasse que não estaria a fazer depósitos a prazo, assim formalmente consagrados ou com regime equivalente, perderia um cliente, com disponibilidades líquidas em montante superior a 20 milhões de euros.
- foi por isso que o arguido não resistiu a mentir-lhe, dizendo-lhe que, na ..., as aplicações fiduciárias que ele fazia correspondiam a depósitos a prazo, não passando a distinção de uma questão de terminologia.
- a decisão instrutória desvalorizou a prova insofismável que foi produzida, quanto àquilo que foi acertado entre o assistente (em seu nome e das sociedades por si detidas) e o arguido - andou à procura, na documentação junta de boa-fé pelo assistente, de qualquer detalhe que pudesse "confundir" aquilo que cristalinamente decorre da correspondência trocada e dos compromissos assumidos pelo arguido quanto às instruções do assistente, no sentido de se constituírem depósitos a prazo;
- mas a argumentação expendida não resiste a uma contra-argumentação:
- a decisão instrutória convoca e-mails que demonstrariam que o assistente saberia que estavam a ser feitos depósitos na ..., que seria uma holding, no ..., para daí concluir que bem saberia não estar a fazer depósitos a prazo;
- é evidente o equívoco - nunca se disse que não se sabia que uma boa parte dos depósitos efectuados haviam sido feitos na ...; quando o assistente confrontou o arguido sobre a razão pela qual a nota de lançamento refere aplicação fiduciária, se havia sido acertado que apenas seriam feitos depósitos a prazo, está a referir-se precisamente à aplicação de €19.500.000,00 efetuada na ..., sendo, nesse contexto, que o arguido responde que "aplicação fiduciária" e "depósito a prazo" são a mesma realidade (cfr. fls. 35, 36 e 37 do apenso A do apenso Q-122); para o assistente a ... (fosse ou não uma holding) tinha o estatuto de uma entidade bancária apta a receber depósitos a prazo, razão pela qual, quando se referia à ..., qualificava-a como "banco" (cfr. fls. 57 e 60 do mesmo apenso A), o que nunca foi contrariado pelo arguido - fora dito ao assistente que a ... era como uma "tesouraria do Banco" (cfr. auto de declarações do assistente, fls. 543 do apenso Q-122, in fine, linhas 35 e 36);
- a decisão instrutória convoca o e-mail do assistente de 11/12/2011 (fls. 58 do apenso A, do apenso Q-122), em que diz ter consultado um escritório de advogados, para daí concluir que bem saberia que o depósito fiduciário não seria um depósito a prazo "tanto assim que sentiu necessidade de maiores esclarecimentos";
- o Tribunal a quo "distorce" o teor do e-mail – o assistente estava esclarecido pelo arguido de que aplicação fiduciária e depósito a prazo seriam equivalentes (cfr. fls. 37 do apenso A do apenso Q-122); a consulta feita ao escritório de advogados teve apenas a ver com a questão de se assegurar que, sendo os depósitos feitos através do ..., ele e as suas empresas se manteriam ou não como credores desses depósitos, como se retira da leitura do referido e-mail de fls. 58;
- a decisão instrutória explora ainda o e-mail do Arguido de 29/11/2011, onde é referido que o depósito a prazo no balanço do ... implicaria uma retenção de 35% (cfr. fls. 54 do apenso A do apenso Q-122), para daí concluir que o assistente não podia deixar de saber que as ditas aplicações fiduciárias seriam outra coisa, só elas permitindo uma tributação menor;
- o Tribunal a quo confunde o que é simples – o assistente nunca quis fugir aos impostos; era-lhe indiferente que lhe fizessem uma retenção na fonte em linha com aquela que era feita em Portugal - como lhe foi anunciado por FF, no e-mail de 02/11/201O (fls. 3 do apenso A do apenso Q-122):”nós fazemos as retenções directamente aos particulares, se for uma empresa é melhor englobar no IRC” - ou que o imposto fosse pago em Portugal, aquando da declaração de IRS, com a liquidação de uma taxa liberatória, como o próprio referiu no seu e-mail de 22/12/2011 - cfr. fls. 59 do apenso A do apenso Q-122;
- quando foi confrontado, em Dezembro de 2011, relativamente a uma determinada aplicação, com uma taxa de retenção de 35%, o assistente logo reagiu, porque sempre lhe fora aplicada uma taxa de 21,5% (como, de resto, o arguido lhe assegurara no seu e-mail de 30/03/2011, fls. 14 do apenso A do apenso Q-122);
- foi esse o contexto em que o arguido, já só no final de ... (e não antes), informou o assistente de que os depósitos em instituições suíças implicariam uma retenção de 35%, pelo que seria conveniente, para assegurar uma tributação mais baixa (consentânea com a taxa liberatória de 21,5%, praticada em Portugal), fazer depósitos fora da ... (embora por intermédio do ...), o que não causou especial engulho ao assistente, porque para si não era relevante que os depósitos fossem feitos na ... ou fora da ..., a sua preocupação era que fossem feitas aplicações em depósitos a prazo em instituições bancárias sólidas (como, para ele, embora em erro, aconteceria com a ..., com o ...: ou com as demais instituições para onde deu instruções que fossem feitos depósitos a prazo, sempre depósitos a prazo);
- a decisão instrutória ignora ou escamoteia os indícios incontornáveis da burla:
- o assistente nunca deu instruções para outra coisa que não fossem depósitos a prazo, o que nunca foi contestado pelo arguido; a diferente terminologia usada por um e por outro seria, segundo o arguido, de natureza meramente semântica; aplicações fiduciárias seria o nome dado na ... aos depósitos a prazo;
- nesse contexto, porque raio de razão é que o assistente deveria achar que não estava a fazer depósitos submetidos ao tradicional e comum regime dos depósitos a prazo, quando foi sempre essa a sua preocupação, quer nos contactos mantidos (desde 2010 até 2014) com o ..., quer no passado da sua relação com as instituições financeiras, como decorre dos depoimentos das testemunhas VL, JJ, KK e LL e, quando esse propósito nunca foi contrariado pelo arguido?
- não pode duvidar-se de que o assistente, com inteira boa-fé, achava que a ... podia receber depósitos a prazo, como decorre da troca de e-mails entre arguido e assistente em 23/05/2011, com referência à aplicação de €19.500.000,00 feita na ...; de resto, é, por isso, que a designa como "Banco", tal como às outras entidades igualmente assim qualificadas nos seus e-mails de fls. 57 e 60 do apenso A do apenso Q-122, todas elas aptas a receber verdadeiros depósitos a prazo;
- seria inexplicável que o assistente, tão prudente e conservador no risco financeiro, recusasse liminarmente aplicações em obrigações sólidas ou em acções de baixo risco (de que "fugia") para se ir "enfiar" em aplicações desprotegidas e de risco significativo, como eram aquelas que o arguido fazia na ...; na verdade, isso só aconteceu porque o assistente sempre esteve convencido que estaria a realizar verdadeiros depósitos a prazo;
- são absurdas as explicações do arguido, no sentido de que aplicações fiduciárias e depósitos a prazo seriam a mesma coisa, apenas se distinguindo pela taxa de retenção na fonte (determinada por serem feitas em bancos suíços ou em instituições fora da ...), as quais não podem convencer ninguém; de resto, é a própria decisão instrutória a reconhecer que são realidades distintas;
- é verdadeiramente extraordinário que o Tribunal tenha assumido como "boa" a insólita explicação do arguido de que depósitos a prazo e aplicações fiduciárias seriam a mesma coisa, já que as aplicações fiduciárias também seriam depósitos a prazo, numa completa adulteração daquilo que, para um cidadão médio, é um depósito a prazo;
- aliás, MM e NN, que trabalhavam no ..., estranharam que o arguido tivesse feito tal equiparação, que bem sabiam ser incorrecta;
- se fosse como diz o arguido, então os depósitos na Dona Branca também seriam depósitos a prazo;
- o arguido joga com as palavras - na explicação capciosa do arguido, qualquer entrega com reembolso a prazo seria um depósito a prazo, independentemente da natureza da entidade que o recebe e do regime a que está sujeito. Ora, como é evidente, a natureza da entidade que recebe o depósito - bem como o regime jurídico a que esse negócio está submetido - é que constitui a "linha de água" que distingue o depósito a prazo de outras aplicações;
- quando o arguido - perante a dúvida colocada pelo assistente sobre porque é que se fizeram aplicações fiduciárias quando ele pedira depósitos a prazo – lhe diz que aplicações fiduciárias são o termo utilizado na ... para os depósitos a prazo, o arguido está, pura e simplesmente, a enganar, com uma astúcia manhosa, o assistente;
- o arguido quer tomar os assistentes por "parvos": por um lado, diz que depósitos a prazo e aplicações fiduciárias são a mesma coisa, só se distinguindo pela taxa de imposto aplicável (35% para os depósitos em instituições suíças, uma taxa menor para as aplicações efetuadas em instituições sediadas fora da ...); por outro lado, reconhece que não podia fazer depósitos a prazo na ..., porque não era um banco, para logo a seguir dizer que as aplicações que lá fazia também eram depósitos a prazo;
- o "palavreado" do arguido é o de um vendedor de banha da cobra - impressiona que o Tribunal não tenha compreendido a patranha;
- o assistente nunca quis fazer, no ... ou nas instituições intermediadas pelo ..., outra coisa que não fosse o tradicional, comum e conhecido depósito a prazo e, não foi isso que o arguido fez, apesar de com isso se ter comprometido, assim enganando astuciosamente os assistentes, levando-os a acreditar que estavam a fazer depósitos a prazo, quando isso não acontecia, agindo com intenção de obter para o ..., bem como para o ... que o controlava, enriquecimento ilegítimo, de que ele, como funcionário da do ..., também acabaria por beneficiar;
- a burla é evidente ou, pelo menos, encontra-se solidamente indiciada.
3. 4. O texto legal.
Como é, por todos, sabido, a instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, artigo 286.º/1 do CPP.
“Na fase de inquérito o MP se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem é o seu agente, deduz contra ele acusação”, n.º 1 do artigo 283.º CPP.
Por sua vez, “consideram-se suficientes os indícios, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, um julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”, nº. 2 do artigo 283º.
Em matéria de instrução, regula o artigo 308.º CPP, que no seu n.º 1, dispõe que: “se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ai arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”, norma que remete, ainda para a noção de indícios suficientes contida no referido n.º 2 do artigo 283.º/2 do artigo 308.º.
Por criação da doutrina e da jurisprudência, vem-se entendendo que “são bastantes os indícios, quando se trata de um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis, que lhe são imputados e que por indícios suficientes, entendem-se os vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido o responsável por ele. Para a pronúncia, não sendo necessário a certeza da existência da infracção, exige-se, no entanto, que os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado” - cfr. AC. RC de 31.3.93, in CJ, II, 66.
Numa asserção deveras expressiva e conhecida, que tem feito escola, da autoria do Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1º, 133) “o arguido deve ser pronunciado se existir alta probabilidade de vir a ser condenado ou se esta probabilidade for maior que a de ser absolvido”.
São indícios suficientes aqueles que relacionados e conjugados, persuadem o Juiz da culpabilidade e responsabilidade do arguido, fazendo antever, com razoável grau de probabilidade a sua ulterior condenação.
A decisão de pronúncia deve, pois, ser precedida por um juízo de prognose, devendo apenas ser remetidos para julgamento os casos em que seja manifesta uma futura decisão condenatória. É que, “tendo em conta as gravosas consequências da simples sujeição de alguém a julgamento, exige-se que a acusação e a pronúncia assentem numa alta probabilidade de futura condenação do arguido”, cfr. Ac. da RP, de 20/10/93, CJ, IV, 261.
Existindo dúvidas sobre a actuação do arguido, não devem nunca tais dúvidas ser valoradas contra o primeiro, sendo certo que a alta probabilidade contida nos indícios recolhidos, a que atrás se fez referência, deve aferir-se no plano fáctico e não jurídico.
Cremos bem, contudo, que nenhum sentido dogmático se evidencia no acto de fundamentar o despacho de não pronúncia, acerca da questão concreta da valoração da prova, com base neste princípio.
Isto dado que a fase em que se insere tal despacho, pela própria natureza das coisas, repousa em indícios, a pressupor, ela própria, necessariamente, uma natural margem de dúvida.
Neste sentido, decidiu o acórdão da RP de 7.12.2016, consultado no site da dgsi, onde se entendeu que, “(…) não se deve convocar o princípio in dubio pro reo como critério de avaliação da suficiência dos indícios para julgamento. Um indício é por definição duvidoso e como tal, se lhe aplicarmos aquele critério no momento da acusação ou da pronúncia, não vemos como alguém possa ser levado a julgamento.
Do que temos vindo a referir resulta já evidente que, na nossa perspectiva, a avaliação da suficiência dos indícios que o juiz de instrução tem de fazer no momento da decisão instrutória de pronúncia, à luz do critério legal da existência de uma possibilidade razoável de condenação, exige somente que conclua ser maior a probabilidade de condenação do que de absolvição”.
É certo que o Ac. TC 439/2002 no processo 56/2002 decidiu já, que “que a interpretação normativa dos artigos 286.º/1, 298.º e 308.º/1 C P Penal, que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no artigo 32.º/2da CRP” e assim, julgou inconstitucionais os artigos 286.º/1, 298.º e 308.º/1 do CPP, por violação do artigo 32.º/2 da CRP, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de um juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um acto manifestamente inútil.
No entanto, apesar de não contender com o sentido da decisão, o Cons. Bravo Serra apresentou declaração de voto, onde deixou patenteadas,
“a sua perplexidade, por ser difícil aceitar a compatibilidade, de, por um lado, a ocorrência de uma margem de dúvida e, por outro, a primaridade de um princípio segundo o qual, a existir dúvida, a inocência do arguido deverá conduzir à sua não perseguição penal e,
as suas muitas dúvidas, sobre o juízo de inconstitucionalidade, de um ponto de vista de lógica do sistema adjectivo penal, dado que, a formulação de um juízo indiciário do cometimento dos factos delituosos pelo agente, base insuperável da decisão de pronunciar, não pode, como é óbvio, fundar-se num juízo de certeza quanto a esse cometimento, pois que, se assim não fosse, a fase da instrução tornaria perfeitamente inútil a efectivação da fase do julgamento.”
No direito substantivo, o artigo 217.º do CP, dispõe que:
“1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial é punido…”.
O artigo 218.º dispõe que:
“1. Quem praticar o facto previsto no nº. 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de elevado valor com pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.
2. a pena é a de prisão de 2 a 8 anos, se:
a) o prejuízo patrimonial for de consideravelmente elevado
(…)”.
O crime de burla, originariamente previsto no artigo 313.º CP de 1982 e agora depois da reforma operada através do Decreto Lei 48/95, no artigo 217.º, está inserido no capítulo dos crimes contra o património em geral.
Estamos perante um crime material ou de resultado, que apenas se consuma com a saída das coisas ou dos valores da esfera de disponibilidade fáctica do sujeito passivo ou da vítima - cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, 1999, 276, em comentário da autoria de A. M. Almeida Costa.
O bem jurídico protegido pela norma é o património globalmente considerado, surgindo o crime de burla como um crime com participação da vítima, em que a saída dos valores da esfera de disponibilidade de facto do titular legítimo decorre, em último termo, de um comportamento do sujeito passivo - cfr. Maria Fernanda Palma/Rui Carlos Pereira, O crime de burla no Código Penal de 1982-95, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV (1994), 321 e ss.
São, assim, elementos do crime de burla:
- intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;
- por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;
- determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.
Como se refere no acórdão da RP 25.3.2009, consultado nesta data no site da dgsi, “segundo alguma doutrina, em sede de imputação objectiva do evento à conduta do agente o crime de burla comporta um “triplo nexo de causalidade” (cfr. Maria Fernanda Palma/Rui Pereira, op. e loc. cit.), ou pelo menos, segundo outros, um “duplo nexo de causalidade” - entre a astúcia e o aparecimento, na vítima, de um estado de erro ou engano, e entre esse estado de erro ou engano e a prática, pela vítima, de actos lesivos do património - cfr. Beleza dos Santos, A burla prevista no artigo 451.º do Código Penal e a fraude punida pelo artigo 456.º do mesmo Código, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 76, 291 a 325 e acórdão do STJ de Justiça de 24.4.2008, consultado, nesta data, no site da dgsi.
Já quanto aos elementos do tipo subjectivo apontam-se dois: a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo, para si ou para terceiro; e o dolo de causar um prejuízo patrimonial ao sujeito passivo ou a terceiro, em qualquer uma das suas modalidades previstas - cfr. artigo 14.º do CP.
Pela tipificação do crime de burla, a ordem jurídica protege a vítima contra manifestações de auto-lesão patrimonial – contra actos lesivos de deslocação patrimonial levados a cabo por ela própria de forma inconsciente, porque em resultado do erro que o agente astuciosamente lhe criou. Deste modo, o agente concretiza os seus intentos através da acção da própria vítima que é por si “instrumentalizada” a praticar actos de diminuição do seu património.
O crime de burla apresenta-se como uma forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve de astúcia para criar o erro ou o engano da vítima, levando-a a praticar factos que lhe causam, ou a terceiro, prejuízos patrimoniais.
Ou, como se refere no acórdão do STJ 03.02.2005 (proc. n.º 04P4745, www.dgsi.pt) A burla é uma forma evoluída de captação do alheio servindo-se do erro e do engano para obter os mesmos resultados que outros conseguem com recurso a meios violentos ou a artifícios de rapina. O ataque ao património não se realiza através de meios materiais (apreensão da coisa violência ou intimidação, ocupação) mas através de meios intelectuais.”
Trata-se fundamentalmente do uso do engano, do abuso da confiança ou de procedimentos semelhantes que impliquem a elaboração de determinada maquinação do sujeito activo contra o património de outro (vd. Juan Bustos Ramírez - Manual de Derecho Penal, p. 189).”
“Com os seus variadíssimos processos, a fraude é bem o atestado do poder de inventiva e perspicácia do homo sapiens. Tem espécies e subespécies, padrões clássicos e expedientes de acaso. Há a fraude reconhecível a olho nu como infracção penal e a parva calliditas, que se abriga à sombra de uma proclamada naturalis licentia decipiendi. Há a fraude corriqueira dos clientes habituais da prisão e a fraude subtil daquela gente que sabe tangenciar a lei penal e constitui a legião dos "criminosos astutos e afortunados" de que nos conta FERRIANI” (Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, VII, 168).
Os elementos que preenchem e informam a tipicidade do crime de burla são o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, com intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo (Ac. STJ de 11-10-2001, proc. n.º 1295/01-5, CJ STJ ano IX, t 3, 192).
3. 5. Aproximação ao caso concreto.
Vejamos, agora, o elemento questionado no presente processo: o erro ou o engano devido ao emprego de astúcia.
E, voltamos a citar o referido supra acórdão do STJ,
“Na 1.ª Comissão Revisora do C. Penal referiu “«ao lado do erro coloca-se o engano. Mas também não basta qualquer erro; é necessário que ele tenha sido provocado ou aproveitado astuciosamente”, BMJ 287-41.
“A mera mentira verbal pode, pois, dada a redacção deste artigo, ser meio do induzimento em erro ou do engano, excepto se a mentira for tal que a mais elementar prudência aconselha a que não seja acreditada (salvo se se provar que a vítima, por completa ignorância, ou outro motivo relevante do agente - uma deficiência passageira do raciocínio ou da atenção, resultante, por exemplo, de abalo moral recente - não estava em condições de se precaver)” (Simas Santos e Leal-Henriques, Código Penal Anotado, II, 837-89).
No Comentário Conimbricense (A. Almeida Costa, II, 301) referem-se a propósito deste elemento três modalidades: “quando o agente provoca o erro de outrem, descrevendo-lhe, por palavras ou declarações expressas (sob a forma oral ou escrita), uma falsa representação da realidade. A segunda observa-se na hipótese de o erro ser ocasionado, não expressis verbis, mas através de actos concludentes, i.e., de condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo - a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da actividade - mostram-se adequados a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro. Em terceiro lugar, refere-se a burla por omissão: ao contrário do que sucede nas situações anteriores, o agente não provoca, agora, o engano do sujeito passivo, limitando-se a aproveitar o estado de erro em que ele já se encontra”.
Também sobre este elemento se tem pronunciado de forma pacífica o mesmo Supremo Tribunal de Justiça em diversos arestos, cuja doutrina se mantém inteiramente válida.
Ao lado do erro como meio de execução da burla coloca-se também o engano. É necessário que o erro ou engano tenham sido provocados astuciosamente pelo agente da infracção; isto é, usando de um meio engenhoso para se enganar ou induzir em erro. Trata-se de uma exigência que acresce a um dolo que já de per si é específico, pois que se exige a intenção de enriquecimento ilegítimo.
“O burlado nas hipóteses de erro, como de engano, só age contra o seu património ou de terceiros por que tem um falso conhecimento da realidade. Simplesmente esse seu falso convencimento nasce, no caso do mero engano, da mentira que lhe é dada a conhecer pelo burlão.
A vítima, ao ser induzida em erro toma uma coisa pela outra, pertencendo ao agente a iniciativa de causar o erro. Na manutenção do erro a vítima desconhece a realidade, o agente perante o erro já existente, causa a sua persistência, prolongando-o, ao impedir, com a sua conduta astuciosa ou omissiva do dever de informar, que a vítima se liberte dele.
O segundo momento do crime de burla é a prática de actos que causem prejuízos patrimoniais.
Tem de existir uma relação entre os meios empregues e o erro e o engano, e entre estes e os actos que vão directamente defraudar o património de terceiros ou do burlado. Mas se o engano é mantido ou produzido e se lhe segue o enriquecimento ilegítimo no sentido civil em prejuízo da vítima, não há lugar a indagações sobre a idoneidade do meio empregue, considerado abstractamente. Da mesma forma não importa apurar se esse meio era suficiente para enganar ou fazer cair em erro o homem médio suposto pela ordem jurídica, uma vez que uma eventual culpa da vítima não pode constituir uma desculpa para o agente” (Ac. de 19-12-1991, BMJ 412-234).
“… a astúcia posta pelo burlão tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como na falsa qualidade, como na falsificação da escrita, ou outra qualquer. Interessa, apenas, que os factos invocados dêem a uma falsidade a aparência de verdade, ou, como diz a lei alemã, o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros. O burlão, actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. É indispensável, assim, que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade, revelando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade dos outros serem convencidos. Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. A idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado.” – cf. ac. STJ de 04-10-2007, proc. n.º 07P2599, www.dgsi.pt
“Por erro deve entender-se a falsa (ou a nenhuma) representação da realidade concreta, a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima.
O engano a que o art. 217º, n.º 1, do CP, faz referência, continua a equivaler à mera mentira (a uma mentira pré-ordenada).
Para a comprovação do crime de burla ganha vulto a imprescindibilidade de uma factualização expressa e inequívoca das práticas integradoras da indução em erro ou da força do engano, pois que só a partir da concretização dessas práticas e dos seus cambiantes envolventes, é lícito e possível exprimir um juízo válido e seguro acerca da vulnerabilidade do sujeito passivo da infracção e, consequentemente, da eficácia frutuosa da relação entre os actos configuradores da astúcia delineada e do erro ou engano engendrados e a cedência do lesado na adopção de atitudes a ele ou a outrem prejudiciais.
Por outras palavras, é necessário que facticialmente se objective a componente subjectiva de que unicamente a insídia do agente foi determinante do comportamento da vítima” – cf. Ac. STJ de 11-10-2001, proc. n.º 1295/01-5, CJ STJ, ano IX t. 3, 192.
“O crime de burla desenha-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar, e é integrado pelos seguintes elementos: (-) intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; (-) por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou; (-) determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.
É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro.
Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, não sendo, no entanto, inevitável que se trate de processos rebuscados ou engenhosos, podendo o burlão, numa "economia de esforço", limitar-se ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima concreta”. (Ac. do STJ de 12-12-2002, proc. n.º 3722/02-5).
Em causa nos autos está a verificação, ou não, do elemento - erro ou engano da vítima devido ao emprego de astúcia, pelo agente.
Como vimos, a conduta enganadora deve ser adequada a produzir um erro no sujeito passivo, deve ser a causa do erro, pressupondo um nexo de causalidade entre ambos.
Para que o engano seja causa adequada a produzir o erro é suficiente que possa exercer influência no ânimo do sujeito passivo. O meio enganador não é, no entanto, suficiente; torna-se necessário que ele consubstancie a causa do erro, em que se encontra o burlado. Como da mesma forma não será suficiente a simples verificação do estado de erro; necessário, será, ainda, que nesse engano resida a causa da prática pelo enganado dos actos donde decorre o prejuízo patrimonial.
O crime de burla, enquanto crime de dano, consuma-se com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro, que passa, então, por aquele apontado duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta do agente e a prática pelo burlado dos actos tendentes a uma diminuição do património e, depois, entre estes e a efectiva verificação do prejuízo.
O engano é o mais melindroso dos elementos deste tipo legal, se bem que seja, por isso mesmo, em simultâneo, o decisivo. É ele que individualiza o crime de burla em face das restantes figuras de enriquecimento ilegítimo.
Enganar é fazer crer a alguém, por acção ou de qualquer forma concludente, algo que não é verdade.
Por sua vez, a par da idoneidade do meio enganador, objectivamente apreciada, deve-se tomar em consideração a personalidade do burlado.
Aquilo que pode não revelar idoneidade como meio para enganar a generalidade das pessoas, pode-o assumir, no caso concreto, em face da particular credulidade ou falta de resistência do burlado, v.g., mercê da fragilidade intelectual ou inexperiência ou de especiais relações de confiança para com o agente.
“Com efeito, na burla assiste-se a um dispositivo de estratagemas, à organização de enganos, a um certo cenário (mise-en-scène) que tem por fim dar crédito à mentira e enganar terceiros”, segundo Garraud, citado pelo eminente penalista Prof. Beleza dos Santos, no estudo publicado na RLJ, Ano 76, n.º 2760, 278.
O que verdadeiramente distingue o dolo civil do dolo criminal, na esteira de Chauveau e Hélie, ali citados (págs. 275), é que no dolo civil se compreendem as manhas e artifícios que, embora, de per si, censuráveis, são no entanto empregados menos com o intuito de prejudicar outrem, do que no interesse de quem faz uso deles.
É nessa categoria que se vem a integrar os actos mentirosos nos contratos, o exagero do preço ou das qualidades do objecto da venda.
A lei penal não atingiu essa imoralidade, por ser mais fácil a defesa contra ele e toda a tentativa de representação prejudicar a segurança das convenções.
O dolo criminal não se manifesta somente pela simulação, pela manha, pois na burla se procura enganar, enredar, prejudicar terceiros.
A astúcia, pressuposto de resto já consagrado no artigo 148.º do Código Penal helvético, para configuração do crime de burla, com descritivo típico em tudo similar ao do nosso Código Penal actual, é algo que acresce à mentira, à dissimulação, ao silêncio, com carácter artificioso, reforçado habilmente com factos, atitudes e aproveitamento de circunstâncias que a tornem particularmente credível – nota 2, pág. 307.
A astúcia é um meio de enganar, com especial habilidade, direccionada ao aproveitamento ou mesmo criação de condições que lhe confiram particular credibilidade.
“O embuste não tem que ser sofisticado, rebuscado, altamente engenhoso só apreensível por pessoas superiormente dotadas, deixando sem protecção (…) o cidadão medianamente inteligente, pois o que se pretende é que, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, seja idóneo a enganar a boa fé da vítima, de modo a convencê-la a praticar actos em seu prejuízo, limitando-se ao que se torna necessário ao seu objectivo”- Cfr. Acórdão do STJ de 20/12/2006, proc. n.º 3383/06 que vimos seguindo de perto e outros aí citados.
O erro entende-se como o estado psicológico de falsa representação da realidade, consequência do engano e causa do acto de disposição patrimonial. Não é, no entanto, qualquer erro que o crime de burla pressupõe. O erro, aqui, tem que ser provocado astuciosamente, de forma fraudulenta.
“Maliciosamente” era a expressão utilizada, a este propósito, no nº. 4 do artigo 450.º Código Penal de 1886, que previa o tipo legal de burla.
Na actividade de apreciação do preenchimento dos elementos do tipo legal de burla, há que com muito cuidado apreciar e avaliar as palavras e declarações expressas, os actos concludentes e os silêncios, pois que o engano pode ser produzido por omissão.
O acto concludente ou engano implícito, assume a maioria das vezes uma conduta do agente que leva associada ou implícita a ideia de que vai cumprir a contraprestação, mas em que na realidade tal propósito não existe e a sua aparência outra finalidade não tem senão a de induzir em erro o ofendido (cf. Voto de vencido subscrito pelo então Desembargador Santos Cabral no Acórdão da RC de 13.12.2000, CJ, V, 54). Eis, o artifício fraudulento.
No entanto, no ensinamento do Prof. Faria Costa (Conimbricense, II, 263) importa proceder à delimitação do âmbito de protecção do ilícito subjacente a este tipo legal: apesar da característica acentuadamente solidária dos actuais Estados de Direito social, persiste a convicção de que, em primeira alinha, compete a cada pessoa cuidar dos seus próprios interesses, surgindo a obrigação de salvaguardar bens jurídicos alheios – até por razões reportadas à preservação da autonomia da esfera privada – com carácter subsidiário e residual.
Este facto adquire particular acuidade na esfera das relações patrimoniais, quer de natureza civil, quer, sobretudo, comerciais, no âmbito do mundo dos negócios.
Com efeito, numa economia de mercado, assente em mecanismos de livre concorrência, o sucesso liga-se, as mais das vezes, ao superior conhecimento das características do sector concreto de actividade e assim, em termos de erro ou de ignorância dos seus competidores. Dentro de certos limites, o mencionado domínio do erro consubstancia um elemento constitutivo, intrínseco, do regular funcionamento de uma economia de mercado. Neste caso o correspondente exercício apresenta-se conforme à ordem jurídica, não podendo integrar a previsão do ilícito criminal em apreciação.
A questão será já diversa, quando tal domínio corresponder a uma actuação ofensiva das relações de lealdade que deve acompanhar o comércio jurídico e como tal consubstanciando o domínio do erro penalmente relevante - cfr. citado voto de vencido.
Como da mesma forma, o Prof. Costa Andrade (Citado no Acórdão do STJ de 1.7.1998, de que foi relator o Conselheiro Lopes Rocha, in CJ, S, II, 223 e extraído do estudo denominado Sobre o estudo e Função da Criminologia Contemporânea, Separata do BMJ 13, 25) defende que importa ponderar a existência, ou não, de um critério legal de interpretação da factualidade típica susceptível de em certos domínios, um deles a burla, permitir valorar a conduta da vítima do ponto de vista da carência de tutela jurídica e, por essa via, excluir determinadas expressões da vida do âmbitos da factualidade típica. Citando Hassemer, que parte do princípio da subsidariedade do direito penal – a que atribui dignidade constitucional – segundo o qual a intervenção do direito criminal só é legítima quando a tutela de bens jurídicos em causa, não puder ser garantida por outras vias, que impliquem custos menos gravosos para os direitos do homem, tal princípio vale sem limites, i.e. tanto em relação ao outras alternativas estaduais como alternativas privadas, nomeadamente a auto-tutela que se permite e se reclama aos portadores concretos de bens jurídico-penais.
Quer dizer o princípio da subsidariedade do direito penal tem como reverso um princípio de auto-responsabilização dos titulares concretos dos bens jurídico-penais.
O direito não pode exigir que os indivíduos se fechem à participação social e evitem todo o contacto histórico-socialmente adequado mesmo que susceptível de criar risco para os respectivos bens jurídico-penais. Mas já pode reclamar que não sejam eles a elevar as cotas de risco em termos que ultrapassem o limiar de que a lei, de forma abstracta e típica, faz depender a sua intervenção. Pois se aquele limiar só foi atingido e excedido por razões imputáveis à vítima – que não aproveitou as oportunidades de auto-tutela que lhe eram oferecidas e cujo aproveitamento lhe era exigível, então terá que se concluir, à luz dos princípios da subsidariedade e da proporcionalidade, que ela se colocou fora do âmbito de tutela da norma penal incriminatória.
Aplicando esta construção à interpretação da factualidade típica do crime de burla, interroga-se Hassemer, sobre se se deverá considerar o elemento erro da vítima em todos os casos em que a sua situação cognitiva se caracteriza pela dúvida concreta: nos casos em que, não sendo de convicção subjectiva quanto à verdade do estado de coisas apresentado fraudulentamente pelo agente, ultrapassa, todavia, o grau de mera dúvida difusa adequada ao tráfego normal comercial.
Dúvida concreta, existirá, quando o comprador do automóvel usado, a quem o vendedor garante que o mesmo nunca sofreu qualquer colisão, sendo que o estado da pintura e da chaparia, apresenta sinais concretos que torna razoável a representação da possibilidade de ocorrência da colisão e, por seu lado, dúvida difusa, ocorrerá, quando, o mesmo comprador, sem ignorar a eventualidade e mesmo frequência de fraude nesta actividade, não vê sinais externos e concretos susceptíveis de fazer ultrapassar este estado difuso e generalizado de dúvida.
Sustenta, então, Hassemer, que o enquadramento de cada uma destas duas situações, deve ser diferenciado: ninguém pretenderá excluir a subsunção da 2ª hipótese na factualidade típica do crime de burla, em especial no elemento erro. Será diferente quanto à 1ª situação: se com a dúvida concreta se verificar, cumulativamente, que sem custos ou sacrifícios inexigíveis, o comprador poderia alargar o seu campo de informação ou, em alternativa, renunciar à transacção. Se o portador do bem jurídico não assume qualquer destas atitudes alternativas, embora tal lhe fosse possível e exigível, então falha a sua carência de tutela e por isso, a aplicabilidade do elemento da factualidade típica, erro, com a consequência de ter que se excluir, pelo menos, a condenação por burla consumada.
Claro que esta teoria não é decisiva para fundamentar a carência de tutela penal do bem jurídico, sobretudo em sociedades como a portuguesa, mal habituada para aceitar subtilezas da doutrina, antes habituada a recorrer à protecção que lhe é facultada pelo direito criminal para resolver problemas decorrentes de negócios jurídicos tutelados pela lei civil ou comercial.
É certo que o direito criminal presta apoio com as suas técnicas específicas a outros ramos de direito, mas resta saber se tal apoio não deverá, em certas situações particulares sofrer algumas restrições, sobretudo quando os lesados omitem as precauções exigíveis e normais em contraentes prudentes e avisados - citado acórdão de 01.07.98,
3. 6. Perante estas breves, mas cremos que esclarecedoras, formulações, quer da doutrina, quer da jurisprudência, no âmbito do direito substantivo e do direito adjectivo, pertinente, baixemos, pois, ao caso concreto.
Referem os assistentes que – assente a verificação do prejuízo – a questão controvertida pode resumir-se em saber,
- se foram enganados pelo arguido, quando lhes assegurou que as aplicações por si efectuadas no ..., ou através do ..., constituíam depósitos a prazo (ou aplicações equivalentes), quando as aplicações efectuadas na ... não tinham essa natureza nem seguiam regime equivalente - como eles próprios defendem ou,
- se essa matéria não se encontra indiciada e sabiam que as aplicações fiduciárias efectuadas não eram depósitos a prazo, não se lhes aplicando esse regime, razão pela qual não teriam sido enganados, que não os teria induzido a fazer, em erro, as aplicações que efectivamente efectuou, com os riscos inerentes – como defende a decisão recorrida.
Para, acabarem, os assistentes, a defender que a burla é evidente ou, pelo menos, encontra-se solidamente indiciada.
Situando o acto de enganar, com uma astúcia manhosa, quando o arguido, perante a dúvida colocada pelo assistente sobre porque é que se fizeram aplicações fiduciárias quando ele pedira depósitos a prazo, lhe responde que aplicações fiduciárias são o termo utilizado na ... para os depósitos a prazo.
Qualificando o “palavreado” do arguido como próprio de um vendedor da banha da cobra, quando diz que, por um lado, diz que depósitos a prazo e aplicações fiduciárias são a mesma coisa, só se distinguindo pela taxa de imposto aplicável (35% para os depósitos em instituições suíças, uma taxa menor para as aplicações efetuadas em instituições sediadas fora da ...) e, por outro lado, reconhece que não podia fazer depósitos a prazo na ..., porque não era um banco, para logo a seguir dizer que as aplicações que lá fazia também eram depósitos a prazo.
E, assim, concluindo que nunca quiseram fazer, no ... ou nas instituições intermediadas pelo ..., outra coisa que não fosse o tradicional, comum e conhecido depósito a prazo e, não foi isso que o arguido fez, apesar de com isso se ter comprometido, assim enganando astuciosamente os assistentes, levando-os a acreditar que estavam a fazer depósitos a prazo, quando isso não acontecia, agindo com intenção de obter para o ..., bem como para o ... que o controlava, enriquecimento ilegítimo, de que ele, como funcionário da do ..., também acabaria por beneficiar.
Cremos, contudo, que da leitura, conjugada, ponderada, articulada e contextualizada, de toda a prova produzida nos autos, não se poderá aqui vislumbrar o – exigente, reconheça-se - elemento constitutivo objectivo constitutivo do tipo legal de crime de burla, atinente com o erro ou engano da vítima devido ao emprego de astúcia, pelo agente.
Como vimos, no inquérito entendeu-se que não existiam indícios de que os gestores tenham atuado, no aconselhamento da subscrição de tais produtos, contrariamente à vontade manifestada pelos clientes no seu propósito de investirem em produtos financeiros de baixo risco, na medida em que os próprios também se encontravam induzidos em erro relativamente ao risco das emitentes.
E, na instrução que, não se mostra indiciada qualquer conduta do arguido que se traduza na utilização de um meio enganoso tendente a induzir os assistentes num erro, que, por seu turno, os levasse a praticar actos de que resultassem prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
A discordância dos assistentes não reside tanto ou, nada mesmo, sobre os factos que se possam ter como indiciariamente assentes, mas sim, mais e, essencialmente, sobre a interpretação, sobre a leitura que deles é feita na decisão recorrida.
E, assim, importa, desde já, reportando-nos à fundamentação aduzida pelo MP no despacho de arquivamento, dizer o seguinte:
Como é sabido, em termos dogmáticos, só excepcionalmente, a responsabilidade penal recai, que não, em pessoas singulares (artigo 11.º CP).
O crime de burla é, no entanto, um dos que pode ser praticado por uma pessoa colectiva, n.º 2 de tal norma (e as sociedades civis são consideradas para o efeito, equiparadas a pessoa colectivas, n.º 5.) desde que cometido em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nela ocupem uma posição de liderança (ocupam posição de liderança, nos termos do n.º 4, os órgãos e representantes da pessoa colectiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua actividade) ou por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbam (alíneas a) e b) d referido n.º 2).
É certo, por outro lado, que, a responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes, nem depende da responsabilização destes, n.º 7 e, que, por outro, é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito, n.º 6.
No caso o assistente enfoca a questão aqui no gestor de conta, no comercial, que era a função do arguido no seio da entidade para quem trabalhava.
A não traduzir, como parece medianamente evidente, uma qualquer posição de liderança, de representante da instituição, em face do disposto nos artigos 163.º/1 e 996.º do Código Civil, em face, do contrato de constituição da sociedade, do pacto social, dos estatutos, de quem a administração determinar ou de quem for por ela designado.
E a responsabilidade penal da pessoa em nome da qual o arguido negociou com o assistente não vem colocada em causa, enquanto tal.
E, assim, ficaria o erro provocado pelo arguido quando, afinal, ele próprio, também estava em erro.
Questão que os assistentes não abordam, enquanto, tal, mas que parece, desde logo, ter a virtualidade de afastar, seguramente, o elemento subjectivo do tipo legal de burla, em relação a quem, está ele próprio, induzido em erro, por parte da instituição para quem trabalha.
E, depois, por arrastamento, ao facto de poder vir a induzir em erro, o cliente da instituição.
No caso, estamos inseridos, como é do conhecimento público, desde logo, no âmbito do que ficou conhecido como a queda do ....
Com as causas, características, contexto, e consequências, por demais conhecidas, por todos e que nada têm que ver com a agressividade natural do mercado, mormente nos tempos de retracção económica.
Causas e consequências que não cabem num processo desta natureza, visando o comercial, o gestor de conta, ao serviço da instituição bancária que lhe servia de suporte.
E, que não consta que haja actuado contra as orientações da instituição, frise-se.
Os contornos e a legalidade das operações de investimento não se confundem, não se entrecruzam com a responsabilidade criminal do agente, que, inserido na cadeia profissional em que estava, actuou da forma que actuou.
Está aqui em causa a questão dos contornos de ilicitude criminal do agente da instituição bancária.
As questões atinentes às operações de investimento que os assistentes fizeram não podem ser discutidas em outra sede, que não na justiça cível.
Questões atinentes com a falta ou com vícios na formação da vontade ou quanto aos preliminares da negociação - que como é sabido, deve ser presidida pelo princípio geral da boa fé - ou mesmo, quanto à execução do contrato.
Ou na criminal, contra a instituição, como vimos.
Mas ainda que assim não fosse, não se indicia, minimamente, a verificação de erro ou engano dos assistentes devido ao emprego da astúcia, por parte do arguido.
Da materialidade, da objectividade indiciada, não se vislumbra, nem dela se pode retirar a evidência da existência de astúcia na actuação do arguido.
Da utilização de um artifício, de um estratagema, de um esquema engenhosamente criado, arquitectado, pelo arguido.
O arguido não criou, não simulou, não elaborou nenhum plano, nem pouco, nem muito complexo, que apresentasse aos assistentes, que falseasse a realidade, apto a produzir o engano dos assistentes.
E, mais, que soubesse – o arguido - traduzir num acto de disposição ruinoso para o cliente.
Como é sabido, o enriquecimento ilegítimo não tem que ficar demonstrado. Basta a intenção do agente em o obter, ao contrário do efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro, que tem necessariamente que se verificar.
Nem sequer há prova do conhecimento pelo arguido da real situação do ..., ou sequer, do contexto da actuação da instituição para quem trabalhava.
Vide, o entendimento do MP de que a actividade criminosa alegadamente realizada por alguns dos arguidos foi-o com conhecimento de um grupo muito restrito de indivíduos, onde, seguramente, se não incluiria o arguido, enquanto comercial, enquanto gestor de conta.
Quer, o arguido quer a instituição meros instrumentos, meros peões, no seio do grupo em que estavam inseridos.
A discussão sobre os contornos, sobre o tipo, conteúdo, natureza, risco e remuneração do investimento, sobre as negociações que o antecederam e, já agora, sobre a sua execução, devem ter lugar noutra sede, que não num processo de natureza criminal, por alegada burla tendo como agente activo o gestor de conta - que actua em nome, pro ordem e no interesse da instituição para quem trabalha.
A mentira não é, por si só, susceptível de integrar a prática de ilícito criminal, nomeadamente, o crime de burla.
Para existir burla, por parte do arguido, numa situação como aquela em que os assistentes se viram envolvidos seria necessário que aquele fizesse uma encenação, uma montagem, da realidade envolvente, mascarando-a por forma a enganar os assistentes e fazê-los, por isso, investir em produtos financeiros em que não queriam investir.
E, isto desde o início, pois que como se sabe não existe a figura do dolo sucessivo.
Só esta situação seria susceptível de integrar o engano astucioso, que o tipo legal exige.
A simples violação da ordem jurídica, não tem consistência, não tem dignidade, não tem ressonância penal e, tão só, merece tratamento e abordagem em sede de direito civil.
E, aqui voltamos a citar o referido acórdão do STJ, que a propósito da consideração de que a mera reserva mental que não releva no domínio penal, mas tão só no universo civilista, refere o seguinte;
“a doutrina tem-se ocupado desta questão, da questão da distinção entre a fraude civil e a fraude penal.
T. S. Vives Anton (Compendio de Derecho Penal, Parte Especial, 497-8) sobre o título engano e dolo "in contrahendo", refere-se assim, à linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil.
“Na doutrina civil o "dolo in contrahendo" determinante da nulidade do contrato (dolo grave ou causante) configura-se em termos praticamente idênticos ao engano constitutivo da burla (vid. Díez Picazo), inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo.
Em consequência, a linha divisória entre a burla e o ilícito civil, determinante da nulidade do contrato, radicará na existência ou inexistência de prejuízo obtido ou tentado - (vid. Sentença de 6.2.89, Ar. 1.479 - que afirma que o dolo "in contrahendo" é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla).

Deve destacar-se que, na prática, em geral a conduta será classificada como burla, ou tida por civilmente ilícita em função da via processual eleita pelo prejudicado, como chega a insinuar a sentença antes citada”.
Também Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de Direito Penal, II, 19.ª Edição, 297-8) lembra que foram sugeridos vários critérios para se fazer a distinção entre a fraude civil e a fraude penal.
“Afirma-se que existe esta (fraude penal) apenas quando: há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico; há um dano social e não puramente individual; há a violação do mínimo ético; há um perigo social, mediato ou indirecto; há uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena; há fraude capaz de iludir o diligente pai de família; há evidente perversidade e impostura; há uma mise-en-scène para iludir; há uma impossibilidade de se reparar o dano; há o intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio etc. Afirma Hungria que, "tirante a hipótese de ardil grosseiro, a que a vítima se tenha rendido por indesculpável inadvertência ou omissão de sua habitual prudência, o inadimplemento preordenado ou preconcebido é talvez o menos incerto dos sinais. orientadores na fixação de uma linha divisória nesse terreno contestado da fraude". “Na verdade; não há diferença de natureza, antológica, entre a fraude civil e a penal; não há fraude penal e fraude civil, a fraude é uma só. Pretendida distinção sobre o assunto é supérflua, arbitrária e fonte de danosíssimas confusões (JTACrSP58/210; RT423/401). O que importa verificar, pois, é se, em determinado facto, se configuram todos os requisitos do estelionato, caso em que o fato é sempre punível, sejam quais forem as relações, a modalidade e a contingência do mesmo (RT 543/347-348).”
E acrescenta este Autor: “tem-se entendido que há fraude penal quando o escopo do agente é o lucro ilícito e não o do negócio (RT423/344) Isso, porque a fraude penal pode manifestar-se na simples operação civil, não passando esta, na realidade, de engodo fraudulento que envolve e espolia a vítima (RT329/121), Mas é comum nas transacções civis ou comerciais certa malícia entre as partes, que procuram, por meio da ocultação de defeitos ou inconveniências da coisa, ou de uma depreciação, justa ou não, efectuar operação mais vantajosa. Mesmo em tais hipóteses, o que, se tem é o dolo civil, que poderá dar lugar à anulação do negócio, por vício de consentimento, com as consequentes perdas e danos (arts. 147, II, e 1.103 do CC), não, porém, do dolo configurador do estelionato (RT 547/34g). Não há crime na ausência de fraude, e o mero descumprimento do contrato, mesmo doloso, é mero ilícito civil (JTACrSP 49/173, 50/79, 51/405, RT 423/394, RTJ 93/978) (...).
Configura-se o crime: (...) na obtenção de financiamento com garantia fiduciária inexistente; na compra a crédito com nome falso (JTACrSP 59/261, 62/171); na inadimplência contratual preconcebida (JTACRSP 44/166) etc”.
Não se pode, pois, esquecer nesta problemática, uma particularidade do crime de burla: um processo executivo que comporta a intervenção de um ser autónomo e livre (na verdade é o próprio sujeito passivo que pratica os actos de diminuição patrimonial), sendo certo que compete a cada pessoa cuidar dos seus interesses. A assunção social da obrigação de salvaguardar bens alheios não pode deixar, pois, de ter um carácter subsidiário e residual; nos negócios, em que estão presentes mecanismos de livre concorrência, o conhecimento de uns e o erro ou ignorância de outros, determina o sucesso, apresentando-se o erro como um dos elementos do normal funcionamento da economia de mercado, sem que se chegue a integrar um ilícito criminal.
Importa, assim, procurar delimitar o âmbito de protecção da norma, do ilícito subjacente ao crime de burla. Almeida Costa (Comentário Conimbricense, II, pág. 300) refere que no plano criminal se exige que “a consumação do delito dependa, não de um qualquer domínio-do-erro (ainda que efectivo) mas de um domínio-do erro jurídico-penalmente relevante», tendo em consideração uma restrição adicional do desvalor de acção subjacente à burla, cuja definição remete para o princípio da boa fé (em sentido objectivo): “uma exigência de consideração pelos interesses legítimos da outra parte, nele radica o decisivo critério da lealdade que deve acompanhar as relações das pessoas no comércio jurídico e, portanto, o limite da relevância do domínio-do-erro no quadro da burla”.
Como refere Nelson Hungria (op. cit., 178), “ilícito penal é a violação da ordem jurídica, contra a qual, pela sua intensidade ou gravidade, a única sanção adequada é a pena, e ilícito civil é a violação da ordem jurídica, para cuja debelação bastam as sanções atenuadas da indemnização, da execução forçada ou in natura, da restituição ao statu quo ante, da anulação do acto, etc.” Essa imposição decorrente da boa fé só pode fazer-se em função das circunstâncias do caso, incluindo a configuração material da conduta do agente, e sugere aquele autor que, sendo vã a tentativa de uma casuística rigorosa, a tarefa dessa distinção não pode deixar de ser confiada ao juiz, na sua própria função específica de jus condictum dicere, o oportuno ajustamento da fórmula aos ocorrentes (op. cit., 179)”.
E, depois, para ilustrar que o STJ se tem pronunciado sobre situações de charneira na distinção que se vem fazendo, adoptando os critérios que se enunciaram, invoca-se, entre outros, este que se tem como emblemático:
“como se colhe da leitura do artigo 217º do CP, são elementos do tipo do crime de burla, a intenção pelo agente de enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou e a prática consequente de actos pela vítima, que a si, ou a outrem, causem prejuízo patrimonial.
A astúcia posta pelo burlão tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como na falsa qualidade, como na falsificação da escrita, ou outra qualquer. Interessa, apenas, que os factos invocados dêem a uma falsidade a aparência de verdade, ou, como diz a lei alemã, o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros.
O burlão, actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. É indispensável, assim, que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade, revelando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade dos outros serem convencidos.
Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima.
A idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado.
Haverá no entanto que sublinhar, que no mundo dos negócios no contexto da economia de mercado, assente nos mecanismos da livre concorrência, o sucesso emerge muitas vezes do superior conhecimento do sujeito acerca das características do concreto sector e, assim, em termos comparativos, do erro ou ignorância dos seus competidores, pelo que não será qualquer domínio-do-erro que importa consumação do delito, mas a sua instrumentalização em termos de atingir o cerne do princípio da boa fé objectiva, o que pode ser julgado em função das circunstâncias de cada caso, "aí compreendida a configuração material da conduta do agente" e a intolerabilidade concreta da eventual leviandade, passividade, ou mesmo, ingenuidade, patenteada pelo lesado”. (ac. de 18-10-2001, proc. n.º 2362/01-5).
A este propósito, em situações de facto absolutamente semelhantes às deste processo, não resistimos a citar o que se decidiu, em termos de justiça cível:
“Provando-se que o Banco, conscientemente, induziu cliente, cuja preferência de investimento era por produtos de capital garantido e resgatável a todo o tempo, a adquirir Obrigações SLN, mediante afirmação telefónica de que estas eram equivalentes a depósito a prazo e facilmente resgatáveis, quando a característica do produto era a de serem obrigações subordinadas e não resgatáveis pelo subscritor, incorreu o referido Banco em inobservância do dever de informação do cliente.
Tal violação, da responsabilidade de intermediário financeiro, constitui este na obrigação de indemnizar os consequentes danos causados” - cfr. ECLI:PT:TRL:2018:33623.15.3T8LSB.L1.6.61
“Um cliente que pretende fazer um depósito a prazo e é convencido pelo funcionário bancário a investir em obrigações, sem informar minimamente este potencial investidor, não qualificado, sobre a natureza, características e riscos desse valor mobiliário, transmitindo-lhe que é igual, em termos de segurança, a um depósito a prazo, pode responsabilizar civilmente o banco uma vez que, para além de não ter sido cumprido o dever de informação a que se encontrava adstrito, induziu em erro o cliente, parte mais inexperiente, em termos financeiros, do contrato” - cfr. ECLI:PT:TRG:2018:787.15.6T8FAF.G1.45
“Os AA. eram clientes do banco/Réu, mantendo, pois, com este uma relação contratual, iniciada com abertura de conta, associada a um depósito à ordem e seguida de abertura de contas de depósito a prazo.
Os clientes reconhecem aos bancos um superior conhecimento da sua atividade proveniente da sua profissionalização e especialização, confiando que estes atuarão, não só de acordo com normais padrões de diligência e correção ao nível da genérica boa-fé exigida na execução dos contratos (art.º 762.º n.º 2 do CC) ou da sua negociação prévia (art.º 227.º n.º 1 do CC), mas, mais do que isso, esperarão que estes, tal como expressamente enunciado no RGICSF, pautarão a sua atuação por elevados padrões de competência técnica (art.º 73.º do RGICSF), os quais se refletirão na “diligência, neutralidade, lealdade, discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados”, que deverão nortear as suas relações com os clientes (art.º 74.º RGICSF).
Ainda que se aceite ser questionável que da relação bancária geral resulte para os bancos um dever genérico de prestação de informações (obrigação de prestação de informações fora de específica contratação ou de imposição legal), que arrede a regra geral de desresponsabilização prevista no n.º 1 do art.º 485.º do CC, entende-se que se o banco, interpelado pelo cliente para prestar uma informação não diretamente conexionada com a relação bancária em concreto vigente, aceitar prestá-la, ou se o banco tomar a iniciativa, a latere de concreta relação negocial existente com o cliente, de o abordar para, por exemplo, o informar acerca de uma possibilidade de negócio, deverá fazê-lo em consonância com os deveres de rigor e diligência supra enunciados, incorrendo em responsabilidade obrigacional, se falhar.
Acresce que os AA. beneficiam da proteção acrescida decorrente do facto de o banco se lhes ter apresentado como intermediário financeiro.
Ao nível dos deveres impostos ao intermediário financeiro, incluindo o banco para tal autorizado, destacam-se os deveres de informação, expressos no art.º 312.º do CVM, relativamente aos serviços que ofereça, lhe sejam solicitados ou que efetivamente preste, os quais deverão ser cumpridos através da prestação de “todas as informações necessárias para uma tomada de decisão esclarecida e fundamentada”, sendo certo que o objeto dessas informações é indicado, nas alíneas seguintes do referido artigo, apenas de forma exemplificativa.
O n.º 2 do art.º 312.º do CVM consagra o princípio da proporcionalidade inversa, ou seja, a regra segundo a qual a extensão e a profundidade da informação a prestar pelo intermediário financeiro ao cliente devem ser tanto maiores quanto menor for o seu grau de conhecimento e experiência.
Ao investidor lesado em virtude de incumprimento de um dever de informação por parte de intermediário financeiro, cabe demonstrar a existência desse dever; sobre o intermediário financeiro recai o ónus da prova de que cumpriu cabalmente o dever de informar, de acordo com os padrões enunciados nos artigos 7.º n.º 1, 312.º n.ºs 1 e 2 do CVM; sobre o intermediário financeiro recai o ónus da prova de falta de culpa no alegado incumprimento (n.º 2 do art.º 314.º do CVM, na redação anterior à introduzida pelo DL 357-A/2007, de 31.10); sobre o investidor recai o ónus da prova do dano decorrente da atuação do intermediário financeiro e do nexo de causalidade entre o facto do intermediário financeiro e o dano, ou seja, de que se tivesse formado a sua vontade de modo esclarecido, ter-se-ia abstido de celebrar qualquer negócio ou teria optado por outro investimento.
No caso dos autos, em que o A., cliente tradicional, avesso ao risco, habituado a aplicar as suas poupanças em depósitos a prazo ou equiparados, subscreveu obrigações subordinadas sobre a sociedade detentora do banco, convencido de que se tratava de aplicação idêntica a um depósito a prazo, provando-se que não efetuaria tal aplicação se tivesse sido esclarecido acerca das suas caraterísticas, a reparação do dano consistirá na colocação do lesado na posição patrimonial em que se encontraria no caso de não ter efetuado essa aplicação, ou seja, não se tendo provado outros danos, na restituição ao A. da quantia aplicada”, cfr. ECLI:PT:TRL:2018:14202.16.4T8LSB.L1.2.13.
3. 7. Aqui chegados, com a prova indiciária que temos - que é a possível, em face das circunstâncias - tendo presente todos os elementos probatórios carreados para os autos, resultantes, quer da prova testemunhal, quer da documental, valorados e conjugados entre si de acordo com as regras da experiência comum, impõe-se concluir pela inexistência de indícios suficientes de factos susceptíveis de integrar o tipo legal de crime de burla.
Sem olvidar que,
- o que arguido conhecia sobre a ... era aquilo que era do conhecimento público: as contas oficiais, os valores de transacção dos seus títulos e obrigações, e o rating da instituição;
- o arguido desconhecia a situação real das entidades integrantes do ... (nomeadamente, da ...) e não tinha qualquer forma de a conhecer;
- até Junho de 2014, CC e OO sempre sublinharam nas reuniões do CA do banco, a capacidade do ... cumprir com todas as suas obrigações para com os clientes da área financeira e investidores da área não financeira;
- o próprio Presidente da República, poucos dias antes da resolução do ..., garantia publicamente a sua solvabilidade, afirmando que segundo o ..., o ... detinha um montante de capital suficiente para acomodar eventuais impactos negativos decorrentes da exposição assumida perante o ramo não financeiro do ...;
Estamos perante um assistente investidor, particularmente qualificado, atento e cauteloso, que pretendia investir o pecúlio que angariou durante o período de vida empresarial activa.
Que pretendia que os seus investimentos pudessem ser resgatados antecipadamente - e os depósitos a prazo não são mobilizáveis antecipadamente (designadamente, sem penalização).
Que aceitou os conselhos e as justificações do arguido, ao longo de 3 anos.
É certo que o arguido lhe propôs a diversificação da carteira de investimentos, designadamente, a aplicação também em títulos de dívida/obrigações governamentais e de empresas (“...” e “...”), o que o assistente recusou.
O assistente chegou a solicitar a aplicação "na vossa holding do ..." (ou seja, a ...).
O assistente sabia que nem a ... nem a ... eram instituições bancárias, independentemente de saber se aquela era uma holding, ou qual a sua natureza em concreto.
Donde, carece de fundamento a tese de que o arguido fez aplicações de capital dos assistentes contra a vontade dos mesmos, bem conhecendo o prejuízo que daí lhes adviria, com a intenção de benefício próprio ou de terceiros, mediante um erro ou engano astuciosamente criado.
E, se antes já falamos na inidoneidade de quem está, ele próprio, em erro, poder induzir outro em erro, não deixaremos agora, em sede de consequências, de referir não poderem o assistentes, como qualquer investidor, querer o melhor de dois mundos: querem a melhor taxa de juro como remuneração para o seu investimento do capital e o menor risco possível.
Não há dúvida sobre isso. Daí a avisada decisão de não investir em Portugal naquela ocasião.
Só que tal investimento não correu de feição, como não correria – e não correu - a todos que, ao tempo, estavam na sua situação. Assim como aconteceu aquando do crash da bolsa, ou com os investimentos com as bitcoins que, durante algum tempo, geraram lucros avultadíssimos.
Situações, que que, mesmo aqueles que investiram a tempo de terem sido já reembolsados do capital que investiram, ainda, assim, vieram a sentir-se lesados, pela interrupção da cadeia de mais valias.
Não se vislumbra, pois, decisivamente, que é o que aqui está colocado em causa, o uso do ardil, o engano astucioso, que caracteriza a burla.
Assim, por não se terem recolhido indícios suficientes da prática de crime punível e consequentemente de existir “…uma possibilidade razoável de vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena”, não deve ser – como não foi, de resto, proferido despacho de pronúncia.
Deve, pois, ser o recurso julgado improcedente.
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III. Dispositivo
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem este Tribunal,
1. em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP, revogando-se o despacho recorrido no segmento em que julgou extinto o procedimento criminal por prescrição, pelos crimes de infidelidade imputados aos arguidos, AA e BB, devendo ser substituído por outro – que apreciando o RAI - tenha como ainda não completado o prazo de prescrição;
2. em negar provimento ao recurso apresentado pelos assistentes ..., ... e GG, confirmando-se, por isso, a decisão de não pronúncia do arguido FF.
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Custas, no primeiro recurso pelos arguidos, que contra-alegaram e ficaram vencidos e, no segundo, pelos assistentes recorrentes, com taxa de justiça, individual que se fixa no equivalente a 4 Ucs – cf. artigos 513.º/1 e 515.º/1, a) do CPP e artigo 8.º/9 do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, por remissão para a tabela III ao mesmo anexa.
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Notifique.
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Lisboa, 07-03-2024
Elaborado e integralmente revisto pela relatora, nos termos do artigo 94.º/2 do CPP.
Maria João Lopes
Micaela Pires Rodrigues
Fernanda Sintra Amaral