Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3914/21.0T8LRS.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: DIVISÃO DE COISA COMUM
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO NATURAL
IMÓVEL HIPOTECADO
INTERVENÇÃO DO CREDOR HIPOTECÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – A legitimidade processual depende do “interesse directo em demandar”, que se afere pela utilidade que resulta para o autor da procedência da acção, enquanto sujeito da relação material controvertida tal como por ele é configurada e pelo “interesse directo em contradizer”, exprimido pela desvantagem jurídica que resultará para o réu da sua perda.
II – O interesse em demandar e o interesse em contradizer é atribuído, nos termos do n.º 3 do artigo 30º do Código de Processo Civil, aos sujeitos da relação controvertida, tal como é desenhada pelo autor na petição inicial.
III – A legitimidade para a acção de divisão de coisa comum, face ao estatuído no artigo 925º, n.º 1 do Código de Processo Civil e atenta a natureza da relação jurídica, configura uma situação de litisconsórcio necessário natural de todos os contitulares, pois que a divisão da coisa apenas pode ocorrer, de modo definitivo, quando todos os comproprietários estiverem presentes na acção, de modo a que a decisão seja a mesma para todos os interessados.
IV – Quando a hipoteca incide sobre a totalidade do imóvel, na fase declarativa da acção de divisão de coisa comum, que visa decidir sobre a existência e os termos do direito à divisão, a legitimidade activa e passiva encontra-se assegurada se estiverem presentes todos os comproprietários, por serem estes quem poderá retirar utilidade da procedência ou improcedência do pedido nessa fase, não podendo o direito do credor hipotecário ser afectado com a definição dos direitos que aí tenha lugar.
V – Nesses casos, a intervenção do credor hipotecário será obrigatória na eventualidade da venda do bem na fase executiva, pois que será nesse momento que terá de reclamar o seu crédito e fazê-lo valer, atento o disposto no artigo 549º, n.º 2 e artigos 786º e seguintes do Código de Processo Civil, que determina a citação dos credores com garantia real sobre o prédio a vender.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A, residente na Avenida …, nº ..., 1º Dt.º, Casal de Cambra intentou contra B, residente na Rua …, nº .., 15ºD, Torres …, Santo António dos Cavaleiros a presente acção especial de divisão de coisa comum, formulando a seguinte pretensão:
a. Que seja reconhecido o direito de compropriedade da autora e do réu, na proporção de metade para cada um deles, da fracção autónoma designada pelas letras “CI”, correspondente ao … (com arrecadação nº 49 no piso técnico) do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, nº …, Santo António dos Cavaleiros, antiga freguesia de Santo António dos Cavaleiros, actual União das Freguesias de Santo António dos Cavaleiros e Frielas, concelho de Loures, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o nº …, freguesia de Santo António dos Cavaleiros e inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 8, da União das Freguesias de Santo António dos Cavaleiros e Frielas, devendo proceder-se à sua divisão que, atenta a indivisibilidade em substância, deve ser obtida por via da adjudicação ou venda do bem, com repartição do respectivo valor.
Alegou, em síntese, o seguinte (cf. Ref. Elect. 10855055):
=> A autora e o réu são comproprietários da fracção autónoma identificada, destinada a habitação, com o valor patrimonial, determinado no ano de 2019, de 71 750,82 €;
=> A aquisição da propriedade está registada a favor da autora e do réu, em compropriedade, através da AP. 11 de 2004/08/15;
=> Sobre a fracção em causa incide hipoteca voluntária constituída a favor de “Unión de … (Soc. Unipessoal)”, para garantia do empréstimo contraído para a sua aquisição;
=> A autora não pretende continuar na situação de compropriedade, que, atentas as suas características e natureza, não é susceptível de divisão em substância, pelo que deve ser determinado o seu valor actual, sendo adjudicada ou vendida, para o que requer seja a credora hipotecária notificada para, querendo, vir aos autos reclamar o seu crédito.
O réu contestou a acção argumentando que não se verifica a compropriedade em partes iguais, pois que é ele quem, desde há seis anos, pagos os créditos bancários atinentes ao empréstimo contraído para a sua aquisição, no valor aproximado de 22.320,00€, que deve ser descontado na quota a atribuir à autora e valores de condomínio, pelo que deduziu reconvenção pedindo que tais valores sejam reconhecidos para efeitos de determinação da quota de cada consorte (cf. Ref. Elect. 12834235).
A autora apresentou réplica pugnando pela inadmissibilidade do pedido reconvencional e sustentou que a fracção foi adquirida em comum e partes iguais, onde viveram até 2017, tendo o réu continuado a ali residir após a saída da autora, passando a assumir sozinho o pagamento das prestações e aquela a suportar um encargo com renda com uma outra habitação, impugnando os valores apresentados. Mais deduziu a ampliação do pedido para que seja atendido o valor que suportou com o pagamento de rendas (cf. Ref. Elect. 12968823).
Em 2 de Março de 2023 foi proferido o seguinte despacho (cf. Ref. Elect. 155159171):
“Analisados os autos verifica-se que sobre a fração autónoma cuja divisão é requerida incide uma hipoteca registada a favor do “BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A.”.
Decorre do artigo 689.º n.º 2 do Código Civil que a divisão de coisa ou direito comum, feita com o consentimento do credor, limita a hipoteca à parte que foi atribuída ao devedor.
Ou seja, existindo um ónus sobre o bem a dividir, não pode esta ocorrer sem a intervenção do credor hipotecário. Com efeito, como assinala José Alberto Gonzalez1, «se a realização da divisão não estivesse dependente de consentimento do credor hipotecário, aquela poderia dar-se em seu prejuízo; bastaria que o consorte autor da hipoteca não se defendesse ou não o fizesse devidamente. Daí a solução do n.°2: a falta de consentimento do credor hipotecário para a divisão, não a invalidando, toma-a ineficaz ante ele (tudo permanecendo tal qual ela inexistisse) (…)».
A este propósito veja-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.02.2017, que na sua fundamentação se pronuncia sobre a questão ora em análise, «No caso dos autos, a autora alegou a compropriedade com o réu de um determinado prédio, que identificou, invocando, desde logo, a existência de dois contratos de mútuo contraídos junto do BES e a constituição de duas hipotecas incidentes sobre o bem dividendo, juntando, para tanto, documentos demonstrativos do alegado. Em face desta alegação, a Exma. Juíza do Tribunal a quo, elaborou – e bem - um despacho de aperfeiçoamento, no qual convidou a autora a sanar a ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio passivo necessário natural, mediante a dedução do adequado incidente, por forma a fazer intervir na acção o credor hipotecário, convite que a autora acatou, suscitando o incidente de intervenção principal provocado do então Banco E., actual Banco, S.A.» (nosso sublinhado).
Entende-se, assim, que no caso dos autos se está perante um caso de litisconsórcio necessário natural.
Todavia, a presente ação apenas foi proposta contra o comproprietário.
Face ao exposto, convida-se a Autora querendo, suprir a exceção de ilegitimidade passiva, por litisconsórcio necessário natural, ao abrigo do disposto nos artigos 33.º, 278.º, n.º 3, 311.º e 590.º n.º 2 alínea a), todos do Código Processo Civil.
Prazo: 10 dias.”
Por requerimento de 20 de Março de 2023, a autora veio requerer o prosseguimento dos autos por, no seu entender, não se verificar, no caso, preterição de litisconsórcio necessário natural, não tendo o credor hipotecário interesse igual ou paralelo ao da autora e do réu, únicos comproprietários da fracção, sendo estes quem deve intervir na fase declarativa da acção de divisão de coisa comum; aquele credor apenas deverá reclamar o seu crédito, na fase executiva, se se proceder à venda (cf. Ref. Elect. 1354675).
Em 20 de Abril de 2023 foi proferido despacho a ordenar a notificação do requerido sobre a eventual verificação de preterição de litisconsórcio necessário natural e sua consequente absolvição da instância, que, notificado, nada disse (cf. Ref. Elect. 156299401).
Em 27 de Junho de 2023 foi proferido despacho que determinou que os autos seguissem a forma simplificada, nos termos do art.º 926.º n.º 2 do Código de Processo Civil[1], indeferiu o pedido reconvencional e julgou verificada a excepção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário natural e, em consequência, determinou a absolvição do réu da instância (cf. Ref. Elect. 157171663).
Inconformada com esta decisão, a autora veio interpor o presente recurso, cuja motivação concluiu do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 14233297):
A) Em 05/05/2021, a ora recorrente interpôs contra B, junto do Juízo Local Cível de Loures, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Acção declarativa especial de divisão de coisa comum, à qual, após distribuição ao Juiz 2, foi atribuído o nº de processo 3914/21.0T8LRS, peticionando a divisão da fracção autónoma destinada a habitação designada pelas letras “CI”, correspondente ao …. (com arrecadação nº …. no piso técnico) do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, nº …., Santo António dos Cavaleiros, antiga freguesia de Santo António dos Cavaleiros, actual União das Freguesias de Santo António dos Cavaleiros e Frielas, concelho de Loures, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o nº 94, freguesia de Santo António dos Cavaleiros e inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 8, da União das Freguesias de Santo António dos Cavaleiros e Frielas, com o valor patrimonial actual (CIMI), determinado no ano de 2019, de €71.750,82 (cfr. Petição Inicial refª 10855055);
B) A propriedade da sobredita fracção encontra-se registada a favor da A. e do R, em compropriedade e em partes iguais, através da AP. 11 de 2004/08/15, por compra a JM (cfr. certidão permanente de registo predial);
C) Sobre a mesma fracção incide hipoteca voluntária constituída a favor de “Unión de Créditos … (Soc. Unipessoal)”, com sede na Avª Engenheiro …, Torre …, 12º, em Lisboa, para garantia do empréstimo contraído para aquisição do imóvel, ónus que se encontra registado pela AP. 12 de 2004/08/25 (cfr. certidão permanente de registo predial);
D) Por despacho de 02/03/2023 (cfr. refª 155159171), foi a ora recorrente convidada a suprir a excepção de ilegitimidade passiva, por litisconsórcio necessário natural, ao abrigo do disposto nos artigos 33º, 278º, nº 3, 311º e 590º, nº 2 alínea a), todos do Código Processo Civil, deduzindo o competente incidente de intervenção contra o identificado credor hipotecário;
E) Ao convite formulado, respondeu a ora recorrente, por requerimento de 20/03/2023 (cfr. refª 13546745), requerendo o prosseguimento dos autos, pugnando, em síntese, pela não verificação da suscitada excepção, porquanto na fase declarativa do processo de divisão de coisa comum, apenas os comproprietários extraem utilidade da procedência ou improcedência do pedido, só eles tendo legitimidade para demandar ou ser demandados nos termos do artigo 30º do CPC, sendo que, nessa fase declarativa e face ao objecto da acção, o credor hipotecário não detém um interesse igual (ou sequer paralelo) ao de A. e R., não sendo sujeito da relação material controvertida, pelo que não poderá ser parte nos presentes autos, cingindo-se a sua intervenção enquanto credor hipotecário, na fase declarativa do processo de divisão de coisa comum, à quantificação do seu crédito e à respectiva reclamação, na fase executiva, se houver lugar à venda da coisa, nos termos do preceituado nos artigos 549º, nº2, 786º e 788º, nº 1, todos do CPC;
F) Na sequência, é prolatado, em 27 de Junho de 2023 (refª 157171663), o Despacho Saneador-Sentença ora em crise, o qual, com fundamento em julgar verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário natural, absolveu o R. B da instância, condenando ainda a A. nas custas devidas;
G) Como decorre da respectiva tramitação, a acção de divisão de coisa comum comporta, processualmente, duas fases distintas: uma primeira, de cariz declarativo, destinada a apurar da compropriedade da coisa, da sua divisibilidade ou indivisibilidade em substância e a fixação das quotas de cada um dos comproprietários (cfr. artigo 926º do CPC); e uma segunda fase, de cariz executivo, onde se procede à efectiva divisão da coisa, através do preenchimento dos quinhões por acordo ou por sorteio, ou, sendo a coisa indivisível em substância, como é o caso dos presentes autos, através da adjudicação ou venda (cfr. artigo 929º do CPC);
H) No caso dos presentes autos, a acção foi intentada pela A., ora recorrente, como comproprietária, exclusivamente contra o outro comproprietário, porquanto na fase declarativa da acção, apenas os comproprietários extraem utilidade da procedência ou improcedência do pedido, só eles tendo legitimidade para demandar ou ser demandados nos termos do artigo 30º do CPC, mostrando-se assegurada a legitimidade activa e passiva nesta fase;
I) Na fase declarativa, o credor hipotecário, face ao objecto da acção, não detém um interesse igual (ou sequer paralelo), ao de A. e R., não sendo sujeito da relação material controvertida, pelo que não poderá ser parte nos presentes autos, cingindo-se a sua intervenção, nesta fase, à eventual quantificação do seu crédito, o qual deverá ser reclamado, na fase executiva, se houver lugar à venda da coisa (cfr. artigos 549º, nº 2, 786º e 788º, nº 1 do CPC);
J) Para o exercício dos direitos que lhe assistem, enquanto credor hipotecário, na fase executiva do processo, aquele deverá ser chamado oficiosamente aos autos, através da citação a que se refere a alínea b) do nº 1 do artigo 786º do CPC (aplicável “ex vi” do preceituado no nº 2 do artigo 549º do CPC) e não através do incidente de intervenção previsto nos artigos 311º e seguintes do CPC, como se pretende na douta sentença ora em crise.
K) A verificação dos pressupostos de que a lei faz depender a divisão da coisa, designadamente o apuramento da natureza comum da coisa, a sua natureza divisível ou indivisível em substância e a fixação das quotas que cabem a cada um dos comproprietários, verificação feita pelo Julgador na fase declarativa do processo, não contempla a intervenção de qualquer credor hipotecário. Ela é feita com base nos elementos aportados ao processo pelas partes, sendo que estas apenas podem ser os comproprietários da coisa, únicos titulares do direito de compropriedade a que se pretende pôr fim e únicos que extraem utilidade da procedência ou improcedência do pedido nesta fase declarativa da acção;
L) Não existe nenhum efeito útil normal que se imponha salvaguardar relativamente ao credor hipotecário e que imponha a necessidade da sua intervenção, como parte principal, na fase declarativa do processo de divisão de coisa comum, não configurando a sua não intervenção, nesta fase, qualquer situação de litisconsórcio necessário nos termos do artigo 33º do CPC que urja suprir, porquanto a legitimidade ativa e passiva para a acção se encontra assegurada pela intervenção dos comproprietários, únicos titulares do direito de compropriedade sobre o bem;
M) Inexiste sequer qualquer prejuízo para o credor hipotecário derivado da procedência, ou improcedência, da acção, que lhe confira legitimidade para nela intervir como parte (cfr. artigo 30º do CPC);
N) Embora se verifique existir jurisprudência que, sobre a questão de direito processual em apreço, se pronunciou no sentido propugnado na sentença ora em crise, designadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/02/2017 (cfr. Proc. 166/12.7T2MFR-E.L1-2) invocado na sentença ora em recurso, a jurisprudência mais recente sobre a mesma questão, designadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04/02/2021 (proc. 11259/18.7T8SNT.L1-6) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10/11/2022 (proc. 469/21.0T8ABF.E1), têm vindo a considerar que o credor hipotecário não tem legitimidade para intervir na fase declarativa da acção especial de divisão de coisa comum;
O) A sentença de 27 de Junho de 2023 (refª 157171663), ora em apreço, ao julgar verificada a excepção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário natural e consequente absolvição do réu da instância, com fundamento na aplicabilidade, ao caso, do artigo 33º e 311º do CPC, incorre em erro de julgamento e na determinação da norma aplicável, violando frontalmente o preceituado no artigo 30º do CPC.
Termina pugnando pela procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, pág. 135.
Assim, perante as conclusões da alegação da autora/recorrente a única questão a apreciar é a da preterição de litisconsórcio necessário natural.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Em 27 de Junho de 2023 o Tribunal a quo proferiu, no que releva para efeitos do presente recurso, a seguinte decisão:
“Conforme supra referido, consultada a certidão permanente de registo predial do imóvel em crise nos presentes autos, resultou que sobre o mesmo incide uma hipoteca a favor de uma instituição de crédito (AP. 12 de 2004/08/25 – Hipoteca Voluntária).
Ora, no que toca a esta garantia real, prescreve o artigo 689.º, n.º 2, do Código Civil (adiante, CC), que “a divisão da coisa ou direito comum, feita com o consentimento do credor, limita a hipoteca à parte que for atribuída ao devedor”.
Donde resulta que, “(…) se o direito comum for dividido sem o consentimento do credor a hipoteca da quota [manter-se-á] nos seus exatos termos, ou seja, a divisão não será oponível ao titular da hipoteca”.
Assim, existindo um ónus sobre o bem a dividir, não pode esta ocorrer sem a intervenção do credor hipotecário. Com efeito, como assinala com precisão JOSÉ ALBERTO GONZALEZ “se a realização da divisão não estivesse dependente de consentimento do credor hipotecário, aquela poderia dar-se em seu prejuízo; bastaria que o consorte autor da hipoteca não se defendesse ou não o fizesse devidamente. Daí a solução do n.°2: a falta de consentimento do credor hipotecário para a divisão, não a invalidando, toma-a ineficaz ante ele (tudo permanecendo tal qual ela inexistisse) (…)”.
Resultando manifesta, através da análise do mencionado preceito legal, a imprescindibilidade da intervenção do credor hipotecário nos presentes autos.
A este propósito veja-se ainda o já referido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.02.2017, no qual pode ler-se o seguinte: “No caso dos autos, a autora alegou a compropriedade com o réu de um determinado prédio, que identificou, invocando, desde logo, a existência de dois contratos de mútuo contraídos junto do BES e a constituição de duas hipotecas incidentes sobre o bem dividendo, juntando, para tanto, documentos demonstrativos do alegado. Em face desta alegação, a Exma. Juíza do Tribunal a quo, elaborou – e bem - um despacho de aperfeiçoamento, no qual convidou a autora a sanar a ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio passivo necessário natural, mediante a dedução do adequado incidente, por forma a fazer intervir na acção o credor hipotecário, convite que a autora acatou, suscitando o incidente de intervenção principal provocado do então Banco E., actual Banco, S.A.”.
Mas não só, apelando aqui também às regras de legitimidade processual, resulta do artigo 33.º, n.º 2, do CPC que “[é] (…) necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal”.
Pelo que, por forma a produzir o seu efeito útil normal, logrando vincular todos os interessados, deveria a presente ação ter sido intentada contra o credor hipotecário, in casu, a Unión de …, S.A., Estabelecimento Financeiro de Crédito, configurando uma situação de litisconsórcio necessário natural.
Ante a ilegitimidade verificada no presente caso (por preterição de litisconsórcio natural que suscetível era de sanação), tem o Réu de ser absolvido da instância, ao abrigo do disposto nos artigos 33.º, 278.º, n.º 3, 311.º e 590.º n.º 2 alínea a), todos do Código Processo Civil, sem prejuízo de a Autora lançar mão da prerrogativa prevista no artigo 261.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.”
Do conteúdo desta decisão é possível aferir serem os seguintes os fundamentos da consideração da verificação de preterição de litisconsórcio necessário natural:
=> A existência de uma hipoteca incidente sobre a fracção autónoma a dividir e o estipulado no art.º 689.º, n.º 2 do Código Civil, que determina que a divisão da coisa ou direito comum, feita com o consentimento do credor, limita a hipoteca à parte que for atribuída ao devedor;
=> A realização da divisão sem intervenção do credor hipotecário não lhe é oponível, podendo ter lugar em seu prejuízo, se o consorte autor da hipoteca não se defendesse devidamente;
=> A existência de um litisconsórcio necessário natural, nos termos do art.º 33º, n.º 2 do CPC, que exige a intervenção do credor hipotecário para que resultem vinculados todos os interessados.
A recorrente insurge-se contra este entendimento com a seguinte argumentação:
1) A acção de divisão de coisa de comum tem uma fase declarativa e outra executiva, sendo que na primeira apenas os comproprietários têm interesse na procedência ou improcedência do pedido e apenas eles têm legitimidade para intervir, nos termos do art.º 30º do CPC;
2) A intervenção do credor hipotecário apenas poderá ocorrer na fase executiva, se houver lugar à venda da coisa, para reclamação do seu crédito, nos termos do disposto nos art.ºs 549º, n.º 2, 786º e 788º, n.º 1 do CPC, para o que será então citado;
3) A falta de consentimento do credor hipotecário não invalida a divisão, apenas a torna ineficaz perante ele, que mantém a hipoteca constituída sobre o bem independentemente de a quem venha a ser adjudicado.
O processo especial de divisão de coisa comum previsto nos art.ºs 925º e seguintes do CPC regula o modo de pôr termo à indivisão da coisa, atento o estatuído no art. 1412º do Código Civil, segundo o qual qualquer comproprietário pode exigir a divisão, sem prejuízo da convenção de indivisibilidade consagrada no n.º 2 deste normativo legal.
Dispõe o artigo 925.º do CPC que “Todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respetivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas.”
A menção efectuada pelo art.º 925º do CPC a «coisa comum» tanto abrange a divisão de uma coisa como a divisão de um direito sobre uma coisa, pelo que o seu sentido é o de que “a divisão tem como resultado objectivo a individualização do objecto sobre o qual passa a incidir o direito de propriedade exclusiva ou o direito (real ou de crédito) que, de contitularidade, passa a ser de titularidade singular” – cf. Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2ª Edição, pág. 12.
A finalidade do processo de divisão de coisa comum cinge-se a três possíveis resultados: a divisão em substância da coisa, a sua adjudicação a um dos comproprietários ou a sua venda, com repartição do respectivo valor.
A compropriedade constitui, pois, a causa de pedir na acção de divisão de coisa comum.
No caso em apreço, conforme se afere das posições vertidas nos respectivos articulados, a autora e o réu não colocam em causa nem a aquisição da fracção em compropriedade nem a natureza indivisível da coisa. Também não está em discussão qual a quota que a cada um pertence na fracção que detêm em comum e, bem assim, que esta foi adquirida com recurso a empréstimo bancário.
Como decorre da norma legal supra mencionada, ao referir-se ao “confronto dos demais consortes”, esta acção exige o litisconsórcio necessário de todos os contitulares.
E a questão que ora cumpre resolver é, precisamente, saber se, além da presença dos consortes, é ainda necessária a demanda inicial do credor hipotecário.
A jurisprudência dos tribunais superiores não é unânime, detectando-se decisões que se pronunciam no sentido da necessária intervenção do credor hipotecário, com base no estatuído no art.º 689º, n.º 2 do Código Civil, de acordo com o qual “A divisão da coisa ou direito comum, feita com o consentimento do credor, limita a hipoteca à parte que for atribuída ao devedor”, desde o início da acção e outras, que cingem essa intervenção como essencial à fase executiva do processo.
A legitimidade processual prevista no artigo 30º do CPC é um pressuposto adjectivo de que depende o conhecimento do mérito da causa e sendo uma condição necessária ao proferimento da decisão, enquanto pressuposto processual, estabelece a relação entre a parte no processo e o objecto deste (a pretensão ou pedido) definindo a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, pág. 70.
Como tal, a legitimidade processual contende com a posição da parte relativamente a uma determinada e concreta acção, de maneira que o demandante seja o titular do direito e demandado o sujeito da obrigação, no pressuposto de que o direito e a obrigação existam de facto, de modo que “a legitimidade processual é apreciada por uma relação da parte com o objecto da acção. Essa relação é estabelecida através do interesse da parte perante esse objecto: é esse interesse que relaciona a parte com o objecto para aferição da legitimidade.” – cf. Miguel Teixeira de Sousa, A Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa 1995, Lex, pág. 48.
A legitimidade depende, assim, do “interesse directo em demandar” a determinar pela utilidade que resulta da procedência da acção, enquanto sujeito da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor e pelo “interesse directo em contradizer”, exprimido pela desvantagem jurídica que resultará para o réu da sua perda.
Este interesse, nos termos do n.º 3 do art.º 30º do CPC, é atribuído aos sujeitos da relação controvertida, tal como é desenhada pelo autor na petição inicial, o que significa que ao apuramento da legitimidade processual interessa apenas a alegação da titularidade da relação controvertida pelo autor, não se exigindo a verificação da sua efectiva titularidade, razão pela qual ela será, as mais das vezes, determinável através da mera análise do pedido e causa de pedir, independentemente da verificação dos factos que integram a última – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-05-2018, processo n.º 1059/17.7T8VRL.G1[2].
Logo, a legitimidade não constitui uma qualidade pessoal para ser parte em juízo (como a capacidade), “mas antes uma posição perante a matéria controvertida no litígio, ou seja, perante o objecto do processo” – cf. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume I, 2ª Edição, 2018, pág. 382.
A titularidade da “relação material controvertida” tal como foi alegada no articulado inicial assume-se como critério definidor do pressuposto processual legitimidade.
“Assim, a legitimidade processual caracteriza a concreta posição de quem é parte numa causa, “perante o conflito de interesses que aí se discute e pretende resolver”, posição essa que é “o ser-se a pessoa (ou pessoas) cuja procedência da acção lhes atribui uma situação de vantagem (autor) ou a pessoa ou as pessoas a quem essa procedência causa uma desvantagem”, o réu - cfr. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2011, páginas 372/373” – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-12-2016, processo n.º 28/16.9T8FLG.P1.
Em face disto, de acordo com a regra geral, e tal como esclarecem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, a titularidade do interesse em demandar e do interesse em contradizer será aferida, “sempre que o pedido afirme (ou negue) a existência duma relação jurídica […] pela titularidade das situações jurídicas (direito, dever, sujeição, etc.) que a integram: legitimados são então os sujeitos da relação jurídica controvertida, como estatui o n.º 3” – cf. op. cit., pág. 71.
O litisconsórcio necessário é aquele em que todos os interessados têm de estar em juízo e, por isso, devem demandar ou ser demandados, sob pena de ilegitimidade dos demandantes ou dos demandados presentes na acção. Isto significa que os vários interessados têm o ónus de propor a acção conjuntamente (ou, se algum ou alguns deles não o quiser fazer, de promover a intervenção dos restantes interessados: art. 316.º, n.º 1) ou que o autor tem o ónus de propor a acção contra todos os interessados – cf. CPC Online, Miguel Teixeira de Sousa, CPC Online, anotação ao art.º 33º[3].
Como refere o Professor Miguel Teixeira de Sousa, o litisconsórcio nunca é necessário quando a ausência de algum interessado tiver qualquer outra consequência que não seja a ilegitimidade das partes presentes em juízo.
O litisconsórcio necessário pode ser legal, convencional ou natural. O litisconsórcio natural é aquele em que, pela natureza da relação material controvertida, é necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão do tribunal produza o seu efeito útil normal.
O n.º 3 do art.º 33º do CPC esclarece que a decisão produz o efeito útil normal quando, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado. Portanto o critério será o de que o litisconsórcio é natural quando a decisão proferida em relação a apenas alguns dos interessados não possa ser uma decisão definitiva por poder ser contrariada por uma decisão obtida pelos interessados que não foram partes na causa.
Um dos exemplos de litisconsórcio natural constitui, precisamente, a acção de divisão de coisa comum, quando estejam em causa mais de dois proprietários – cf. art.º 1412º, n.º 1 e 1413º, n.º 1 do Código Civil e art.ºs 925º a 930º do CPC.
A exigência da presença de todos os comproprietários na acção de divisão da coisa comum torna-se clara se se atentar na finalidade da acção, ou seja, a individualização do objecto sobre o qual passa a incidir o direito de propriedade exclusiva ou o direito (real ou de crédito) de cada um dos consortes, que deles passarão a ser titulares singulares, o que apenas pode ser alcançado no confronto de todos, pois que, se assim não fosse, aquele que não tivesse sido demandado poderia intentar nova demanda, onde poderia ser obtido um resultado diverso. Assim, a divisão da coisa apenas pode ocorrer, de modo definitivo, quando todos os comproprietários estiverem presentes na acção, para que a sentença a proferir exerça o efeito de caso julgado relativamente a todos eles.
O litisconsórcio necessário natural é, pois, um litisconsórcio unitário, porque a decisão do tribunal tem de ser a mesma para todos os litisconsortes.
É sabido que o processo especial de divisão de coisa comum comporta duas fases essenciais: uma, de natureza declarativa, que visa decidir sobre a existência e os termos do direito à divisão e que apenas se irá desenvolver se for apresentada contestação ou, na falta desta, quando a revelia seja inoperante (art.º 926º, n.º 2); outra, de cariz executivo, para materialização do direito definido na fase declarativa ou afirmado, sem contestação, pelo autor, na qual terá lugar o preenchimento dos quinhões por acordo ou por sorteio ou, se a coisa for indivisível em substância, com a adjudicação ou venda – cf. art.º 929º do CPC.
Ora, dado que a coisa comum possui dois comproprietários e, estando estes na acção, a legitimidade activa e passiva mostra-se assegurada na fase declarativa, pois será entre eles que, reconhecida a compropriedade, terão de ser fixadas as respectivas quotas. Assim, apenas os comproprietários retiram utilidade da procedência ou improcedência do pedido na fase declarativa da acção, só eles tendo legitimidade para demandar ou ser demandados, face o que decorre do art.º 30.º do CPC.
Nesta fase, o credor hipotecário, atento o objecto da acção, não tem um interesse igual ou paralelo ao da autora ou do réu, e, não sendo sujeito passivo da relação material controvertida, o pedido nunca lhe poderia ser dirigido.
Acresce que, numa situação em que o credor hipotecário se apresenta como titular de hipoteca sobre a totalidade do prédio, como sucede neste caso, aquele não tem interesse em intervir como parte, pois o seu direito não será afectado com a definição dos direitos a efectuar na fase declarativa do processo. Sejam quais foram as quotas que venham a ser fixadas nessa sede, o credor titular da garantia real continuará a detê-la sobre a totalidade das quotas.
Certo é que, na fase executiva, estando em causa, como é o caso, um imóvel que não é divisível – facto que não é controvertido –, a divisão da coisa terá de passar pela adjudicação da fracção a um dos comproprietários mediante o pagamento de tornas ao outro ou pela sua venda a terceiro.
Assim, será nessa fase que a intervenção do credor hipotecário será legalmente obrigatória perante a eventualidade da venda do bem na fase executiva, pois que será nesse momento que terá de reclamar o seu crédito e fazê-lo valer, atento o disposto no art.º 549º, n.º 2[4] do CPC, que, ao prescrever sobre as disposições reguladores dos processos especiais, manda aplicar as formas estabelecidas para o processo de execução sempre que haja lugar a venda de bens, o que determina a aplicação do previsto nos art.ºs 786º e seguintes desse diploma legal, com a citação dos credores com garantia real sobre o prédio a vender (tendo presente, aliás, o disposto no art.º 824º, n.º 2 do CPC).
Entre as citações que deverão ser ordenadas, nos termos do art.º 786º do CPC, figuram os credores que sejam titulares de direito real de garantia e apenas o credor que goze de garantia real sobre os bens a vender pode reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respectivos créditos, nos termos do art.º 788.º, n.º 1 do referido diploma legal.
Assim, o credor hipotecário será chamado oficiosamente se à presente acção se se vier a verificar a venda da fracção, não se impondo, na fase declarativa, a sua presença, para que a decisão produza o seu efeito útil normal.
Certo é que se tem convocado o estatuído no art.º 689º, n.º 2 do Código Civil para sustentar a necessária intervenção do credor hipotecário na acção de divisão de coisa comum, por se entender que a divisão sem o consentimento do credor da hipoteca não lhe será oponível, pois que poderia ocorrer em prejuízo deste.
No entanto, esta conclusão não é válida para todas as situações, não o sendo quando a hipoteca incide sobre a totalidade do bem e todos os consortes constituíram a hipoteca, como é o caso. Com efeito, nestas situações, independentemente de qual seja a fixação das quotas, o direito do credor hipotecário mantém-se incólume sobre a totalidade delas.
Note-se que no aresto invocado na decisão recorrida para corroborar o entendimento seguido, não foi concretamente apreciada a questão da legitimidade processual, ainda que ali se tenha feito menção à correcção da opção de convidar o autor a fazer intervir o credor hipotecário na fase declarativa da acção de divisão de coisa comum, mas essa menção não foi sequer fundamentada, sendo que a questão a dirimir incidia sobre o reconhecimento do crédito reclamado ainda na fase declarativa, sem que o tivesse sido na fase executiva.
Além disso, a utilidade da previsão do n.º 2 do art.º 689º do Código Civil reporta-se às situações em que a oneração incide apenas sobre uma ou mais, mas não todas, as quotas dos consortes. Nesse caso, a acção deve ser proposta também contra o credor hipotecário a fim de que a sentença final tenha força de caso julgado contra ele, que, aí sim, tem manifesto interesse na fixação do objecto do direito do devedor, ou seja, do consorte cuja quota se encontra onerada – cf. Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 83.
E que assim é, ou seja, que a aplicação do disposto no art.º 689º, n.º 2 do Código Civil se reporta às situações de oneração de “quota” de coisa ou direito comum – a norma surge, aliás, na sequência da previsão do n.º 1 quanto à admissibilidade de hipoteca sobre quota de coisa ou direito comum[5] -, parece pronunciar-se também António Menezes Cordeiro, quando refere que a divisão da coisa “parcialmente” hipotecada leva a que a hipoteca, na medida do valor da quota, atinja todas as parcelas daí resultantes; havendo acordo do credor, a hipoteca pode limitar-se à parte que caiba ao devedor ou a quem tenha dado a hipoteca – cf. Código Civil Comentado, II, 2021, CIDP, pág. 845.
Esta ideia parece também decorrer da anotação ao mesmo artigo efectuada por José Alberto González, que alude, precisamente, à necessidade do consentimento do credor hipotecário para a divisão de coisa comum, para evitar um prejuízo que lhe adviesse da circunstância de o consorte autor da hipoteca não se defender ou não o fazer de modo adequado. Além disso, refere expressamente que a falta de consentimento não invalida a divisão; apenas a torna ineficaz perante o credor hipotecário, tudo permanecendo como se não tivesse existido. Já a existência do seu acordo limita a hipoteca à parte que for atribuída ao devedor, ou seja, a hipoteca deixa de incidir sobre a coisa comum e passa a recair sobre aquilo que resultar da divisão para o autor da hipoteca – cf. Código Civil Anotado, Volume II, 2012, pág. 490.
Daí que, conforme se referiu, a intervenção do credor hipotecário, na situação sub judice, só deva ter lugar na eventualidade de venda do bem na fase executiva, caso em que aquele será citado para reclamar o seu crédito, ao abrigo das normas legais supra mencionadas – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4-02-2021, processo n.º 11259/18.7T8SNT.L1-6 e do Tribunal da Relação de Évora de 10-11-2022, processo n.º 469/21.0T8ABF.E1.
Não ocorre, pois, a excepção de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário natural, pelo que a apelação procede, com a consequente revogação da decisão recorrida e prosseguimento da tramitação dos autos.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art.º 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art.º 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A apelante logrou obter provimento do recurso.
O recorrido não contra-alegou no recurso, mas podia nele ter contra-alegado, opondo-se à pretensão da recorrente.
No âmbito da relação jurídica processual relativa ao recurso, o recorrido configura-se como parte vencida, porque a presente decisão de procedência relativamente à decisão da 1ª instância lhe é potencialmente desfavorável, desde logo porque passa a ser considerado parte legítima – cf. Salvador da Costa, Custas da apelação na proporção do decaimento a apurar a final, comentário ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/4/2020[6].
Atento o disposto no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, porque parte vencida no recurso, apesar de neste não ter contra-alegado, o apelado é responsável pelo pagamento das custas respectivas em sentido estrito (encargos – aqui não existentes - e custas de parte – cf. art.ºs 529º, n.ºs 3 e 4, 532º e 533º do CPC).
Assim, as custas (na vertente de custas de parte) ficam a cargo do apelado.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, na parte em que julgou procedente a excepção de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário natural, absolvendo o réu da instância, excepção que ora se julga não verificada, declarando o réu parte legítima para a causa, que assim deve prosseguir os seus trâmites normais.
Custas a cargo do apelado.
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Lisboa, 5 de Março de 2024
Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Diogo Ravara
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[1] Adiante designado pela sigla CPC.
[2] Acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[3] Acessível em Blog do IPPC, https://blogippc.blogspot.com/.
[4]Quando haja lugar a venda de bens, esta é feita pelas formas estabelecidas para o processo de execução e precedida das citações ordenadas no artigo 786.º, observando-se quanto à reclamação e verificação dos créditos as disposições dos artigos 788.º e seguintes, com as necessárias adaptações, incumbindo ao oficial de justiça a prática dos atos que, no âmbito do processo executivo, são da competência do agente de execução.”
[5] Cada consorte é titular exclusivo e pleno do seu direito, ainda que na medida da sua quota ideal e, nessa medida, pode hipoteca-lo, na proporção que lhe cabe – cf. art. 1408º, n.º 1 do Código Civil.
[6] Jurisprudência 2020 (77), 22 de Outubro de 2020, publicado no Blog do IPPC acessível em https://blogippc.blogspot.com/.