Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
337/21.5JDLSB.L1-5
Relator: ESTER PACHECO DOS SANTOS
Descritores: DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
TENDÊNCIA CRIMINOSA
EFEITO AGRAVANTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
1 - A determinação da pena do concurso não é uma operação puramente mecânica, mas antes exige um exame critico de ponderação conjunta entre os factos e a personalidade dos arguidos, de forma a aferir-se a gravidade do ilícito global e a personalidade neles manifestada.
2 - Apenas as particularidades do caso permitem a constatação de que independentemente da gravidade dos factos, os mesmos não são reconduzíveis a uma tendência criminosa, de modo a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo comum coletivo n.º 337/21.5JDLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Criminal de Sintra, em que são arguidos AA e BB, melhor identificados nos autos, foi proferido acórdão a 09.10.2023, que decidiu nos seguintes termos (transcrição):
Condenar AA pela prática, como autor material e em concurso real, de:
- um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; (situação descrita no ponto 7.º dos factos provados)
- vinte e seis crimes de abuso sexual de criança p. e p. pelo art.º 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão cada um; (situações descritas nos pontos 9.º a 28.º dos factos provados)
Em cúmulo jurídico destas penas, nos termos do art.º 77.º do Código Penal, condenar AA na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.
Suspender a execução desta pena de prisão por um período de 5 (cinco) anos, acompanhado de regime de prova, devendo o arguido cumprir o plano de readaptação social a efectuar, devendo ainda responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social, receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência, e informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego.
Absolver AA da prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo art.º 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal (situação descrita no ponto 8.º dos factos provados).
Condenar AA, em conformidade com o disposto no art.º 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 6 (seis) anos.
Condenar AA, em conformidade com o disposto no art.º 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 6 (seis) anos.
Condenar BB pela prática, em autoria material, por comissão por omissão, e em concurso real, de vinte e seis crimes de abuso sexual de criança p. e p. pelo art.º 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão cada um; (situações descritas nos pontos 10.º a 28.º dos factos provados)
Em cúmulo jurídico destas penas, nos termos do art.º 77.º do Código Penal, condenar BB na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.
Suspender a execução desta pena de prisão por um período de 5 (cinco) anos, acompanhado de regime de prova, devendo a arguida cumprir o plano de readaptação social a efectuar, devendo ainda responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social, receber visitas do técnico de reinserção social, da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens e do Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental, e comunicar-lhes ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência, e informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego.
Condenar BB, em conformidade com o disposto no art.º 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 6 (seis) anos.
Condenar BB, em conformidade com o disposto no art.º 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 6 (seis) anos.
Condenar BB, em conformidade com o disposto no art.º 69.º-C, n.º 3, do Código Penal, na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 6 (seis) anos.
Condenar solidariamente AA e BB, ao abrigo do disposto no art.º 82.º-A do Código de Processo Penal, no pagamento a CC da quantia de 10.000€ (dez mil euros).
Condenar os arguidos AA e BB no pagamento de 4 (quatro) UC de taxa de justiça e demais custas, cada um.
2. Não se conformando com a determinação da medida da pena operada pelo tribunal a quo relativamente ao cúmulo jurídico realizado a ambos os arguidos, veio o Ministério Público interpor recurso da decisão proferida, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. No douto despacho que ora se recorre foram os arguidos AA, condenado pela prática, como autor material e em concurso real, de 1 (um) crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e 26 (vinte e seis) crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão cada um. Nos termos do artigo 77.º do Código Penal, foi o arguido condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, acompanhado de regime de prova e BB, condenada, pela prática, como autor material, por comissão por omissão, e em concurso real, de 26 (vinte e seis) crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão cada um. Nos termos do artigo 77.º do Código Penal, foi o arguido condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, acompanhado de regime de prova.
2. Não podendo o Ministério Público conformar-se com tal decisão do cúmulo jurídico, porquanto considera tal pena inadequada e insuficiência face ao caso dos autos e que aqui se recorre.
3. O douto Acórdão não pode, a nosso ver, colher aplauso, pois temos por líquido dos factos dados como provados (27 crimes quanto ao arguido e 26 crimes quanto à arguida); da medida concerta da pena fixada a cada crime, cotejado com as regras da experiência comum e as regras do cúmulo, previstas no artigo 77.º do Código Penal, impunha que se aplicasse aos arguidos uma pena de prisão superior a 5 anos.
4. Com base nas regras do cúmulo jurídico vertidas nos termos do artigo 77.º do Código Penal:
i) Ao arguido AA:
O limite máximo será a soma de todas as penas, que dá um cálculo de 92 anos e 6 meses de prisão (1 crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, o que equivale a 18 meses de pena de prisão a somar aos 26 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão cada um, o que equivale a 42 meses x 26=1092:12= 91 anos). Uma vez que, o limite máximo não pode ultrapassar os 25 anos, temos que, será este o seu limite máximo.
O limite mínimo é 3 anos e 6 meses ou 42 meses de pena de prisão por ser a pena mais elevada concretamente aplicada.
ii) À arguida BB:
O limite máximo será a soma de todas as penas, que dá um cálculo de 91 anos de prisão (26 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão cada um, o que equivale a 42 meses x 26=1092:12= 91 anos). Uma vez que, o limite máximo não pode ultrapassar os 25 anos, temos que, será este o seu limite máximo.
O limite mínimo é 3 anos e 6 meses ou 42 meses de pena de prisão por ser a pena mais elevada concretamente aplicada.
5. Dentro da referida moldura legal do cúmulo, a determinação concreta da medida da pena será efetuada nos termos do artigo 71º do Código Penal. Assim, como tem sido defendido pela doutrina, a culpa fixará o limite máximo inultrapassável da pena, enquanto a prevenção geral de reintegração fornecerá uma moldura de prevenção dentro da moldura legal (limite mínimo), acabando a pena concreta por ser encontrada, dentro destes limites, de acordo com as exigências de prevenção especial de ressocialização.
6. Em face dos limites suprarreferidos, temos que o meio da pena entre os dois seria os 14 anos e 3 meses, ou 171 meses (25 anos (= 300 meses) – 42 (3 anos e 6 meses) = 258:2= 129; 300-129=171 e 42+129=171).
7. É deste meio da pena encontrado que deve o julgador partir para fixar o quantum em termos de cúmulo, atendendo aos factos e a personalidade do arguido e aos critérios do artigo 71.º do Código Penal que conforme o caso, operará o desconto ou a soma, mediante existam atenuantes ou agravantes.
8. Tem-se por entendido que este “meio” - no caso concreto os 14 anos e 3 meses - dá a ideia ao julgador da média culpa dos arguidos.
9. Ora, se atendermos, que a pena concretamente aplicável em momento algum, pode ultrapassar a medida da culpa (40.º, n.º 2, do Código Penal), concluímos que, no caso dos autos e uma vez que, no douto Acórdão, considerou a culpa dos arguidos mediana, o limite máximo da pena a considerar seria desse modo os 14 anos e 3 meses.
10. Por outro lado, devemos atender que o limite mínimo – no caso concreto de 3 anos e 6 meses - equivale ao mínimo de garantia das necessidades de prevenção geral que o presente caso requer, que como referiu o douto Acórdão são “fortíssimas exigências de prevenção geral”.
11. Pelo que, temos uma diferença de 10 anos e 9 meses (diferença entre os 14 anos e 3 meses e os 3 anos e 6 meses) entre estes limites da pena em cúmulo jurídico, comparativamente com o 1 ano e 6 meses (diferença entre os 5 anos e os 3 anos e 6 meses) da pena aplicada no douto Acórdão que aqui se recorre.
12. Em face do exposto não compreendemos, como as exigências de prevenção especial e a consideração em conjunto dos factos e da personalidade dos arguidos reclamaram, in casu, um desconto de 9 anos e 9 meses (diferença entre os 14 anos e 3 meses e os 5 anos)!
13. É verdade que os arguidos não tem antecedentes criminais porém não podemos olvidar e aqui, contrariamente ao defendido pelo douto Acórdão, que os factos não aconteceram num contexto de vulnerabilidades apresentadas por cada um dos arguidos, mas sim pela ofendida: uma adolescente que há data dos factos tinha 12 e 13 anos de idade, que em momento algum foi protegida pela sua mãe/arguida, que permitiu e, em certa medida, promoveu, que o arguido, aproveitando-se da ingenuidade própria da imaturidade da ofendida em razão da sua idade, aproximou-se, ganhou a sua confiança e praticou, de forma reiterada e por mais de 6 meses, os 26 crimes pelos quais foi condenado, atuando protegido pelo véu da “relação de namoro” existente entre os dois, como se, rotulando a relação de “namoro”, diminuísse/excluísse a sua culpa ou o seu dolo, quando o arguido tinha mais 9 anos de idade que a ofendida. O que no nosso entendimento revela ter uma personalidade egotista guiada por valores centrados em si mesmo, fazendo da ofendida instrumento de satisfação da sua lascívia.
14. Salvo melhor opinião, não perfilhamos o entendimento que, em face dos factos dados como provados e confessados pelos arguidos, que seja aplicada uma pena de prisão de 5 anos, quando pelo supra demonstrado e sendo a culpa dos arguidos mediana, o limite médio da pena, seria pelo menos de 14 anos e 3 meses.
15. Não cremos, que existam nos autos circunstâncias atenuantes e exigências de prevenção especial que imponham um desconto de 9 anos e 9 meses, quase 10 anos, para que aos arguidos fosse aplicada a pena de prisão de 5 anos.
16. Em face de todo o supra exposto cremos que pena única fixada no douto Acórdão é desajustada e insuficiente à necessária proteção do bem jurídico, na medida em que as consequências do crime foram gravíssimas e não satisfaz as concretas exigências de prevenção especial, ficando muito aquém da culpa dos arguidos e desajustadas às suas personalidades, pelo que, os presentes autos exigem a aplicação de uma pena de prisão superior a 5 anos, a cada um dos arguidos.
17. Face ao exposto, é nosso entendimento que os arguidos devem ser condenados em pena de prisão superior a cinco anos, não sendo admissível a suspensão da execução da pena de prisão, atendendo à letra do artigo 50.º do Código Penal.
18. Pelo exposto, deve ser revogado o douto despacho recorrido e substituído por outro que condene os arguidos em pena de prisão superior a cinco anos.
Pelo exposto deve ser dado provimento ao presente recurso e por via dele, ser o Acórdão recorrido, substituído por outro que condene os arguidos em pena de cúmulo jurídico, superior a 5 anos de prisão, à luz dos artigos 40.º, n.º 1 e 2; 71.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal e artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
3. O arguido AA apresentou resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público, pugnando pela sua improcedência, mas sem formular conclusões.
4. A arguida BB apresentou resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público, pugnando pela sua improcedência e formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1. Perante a factualidade provada e face à motivação do douto Acórdão recorrido e à sua fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica, verifica-se que no mesmo foi feita criteriosa ponderação das circunstâncias provadas, em ordem à determinação concreta das atrás mencionadas penas parcelares e, em cúmulo da pena única de 5 (cinco) anos, suspensa na sua execução por um período de 5 (cinco) anos e sujeita a regime de prova.
2. A arguida sofre de vulnerabilidades/fragilidades a nível do seu papel protetor, contentor e orientador dos comportamentos da sua filha menor que permitiu a prática das situações que levou a que fosse condenada por 26 (vinte e seis) crimes de abuso sexual. Neste conspecto,
3. A sua conduta omissiva não é uma conduta tendencialmente criminosa, pois manifesta ansiedade, preocupação e vergonha por toda a situação em que está.
4. A Arguida não tem antecedentes criminais, colaborou sempre, primeiro com a CPCJ de ... e posteriormente com o CAFAP de ... que acompanharam mãe e filha.
5. A Arguida está integrada familiar, laboral e socialmente.
6. Assim e também face à necessidade de prevenção geral e especial dos crimes praticados e à medida da culpa da arguida, tem de se considerar justa, proporcional e adequada a pena de 5 (cinco) anos e suspensa na sua execução por um período de 5 (cinco) anos, sujeita a regime de prova, aplicada à arguida.
7. Por isso e por tudo quanto antecede, deverá ser negado provimento ao Recurso do Ministério e mantida a condenação da arguida numa pena de 5 (cinco) anos, suspensa na sua execução por um período de 5 (cinco) anos e sujeita a regime de prova e assim se fará Justiça.
5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando o recurso apresentado pelo Ministério Público junto da 1.ª instância, mas sublinhando que, no seu entender, e mantendo-se as penas parcelares, cada um dos arguidos AA e BB deve ser condenado na pena única de 7 anos de prisão.
6. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, apresentaram resposta ambos os arguidos, pugnando, no essencial, pela manutenção do acórdão recorrido.
7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art.º 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art.º 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a única questão que se suscita é a seguinte:
• Se a pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na respectiva execução, deverá ser substituída por uma outra decisão que aplique a ambos os arguidos uma pena em cúmulo jurídico superior.
2. Do acórdão recorrido
O Tribunal a quo deu como provada a seguinte factualidade (transcrição):
Factos Provados
1. A menor CC nasceu no dia ........2008, é filha da arguida BB e de DD e à data dos factos tinha entre 12 (doze) e 13 (treze) anos de idade e residia com a sua mãe na ...
2. Na qualidade de mãe da menor CC, competia à arguida cuidar e zelar pelo bem-estar daquela contribuir para o seu são desenvolvimento psico-afectivo, num ambiente harmonioso e sadio.
3. Em data não concretamente apurada, mas no Verão de 2020, o arguido AA, nascido em ........1999, à data com 21 anos de idade, conheceu a menor CC, então com 12 (doze) anos de idade.
4. Nessa sequência, o arguido e a menor CC trocaram contactos telefónicos, começando a falar entre si, nomeadamente acerca das respectivas idades.
5. Assim, em data não concretamente apurada, mas no Verão de 2020, na área desta comarca, o arguido encontrou-se com a menor CC,
6. e, com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, o arguido aproximou-se dela.
7. Acto contínuo, o arguido tocou e acariciou o corpo da menor, nomeadamente peito e nádegas, dando-lhe beijos na boca.
8. Em data não concretamente apurada, mas em Fevereiro de 2021, o arguido iniciou uma relação amorosa com a menor CC.
9. Após, em data não concretamente apurada, mas anterior a Maio de 2021, o arguido deslocou-se à residência da arguida, sita na ....
10. Aí chegado, o arguido abordou a arguida, informando-a de que mantinha relação de namoro com CC e a arguida, apesar do seu dever de cuidar e guardar a sua filha, disse-lhe que autorizava.
11. Os arguidos sabiam que CC tinha então apenas 12 (doze) anos de idade.
12. Após, a arguida passou a dar a pílula anticoncepcional à ofendida CC.
13. Nessa sequência, em data não concretamente apurada, mas anterior a Maio de 2021, o arguido formulou o propósito de manter relações sexuais de cópula completa com CC, sempre que tal se proporcionasse.
14. Nessa sequência, em data não concretamente apurada, mas em Maio de 2021, o arguido encontrou-se com CC, na ..., convidando-a para se deslocar à sua habitação, sita na ..., para visualização de filmes, e CC assentiu.
15. Aí chegados, e aproveitando-se da circunstância de se encontrar sozinho com CC, o arguido conduziu-a para o seu quarto.
16. Com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, o arguido despiu-se, exibindo o seu pénis a CC, e ordenou-lhe que se despisse, o que a mesma acatou.
17. Em acto contínuo, o arguido colocou um preservativo no pénis erecto e, em seguida, aproximou-se de CC, que se encontrava deitada.
18. Após o arguido introduziu o seu pénis erecto com preservativo na vagina da menor CC, que se encontrava desnudada, penetrando-a, efectuando movimentos para cima e para baixo até que ejaculou, assim consumando a relação de cópula completa.
19. Assim, no período compreendido entre Maio e 23 de Outubro de 2021, principalmente aos fins-de-semana, o arguido passou a frequentar a casa de CC, onde se encontrava a arguida.
20. Na presença da arguida, o arguido deslocava-se para o quarto da ofendida, onde pernoitava, dormindo na mesma cama de CC.
21. Já no interior do quarto de CC, o arguido mantinha relações sexuais de cópula completa com ela, o que era do conhecimento da arguida.
22. Assim, em, pelo menos, 26 (vinte e seis) ocasiões, entre Maio de 2021 e 23.10.2021, principalmente aos fins-de-semana, o arguido encontrava-se com CC no interior da residência sita na ... e, por vezes, no interior da habitação do arguido, sita na ....
23. Nessas ocasiões, e com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, o arguido aproximava-se da ofendida CC, acariciando o seu corpo, colocando-se nu em cima desta.
24. Em seguida, o arguido introduzia o seu pénis erecto na vagina da menor CC, penetrando-a, usando preservativo para o efeito, efectuando movimentos para cima e para baixo até que ejaculava, mantendo assim relações sexuais de cópula completa com a ofendida.
25. Noutras ocasiões, o arguido começava, com a língua, a lamber a vagina da menor.
26. Por vezes, o arguido colocava o pénis erecto dentro da boca da menor CC, fazendo movimentos descentes e ascendentes, ordenando-lhe que o chupasse, o que CC fazia.
27. Assim, entre Maio de 2021 e 23.10.2021, principalmente aos fins-de-semana, nessas 26 (vinte e seis) ocasiões, a arguida sempre soube que o arguido praticava os actos supra descritos com a ofendida.
28. Os arguidos AA e BB sabiam que a menor CC tinha entre 12 (doze) e 13 (treze) anos de idade à data dos factos.
29. Ao actuar do modo descrito, o arguido sabia e quis agir desse modo, na execução do propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, aproveitando-se da ingenuidade e incapacidade de defesa em razão da idade da menor CC, estando ciente da idade da mesma, agindo com intenção de satisfazer os seus desejos sexuais e eróticos com ela, praticando com a mesma contactos de natureza sexual e actos sexuais, nomeadamente coito oral e cópula, bem sabendo que a menor, em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão e que aquele relacionamento sexual prejudicava o normal desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual, atentando deste modo contra a autodeterminação sexual de CC, o que conseguiu.
30. Ao agir do modo descrito, a arguida, na qualidade de mãe, sabia do dever inalienável que sobre si impendia e impende de velar pela segurança e saúde da sua filha até esta atingir a maioridade ou a emancipação.
31. Ao actuar do modo descrito, a arguida sabia dos actos sexuais acima descritos, praticados pelo arguido contra a ofendida CC, e que, como mãe, tinha o dever de os impedir e proteger a sua filha, mas nada fez, não se coibindo de permitir que o arguido iniciasse uma relação amorosa com a menor, deixando que o mesmo frequentasse a sua casa, que aí pernoitasse com CC e que praticasse actos sexuais contra a mesma, apesar de a arguida bem saber que tinha o dever de cuidar da sua filha, que estava a lidar com uma criança, indefesa e incapaz de se defender, e que a sua actuação lhe causaria, necessariamente, perturbações capazes de pôr em causa o harmonioso desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual, atentando deste modo contra a autodeterminação sexual de CC, omitindo os deveres de cuidado que lhe eram exigíveis, decorrentes do exercício das responsabilidades parentais.
32. Se a arguida tivesse agido afastando a ofendida do arguido, o mesmo não teria praticado tais actos contra CC, o que a arguida podia, era capaz e tinha obrigação, como mãe, de fazer, mas, apesar disso, limitou-se a ficar inerte, quando as acções por si omitidas teriam certamente evitado o resultado que se veio a operar pelos actos praticados pelo arguido.
33. Ao agirem do modo descrito, os arguidos AA e BB agiram de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem as suas descritas condutas censuradas, proibidas e punidas por lei penal.
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34. Nada consta do CRC do arguido.
35. Nada consta do CRC da arguida.
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36. No período temporal em que ocorreram os factos supra descritos a que se refere este processo, o arguido residia com a sua mãe e um irmão de 14 anos de idade, na respectiva morada acima indicada, tratando-se de uma moradia unifamiliar, arrendada para habitação do agregado, existindo entre os três elementos do agregado familiar forte coesão afectiva e sentimentos de entreajuda.
37. O arguido sempre manteve com a mãe um relacionamento de proximidade, pese embora tenha integrado o agregado familiar do pai em 2011, durante cerca de seis anos.
38. Os seus pais separam-se quando o arguido tinha meses de idade, tendo existido sempre contacto regular e relacionamento de proximidade com ambos os progenitores.
39. Também manteve contactos regulares com os irmãos - duas irmãs germanas mais velhas, e um irmão uterino mais novo -, ainda que com este último, actualmente com 15 anos de idade, exista uma maior afinidade e proximidade relacional.
40. O arguido, para quem a comunicação com a mãe e o irmão se revela fundamental para o seu equilíbrio pessoal, apresentou à sua mãe a menor CC como sua namorada.
41. Actualmente, o arguido vive em união de facto com uma companheira três anos mais velha, relacionamento que iniciou há cerca de três meses, sendo o seu agregado agora constituído por si, pela sua mãe, de 55 anos de idade, pelo seu irmão de 15 anos de idade, pela sua companheira, de 27 anos de idade, e pela filha desta, de 9 anos de idade.
42. O início da vida sexual activa do arguido ocorreu aos 18 anos de idade e o mesmo apenas identifica duas relações de namoro com maior relevância: a mantida com CC e a que actualmente vivencia com a sua companheira.
43. O arguido evidencia um discurso pouco elaborado, ainda que coerente e organizado.
44. Apresenta um quadro de baixa escolaridade, com conclusão do 6.º ano, prejudicado pela dificuldade ao nível da concentração, com consequências ao nível da aquisição de competências escolares.
45. Na infância teve diagnóstico de hiperactividade, tendo sido acompanhado clinicamente e tido medicação prescrita, que deixou de tomar aos 11 anos de idade, quando integrou o agregado familiar do pai.
46. Iniciou vida laboral activa aos 15 anos de idade, desempenhando tarefas indiferenciadas no sector da restauração.
47. Posteriormente, manteve actividade profissional indiferenciada de forma regular, ainda que com alteração de entidades empregadoras; actualmente trabalha numa ..., em ..., beneficiando de vinculação contratual regularizada, que iniciou em Junho de 2023, tendo expectativas de continuidade nesta entidade empregadora, valorizando o retorno económico que a mesma lhe proporciona e a estabilidade decorrente da proximidade relativamente ao seu local de residência.
48. Economicamente mantém assim uma situação sustentável, tendo expectativa de auferir um rendimento mensal de cerca de 1.000,00€ incluindo ordenado base, subsídio de alimentação e trabalho extraordinário que tem vindo a realizar.
49. As despesas da economia doméstica com habitação e alimentação, são partilhadas entre o arguido, a sua mãe e a sua actual companheira, no valor mensal de aproximadamente 500,00€ de cada um.
50. Em termos sociais, o arguido não identifica pertença a grupo de pares e privilegia o convívio familiar.
51. Na comunidade onde reside possui uma imagem positiva, associada ao núcleo familiar a que pertence, sem referência a hábitos ou comportamentos socialmente desadequados.
52. Este é o primeiro contacto do arguido com o sistema de aplicação de Justiça, tendo cumprido de forma responsável a medida de coacção de obrigação de apresentação semanal perante o órgão de polícia criminal da sua área de residência entre 28.01.2022 e 19.04.2023.
53. No que se refere à sua actual situação processual, revela acentuada preocupação e receio pelas consequências que deste processo possam advir e verbaliza sentimentos de vergonha pela existência do mesmo.
54. Em abstracto, refere reconhecer a ilicitude de factos similares aos que lhe são imputados no presente processo.
*
55. A arguida nasceu em ........1978, no ... e tem nacionalidade ...
56. Entre Maio e Outubro de 2021 residia com o seu companheiro e com a sua filha CC, em casa arrendada para o efeito, em ..., localidade próxima da ..., existindo sentimentos de afectividade e entreajuda entre os elementos desse agregado.
57. Apesar disso, a arguida tinha dificuldades na orientação do processo educativo da menor, que identificou sobretudo pelo absentismo escolar desta, o que motivou a intervenção da escola que a menor frequentava, com posterior sinalização da situação junto da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de ....
58. A arguida veio do ... viver para Portugal em Junho de 2019, trazendo consigo a filha.
59. A filha nasceu no âmbito de um relacionamento em união de facto que a arguida manteve durante cerca de sete anos; este relacionamento terminou quando CC tinha um ano e oito meses de idade, devido a comportamentos agressivos e violentos assumidos pelo pai desta.
60. A relação estabelecida entre mãe e filha era afectivamente forte e de grande proximidade, existindo, todavia, da parte da arguida alguma dificuldade no estabelecimento de regras e limites relativamente à menor; a dificuldade no exercício das competências parentais de forma assertiva por parte da arguida prejudicou os respectivos laços parentais.
61. Nesta conjuntura, a intervenção da CPCJ de ... a partir de Dezembro de 2020, e após Setembro de 2021 com o apoio do Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental (CAFAP) de ..., veio permitir um acompanhamento e orientação do exercício da parentalidade por parte da arguida.
62. Contudo, tendo a menor permanecido na instituição ... de Janeiro a Agosto de 2022, a arguida pautou os seus comportamento e atitude pela permissividade e conivência com os desejos e opções da menor, mesmo quando estas eram contrárias às orientações da instituição onde se encontrava integrada.
63. Por decisão judicial, a menor integrou um centro de acolhimento de emergência em Lisboa e posteriormente a ..., de onde transitou em Agosto de 2022 para uma instituição em ..., onde actualmente permanece.
64. O maior distanciamento da menor face à mãe foi decidido como forma de potenciar o trabalho a realizar junto de ambas, no sentido de incutir àquela regras e limites norteadores do seu processo educativo, e de na mãe promover a assimilação do exercício de uma parentalidade positiva e normativamente orientada.
65. Neste sentido, foi proposto à arguida a frequência de um programa de parentalidade positiva, promovido pelo CAFAP de ..., que a mesma integrou com interesse e assiduidade, e que decorreu entre Outubro de 2022 e Fevereiro de 2023, com sessões semanais e tarefas para realização no domicílio.
66. Actualmente o CAFAP de ... continua a acompanhar a arguida e a menor, em articulação com a instituição onde esta se encontra, realizando visitas domiciliárias ao agregado sempre que a menor o integra nas visitas que realiza à mãe; a arguida sempre tem manifestado interesse e disponibilidade nas sugestões de actuação que lhe sãodirigidas, embora continue a evidenciar dificuldade no exercício da parentalidade, com vulnerabilidades na assunção de uma maior assertividade e normatividade no processo educativo da menor.
67. Essas vulnerabilidades foram potenciadas pelo enfoque emocional da arguida relativamente à filha, em associação com o que a arguida interiorizou no seu próprio processo de crescimento.
68. Com efeito, a arguida é a mais nova de três irmãos, tendo crescido no ..., num contexto socioeconómico desfavorecido; iniciou a vida laboral aos 14 anos, a tomar conta de crianças e realizando limpezas em casa de particulares, tendo desde então mantido autonomia pessoal e económica; o seu processo de crescimento decorreu com fragilidades ao nível do acompanhamento e orientação familiar.
69. Posteriormente, ainda no ..., trabalhou como assistente num consultório médico e, já em Portugal, como auxiliar em lares de idosos.
70. Valoriza o exercício de actividade laboral, não apenas pelo retorno económico que a mesma lhe proporciona, mas também como forma de realização pessoal e garante da sua autonomia e independência.
71. Actualmente encontra-se de baixa médica, realizando apenas algumas tarefas de animação no lar de idosos onde anteriormente laborava, aguardando agendamento de cirurgia para remoção do útero e de miomas.
72. Neste contexto tem vindo a ser seguida no Hospital de ..., em ....
73. A redução de actividade laboral apresenta reflexos ao nível da sua situação financeira, auferindo actualmente valores, incertos, de cerca de 400,00 mensais, beneficiando do apoio do seu companheiro, com quem vive em união de facto há mais de dois anos e mantém a partilha de despesas da economia doméstica, encontrando-se assim assegurada a sua sustentabilidade económica.
74. Tem como despesas mensais fixas o pagamento da renda de casa – 550€ -, da água - cerca de 40,31€ -, da electricidade - cerca de 20,88€ -, e da MEO – 83,39€-, a que acrescem os custos com a alimentação.
75. Em termos afectivos, teve duas relações em união de facto, uma com o pai da sua filha e outra com o seu actual companheiro.
76. Iniciou a sua vida sexual activa com cerca de 14 anos de idade, circunstância que considera normal no contexto social em que se inseria.
77. Os relacionamentos mantidos foram sempre de natureza consensual, mas não lhe foi disponibilizada informação relativa a educação sexual; nunca beneficiou de abertura no seio familiar para abordar assuntos desta natureza, facto que procurou contrariar na relação mantida com a filha.
78. Assim, de acordo com o seu próprio contexto vivencial, experiências adquiridas e preocupação no exercício da parentalidade com especial enfoque na consolidação dos laços afectivos, a arguida procurou acompanhar a filha, conversando com a mesma sobre todos os assuntos, numa posição de paridade, mas sem imposição de limites e regras norteadores do seu processo educativo.
79. Não participou em actividades de lazer estruturadas, assumindo como prioridade o convívio familiar.
80. Na comunidade onde reside possui uma imagem positiva, associada ao núcleo familiar a que pertence e à disponibilidade para apoiar terceiros, sem referência a hábitos ou comportamentos socialmente desadequados.
81. Este é o primeiro contacto da arguida com o sistema de Justiça, o que lhe gera ansiedade e preocupação.
82. A arguida evidencia capacidade de elaboração de pensamento consequencial, apresentando um discurso organizado e coerente, bem como competências ao nível da auto-avaliação e autocrítica; em abstracto, consegue reconhecer a ilicitude de factos similares aos que lhe são imputados no presente processo, ainda que em concreto adopte uma postura de auto-desculpabilização e de ausência de juízos de autocensura.
83. O percurso de vida da arguida apresenta-se marcado pelo início precoce de actividade laboral, com impacto directo no seu desenvolvimento pessoal, social e afectivo, tendo sido nesse contexto que começou o seu processo de autonomização e se iniciou a sua vida sexual activa aos 14 anos de idade, facto que normaliza e a que não atribui especial relevo.
84. Viveu em união de facto com o pai da menor num contexto que considerou configurar violência doméstica e que, por isso, terminou.
85. A arguida manifestou aceitação e colaboração com a intervenção da CPCJ de ... e posteriormente do CAFAP de ..., mantendo este serviço, actualmente, intervenção activa no acompanhamento da arguida e da filha.
86. As vulnerabilidades identificadas na arguida prendem-se com as fragilidades que a mesma tem vindo a apresentar no que se refere ao efectivo papel protector, contentor e orientador dos comportamentos adoptados pela filha ainda menor de idade.
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87. Os arguidos revelam fraco juízo crítico relativamente aos factos supra descritos a que se refere este processo, não obstante o incómodo que sentem pela situação em que no mesmo se encontram.
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3. Apreciando
O Ministério Público não coloca em crise as penas parcelares aplicadas pelo tribunal a quo a cada um dos arguidos (e muito menos as penas acessórias).
Porém, impugna a determinação da medida da pena operada relativamente ao cúmulo jurídico efectuado, discordando da determinação concreta da pena aplicada, que considera desajustada e insuficiente.
Tendo presente ser apenas essa a questão que importa decidir, cumpre registar, no seguimento do acórdão do STJ de 19.05.2021 (Proc. 10/18.1PELRA.S1., disponível em http://www.dgsi.pt), que «no que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, começa por lembrar-se que os recursos não são re-julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar.»
Nessa medida, só em caso de desproporcionalidade manifesta na sua fixação ou necessidade de correção dos critérios de determinação da pena concreta, deverá intervir o tribunal de recurso alterando o respetivo quantum.
In casu considerou o tribunal a quo adequadas as seguintes penas parcelares:
- relativamente ao arguido, 1 ano e 6 meses de prisão quanto ao crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 1, do Código Penal, de que foi vítima CC na situação descrita no ponto 7.º dos factos provados;
- relativamente a ambos os arguidos, 3 anos e 6 meses de prisão quanto a cada um dos 26 (vinte seis) crimes de abuso sexual de criança p. e p. pelo art.º 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, de que foi vítima CC nas situações descritas nos pontos 9.º a 28.º dos factos provados.
Após, deu cumprimento ao estatuído no art.º 77.º, n. º 1 do Código Penal, que estabelece que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, para a determinação da qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Por seu turno, por via do n.º 2 do art.º 77.º do Código Penal, considerou o tribunal recorrido que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos (independentemente da respetiva soma corresponder a um valor bastante superior), e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, in casu 3 anos e 6 meses quanto a cada um dos arguidos.
Por sua vez, na correspondente operação de cúmulo jurídico foram tidas em conta as seguintes circunstâncias (transcrição):
Na determinação da medida da pena única, no que tange à aferição do nível da culpa e das exigências de prevenção geral e especial, é fundamental que se tenha em conta, sem prejuízo de tudo o que vai exposto, que os factos aconteceram num contexto de vulnerabilidades apresentadas também por cada um dos arguidos, não necessariamente como manifestação de personalidades com tendência criminosa, verificando-se que, apesar de os mesmos ainda revelarem reduzido juízo crítico, não têm antecedentes criminais e sentem ansiedade, preocupação e vergonha com a situação em que se encontram.
Pelo exposto, e também sem prejuízo da necessidade actual de uma punição severa, sem complacência, dos crimes de abuso sexual de crianças - também decorrente das fortíssimas exigências de prevenção geral que continuam a verificar-se e em progressiva acentuação, quer pela degradação da criança/adolescente que os mesmos têm implicada e implicam, quer pela vulgarização dessa degradação, pelo que as exigências de prevenção geral impõem a aplicação de punição que se revele actuante e que, pelo que vai exposto, apenas uma robusta pena de prisão permite concretizar; de outro modo, nem as crianças estão protegidas, nem a comunidade acredita que o Estado as protege relativamente à exponencialmente crescente prática de tais crimes -, essa punição não pode ser de tal ordem que supere o nível da culpa em concreto revelado por cada um dos arguidos, nem de tal ordem que se revele prejudicial para a respectiva reinserção social.
Assim, à luz dos critérios supra expostos, considerando o conjunto de todos os factos, considera o tribunal como adequada a pena única de 5 (cinco) anos de prisão para cada um dos arguidos.
Analisada por nós a fundamentação exarada pela primeira instância quanto à determinação da pena única encontrada em cúmulo, e tendo presente que a determinação da pena do concurso exige um exame critico de ponderação conjunta entre os factos e a personalidade dos arguidos, de forma a aferir-se a gravidade do ilícito global e a personalidade neles manifestada (tendência para delinquir versus pluriocasionalidade que não radica na personalidade), nada temos a apontar ao juízo formulado pelo tribunal recorrido.
Com efeito, no caso da arguida - progenitora, a situação concreta transparece muita falta de capacidade de exercer as suas responsabilidades parentais, a que se atalha por via do regime de prova e, para além do mais, da inibição do exercício das responsabilidades parentais; no caso do arguido, não se vê o que retire capacidade de discernimento a não ser o facto de ser também ele muito jovem e ter visto serem-lhe abertas as portas de casa da menor, como se tudo se tratasse de namoro normal de dois jovens.
Nessa medida, ponderando as particularidades do caso, não identificamos no juízo formulado pela primeira instância uma operação puramente mecânica, mas antes a constatação de que independentemente da gravidade dos factos, os mesmos não são reconduzíveis a uma tendência criminosa, de modo a atribuir, nos termos pretendidos pelo Ministério Público, à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta (neste sentido Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, pág. 291).
Por conseguinte, não encontramos no processo aplicativo desenvolvido pelo tribunal recorrido quaisquer incorreções, mas antes um equilíbrio entre a culpa e as exigências de prevenção geral e especial que importam ao caso concreto, sendo adequada a pena única de 5 (cinco) anos de prisão encontrada pelo tribunal a quo para cada um dos arguidos.
Em consequência, e porque de igual modo se mantêm atuais os pressupostos que justificaram a suspensão da respetiva execução, nada temos a alterar à decisão recorrida.
O recurso não merece, por isso, provimento.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso apresentado pelo Ministério Público, mantendo-se na íntegra a decisão do Tribunal a quo.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
Notifique.
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Lisboa, 5 de março de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Ana Cláudia Nogueira
Rui Coelho