Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
747/18.5IDLSB.L1-9
Relator: MARIA JOÃO FERREIRA LOPES
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
ERRO DE DIREITO
REAL SITUAÇÃO ECONÓMICA DO ARGUIDO
REENVIO PARCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I. Instaurado inquérito por participação da AT, não tendo esta entidade procedido à notificação a que se reporta o artigo 105.º/4, b) do RGIT nada impedire que o MP possa proceder à dita notificação, por si, pelas autoridades policiais ou pelos serviços de Finanças a quem haja delegado a competência para os actos de inquérito, assim se suprindo tal irregularidade, sendo, contudo, imprescindível que conste da acusação e da sentença que tal notificação foi efectuada depois de decorrido o prazo de 90 dias referido na al. a) da mesma norma.
II. A responsabilidade tributária e a responsabilidade criminal não se confundem, não dependendo a última da existência, ou não, de reversão contra o arguido da prestação tributária, no âmbito do processo tributário.
III. Quando, por erro de direito, foi aplicada ao arguido uma pena de seis meses de prisão, por referência ao artigo 105.º/1 do RGIT, não obstante sempre se tenha considerado que o crime de abuso de confiança em causa se subsumia àquele previsto no n.º 5 da mesma norma, o Tribunal da Relação não pode modificar a pena aplicada, em obediência à proibição da reformatio in pejus, mas deixa de ter pertinência a eventual nulidade, arguida pelo recorrido, de não ter o Tribunal a quo procedido à operação de escolha da pena prevista no artigo 70.º do CP.
IV. Estamos, inequivocamente, perante o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º/2 alínea a) CPP quando existe uma quase completa omissão de factos atinentes à actual situação económica e financeira dos arguidos, sem qualquer justificação para tal ausência de factos e sem que se vislumbre qualquer impossibilidade de obtenção de elementos capazes de sustentarem a definição da omitida situação actual.
V. A aplicação da condição referida no artigo 14.º/1 do RGIT impõe que se pondere a real situação económica do arguido e a sua capacidade para proceder ao pagamento da quantia em dívida, devendo tal norma ser interpretada conjugadamente com o artigo 51.º/2 do CP, subordinando-se a dita aplicação a critérios de ponderação, aos princípios da razoabilidade e da dignidade da pessoa, bem como do respeito pelos direitos fundamentais do próprio condenado, como seja a garantia do mínimo necessário à sua subsistência.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9 ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
1. Nos presentes autos, a 16/10/20 foi proferida sentença, atinente aos arguidos "AA, S.A." e BB, com os demais sinais dos autos, que culminou com o seguinte dispositivo:
“(…)
A – condenar o arguido BB pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 6.º, 7.º, 105.º/1 e 5 do Regime Jurídico das Infracções Tributárias na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, condicionada ao pagamento da quantia de €22.676,49.
B – condenar a arguida "AA, S.A." pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 6.º, 7.º, 105.º/1 e 5 do Regime Jurídico das Infracções Tributárias na pena de 120 dias de multa à taxa diária de €10,00, o que perfaz a quantia de €1.200,00.
(…)”
2. Inconformados com o teor desta decisão, os arguidos interpuseram recurso peticionando:
a) sejam julgados não provados os factos atinentes ao tipo de ilícito e consequentemente, a absolvição dos recorrentes do crime de abuso de confiança fiscal.
Sem prejuízo,
b) seja dado como não provado o tipo subjetivo de ilícito, nomeadamente o dolo, por parte dos arguidos, porquanto a AA não recebeu o valor de IVA devido e não teve condições para fazer o pagamento ao Estado do tributo, por falta de tesouraria, não tendo havido qualquer intenção de apropriação de valores.
Caso assim não se entenda,
c) No que diz respeito à condenação da recorrente AA, dar como provada a insuficiência económica da Recorrente, alterando a medida concreta da pena, fixando o quantitativo diário da multa próximo do seu limite mínimo e em número não superior a €2,50 (dois euros e cinquenta cêntimos);
d) Em relação à condenação do Recorrente BB, dar como provada a nulidade prevista na alínea a) do número 1, do artigo 379.º, do Código de Processo Penal, porquanto o Tribunal a quo não fundamentou a escolha entre uma pena privativa da liberdade, ainda que suspensa na execução, ao invés de uma pena não privativa da liberdade, nomeadamente a aplicação de uma pena de multa, substituindo a sentença por outra que fundamente a aplicação da pena principal, entendendo o aqui Recorrente ser de aplicar a título de pena principal, uma pena de multa não superior a 50 (cinquenta) dias;
e) Dar como provada a nulidade prevista na alínea c) do número 1 do artigo 379.º, do Código de Processo Penal, uma vez que o Tribunal a quo não apreciou a possibilidade de substituir a pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução, por uma pena não privativa de liberdade, substituindo a sentença por outra que fundamente a substituição da pena de prisão e aplique uma pena de multa, de valor não superior a €1.000,00 (mil euros);
f) E, quanto à suspensão da execução da pena condicionada ao pagamento, dar como provada a nulidade prevista na alínea a), do número 1, do artigo 379.º, do Código de Processo Penal, porquanto a sentença é omissa quanto ao juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal, devendo a sentença ser substituída por outra que afaste a condição de pagamento.
Remataram o corpo da motivação com o que denominaram de conclusões, mas que, pela sua extensão, não podem ser tidas como “resumo das razões do pedido”, razão pela qual aqui se não reproduzem, apenas se enunciando as questões aí suscitadas:
- a nulidade do inquérito;
- a nulidade da sentença;
- existência de erros de julgamento;
- a subsunção dos factos ao direito.
3. Admitido o recurso o MP apresentou a sua resposta, defendendo a manutenção da decisão recorrida, não merecendo a mesma qualquer censura, apresentando as conclusões que a seguir se transcrevem:
“1. Os meios de prova enunciados na motivação da matéria de facto foram criticamente analisados e ponderados, pelo Tribunal a quo, pelo que os factos enunciados na matéria de facto foram tidos como correctamente considerados provados.
2. O Tribunal a quo examinou, valorou e apreciou criticamente todas as provas produzidas em audiência, de acordo com as regras e os princípios de direito probatório.
3. E, como tal, não podia deixar de punir os Recorrentes da forma como puniu, pois, a prevenção e a culpa são os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena, nos termos do artigo 70º do C. Penal.
4. Por conseguinte, não lhes assiste razão.
5. E a sentença recorrida não merece qualquer censura, pelo que deverá ser mantida, na íntegra, por se encontrar correctamente fundamentada, sem evidenciar qualquer vício na apreciação da prova e na medida da pena, devendo ser mantida nos seus precisos termos.
6. Visto que, foi feita uma correcta interpretação e aplicação do direito à factualidade provada, em estrito cumprimento das normas e dos princípios constitucionais e, bem assim, das normas e dos princípios que norteiam o Direito e o Processo Penal.
7. No entanto, Vossas Excelências, farão, como sempre, a acostumada, JUSTIÇA”
4. Subidos os autos a este Tribunal a Exma. Sr. Procuradora Geral Adjunta, emitiu parecer defendendo o não provimento do recurso, parecer sustentado nas seguintes questões:
- os arguidos nas conclusões apresentam uma cópia da motivação, donde deverão ser convidados a apresentar “conclusões”, no prazo de 10 dias, sob pena de rejeição do respectivo recurso, ou, caso assim não se entenda, ser suprida essa falta e apresentadas novas conclusões;
- quanto à primeira questão suscitada no recurso, a impugnação da matéria de facto, os arguidos não dão cabal cumprimento ao preceituado no artigo 412.º/3 e 4 do CPP, pois que, apesar de referirem colocar em crise os factos contidos nos pontos 4, 5, 7 e 12 dos factos provados,
- não concretizam, como determina a alínea a) do n.º 3 do referido artigo, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, por referência concreta aos pontos da matéria de facto tida como provada na sentença;
- não indicam, em concreto, qual a alteração que se impõe, não referindo qual a nova redação que deve passar a ter cada ponto concreto ou a mudança para provado/não provado que se imporia;
- não indicam para cada ponto concreto que pretendem ver alterado, qual é a concreta passagem do depoimento que imporia essa alteração;
- e, não sendo caso de verificação de qualquer dos vícios contidos no artigo 410.º/2 do CPP, de conhecimento oficioso, então, deve a matéria de facto ter-se como definitivamente fixada;
- quanto à qualificação jurídica dos factos, resulta dos factos provados que os arguidos, ao não entregar nos cofres do Estado, a referida quantia, fazendo-a deles, terão agido com dolo, na medida em que resulta que quiseram apoderar-se do IVA que os seus clientes pagaram, sendo que estamos perante um crime formal, onde basta não pagar e não querer pagar a quantia declarada por conta do IVA para que o mesmo se verifique;
- quanto à medida das penas:
- a da arguida é justa e adequada, pese embora a sua situação económica, dada como provada, outros factores entraram em linha de conta, na medida da pena, como a gravidade dos factos, bem patente no montante pecuniário que os arguidos deixaram de entregar nos cofres do Estado e que fizeram deles - €58.430,75;
- quanto ao arguido não se verificam as apontadas causas de nulidade.
5. No cumprimento do disposto no artigo 417.º/2 do CPP nada mais foi acrescentado.
6. Proferido despacho preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente Acórdão.
II. Fundamentação
1. Os recorrentes procederam à quase completa reprodução, literal, em quase absoluta e rigorosa duplicação da totalidade do texto constante do corpo da motivação, ressalvando meros detalhes e questões de pormenor.
Com efeito, entre o corpo da motivação e o capítulo destinado às conclusões, quase tudo o mais coincide; quase tudo o que consta da motivação foi transposto, ipsis verbis para as conclusões.
Isto quando, determina o artigo 412.º/1 CPP, “que a motivação (…) termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.”
Posto que a sanção de rejeição apenas esteja expressamente prevista para aquele “mais” exigido por lei quando o recurso versa matéria de direito, não vem sofrendo grande contestação o entendimento em como, por identidade de razões, aquela mesma consequência será de cominar à ausência ou deficiência das especificações exigidas no respectivo n.º 3, nos casos em que o recurso tem em vista a impugnação da matéria de facto - cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, III, 350, sendo que grande parte da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de que o Ac. STJ de 04.03.1999 (CJ, STJ, I, 239), será o mais emblemático, veio sustentar igualmente, que “tem que ser rejeitado o recurso em que o recorrente apresentou como conclusões uma cópia integral do texto da motivação, nomeadamente no que concerne às epígrafes das matérias tratadas e aos números dos artigos, apenas com pequeníssimas e irrelevantes diferença de pormenor”.
Tal como o assinala aquele Distinto Professor (na obra citada, pág. 351), “as conclusões devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objecto de decisão”, cumprindo-se assim, dessa forma, também aquele outro desiderato de tornar rapidamente apreensíveis pelo tribunal ad quem, os fundamentos por que se pede o provimento do recurso.
Este aspecto de síntese que as conclusões devem traduzir em relação às razões constantes da motivação, ainda que decorra do próprio sentido comum associado ao termo, pode seguramente ser evidenciado por uma plêiade de autores, que vão do próprio Prof. Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, V, 358 e ss.) a Simas Santos, Leal Henriques (Código de Processo Penal Anotado, Rei dos Livros, 801 e ss.), passando por uma numerosa Jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal.
A este propósito, referem nomeadamente com relevância directa para a questão que vimos tratando aqueles Comentadores, que “não pode o recorrente limitar-se a reproduzir nas conclusões toda a matéria desenvolvida nos fundamentos da motivação, pois assim desvirtuaria a função de síntese que é assinalada às conclusões, quando se dispõe que o recorrente “resume as razões do pedido”.
Questão mais complexa é, como da “omissão” do ónus de concluir se faz equivaler o tal juízo de rejeição, já que apertis verbis, tal sanção não está legalmente consagrada.
Para o indicado acórdão do STJ (cf. também, por todos, Ac. TRG de 11-06-2019, proc. n.º 314/17.0GAPTL.G1; desta Relação, de 21-03-2013, proc. n.º 14217/02.0TDLSB-AM.L1-9), nas situações em que existe uma quase cópia das razões apresentadas na motivação e, a esta situação nos vamos ater essencialmente, não tendo o recorrente sido capaz de resumir a razões do pedido, tal acaba por redundar numa situação de “falta de conclusões”.
Como a falta de conclusões “equivale à falta de motivação”, por essa via somos conduzidos à rejeição do recurso nos termos do artigo 420.º/1, c) do CPP.
À possibilidade de rejeição em tais casos, nunca o próprio Tribunal Constitucional a objectou nos diversos arestos que conduziram à declaração com força obrigatória geral, da norma constante dos artigos 412.º/1 e 420.º/1 CPP, na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, por violação do artigo 32.º/1 da Constituição da República Portuguesa - acórdãos 193/97, 43/99, 417/99, 337/00 e posteriormente 320/2002.
A única condicionante que colocou, foi o da “falta de concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência”.
O Tribunal Constitucional decidiu, então, com força obrigatória geral, ser inconstitucional a norma constante dos artigos 412.º/1 e 420.º do CPP, quando interpretados no sentido de que a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência – cf. Ac. 183/2000, DR. I-A série de 21.7.2000.
A situação estava mais elaboradamente regulamentada no artigo 690.º CPC, na redacção que lhe foi conferida pelo DL n.º 329-A/95, de 12/12, pois aí já se mostra previsto o referido convite por parte do relator, nomeadamente para o efeito de se proceder a tal síntese, e bem assim “o não conhecimento do recurso na parte afectada” como sancionamento específico do seu não cumprimento.
Hoje, com a reforma operada no C P Penal através da Lei 48/2007, igualmente, passou a estar expressamente prevista a possibilidade de convite ao aperfeiçoamento no artigo 417.º/3, aquando da falta de conclusões ou impossibilidade delas se deduzir as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artigo 412.º.
Em todo o caso, tratando-se matéria constritora de direitos, maxime de um direito tão importante em sede de processo, como é o de recurso, importa que o não cumprimento de qualquer daqueles ónus não deixe de traduzir como desvalor, o sancionamento da falta “de estruturação (…) do procedimento na fase de recurso e não (…) um simples entrave burocrático à realização da justiça” como se afirma no Ac. do TC 193/97, de 11/03/1997.
A possibilidade de rejeição deve ser feita de forma parcimoniosa, procurando-se sempre indagar se estamos de facto perante uma situação de mera repetição da motivação ou se a especialidade ou a peculiaridade da matéria ou a própria natureza já de si condensada da própria motivação, justificam que as conclusões assumam esse cariz pouco sintético.
Haverá assim, sempre que possível, afastar deste domínio juízos meramente subjectivos, já que, tal como se afirma no Ac. STJ de 15.1.2004, (cf. CJ, S, I, 169), é por vezes “muito difícil a tradução para a prática do conceito de concisão (…)”, “a concisão enquanto objecto da praxis é muito relativa, dependendo das concretas circunstâncias do caso e dos objectivos que se pretende alcançar”.
No caso, obviamente que nem pelo número, nem, essencialmente, (como não podia deixar de ser) pelo conteúdo repetitivo, se pode considerar que o recorrente satisfaça as exigências do artigo 412.º/1 do CPP.
No entanto, para evitar a prática de actos inúteis - o que de resto é vedado pela lei - avaliando e ponderando os diversos graus dos interesses em jogo, perante o manifesto incumprimento da Lei, por um lado e, o facto de termos sérias e fundadas dúvidas que o convite fosse acolhido, em termos úteis e satisfatórios, daremos, assim, prevalência à salvaguarda de uma tramitação escorreita e direccionada, sem desnecessários e inúteis incidentes e, essencialmente por se não vislumbrar qualquer vantagem para o recorrente no endereçar de convite a reformular o que apelidou de conclusões.
Isto posto, as entendidas, formalmente, conclusões da motivação do recorrente, embora não respeitem (longe disso) adequadamente as imposições processuais, não constituindo o que vem qualificado de conclusões, o resumo das razões do pedido ou uma síntese do corpo das motivações, onde se concretize o onde e o porquê se decidiu mal e como se deve decidir - permitem, não obstante, surpreender e identificar as várias questões submetidas, de entre o repetido arrazoado apresentado, à cognição deste Tribunal, e ainda assim, delimitar o objecto do recurso.
Assim, e tenho presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, as questões suscitadas no presente são,
- a nulidade do inquérito;
- a nulidade da sentença;
- impugnação da matéria de facto,
- a qualificação jurídica dos factos.
2. Antes de entramos na apreciação das questões suscitadas pela sua ordem de precedência lógico-processual - que não coincide com a suscitada no recurso – porque todas elas, com excepção das atinentes com a espécie e medida da pena, estão interligadas e se prendem, na sua essência, com a natureza e a estrutura que caracteriza o crime de abuso de confiança fiscal, faremos, desde já o seu enquadramento em termos dogmáticos, para depois nos reportarmos às questões concretas invocadas pelos arguidos.
Apesar de o crime aqui em causa traduzir, como o próprio nomen juris indica, um crime de abuso de abuso de confiança, tem a distingui-lo - para além do regime mais favorável constante do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT - relativamente ao tipo homónimo do artigo 205.º do CP, no que diz respeito aos efeitos da reparação - artigo 206.º do CP - a circunstância de, ao contrário do que acontecia no RJIFNA, o elemento "apropriação" ter deixado, com o RGIT, de constituir elemento do tipo legal.
Com efeito, deixou de ser necessária a efectiva integração da receita tributária no património do agente, tendo-se tornado um crime de omissão pura ou própria, de mera inactividade que se consuma e esgota com o incumprimento, por parte do agente, de um "dever de acção", sem ulterior obrigação de evitar o resultado.
E é um crime doloso, pois que a negligência é punível como contra-ordenação, pelo artigo 114.º do RGIT.
Dispõe, então, o artigo 105.º/1 do RGIT que, “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
O n.º 4 dispõe que “os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”.
O n.º 5, que, “nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas”.
E, o n.º 7 que, “para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.
Depois de o STJ através do AUJ 6/2008, ter fixado jurisprudência no sentido que, “a exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º/4 CP, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos da referida alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT)”, está já pacificamente aceite, que o legislador – depois de inicialmente ter previsto apenas a situação, agora prevista na alínea a) (então no corpo da norma), como condição objectiva de punibilidade – agora, com o aditamento da alínea b), passou a prever duas condições objectivas de punibilidade, de que depende a punição dos factos previstos no n.º 1, para o que aqui releva.
E, assim, com a introdução da alínea b) ao n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, a falta de entrega da prestação só poderá constituir crime se tiverem decorrido 90 dias após o termo do prazo em que a entrega deveria ter sido efetuada e, se, decorrido tal prazo, o faltoso seja notificado para, em 30 dias, pagar a prestação, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável e se decorridos esses trinta dias, tal pagamento não se mostre realizado.
A nova redacção do artigo 105.º/4 do RGIT impõe que, decorridos os 90 dias sobre o termo do prazo legal para entrega da prestação, a Administração Tributária notifique o agente e aguarde 30 dias para que este possa proceder ao pagamento da prestação em dívida bem como dos juros e coimas aplicáveis.
Apelando às regras gerais, o crime de abuso de confiança fiscal é um crime de omissão pura ou própria, considerando-se praticado, de acordo com o disposto no segundo segmento do artigo 3.º do CP, no momento em que o agente deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.
A conduta ilícita típica do crime de abuso de confiança fiscal traduz-se numa omissão pura, consistente na não entrega nos termos e no prazo estabelecidos e esgota-se no não cumprimento de um dever, previsto na lei, de entrega das prestações deduzidas, pelo que, tratando-se de uma infracção omissiva pura, consuma-se com a não entrega dolosa, nos termos e no prazo de entrega fixados para cada prestação, da prestação deduzida - cfr. artigo 5.º/2 do RGIT.
A este propósito é de referir que o STJ através do AUJ 8/2015, fixou jurisprudência no sentido de que “a omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do IVA em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105.º/1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido”.
Entendendo que, “não se vislumbra qual o valor jurídico violado e qual a conduta ilícita merecedora de tutela penal daquele que não entrega ao Estado aquilo que também não recebeu.
(…)
O valor ou bem jurídico aqui em causa consubstancia-se no desrespeito pela relação de confiança em que assenta a relação fiscal e na circunstância de o arguido não entregar ao estado uma quantia que recebeu como mero substituto.
Mas, sendo assim, nunca se poderá afirmar que existiu tal violação quando a quantia nem sequer foi recebida pois que aí apenas existe um mero incumprimento fiscal e este, por si, não tem relevância axiológico normativa que o erija em bem jurídico carente de tutela penal, salvo se pretendermos utilizar o direito penal como instrumento de coacção.
(…)
O crime de abuso de confiança fiscal tem como um dos seus elementos objectivos a dedução ou o recebimento da prestação tributária o que, no âmbito do IVA, significa que o devedor tributário só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária ou seja se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente. O pressuposto do qual se arranca, e constitui denominador comum, é o de que, se o tipo legal do abuso de confiança fiscal pressupõe necessariamente a existência de uma relação fiduciária que se estabelece entre o Estado e os agentes económicos, então só existe desvalor da acção (rectius, desvalor de omissão) quando um agente económico que liquida, recebe e detém precária e temporariamente o imposto, omite a entrega ao Estado-Fisco do IVA efectivamente recebido”.
O crime de abuso de confiança fiscal consuma-se no momento em que o agente não entrega a prestação tributária que devia. No momento em que o agente não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito, não se podendo reconduzir ao núcleo da ilicitude e da tipicidade aquilo que, afinal, são meras condições de exercício da acção penal.
Como já se entendera, de resto no AUJ 6/2008, que fixou jurisprudência no sentido de que “a exigência prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2.º/4 CP, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo, alínea b) do nº 4 do artigo 105 do RGIT”.
De onde se extrai a seguinte fundamentação:
“(…) numa visão estruturalista do artigo 105.º, refira-se que a conduta incriminadora consubstancia-se na não entrega à Administração Fiscal das quantias pecuniárias envolvidas. Significa o exposto que a mesma conduta se traduz numa omissão pura.
O crime de abuso de confiança fiscal consuma-se com a não entrega dolosa no tempo devido das quantias deduzidas pelo agente. O número 2.º do artigo 5.º do RGIT esclarece que as infracções tributárias omissivas se consideram praticadas na data em que termine o prazo para cumprimento dos respectivos deveres tributários.
Assim o desenho do crime perfilado no normativo em apreço corresponde a um crime de mera inactividade e, ainda, a uma omissão pura ou própria descrita autonomamente num tipo legal de crime.
O que está em causa não é a mora, que constitui uma mera condição de punibilidade, mas sim a conduta daquele que perante a Administração Fiscal, agindo esta no interesse público, omite um dos seus deveres fundamentais na sua relação com o Estado”.
E, ainda, a propósito da nova condição objectiva de punibilidade acabada de introduzir na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, “não vislumbramos uma outra intenção do legislador que não a de evitar a criminalização de condutas que podiam ter um mero tratamento de natureza administrativa. Então, a denominada proliferação de inquéritos será evitada dando àquele que assumiu a sua obrigação declarativa perante a Administração Fiscal a possibilidade de regularizar a sua situação tributária.
Os elementos teleológico e histórico convergem, assim, em abono de uma interpretação segundo a qual o legislador terá pretendido descriminalizar o facto nos casos em que, tendo havido declaração da prestação não acompanhada do pagamento, este vem a ser efectuado após intimação da Administração para que o "indivíduo" regularize a sua situação tributária.
Pretendeu-se alcançar tal objectivo fazendo surgir para Administração Fiscal a obrigação de notificar o contribuinte em mora (e não em falta de declaração) e para este a condição de pagamento do montante em falta como condição de não accionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal.
Apenas se concretizando uma nova oportunidade que é dada ao arguido no sentido de evitar o desencadear do procedimento criminal.
Na verdade, e no que concerne à situação sob análise, foi intenção publicitada do legislador, expressa de forma inequívoca na letra da lei, o objectivo de conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta omissiva. A nova lei é mais favorável para o agente pois que lhe proporciona a possibilidade de, por acto dependente exclusivamente da sua vontade, preencher uma condição que provoca o afastamento da punição por desnecessidade de aplicação de uma pena”.
A propósito da definição do momento afinal, da consumação do crime, pronunciou-se, posteriormente o STJ, no AUJ 2/15, através do qual fixou jurisprudência no sentido em que, “no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º/1 e 105.º/1 e 5 do RGIT, o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5.º/2 do mesmo diploma”.
Com efeito aí se entendeu que,
“o incumprimento do dever de actuação que, tratando-se do crime de abuso de confiança fiscal se consuma com a não entrega dolosa, nos moldes e no prazo legalmente fixados, das prestações tributárias deduzidas pelo agente, nisso se traduzindo o desvalor da acção.
O crime, agora, esgota-se na mera omissão de entrega das ditas prestações.
Chegados a este ponto, importa, agora, reflectir, ainda que brevemente, sobre o sentido da norma da alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, a propósito da qual se suscitou, afinal, a querela jurisprudencial atinente à determinação do momento em que deve ter-se por consumado o crime - e, na sequência disso, apurar quando tal se verifica para, finalmente, concluir quando deve iniciar-se a contagem do respectivo prazo prescricional.
O artigo 105.º/4 do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5.6 - que dispunha "os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação" – foi alterado pela Lei 53-A/2006, de 29.12, através da inclusão, no citado número 4, cuja redacção primitiva passou a constituir a actual alínea a) e de uma outra norma, a actual alínea b), que veio estabelecer que "os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se a prestação comunicada à administração tributária, através da correspondente declaração, não for paga, acrescida de juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito".
Assim, enquanto na alínea a) se prevê a situação dos contribuintes que não cumpriram a obrigação declarativa atinente às prestações tributárias ou contributivas deduzidas, e consequentemente que não procederam à sua entrega, na nova alínea b) prevê-se a situação dos contribuintes que, de uma forma algo mais diligente, cumpriram a referida obrigação declarativa, mas já não a entrega respectiva.
Ora, como também já se deu conta, pronunciando-se a respeito da natureza desta (nova) norma, que constitui a actual alínea b) do número 4 do artigo 105º do RGIT, o STJ no AUJ 6/2008 considerou que a exigência ali prevista configura uma nova condição objectiva de punibilidade, na consideração de que, conquanto ela constituísse uma circunstância directamente relacionada com o facto ilícito, não pertencia nem ao tipo de ilícito nem à culpa.
Uma "nova" condição objectiva de punibilidade, compreensivelmente, a acrescer à que, configurando também a norma prevista no anterior número 1, passou, com a introdução daqueloutra a constituir a actual alínea a) do mencionado preceito legal.
(…)
Ao nível da jurisprudência, com particular enfoque para a jurisprudência do STJ, importa realçar, desde logo, o AUJ 6/2008, que, considerando que as condições objectivas de punibilidade são indiferentes para o lugar e o tempo do facto, conclui no sentido de que a condição objectiva de punibilidade adicional prevista na alínea b) do número 4 do artigo 105º do RGIT - e, por igual ordem de razões, dizemos nós, a constante da alínea a) do mesmo preceito legal - deixou intocado o tipo de ilícito num crime que previamente se consumou e cujos elementos constitutivos permaneceram imodificados na sua tipicidade.
(…)
Isto, na consideração de que, como se disse no AUJ 6/2008, o que releva para o caso é, de facto, a conduta do agente que, perante a Administração Fiscal, agindo esta no interesse público, omite um dos seus deveres fundamentais na relação que tem com o Estado, e já não a mora - aqui representada pela situação prevista na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT - que constitui uma mera condição objectiva de punibilidade, caracterizada pela circunstância de, embora relacionada com o facto, não pertencer, efectivamente, ao tipo de ilícito nem à culpa, antes restringindo-se a um pressuposto material de punibilidade.
Pressuposto material de punibilidade, ditado por razões de política criminal, como sejam as que, respeitantes ao relacionamento jurídico-tributário, o legislador prevê como forma de, por um lado, permitir que, mesmo fora do prazo legalmente estabelecido, a entrega, por parte do substituto tributário (o empregador), das prestações deduzidas e das correspondentes declarações dos montantes devidos, ponha termo ao prejuízo patrimonial ocasionado à AT pela conduta do agente e, por outra via, constituir mais um incentivo ao cumprimento dos referidos deveres tributários, assim se evitando os custos que o procedimento sempre acarreta para a administração.
(…)
E se é assim, independentemente da verificação da condição objectiva de punibilidade prevista na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, a consumação do crime (para a qual a mesma não tem qualquer interferência, já que nada acrescenta à respectiva definição) dá-se quando, com absoluta independência da ocorrência ou não do aludido elemento condicionante, o agente preenche, com a sua conduta omissiva e contrária à lei, os elementos do respectivo tipo legal.
De onde que, tendo o agente, com aquela sua concreta conduta ilícita, típica e culposa, percorrido todas as etapas tendentes à realização do delito, não haja que falar em desistência da tentativa de um crime que, afinal, já se tendo perfectibilizado, enfim consumado, só não será punido se, no referenciado prazo de 90 dias, o mesmo proceder à entrega das prestações contributivas deduzidas.
(…)
Acresce, ainda, que o prazo adicional, previsto na alínea a) (e bem assim na alínea b)) do número 4 do artigo 105.º do RGIT, ditado por razões de política criminal, tem por justificação, não apenas proporcionar mais uma oportunidade ao contribuinte para cumprir a sua obrigação, mas também, e sobretudo, a necessidade de menorizar os prejuízos advindos para o Estado-Administração, em consequência, por um lado, da sua dificuldade em criar e desenvolver os mecanismos adequados a permitir-lhe, em tempo, arrecadar as receitas, e, por outro lado, os custos, em termos monetários e de morosidade, que haja de suportar para obter a cobrança coerciva das mencionadas prestações.
Ocasião em que, com a conduta omissiva em causa, o empregador incorre em responsabilidade pela prática da infracção que o legislador quis que configurasse o crime de abuso de confiança, e não a contra-ordenação que, prevista no artigo 104º do RGIT, assume, relativamente aqueloutra, que é a predominante, natureza residual, de sorte que a conduta ilícita, que começa por integrar o crime de abuso de confiança e como tal deverá ser sancionada, só deixa de sê-lo se e quando se verificar a condição objectiva de punibilidade da alínea a) do número 4 do artigo 105º do mesmo RGIT.
(…)
O que significa que a problemática respeitante à contra-ordenação só se colocará num momento ulterior, mais exactamente quando, ainda que para lá do prazo estabelecido para a comunicação e entrega da prestação contributiva deduzida, o empregador cumpre aquela obrigação.
De onde que, consumando-se com a conduta omissiva do agente o crime de abuso de confiança, este existe a partir de então, e não apenas depois de ter decorrido o prazo a que se refere a mencionada alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, que, por razões de política criminal, a lei concede para, ainda que que para além do prazo estabelecido para o efeito, cumprir a obrigação que deixou de realizar na oportunidade devida.
(…)
E se é assim, não há, pois, razão para dizer que, com a previsão do tipo legal em causa, o legislador quis tão-só antecipar a criminalização da conduta do agente que, no prazo legalmente estabelecido para o efeito, não tenha procedido à comunicação e entrega da prestação contributiva deduzida”.
Ou seja, se inicialmente era preciso esperar por 90 dias desde o termo do prazo legal de entrega da prestação, agora, com a alteração introduzida pela Lei 53-A/2006, após o decurso daquele prazo passou a exigir-se, ainda, a notificação do devedor para em 30 dias proceder ao pagamento em dívida, tudo num total de, pelo menos, 120 dias.
Com efeito, com aquela alteração legislativa, com a introdução de uma nova condição objectiva de punibilidade, impõe-se que, decorridos os 90 dias sobre o termo do prazo legal para entrega da prestação, a AT notifique o agente e aguarde 30 dias para que este possa proceder ao pagamento da prestação em dívida bem como dos juros e coimas aplicáveis.
Como expressivamente se refere no voto de vencido aposto por Raul Borges ao AUJ 2/2015, “Como refere Augusto Silva Dias, em O novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro (Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro), in Fisco, n.º 22, Julho de 1990 e Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, volume II, pág. 263, em trecho citado e transcrito por Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, em O crime de fraude fiscal no novo Direito Penal Tributário Português, no mesmo volume desta colectânea, a págs. 418, reportando-se aos crimes fiscais, mas sendo aplicável aos crimes contra a segurança social:
“A respeito do fundamento concreto da intervenção penal no âmbito do ilícito fiscal e diferentemente do que sucede nos chamados «crimes clássicos», não se apresenta à partida um (ou vários) bem jurídico de contornos definidos, concretamente apreensível, que funcione como constituens da estrutura do ilícito e vincule a uma certa direcção de tutela. Ao invés, o objecto da protecção penal é um «constituto», uma resultante de objectivos e estratégias de política criminal previamente traçados. O legislador não parte aqui das representações de valor pré-existentes na consciência jurídica da comunidade, mas intervém modeladoramente no sentido de uma ordenação da convivência. Por outras palavras, o interesse protegido pelas normas penais fiscais não é um prius, que sirva ao legislador de instrumento crítico da matéria a regular e do modo de regulação, mas um posterius, com uma função meramente interpretativa e classificatória dos tipos, construído a partir da opção por um dos vários figurinos dogmáticos e político-criminais que o legislador tem à sua disposição. Com este sentido pode dizer-se que os crimes tributários têm natureza «artificial»”
“Como se referiu no acórdão do STJ de 4.2.2010, processo n.º 106/01.9IDPRT.S1-3.ª Secção "no fundo o que estes crimes visam é a optimização de arrecadação de receitas, visando impedir, obstar a evasão fiscal e a fraude, pois a pretensão primeira é a recepção completa e oportuna de impostos e contribuições, traduzindo-se a não arrecadação de receitas por falta de entrega num efectivo dano patrimonial e punindo-se a forfait a entrega em mora, artigo 105.º/4 alínea b), o crime surge a partir do momento em que falha o estímulo e o convite ao contribuinte para que regularize a sua situação fiscal.
Tenha-se em vista que numa primeira fase, no plano fiscal, há que aguardar pelo pagamento dentro de 90 dias e só depois é que surge o crime; após notificação, aguarda-se por 30 dias; se o faltoso pagar, incorre em contra-ordenação, mas se o não fizer, a situação que configuraria uma simples contra-ordenação converte-se, pelo não acatamento do convite, em figura criminal.
Como decorre da conjugação dos artigos 105.º/4 e 114.º do RGIT, a falta de entrega da prestação tributária, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ao credor tributário é punível com coima.
Durante esse período não estamos perante um crime em sentido técnico, que supõe um facto ilícito típico, culposo e punível. Não sendo punível, estar-se-á perante um facto ilícito típico, categoria introduzida no Código Penal de 1995 no domínio das medidas de segurança (artigo 91.º), dos pós delitos (artigos 231.º e 232.º) e da perda de instrumentos, produtos e vantagens (artigos 109.º e 111.º) e posteriormente, em 2004, no crime de branqueamento (artigo 368.º-A)”.
Não há dúvida é que só após o decurso do prazo de 90 dias e da posterior notificação para o pagamento em 30 dias, isto é, depois de verificados ambas as condições objectivas de punibilidade é que pode ser iniciado o procedimento criminal.
Ou, já agora, como refere se no voto de vencida de Helena Moniz ao mesmo AUJ “…o legislador que optou por "antecipar a criminalização das condutas a momentos formais de simples omissão de cumprimento de um dever", ao mesmo tempo adicionou "elementos que retardam a punição para facilitar a efectiva percepção, ainda que tardia, das prestações devidas", assim construindo uma clara "cisão entre o facto ilícito e as condições necessárias para a sua punibilidade", pelo que "a punibilidade do facto está condicionada por elementos adicionais ao ilícito", cfr. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, A categoria da punibilidade na teoria do crime, II, Coimbra: Almedina, 2013, 691/2.”
Muito embora a conduta seja já uma conduta punível, antes do decurso daqueles dois prazos não é possível instaurar procedimento criminal.
O facto punível não é crime; a conduta só é punível enquanto crime, decorridos aqueles prazos. Antes não pode ser iniciado qualquer procedimento criminal, uma vez que a conduta ainda não é considerada crime, mas sim contra-ordenação.
É o que resulta da articulação do crime, previsto no artigo 105.º com a contra-ordenação, prevista no artigo 114.º do RGIT, que dispõe que, "a não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.”
O não pagamento pelo período de 90 dias constitui contra-ordenação (cfr. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, ob. cit., 699-700 e Lopes de Sousa/Simas Santos, Regime geral das infrações tributárias anotado, 2010 (4), 812-3.)
Se se considera que o facto ilícito-típico de não entrega da prestação ocorre no termo do prazo legal, a sua relevância penal está limitada por exigências exteriores àquele facto ilícito, assim se criando "espaços de oportunidade para a resolução do conflito antes de se poder desencadear a pretensão punitiva do Estado" - cfr. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, op. cit., 1075.
Constituindo a condição objetiva de punibilidade um facto relevante para que se possa punir a conduta, dado que antes da sua verificação o facto não é punível e, portanto, não é crime.
Ou, ainda Manuel Joaquim Braz, também, em declaração de voto aposta ainda ao referido AUJ, “o artigo 114.º/1 e 2 dispõe que a não entrega da prestação tributária deduzida por período não superior a 90 dias, ou por período superior se o facto não constituir crime, designadamente por ser negligente, é punível como contra-ordenação.
Da conjugação dessas disposições resulta que a não entrega da prestação tributária deduzida por período não superior a 90 dias, havendo pelo menos negligência, é punida como contra-ordenação, enquanto a não entrega dolosa por período superior a 90 dias é punida como crime, sendo, pois, a extensão da mora um elemento de distinção entre o crime de abuso de confiança fiscal e a contra-ordenação prevista no artigo 114º.
No primeiro momento da mora, na não entrega da prestação existe uma infracção tributária, mas que não será crime se a prestação deduzida for entregue no período de 90 dias seguintes, caso em que se estará perante uma simples contra-ordenação.
Não se pode considerar praticado o crime de abuso de confiança fiscal com a não entrega da prestação até ao termo do prazo previsto para cumprimento do dever tributário se, havendo entrega da prestação nos 90 dias seguintes, aquela omissão constitui uma contra-ordenação.
Será na não entrega dolosa por período superior a 90 dias da prestação tributária que se funda o juízo de ilicitude e de culpa, do crime de abuso de confiança fiscal, vendo-se na mora por período não superior apenas fundamento para um juízo de ilicitude e de culpa de âmbito contra-ordenacional”.
Se em termos de dogmática jurídico-penal o crime de abuso de confiança fiscal se pode ter como consumado anteriormente, contudo só se preencherá se a não entrega da prestação tributária persistir para além desse período de 90 dias.
Com a introdução da alínea b) ao n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, a falta de entrega da prestação só constitui crime se tiverem decorrido 90 dias após o termo do prazo em que a entrega deveria ter sido efetuada, sendo, além disso, necessário que, decorrido tal prazo, o devedor seja notificado para, em 30 dias, pagar a prestação, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável e que, decorridos esses trinta dias, tal pagamento não se mostre realizado, traduzindo-se na concessão um benefício adicional ao devedor.
E, assim, uma situação de verificação cumulativa de dois prazos.
Os elementos de punibilidade, sejam condições ou causas, têm de constar da matéria de facto alegada na acusação e provada na decisão para poder ser proferida decisão condenatória, uma vez que, embora não façam parte do tipo de ilícito ou do tipo de culpa, fazem seguramente parte do tipo de garantia, que abrange, para além do tipo em sentido restrito, ou tipo objetivo, a ilicitude, a culpa e as condições de punibilidade - cfr. Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, II, AAFDL, 98 e 329.
Não constando a factualidade atinente com o facto de a notificação para pagar em 30 dias, ter sido efectuada depois de decorrido o prazo de 90 dias, nem da acusação nem da sentença, não estão preenchidos, obviamente, todos os pressupostos da punição, pelo que o arguido deve ser absolvido, decidiu este Tribunal e Secção, através do acórdão de 25-5-2023 (proc. n.º 94/21.5IDSTB.L1-9, www.dgsi.pt).
Por decorrência da natureza dogmática do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, então, será a administração fiscal, desde logo, porque munida de todos os elementos para o cumprimento de tal formalidade, que deverá efectuar a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, depois de decorrido o prazo a que se refere a alínea a), que começou a contra a partir do primeiro dia após o fim do prazo para a entrega da quantia deduzida.
E, só depois do decurso de ambos os prazos e, perante a não entrega, deve o processo ser remetido ao MP, para efeitos de procedimento criminal.
Ou seja, seria preciso esperar por 90 dias - que a lei concede aos incumpridores para procederem ao pagamento sem consequências criminais - desde o termo do prazo legal de entrega da prestação, e, após isso, notificar o devedor para em 30 dias proceder ao pagamento em dívida, tudo num total de, pelo menos, 120 dias.
Cremos, contudo, que ainda que assim não se proceda, instaurado já o inquérito, depois da participação da AT, nada impedirá que o MP possa proceder, à notificação a que alude a referida alínea b), por si, pelas autoridades policiais ou pelos serviços de Finanças a quem haja delegado a competência para os actos de inquérito, assim se suprindo a apontada irregularidade
Como pode, pelo contrário, remeter o processo à AT para proceder à apontada regularização, o que vai dar ao mesmo resultado.
Não obstante, como já referimos, é imprescindível que a factualidade atinente com o facto de a notificação para pagar em 30 dias, ter sido efectuada depois de decorrido o prazo de 90 dias, conste da acusação e da sentença.
3. Apreciando.
3.1. A nulidade do inquérito.
No caso em apreço, está em causa o IVA liquidado e recebido pelos arguidos, no mês de Março de 2018, sendo que a arguida estava enquadrada em sede de IVA no regime normal com periodicidade mensal.
Assim, o prazo para o pagamento do IVA referente ao mês de Março de 2018, nos termos dos artigos 27.º/1 e 41.º/1 alínea a) do CIVA completou-se em 10.05.2018 e o termo do prazo legal para entrega da prestação, nos termos do artigo 105.º/4 alínea a) do RGIT, ocorreu em 10.08.2013.
Vejamos o que dos autos consta.
A participação foi enviada ao MP a 09.08.2018.
A 03.09.2028 foi proferido despacho, entre o mais, a ordenar se oficiasse aos serviços de Finanças para procederem à notificação das denunciadas nos termos e para os efeitos do artigo 105.º/4 do RGIT.
No dia seguinte, a 04.09.2018, foram os autos remetidos à Direcção de Finanças Distrital de Lisboa, para investigação.
A 09.12.2018, após validação, pelo MP, foram remetidos os autos de constituição de arguido.
A 20.12.2018 foi deduzida acusação.
Dizem os arguidos que se verifica a nulidade do inquérito dado que só vieram a ser notificadas nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT em 06.11.2018, aquando da sua constituição e inquirição como arguidos, conforme resulta de fls. 64 a 71.
Dizem os arguidos que neste momento a conduta ainda não tinha assumido as vestes de crime, mas somente de contraordenação.
Isto quando o artigo 114.º que prevê o ilícito contraordenacional, deverá ser conjugado com o artigo 105.º, que prevê o ilícito criminal, cujo objeto é o abuso de confiança fiscal, para que se determine se estamos perante um crime ou uma contraordenação - visto que ambos os artigos punem a falta de entrega da prestação tributária, só existe crime no caso de existir dolo e terem decorrido mais de 90 dias sobre a data em que deveria ter sido entregue a prestação tributária em falta, acrescido do prazo estabelecido na alínea b) do artigo 105.º do RGIT para a notificação ao contribuinte.
No caso, quando foi enviada a participação ao MP, não só não fora efectuada a notificação a que alude o artigo 105.º/4 alínea b), como, de resto, ainda, nem sequer tinha decorrido o prévio e antecedente prazo de 90 dias, após o decurso do qual pode aquela ser efectuada.
Isto é, estaríamos ainda no iter antecedente à fase criminal.
A traduzir a preterição do formalismo processual atinente com a natureza dogmática do tipo legal e com as regras próprias do processo penal.
Apenas no decurso do inquérito veio a notificação a ser feita e, ademais veio o prazo dos 90 dias a ser completado.
E, no inquérito se ordenou, decorrido afinal o prazo dos 90 dias, se efectuasse a referida notificação. Num contexto em que se visou, por um lado, conceder a segunda oportunidade aos arguidos, como é de Lei, para reporem a verdade fiscal e, por outro, sem preterição de qualquer formalidade essencial ou de algum direito ou garantia do arguido, sanar uma irregularidade.
Tendo em vista que se os arguidos, entretanto, procedessem ao pagamento, no aludido prazo, não seriam punidos criminalmente.
Como é sabido, em matéria de nulidades vigora em processo penal, o princípio da legalidade, isto é, só constituem nulidades as expressamente previstas na lei e nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular - artigo 118.º do CPP.
Ora, a notificação dos arguidos nos moldes e para os efeitos acima referidos não padece do vício de nulidade, uma vez que não consta dos artigos 119.º e 120.º CPP, nem de qualquer norma avulsa, pelo que estamos perante uma mera irregularidade.
E sobre estas estabelece o artigo 123.º/1 CPP que “qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado”.
E o n.º 2 do mesmo preceito dispõe que, “pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento quando ela puder afectar o valor do acto praticado”.
Portanto, nesta matéria vigora o princípio da relevância material da irregularidade, segundo o qual só são relevantes as irregularidades que possam afectar o valor do acto praticado.
Com a remessa da participação criminal antes de efectuada a notificação – e, mesmo, antes do decurso do prazo previsto na alínea a) - cometeu-se uma irregularidade relevante que, caso se mantivesse, conduziria, sem dúvida, à não dedução, desde logo, de acusação contra o arguido ou posteriormente à sua absolvição, pela não verificação de uma das duas condições objectivas de punibilidade.
Isto tendo presente que a primeira, sempre teria sido atingida pelo mero decurso do prazo dos 90 dias.
Pelo que o MP podia e devia ter mandado reparar essa irregularidade, nos termos do n.º 2 do artigo 123.º CPP, sanando assim o vício detectado - cfr. neste sentido acórdão da RE de 21.03.2017, proc. n.º 228/13.3IDSTB.E1, www.dgsi.pt.
O que, no caso sub judice, fez.
No sentido, de que a omissão da notificação ou a incorrecta notificação prevista no artigo 105.º/4 do RGIT, constitui uma irregularidade, de conhecimento oficioso se pronunciaram os acórdãos da RP de 26.02.2014 e de 13.05.2015 (procs. 6319/11.8IDPRT.P1 e 7018/11.6IDPRT.P1 disponíveis em www.dgsi.pt.)
E, no sentido de que nada obsta a que tal notificação, estando já o processo na fase judicial possa ser ordenada pelo Juiz que preside ao julgamento, sem necessidade de se solicitar à administração fiscal que procedesse a tal notificação, decidiu a RC por acórdão de 23.10.2013 (proc. n.º 1231/11.3T3AVR.C1, www.dgsi.pt.)
E, assim, desprezando aqui e agora o facto absolutamente paradoxal de se notificar alguém, para pagar a prestação em dívida, de forma a fazer desencadear o surgimento da apontada condição objectiva de punibilidade, na ocasião em que é constituído como arguido pelo crime, já consumado, mas ainda não estando perfectibilizada a sua possibilidade de punição – a implicar que a acusação sempre teria que aguardar pelo decurso do prazo acabado de conceder – nenhuma nulidade terá sido cometida, mormente, a provocar a nulidade do inquérito, como pretendem os arguidos.
Nulidade do inquérito que nem sequer existe como causa de nulidade processual, de entre as previstas no texto legal.
Mas que a existir, sempre se teria que considerar sanada, pelo decurso do tempo, visto que o artigo 120.º/3 CCP estipula que “tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito deve ser arguida até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até 5 dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito”.
Improcede, assim, não obstante a constatada, irregular tramitação processual, este segmento do recurso.
3.2 Impugnação da matéria de facto.
3.2.1. Vejamos, para começar, o teor da sentença recorrida neste segmento.
“(…)
Factos provados.
1. A arguida "AA" é uma sociedade anónima, portadora do NIPC …, com sede na ... e que tem por objecto social o …; o …; a gestão de imóveis; a …; ….
2. O arguido BB exerceu as funções de gerente de facto e de direito da sociedade "AA, S.A." desde a sua constituição, em ... de ... de 2013, assumindo as funções de administrador único, de facto e de direito, a partir de … de … de 2015, quando a arguida "AA, S.A." foi convertida em sociedade anónima.
3. Para efeitos de IVA a arguida "AA, S.A." estava, à data dos factos, enquadrada no regime normal de periodicidade mensal.
4. No exercício da sua actividade, o arguido BB procedia à cobrança de IVA aos seus clientes, estando obrigado a entregar tais quantias nos cofres do Estado, a quem pertenciam os montantes liquidados a esse título.
5. O arguido BB enviou, efectivamente, à Administração Fiscal, a competente declaração periódica referente ao mês de Março de 2018, tendo sido apurado que o valor do imposto a entregar ao Estado era de €58.430,75.
6. No entanto, o arguido BB não fez acompanhar as referidas declarações periódicas dos respectivos meios de pagamento.
7. Os arguidos "AA" e BB receberam efectivamente dos seus clientes o montante do IVA supra indicado.
8. Acresce que tal montante não foi entregue ao Estado pelos arguidos "AA, S.A." e BB no prazo legal, nem nos 90 dias subsequentes.
9. Notificados para procederem ao pagamento da referida quantia, acrescida dos juros e da coima respectiva, mais uma vez abstiveram-se de o fazer, antes se apoderando de tal valor, o qual fizeram seu.
10. Os arguidos "AA, S.A." e BB sabiam que tal dinheiro, cobrado aos clientes a título de IVA, não lhes pertencia e que deveria ter sido declarado, devidamente liquidado e entregue nos cofres do Estado, nos prazos legais.
11. O arguido BB agiu em nome e no interesse da sociedade arguida "AA", bem como no seu próprio interesse.
12. Ao não entregarem nos cofres do Estado o IVA mencionado, integrando-o na esfera patrimonial da sociedade arguida "AA, S.A." e BB, agiram de forma livre e com o propósito concretizado de prejudicar o Estado e de obter vantagem patrimonial de valor superior a €50.000,00 a que não tinham direito, resultado que representaram.
13. Os arguidos "AA" e BB agiram sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo, que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
14. À quantia em causa foi abatida, por compensação, a quantia devida a título de reembolso de IRS permanecendo em dívida a quantia de €22.676,49.
15. A última declaração de rendimentos do arguido BB data de 2015.
16. Junto da Segurança Social constam como entidades empregadoras do arguido "..." Com data de início de funções a 06/07/2015, "AA, S.A." (Zona Franca da Madeira) com início de funções a 07/05/2015 e "AA" com início de funções a 12/07/2013.
17. O arguido não tem qualquer registo criminal.
18. A "AA, S.A." foi constituída em …/…/2013 com o capital social de €5.000,00 e em 07/04/2014 foi transformada em sociedade anónima e aumentado o capital social para €100.000,00.
19. Desde 2018, cessaram a prestação de constas desta sociedade.
20. Actualmente encontra-se cessada a actividade comercial junto da Autoridade Tributária.
(…)
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A decisão de facto teve por base – quer quanto à questão da culpabilidade, quer quanto à questão da determinação da sanção – o depoimento da testemunha CC, inspectora tributária que efectuou a instrução do inquérito – tendo esclarecido a forma como procedeu à recolha dos elementos probatórios –, conjugada com a prova documental constante do processo, designadamente, certidão permanente da "AA, S.A." de fls.17 a 21, documentos de fls. 25, 34 a 56, 73 a 82, notificações de fls. 70 e 71”.
3.2.2. A isto que contrapõem os arguidos?
Entendem os arguidos que a decisão recorrida errou na apreciação, ponderação e valoração da prova, essencialmente da prova documental, tal como havia feito a testemunha que instruiu o processo – erro, este, que vem do inquérito e, julgou erradamente como provados os factos constantes dos pontos 4, 5, 7, 9 e 12.
Para o que alinha o seguinte raciocínio:
- os factos provados nos pontos,
4. O arguido BB procedia à cobrança de IVA aos seus clientes, estando obrigado a entregar tais quantias nos cofres do Estado, a quem pertenciam os montantes liquidados a esse título. 5
5. O arguido BB enviou, efetivamente, à Administração Fiscal, a competente declaração periódica referente ao mês de março de 2018, tendo sido apurado o valor de imposto a entregar ao Estado era de €58.430,75.
7. Os arguidos AA e BB receberam efetivamente dos seus clientes o montante de IVA supra indicado.
9. Notificados para procederem ao pagamento da referida quantia, acrescida (…), antes se apoderando de tal valor que fizeram seu.
12. Ao não entregarem nos cofres (…) agiram de forma livre e com o propósito concretizado de prejudicar o Estado e de obter vantagem patrimonial de valor superior a (…) resultado que representaram,
resultam ipsis verbis, da informação vertida no relatório datado de 06.11.2018, de fls. 109 a 113 dos autos, elaborado pela inspetora/testemunha única CC e corresponderá ao que esta terá dito em julgamento;
- contudo, sendo verdade que o valor liquidado – e resultante da dedução ao valor cobrado aos clientes da AA, do valor de IVA suportado por aquela, são os indicados, a verdade é que o(s) arguido(s) não receberam dos seus clientes o montante de IVA supra indicado;
- a atividade comercial que justificou a emissão e liquidação do IVA respeitante ao período em causa – mês de Março de 2018, era e sempre foi prosseguida pela arguida e não pelo arguido, pelo que este nada recebeu dos clientes da empresa – inexistindo qualquer prova nos autos em que os pagamentos do IVA, devidos pela faturação emitida no período, tenham alguma vez ingressado no património do arguido;
- não tendo havido desconsideração da personalidade jurídica da arguida, porque não ficou provado ter existido “…uma utilização da personalidade colectiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa-fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam”- critério bem plasmado no acórdão de Revista do STJ de 09.11.2017 proferido no processo 919/15.4T8PNF.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt;
- até porque a arguida, se foi constituída em 12.07.2013 como uma sociedade unipessoal, em que era sócio e gerente o arguido, em junho de 2015 é transformada em sociedade anónima, com uma pluralidade de sócios que interesse efetivo tem no resultado da exploração da atividade da sociedade, com direito a auferir lucros, tal como resulta da ap. 2/20150624 da matricula da sociedade junta a fls. 17 a 21 dos autos;
- a fls. 62 verso dos autos, resulta que nem era o arguido quem entregava o IVA, sendo esta tarefa executada pelo contabilista certificado, que após, emitia a Guia de pagamento e enviava 7 por e-mail para os serviços administrativos da arguida, sendo este o procedimento habitual;
- não se podia, assim, dar como provada a factualidade constante nos pontos 4 e 5, cuja redação deverá ser alterada, e desta, retirada a referência ao arguido;
- compulsando a prova documental recolhida para os autos (e valorada na decisão recorrida) de fls.25, 34 a 56, 73 a 82, identifica-se, logo a fls. 25 e 25 verso a génese do erro que veio contaminar todo o inquérito, chegando à acusação, e por fim, à sentença;
- compulsando o referido documento, que consubstancia comprovativo de entrega da declaração periódica, via internet, do período de 1 a 31 de março de 2018 (factos provados 5, com a ressalva de ser exclusivamente a arguida quem entregou à AT a declaração fiscal) verifica-se que o total de imposto a favor do Estado (campo 92) era de €101.258,77, e que deduzido o total de imposto a favor do sujeito passivo - arguida (campo 91) o valor de imposto a entregar ao Estado (campo 93) era de €58.430,75;
- no entanto, aos seus clientes a arguida liquidou o valor total de €101.258,77 em 14 faturas, emitidas desde o dia 02.03.2018 ao dia 28.03.2018, e com vencimentos a 15 dias (ao cliente ...) e a 30 dias (ao cliente ...) cuja lista de faturas consta a fls. 22, e as faturas (e alguns recibos) de fls. 40 a 56 dos autos. 8;
- como se sabe, liquidar o imposto e receber o montante correspondente são situações e momentos distintos;
- o que sucedeu nos autos, foi efetivamente que os clientes da arguida, apesar de terem recebido as faturas, não as pagaram na sua totalidade – o que sucedeu desde logo com faturas 2018/46 e 2018/47 a fls. 45 e 46, no montante de €18.052,50 e €18.038,00 respetivamente;
- o que fica demonstrado, desde logo, pela ausência de recibos de pagamento emitidos, respeitantes a estas faturas, ao contrário do que sucedeu com as faturas emitidas ao cliente ..., e decorrendo ainda do extrato de conta impresso pela AT ao dia 20.08.2018, que a 20.08.2018 ainda se encontravam as faturas no estado de “pendente”, ao contrário das demais cujo estado, naquela data era “registada”;
- assim, a ausência de recebimento da totalidade do valor das faturas emitidas aos seus clientes, terá concorrido (e se não mesmo sido determinante) para que efetivamente tivesse existido uma diminuição da capacidade de tesouraria da arguida em cumprir as suas obrigações, designadamente as fiscais - o que aliás foi justificado perante a AT;
- por outro lado, o valor do IVA arrecadado deduzido o valor suportado pela arguida, deveria ter sido entregue nos cofres do Estado até ao dia 10.05.2018;
- ora nessa data a arguida ainda não tinha recebido dos seus clientes os montantes que tinha planeado receber até 15.04.2018, e por isso, a empresa que até aí tinha sido “certinha” e cumpridora, como decorre do depoimento do contabilista da arguida à AT em 05.11.2018 (fls.62) não conseguiu cumprir, nem como o pagamento atempado do tributo, nem com as prestações do plano prestacional a que se propôs;
- logo em 24.05.2018, foi levantado auto de notícia (a fls.13 dos autos) e aberto o processo de inquérito criminal (fls.15) pelo crime de abuso de confiança p.p. pelo art. 105º do RGIT, sem que tivesse sido decorrido o prazo previsto na alínea b) do nº. 4 daquele citado preceito, e que fora citada em 31.05.2018, logo em 20.06.2018 (fls.32) apresenta pedido de pagamento da dívida em prestações (fls. 92) alegando como se transcreve: “fortes dificuldades de tesouraria devido à quebra de faturação do mercado de azeite”;
- dos autos consta, a fls.94 verso, a declaração do contabilista certificado da arguida, DD, emitida em 20.06.2018, reiterando que as fortes dificuldades se devem à quebra significativa do mercado de azeite em que a empresa opera;
- e, por isso, diz que esse foi o motivo para que a arguida tivesse falhado pela primeira vez, os seus compromissos fiscais, conforme fls. 94 v. dos autos;
- na esteira do AUJ do STJ de 29.4.2015, para o preenchimento do crime de abuso de confiança fiscal é necessário a não entrega do IVA liquidado, o que releva é a componente de tesouraria (disponibilidade financeira) e não a mera componente de contabilidade;
- parece manifesto que a arguida ainda que tenha recebido dos seus clientes, o valor de IVA devido, não teve condições para fazer o pagamento ao Estado do tributo, por falta de tesouraria – que se propôs suprir com a “…venda de um terreno e com a nova colheita” (fls.68 v) por razão que não lhe foi imputável, nem no curto espaço de tempo que mediou entre o vencimento da obrigação e a instauração do processo crime, a nosso ver extemporâneo, não tendo havido qualquer intenção de apropriação de valores;
- inexistindo dolo por parte dos arguidos, sendo que ele não estava obrigado pessoalmente ao pagamento do tributo por ter inexistido qualquer reverão fiscal - como demonstrado, pois enquanto administrador, diz a lei, só se constitui devedor, depois da acção executiva reverter sobre ele (artigo 22.º e 23.º da LGT), enquanto devedor subsidiário;
- assim, não se pode dar como verificada a factualidade vertida em 9 e 12 da factualidade assente, nem preenchido o tipo de crime por que foram condenados, e como tal deste deverão ser absolvidos.”
3.2.3. Vejamos, pois, se assiste razão aos recorrentes.
O que os arguidos, inequivocamente, pretendem é alterar o sentido da decisão sobre a matéria de facto, de cuja afirmação positiva, afinal, discordam – no que se refere aos factos contidos nos pontos,
4. O arguido BB procedia à cobrança de IVA aos seus clientes, estando obrigado a entregar tais quantias nos cofres do Estado, a quem pertenciam os montantes liquidados a esse título. 5
5. O arguido BB enviou, efetivamente, à Administração Fiscal, a competente declaração periódica referente ao mês de março de 2018, tendo sido apurado o valor de imposto a entregar ao Estado era de €58.430,75.
7. Os arguidos AA e BB receberam efetivamente dos seus clientes o montante de IVA supra indicado.
9. Notificados para procederem ao pagamento da referida quantia, acrescida (…), antes se apoderando de tal valor que fizeram seu.
12. Ao não entregarem nos cofres (…) agiram de forma livre e com o propósito concretizado de prejudicar o Estado e de obter vantagem patrimonial de valor superior a (…) resultado que representaram.
Entendendo que tal factualidade deve ser dada como não provada.
Esta formulação remete-nos para a questão de saber se será caso de modificação do julgamento firmado sobre a matéria de facto, o que implica apreciar as razões do que afinal se reconduz a uma diversa valoração do sentido da prova pessoal produzida, sobre os factos cujo julgamento vem impugnado.
Esta questão tem subjacente o controlo sobre a admissibilidade e valoração dos meios de prova de que depende em última análise, a fixação dos factos materiais da causa.
No entanto, a propósito desta temática atinente com os poderes conferidos às Relações em termos de modificação da matéria de facto apurada em 1.ª instância, importa referir o seguinte, o que, de resto, constitui questão prévia suscitada pelo parecer da Sra. PGA.
Não obstante, hoje, nos termos do artigo 428.º CPP, as Relações conhecerem de facto e de direito, não basta para que a Relação conheça da matéria de facto que a prova haja sido documentada, o que hoje acontece, sempre, obrigatoriamente, de resto.
A decisão, da 1.ª instância, relativa à matéria de facto pode ser modificada nos termos do artigo 431.º alínea b) do CPP, isto é, quando a prova tiver sido impugnada de acordo com o disposto no artigo 412.º/3 e 4 do mesmo diploma.
Como é sabido o artigo 412.º CPP é exigente em relação aos requisitos formais a observar no recurso, quer este verse sobre matéria de facto - quer quando incida sobre a matéria de direito, como adiante veremos.
Se o recorrente pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, tem de dar satisfação cabal aos ónus contidos nos números 3 e 4 do artigo 412.º CPP, que dispõe que:
“(…)
3. quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) as provas que devem ser renovadas.
4. quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do nº anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do artigo 364º/2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação
(…)”.
A razão de ser da exigência deste procedimento, está relacionada com o facto de que o recurso sobre matéria de facto não configura um novo julgamento destinado a reapreciar toda a prova produzida perante a primeira instância e documentada no processo, antes se destina a remediar erros de julgamento, que devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros.
A Lei 48/2007, de 2 de Agosto, que conferiu a redacção acabada de descrever ao preceito em causa, mudou profundamente o regime da impugnação da matéria de facto, visando, por um lado, tornar mais exigente a especificação dos pontos de facto impugnados e das provas que impõem, decisão diversa da recorrida e, por outro, colocar fim à transcrição dos registos gravados.
A exigência de na motivação do recurso sobre a matéria de facto, se dever especificar os concretos pontos de facto que se considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, deve ser, nesta conformidade, entendida, como, apenas se satisfazendo, com:
- a indicação do facto individualizado que consta da decisão recorrida e que se considera incorrectamente julgado e,
- a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida.
Será insuficiente, no que se refere àquele primeiro requisito, a mera enunciação da totalidade da materialidade descrita na acusação e transposta para a sentença - sem qualquer, diferenciação, distinção ou particular especificação – e, quanto a este último requisito, a mera indicação genérica de um determinado depoimento ou a genérica referência a qualquer documento.
O recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa da recorrida. Esta exigência de concretização visa impor a quem recorre a obrigação de relacionar o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado.
No caso de depoimentos prestados em audiência, a referência ao suporte magnético apenas se cumpre com a indicação do n.º da “volta” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento ou no que toca à gravação em feita em cd, com a indicação do tempo em que consta o trecho de depoimento, que se pretende salientar.
Sem embargo de não concretizarem, de entre os factos contidos nos pontos que invocaram e que transcreveram e, em relação ao sentido da decisão diversa, que deve ser proferida, cumpre referir que se não especificou qual o facto, quais os factos, deve-se entender que será a globalidade, a totalidade dos que constam dos aludidos pontos.
Da mesma forma, em relação ao sentido da decisão, pela qual os arguidos se batem. Deve-se entender ser a não prova na totalidade, dos que constam dos pontos que invocam e transcrevem.
Com excepção do segmento que afirma que os arguidos receberam, pois que defendem que afinal foi o arguido que não recebeu nem fez seu qualquer pagamento de IVA.
Quanto ao mais, como parece manifesto, ostensivo, mesmo, em relação à prova testemunhal os arguidos não cumpriram o aludido ónus.
Não situam, não concretizam, não transcrevem, nem sequer, analisam qualquer excerto do que foi dito pela testemunha.
Donde, sem grande margem para dúvida, podemos afirmar que os arguidos não cumprem com o apontado requisito de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
O cumprimento daquele ónus só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do elemento de prova e com a explicitação da razão pela qual o mesmo impõe - e não apenas permite - decisão diversa da recorrida.
Não há qualquer referência às concretas passagens, a excertos do depoimento da testemunha. Muito menos, relacionados aos factos concretos impugnados, onde os arguidos tenham tido a preocupação de tentar demonstrar a existência dos alegados erros de julgamento.
Não reporta o arguido qualquer particular e concreto excerto da prova pessoal que transcreve a qualquer facto de cujo julgamento discorda.
É certo que fica claro, pela remissão para os números, quais os factos de cujo julgamento, afinal discordam, mas já não, como se exige, em relação às concretas provas donde pretendem a alteração/modificação do julgado – pois que não fazem a sua especificação, a sua concretização e, muito menos, a sua análise e relacionação com qualquer facto concreto.
E, assim, apesar de os arguidos fazerem a indicação generalizada – por remissão para os respectivos números, é certo - dos factos que tem por incorrectamente julgados, o certo é que não indicam e não fundamentam, nem, quais as concretas passagens dos trechos que invocam, que, no seu entender, impõem alteração do sentido do julgamento, nem, os factos concretos que cada uma daquelas impõe sejam alterados.
Quanto aos documentos, como se referiu já, entendem os arguidos que os factos de cuja afirmação discordam resultam ipsis verbis, da informação vertida no relatório datado de 06.11.2018, de fls. 109 a 113 dos autos, elaborado pela inspetora/testemunha única CC e corresponderá ao que esta terá dito em julgamento.
Isto é, não satisfazem de forma nem adequada, nem suficiente os apontados requisitos.
Os termos em que o recurso vem estruturado parecem deixar transparecer que os arguidos apenas tiveram em mente abalar a convicção formada pelo tribunal a quo, relativamente aos factos de cuja afirmação discordam.
E, assim, dado que os arguidos, essencial e decisivamente, não especificaram os trechos da prova pessoal que no seu entender impõem decisão de sentido diverso está o tribunal de recurso impedido, de por esta via, conhecer da pugnada alteração/modificação do decidido.
E, quanto a documentos, dizem que,
- liquidar o imposto e receber o montante correspondente são situações e momentos distintos;
- os clientes da arguida, apesar de terem recebido as facturas, não as pagaram na sua totalidade – o que sucedeu desde logo com faturas 2018/46 e 2018/47 a fls. 45 e 46, no montante de €18.052,50 e €18.038,00 respetivamente;
- o que fica demonstrado, desde logo, pela ausência de recibos de pagamento emitidos, respeitantes a estas faturas, ao contrário do que sucedeu com as faturas emitidas ao cliente ..., e decorrendo ainda do extrato de conta impresso pela AT no dia 20.08.2018, que nessa data ainda se encontravam as faturas no estado de “pendente”, ao contrário das demais cujo estado, naquela data era “registada”;
- assim, a ausência de recebimento da totalidade do valor das faturas emitidas aos seus clientes, terá concorrido (e se não mesmo sido determinante) para que efetivamente tivesse existido uma diminuição da capacidade de tesouraria da arguida em cumprir as suas obrigações, designadamente as fiscais - o que aliás foi justificado perante a AT.
Para depois passarem a alegar que a arguida requereu o pagamento da dívida em prestações, com o fundamento em “fortes dificuldades de tesouraria devido à quebra de faturação do mercado de azeite” – o que terá motivado que tivesse falhado pela primeira vez, os seus compromissos fiscais e defenderem que, “ainda que (a arguida) tenha recebido dos seus clientes, o valor de IVA devido, não teve condições para fazer o pagamento ao Estado do tributo, por falta de tesouraria – que se propôs suprir com a (…) venda de um terreno e com a nova colheita” (fls. 68 v) - por razão que não lhe foi imputável, nem no curto espaço de tempo que mediou entre o vencimento da obrigação e a instauração do processo crime, não tendo havido qualquer intenção de apropriação de valores.
E, ainda, que inexiste dolo por parte dos arguidos, sendo que ele (arguido) não estava obrigado pessoalmente ao pagamento do tributo por ter inexistido qualquer reversão fiscal.
Daqui concluindo que se não pode ter como verificada a factualidade vertida em 9. e 12. da factualidade assente, nem preenchido o tipo de crime por que foram condenados, e como tal deste deverão ser absolvidos.
Como parece medianamente evidente, esta análise a culminar no entendimento de que, muito embora, haja sido recebido o valor do IVA dos clientes não o entregou, por dificuldades de tesouraria, atinentes com a quebra do mercado do azeite, a traduzir a falta de intenção de apropriação, por um lado e, de dolo, por outro e, que o sócio gerente, o arguido não pode ser responsabilizado pelo facto de não ter havido reversão, não colhe, nem aqui, que é o que releva, nem em sede de direito como veremos adiante.
Esta argumentação não tem a mais ligeira virtualidade de poder infirmar os factos julgados como provados.
Não impõe, não exige e nem sequer sugere, a alteração/modificação dos aludidos factos provados, assim improcedendo este segmento do recurso e, como consequência, ter-se-á a factualidade definida na decisão recorrida como definitivamente fixada.
3.3. Qualificação jurídico-penal dos factos.
3.3.1. Vejamos a fundamentação da decisão recorrida.
“Os arguidos vêm acusado pela prática de crime de abuso de confiança fiscal, p. e p., nos artigos 6.º, 7.º, 105.º, n.º 1 e n.º 5 do Regime Jurídico das Infracções Tributárias.
Este crime tem como elementos objectivos do tipo:
- não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei;
- obrigação legal de entregar tal prestação tributária.
Conforme se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 8/2012:
O legislador de 2001 prescindiu do momento apropriação, que no contexto do RJIFNA integrava a factualidade típica da incriminação, convertendo a infracção num crime de mera inactividade, esgotando -se na mera não entrega à administração fiscal, dentro de determinado prazo, de prestações tributárias deduzidas nos termos da lei pelo substituto fiscal. O ilícito em causa passou a assentar na violação do comando legal de entregar ao Estado prestações tributárias deduzidas e retidas.
Ao afastar -se do regime penal comum, afirma Germano Marques da Silva, em "Direito Penal Tributário", UCE, 2009, p. 46, o crime de abuso de confiança passou a configurar-se essencialmente como um crime de violação do dever funcional do substituto tributário.
E a p. 58, diz «O que verdadeiramente se verifica nos crimes de abuso de confiança é o incumprimento do dever funcional do substituto: a entrega nos cofres do Estado dos bens que arrecadou em nome e por conta do Estado. É a infidelidade a razão da punição».
Como assinala Susana Aires de Sousa, na obra "Os Crimes Fiscais, Análise Dogmática e Reflexão sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador", edição da Coimbra Editora, Julho de 2006 (depósito legal n.º 246 019/2006), p. 126, citando — nota 241 — Acórdãos do STJ de 2 de Julho de 1998 e de 13 de Dezembro de 2001, para que a não entrega constitua crime de abuso de confiança fiscal é necessário que a prestação tributária em causa tenha sido efectivamente deduzida ou recebida pelo agente. Se o substituto não deduziu sequer a prestação, não está preenchido o tipo do artigo 105.º do RGIT.
Objecto de previsão específica do crime de abuso de confiança fiscal é, no artigo 105.º, o que se contém nos n.ºs 1, 2 e 3, definindo os elementos do crime (as «extensões» do conceito de prestação tributária constantes dos n.ºs 2 e 3 reproduzem na íntegra o texto dos n.ºs 2 e 3 do artigo 24.º do RJIFNA originário)" (in, Diário de República, 1.ª série, n.º 206, de 24/10/2012, p. 5994).
E, como elemento subjectivo:
- o dolo, em qualquer uma das suas formas.
E, ainda, se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 8/2012:
"O RGIT retomou quanto ao elemento estrutural apropriação a orientação da redacção originária do RJIFNA, mas não considerou como elemento constitutivo do crime o dolo específico, a «intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida», simplificando os elementos constantes do crime que passam a ser a não entrega atempada da prestação tributária deduzida nos termos da lei e que o contribuinte estava legalmente obrigado a entregar. Não se exige agora nem apropriação, nem aquela referida intenção" (in, Diário de República, 1.ª série, n.º 206, de 24/10/2012, p. 5994).
Assim sendo, face à factualidade apurada é de concluir que a conduta dos arguidos é subsumível ao tipo objectivo do crime de abuso de confiança fiscal.
Com efeito, não foram entregues aos Cofres do Estado prestações tributárias legalmente deduzidas referentes a IVA.
Deste modo, encontram-se preenchidos todos os elementos típicos do crime de abuso de confiança fiscal.
De igual forma, a conduta dos arguidos integrou o elemento subjectivo geral deste tipo de crime, na forma de dolo directo, assim como o elemento subjectivo específico deste tipo de crime, a especial intenção de apropriação.
Inexistindo causas que excluam a ilicitude indiciada pelo preenchimento dos elementos do tipo, assim como, causa de desculpa é de concluir que os arguidos praticaram, em autoria material, um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p., nos artigos 6.º, 7.º, 105.º, n.º 1 e n.º 5 do Regime Jurídico das Infracções Tributárias”.
3.3.2. As razões dos arguidos.
Defendem os arguidos que não se podendo dar como verificada a factualidade vertida nos aludidos pontos 9. e 12., não se pode ter como preenchido o tipo de crime por que foram condenados, e como tal deste deverão ser absolvidos.
E, dizem mais,
- que o abuso de confiança fiscal só é crime, quando cumprido o estabelecido no artigo 105.º do RGIT, pois antes de se tratar de um crime, é uma contraordenação prevista pelo artigo 114.º do RGIT;
- não só não existiu dolo, como também não haviam decorrido os 90 dias sobre o termo legal da prestação tributária quando o procedimento crime tributário foi instaurado, que somente se verificaria a 09.08.2018;
- aliás, os arguidos só vieram a ser notificadas nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT em 06.11.2018, aquando da sua constituição e inquirição como arguidos, conforme resulta de fls. 64 a 71 dos autos, momento em que a conduta ainda não tinha assumido as vestes de crime, mas somente de contraordenação - verificando-se assim nulidade de inquérito;
- o artigo 114.º - ilícito contraordenacional, deverá ser conjugado com o artigo 105.º - ilícito criminal, ambos do RGIT, cujo objeto é o abuso de confiança fiscal, para que se determine se estamos perante um crime ou uma contraordenação - visto que ambos os artigos punem a falta de entrega da prestação tributária, só existe crime no caso de existir dolo e terem decorrido mais de 90 dias sobre a data em que deveria ter sido entregue a prestação tributária em falta, acrescido do prazo estabelecido na alínea b) do artigo 105.º do RGIT para a notificação ao contribuinte.
3.3.3. Apreciando, diremos que em face dos factos provados,
- o arguido exerceu as funções de gerente de facto e de direito da sociedade arguida, desde a sua constituição, em 12.7.2013, assumindo as funções de administrador único, de facto e de direito, a partir de 24.6.2015, quando esta foi convertida em sociedade anónima;
- no exercício da sua actividade, o arguido procedia à cobrança de IVA aos seus clientes, estando obrigado a entregar tais quantias nos cofres do Estado;
- o arguido enviou à Administração Fiscal, a competente declaração periódica referente ao mês de Março de 2018, tendo sido apurado que o valor do imposto a entregar ao Estado era de €58.430,75;
- no entanto, o arguido não fez acompanhar a referida declaração periódica do respectivo meio de pagamento;
- apesar de terem recebido dos seus clientes o montante do IVA;
- que não foi entregue, nem nos 90 dias subsequentes, nem, posteriormente, depois de notificados para procederem ao pagamento da referida quantia, acrescida dos juros e da coima respectiva;
- os arguidos sabiam que tal dinheiro, cobrado aos clientes a título de IVA, não lhes pertencia e que deveria ter sido declarado, devidamente liquidado e entregue nos cofres do Estado, nos prazos legais;
- o arguido agiu em nome e no interesse da sociedade arguida, bem como no seu próprio interesse;
- agiram de forma livre, sabendo, que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei,
tendo presente,
- o disposto no artigo 6.º do RGIT, que sob a epígrafe de “actuação em nome de outrem” dispõe que,
“1 - Quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija:
a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado;
b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado.
2 - O disposto no número anterior vale ainda que seja ineficaz o acto jurídico fonte dos respectivos poderes”;
- bem como do artigo 7.º, que sob a epígrafe de “responsabilidade das pessoas colectivas ou equiparadas” que dispõe que,
“1 - As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.
2 - A responsabilidade das pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.
3 - A responsabilidade criminal das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes.
4 - A responsabilidade contra-ordenacional das entidades referidas no n.º 1 exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes.
5 - Se a multa ou coima for aplicada a uma entidade sem personalidade jurídica, responde por ela o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associados”,
- não há margem para dúvida de que ambos os arguidos, a sociedade e o seu administrador, único, incorreram na prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pela conjugação dos artigos 6.º, 7.º e 105.º/1 e 5 do RGIT.
Com efeito, dada a singular e única posição do arguido no seio da administração da arguida, para a vinculação e responsabilização de ambos, fundamental é o ter-se apurado que os factos, a omissão, tenha ocorrido em nome da sociedade e na prossecução do seu interesse colectivo. Infracção em nome da sociedade é aquela que é praticada no âmbito da sua actividade ou em conexão com a mesma; aquela que é praticada no âmbito da sua organização, funcionamento ou realização dos seus fins.
Julgar como provado que o arguido, pessoa singular, administrador da arguida sociedade, agiu em nome e no interesse desta equivale a dizer que actuou como titular do seu órgão executivo e, portanto, como representante legal da sociedade.
Por outro lado, ao contrário do que alegam os arguidos, a responsabilidade tributária e a responsabilidade criminal não se confundem, não dependendo esta última da existência, ou não, de reversão contra o arguido da prestação tributária, no âmbito do processo tributário.
3.4. A nulidade da sentença – que apenas aqui e agora se aprecia por se reportar às derradeiras operações efectuadas na decisão recorrida.
3.4.1. As razões dos arguidos.
Defendem os arguidos ser a sentença nula numa tríplice – ou mesmo quádrupla - vertente.
Em relação à arguida defendem que se impunha a reabertura da audiência para produção de prova suplementar para apurar a situação económica e financeira da arguida e seus encargos, essencial para a determinação da medida concreta das penas a aplicar, como expressamente preveem os artigos 369.º/2 e 371.º CPP, para depois afirmarem, é certo, que, tendo em conta a ausência de liquidez financeira de uma sociedade com atividade cessada, reputa-se justa a fixação de um quantitativo diário da multa próximo do seu limite mínimo e em número não superior a €2,50.
Para o que alinham a seguinte linha de raciocínio:
- começam por remeter para a questão do dolo, já antes alegada, onde defenderam que não se verifica no caso – e, sem, que daqui extraiam qualquer conclusão – questão prejudicada pela não alteração/modificação do julgamento firmado sobre a matéria de facto, como pretendiam;
- no que que respeita ao quantitativo diário da multa, deve o mesmo ser fixado em função da situação económica e financeira da arguida e dos seus encargos;
- a decisão recorrida não ponderou, desde logo, o facto de a arguida ter prosseguido uma atividade muito dependente do resultado das colheitas, da ausência de recebimentos nos vencimentos, de ter cessado a sua prestação de contas em 2018, deixando de ter atividade, logo rendimentos;
- a arguida encontra-se sem atividade desde 2018, uma vez que deixou de prestar os correspondentes serviços, logo incapacitada de pagar a multa;
- o que permite concluir que interiorizou o real desvalor da sua conduta;
- como resulta dos autos e contrariamente ao vertido na decisão recorrida, as necessidades de prevenção no caso em concreto são diminutas e o grau de culpa do agente é mínimo, posto que provado ficou que a sociedade arguida já cessara a sua atividade, pelo que não existe o perigo de repetição dos factos em causa no exercício da sua atividade;
- a ausência de condenações anteriores;
- o pagamento parcial da quantia em dívida no valor de €58.430,75, sendo que à data da condenação se mostrava em dívida somente €22.676,49;
- não tendo sido apurada a situação económica da arguida e, fixado, sem mais e apenas com recurso a critérios gerais, o montante diário de €10,00, a decisão recorrida não contém todos os elementos necessários à fixação da multa;
- impunha-se a reabertura da audiência para produção de prova suplementar para apurar a situação económica e financeira da arguida e seus encargos, essencial para a determinação da medida concreta das penas a aplicar, como expressamente se prevê nos artigos 369.º/2 e 371.º CPP;
- tendo em conta a ausência de liquidez financeira de uma sociedade com atividade cessada, reputa-se justa a fixação de um quantitativo diário da multa próximo do seu limite mínimo e em número não superior a 50 dias de multa à taxa diária de €2,50.
Em relação ao arguido e quanto à espécie da pena, defendem a omissão da ponderação da aplicação de uma pena de multa na alternativa à pena de prisão, que integram no artigo 379.º/1 alínea a) CPP, sendo que:
- no caso, a pena de multa demonstra-se suficiente para realizar as finalidades de prevenção geral e especial, de acordo com o artigo 70.º do Código Penal – o que nem sequer foi ponderado na decisão recorrida;
- da pena de multa resulta um constrangimento económico ou financeiro subjacente que alcança as exigências de prevenção geral e especial e o arguido encontra-se inserido social, familiar e economicamente, pelo que o tribunal a quo deveria ter ponderado a aplicação de medidas penais que não passem por 6 meses de prisão, ainda que suspensa na sua execução - considerando, ainda, que não tem antecedentes criminais;
- o Tribunal deverá, num primeiro momento, dar preferência a uma pena não privativa da liberdade e, não o fazendo, deverá fundamentar a sentença nesse sentido;
- não se vislumbra em que momento é que a decisão recorrida ponderou entre a aplicação de uma pena de multa e uma pena de prisão;
- a decisão recorrida omitiu qualquer juízo que tenha precedido a escolha da pena de prisão, apenas se constatando a descrição teórica do modelo relativo à escolha da espécie da pena.
Avançando, também, aqui, que a aplicação de uma pena de multa como pena principal cumpre as exigências de prevenção geral e especial.
E, que assim, deve declarar-se a apontada nulidade e, em consequência, deverá a sentença ser substituída por outra que fundamente a aplicação da pena principal, entendendo ser de aplicar a título de pena principal, uma pena de multa não superior a 50 dias.
Quanto à não aplicação de uma pena de multa como pena de substituição, defendem, que a não apreciação, sequer, da possibilidade substituir a pena de prisão – que veio a ser suspensa na sua execução – por uma pena de multa, gera, também, uma nulidade - prevista no artigo 379.º/1 alínea c) CPP.
Isto porque não se vislumbra, em momento algum, o que levou a decisão recorrida a escolher uma pena privativa da liberdade, ainda que suspensa na execução, ao invés de uma pena não privativa da liberdade, nomeadamente a aplicação de uma pena de multa.
Quanto à suspensão da execução de pena condicionada ao pagamento, defendem que também aqui a decisão recorrida não tem dados suficientes para aferir qual é a condição socioeconómica do arguido e que a falta de um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição, prevista no artigo 14.º/1 do RGIT, por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, prevista no artigo 379.º/1 alínea a) CPP.
E, assim, conclui que a decisão recorrida deve ser substituída por outra que fundamente a aplicação da pena principal, entendendo ser de aplicar a título de pena principal, uma pena de multa não superior a 50 dias.
Quanto ao montante diário:
- a taxa diária é fixada em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, pelo que a aplicação de uma pena de multa, de valor não superior a €1.000,00 é adequada, proporcional e suficiente para o cumprimento das finalidades da punição.
Quanto à suspensão da execução de pena condicionada ao pagamento:
- a decisão recorrida andou mal ao suspender a execução da pena de prisão condicionada ao pagamento das quantias em dívida;
- relativamente à condição económica do arguido, não se encontra carreada nos autos quaisquer informações que permitam concluir que tem capacidade económica para suportar o valor aqui em causa;
- resulta, tão somente, que o arguido exerceu funções como gerente de facto e de direito e, posteriormente, como administrador único e que a última declaração de rendimentos é de 2015;
- também aqui a decisão recorrida não tem dados suficientes para aferir qual é a condição socioeconómica do arguido;
- a falta de um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição, prevista no artigo 14.º/1 do RGIT, por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, prevista no artigo 379.º/1 alínea a) CPP.
3.4.2. Vejamos o teor da decisão recorrida, neste particular.
“(…)
O crime de abuso de confiança fiscal previsto nos artigos 6.º, 7.º, 105.º, n.º 1 e n.º 5 do Regime Jurídico das Infracções Tributárias é punível com pena de 1 mês a 3 anos de prisão ou multa de 20 a 360 dias de multa para pessoas singulares e de 20 a 720 dias de multa para as pessoas colectivas.
Impõe-se, agora, a determinação da pena concreta a aplicar.
Para tal recorre-se ao critério global previsto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, o qual dispõe "a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção".
Pelo que, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa e da prevenção – especial e geral positiva ou de integração –, concretizadas a partir da eleição dos elementos para elas relevantes.
A culpa e a prevenção "são os dois termos do binómio", através dos quais será construído o "modelo de medida da pena".
Com tal desiderato no horizonte, importa definir as funções e a inter-relação que a culpa e a prevenção desempenham em sede da medida da pena.
A culpa estabelece o máximo de pena concreta ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade.
A prevenção geral positiva traduz a necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena.
E prevenção especial consubstancia as necessidades inerentes à ressocialização do delinquente.
Na determinação do substrato da medida da pena, isto é, da totalidade das circunstâncias do complexo integral do facto (factores de medida da pena) que relevam para a culpa e a prevenção (cfr., artigo 71.º n.º 1 do Código Penal), há que atender a "todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele" (artigo 71.º n.º 2 do Código Penal).
Daqui, decorre a construção do seguinte modelo: dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma violada – entre o ponto óptimo – que nunca deve ultrapassar o limite máximo de pena adequado à culpa, mas que não tem obrigatoriamente com ele coincidir – e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar em último termo, a medida da pena.
Exposto o raciocínio e o modelo imanente à determinação da medida da pena, considerando o enquadramento jurídico-penal efectuado, impõe-se a determinação concreta da pena.
Relevam por via da culpa, para efeitos de medida da pena:
- no sentido da agravação da ilicitude contribui o grau de conhecimento e a intensidade da vontade no dolo: dolo directo e o valor da prestação não entregue.
Ponderados todos estes factores, deve estabelecer-se o grau de culpa aquém do meio da moldura abstracta da pena de prisão.
Revelam por via da prevenção especial para efeito de medida da pena:
- a ausência de antecedentes criminais.
De igual forma, é de concluir não existirem particulares necessidades de prevenção especial e que o nível correspondente à prevenção especial se deve situar um pouco acima do plano da prevenção geral positiva.
No que se refere à prevenção geral positiva ou de integração, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade do ordenamento jurídico, fica assegurada com a imposição ao arguido BB da pena de 6 meses prisão e à arguida "AA, S.A." a pena de 120 dias de multa à taxa diária de €10,00, o que perfaz a quantia de €1.200,00.
De acordo com o disposto no artigo 50.º n.º 1 do Código Penal que o Tribunal pode suspender a execução da pena de prisão não superior a 5 anos, suspensão esta que representa a aplicação de uma nova pena de carácter psicológico que além de preencher o fim de reprovação do crime, se mostra atinente a evitar a repetição de crimes.
Assim sendo, embora, existam exigências de prevenção especial quanto ao arguido e prementes exigências de prevenção geral que impõem a aplicação de uma pena capaz de afastar a proliferação destes tipos legais de crimes, é de ter em conta que o sistema sancionatório consagrado pelo legislador penal assenta na concepção básica de que a pena privativa de liberdade – sendo embora um instrumento de que os ordenamentos jurídico-penais actuais não conseguem ainda prescindir – constitui a última "ratio" da política criminal (cfr., Dias, Figueiredo, "O Sistema Sancionatório do Direito Penal Português no Contexto dos Modelos de Política Criminal", in Estudos em Homenagem do Prof. Eduardo Correia, vol. I, p. 786).
Basta ler a Introdução do Código Penal de 1982 para se concluir pela tendência de evitar, na medida do possível, as penas privativas de liberdade, designada e especialmente, os seus nºs 7, 9, 10 e 11.
No caso concreto, a envolvência socioeconómica do arguido, assim como, a sua postura em juízo – a qual revela uma interiorização do desvalor das condutas praticadas –, afigura-se que tal circunstancialismo permite elaborar o prognóstico de que a simples censura pública e solene do seu crime e a ameaça da execução da pena de prisão bastará para o afastar da criminalidade e satisfazer ao mesmo tempo as necessidades concretas de reprovação do seu crime e de prevenção de outros.
É, ainda, é de entender que, no caso destes autos, os fins das penas serão melhor realizados se se declarar tal suspensão.
No entanto, nos crimes fiscais a suspensão da execução da pena de prisão é sujeita a um regime especial.
Com efeito, dispõe o n.º 1 do artigo 14.º do RGIT, que:
"A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa".
Assim sendo, é de declarar a suspensão da execução da pena de prisão pelo período de 1 ano condicionada ao pagamento das quantias em dívida dentro do mesmo prazo”.
3.4.3. Vejamos.
Importa, desde já, salientar o que, nesta sede, também, se patenteia, de forma manifesta, como errado.
Com efeito a qualificação jurídica dada aos factos descritos na acusação e posteriormente na decisão recorrida é a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º/1 e 5 do RGIT, assente no facto de o valor não entregue ser superior a €50.000,00.
E, não obstante, se ter tido sempre presente, de forma expressa, afinal, na decisão recorrida esta qualificação jurídica, sempre com a invocação do aludido n.º 5, o certo é que se refere e se vem, nessa sequência a levar em consideração em todas as posteriores operações a moldura penal abstracta correspondente ao n.º 1, ou seja pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.
Quando afinal a correcta - e corresponde à norma jurídica, sempre, invariavelmente, invocada - é pena de prisão de 1 a 5 anos e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
Ou seja, perante a correcta qualificação jurídica dos factos provados, entende-se que a moldura penal correspondente ao caso é a do n.º 1 da norma, quando é a do n.º 5, sempre tido como fazendo parte da qualificação jurídica dos factos, quer na acusação, quer na decisão recorrida.
Donde resulta um inequívoco e ostensivo erro de direito, tendo sido aplicada a pena do crime “simples” quando deveria ter sido a do crime “agravado” ou “qualificado”, em função do valor não entregue.
Erro que, no entanto, não pode ser corrigido nesta sede, dado que apenas os arguidos interpuseram recurso e, como é sabido, nesta sede vigora o princípio da proibição da reformatio in pejus, consagrada no artigo 409.º CPP.
Mas o certo é que esta questão se repercute, de forma directa e necessária, no conhecimento, na apreciação da primeira causa de nulidade aqui invocada pelo arguido.
O arguido foi condenado na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, condicionada ao pagamento da quantia de €22.676,49, pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º/1 e 5 do RGIT.
Assim sendo este é inquestionavelmente o limite para o sancionamento do arguido. Da mesma forma que se o crime fosse desqualificado, não implicaria a proibição da reformatio in pejus a manutenção da mesma pena concreta.
Mas decisivo, aqui é que, com a correcta moldura penal abstracta, prisão de 1 a 5 anos, sem alternativa, da pena de multa, cai, a apreciação da primeira causa de nulidade invocada pelo arguido, atinente com a aplicação infundamentada do artigo 70.º CP.
Naquela sede ao arguido não pode deixar de ser aplicada pena de prisão.
O passo seguinte, onde será retomado o conhecimento das questões por si suscitadas, prende-se, então com a infundamentada aplicação do artigo 45.º do CP e 14.º do RGIT, questões que se mantêm subsistentes.
Mas comecemos, pela questão reportada à arguida, seguindo a ordem cronológica do recurso.
A arguida foi condenada na pena de 120 dias de multa à taxa diária de €10,00, o que perfaz a quantia de €1.200,00.
Vejamos a questão, reportada à arguida, atinente com à falta de prova de factos concretos essenciais para a operação de determinação da medida da pena e, depois, quanto ao seu carácter excessivo da pena concreta, quer quanto aos dias de multa, quer quanto à taxa diária.
Porventura, porque o julgamento se fez na ausência dos arguidos o que consta dos factos provados a propósito da arguida, é escasso:
- a arguida foi constituída em 12/07/2013 com o capital social de €5.000,00 e em 07/04/2014 foi transformada em sociedade anónima e aumentado o capital social para €100.000,00;
- desde 2018, cessou a prestação de contas desta sociedade;
- actualmente encontra-se cessada a actividade comercial junto da Autoridade Tributária.
Daqui resulta, sem dúvida, uma quase completa omissão de factos atinentes à actual situação económica e financeira da arguida, sem qualquer justificação para tal ausência de factos e sem que se vislumbre qualquer impossibilidade de obtenção de tais elementos capazes de sustentarem a definição da omitida situação actual.
E, assim resta reconhecer que a matéria de facto provada relativamente a esta questão é insuficiente para permitir a decisão de direito justa.
Com efeito os dias de multa e a taxa diária, aplicados, surgem, assim, absolutamente insustentados e seguramente calculados de forma não consentida por uma decisão judicial, desta natureza.
Face à decisão proferida nesta matéria, sempre seria pertinente a pergunta de porquê aqueles dias e aquela taxa e, não mais 10 ou menos 10 dias ou, mais 5 ou menos 5 euros.
É necessário apurar em concreto a actual situação operacional e contabilística da arguida, património e encargos, de forma a apurar a real e actual situação económico-financeira, mormente se existem graves dificuldades económicas que tenham posto em causa a sua subsistência e a real dimensão das dívidas para pagar.
E, assim, estamos, inequivocamente, perante o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º/2 alínea a) CPP, que se verifica quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, i.e., quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Vício de que só se pode falar quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
Constitui um vício da decisão e não de julgamento, que tem que resultar evidenciado do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos a ela estranhos, a não ser por apelo às regras da experiência comum e constitui um vício da lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que torna impossível uma decisão logicamente correcta, justa e conforma à lei.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto determina a formação de forma incorrecta de um juízo, porque a conclusão não é suportada pelas premissas: a matéria de facto não é a suficiente para fundamentar a solução de direito, correcta, legal e justa.
A insuficiência releva-se em termos quantitativos porque o tribunal não esgotou todos os seus poderes de indagação em matéria de facto. Na descoberta da verdade material, o tribunal podia e devia ter ido mais além. Não o tendo feito, a decisão formou-se incorrectamente por deficiência da premissa menor. O suprimento da insuficiência faz-se com a prova de factos essenciais, que fazem alterar a decisão recorrida, seja na qualificação jurídica os factos, seja na medida concreta da pena ou em ambas as situações, conjuntamente. Se os novos factos não determinarem alguma dessas alterações, não são essenciais - o vício não será importante, podendo ser sanado no tribunal de recurso.
“O termo “decisão”, refere-se, portanto, à decisão justa que devia ter sido proferida, não à decisão recorrida”, cfr. neste sentido o Ac. STJ de 13.5.98, relator Joaquim Dias, in CJ, S, II, 199.
A existência desta insuficiência, importa vício da decisão, de mandar o reenvio do processo para novo julgamento, se no tribunal de recurso não for possível decidir da causa (artigo 426.º/1 CPP).
Sendo esta a consequência pretendida pela arguida – que depois de invocar a nulidade da decisão, a final, conclui que se impõe a reabertura da audiência para produção de prova suplementar para apurar a situação económica e financeira da arguida e seus encargos, essencial para a determinação da medida concreta das penas a aplicar, como expressamente se extrai dos artigos 369.º/2 e 371.º CPP.
Quanto ao arguido, não se diga, como faz o MP neste Tribunal, que as considerações tecidas a propósito da aplicação da pena de substituição da suspensão da execução da pena de prisão, responde às alegadas omissões invocadas pelo arguido
Não responde, nem pretendeu, responder, de todo. Nem tem a virtualidade de responder, como parece inequívoco, senão à questão daquela concreta pena de substituição.
Falta a apreciação prévia acerca da pena alternativa e falta a posterior apreciação sobre o efeito, a repercussão concreta, da aposição da condição para a decretada suspensão da execução da pena.
Como se disse, porventura porque o julgamento se fez na ausência dos arguidos o que consta dos factos provados a propósito da situação pessoal e económica do arguido (não se tendo pedido a realização de relatório social) é parco:
- a última declaração de rendimentos do arguido data de 2015;
- junto da Segurança Social constam como entidades empregadoras do arguido "..." Com data de início de funções a 06/07/2015, "AA, S.A." (Zona Franca da Madeira) com início de funções a 07/05/2015 e "AA" com início de funções a 12/07/2013;
- o arguido não tem qualquer registo criminal.
A evidenciar, também, que como na situação da arguida, a existência do mesmo vício da decisão, afinal, com a mesma consequência, ou seja, o reenvio parcial, com a reabertura da audiência para produção de prova suplementar para apurar a situação económica e financeira, aqui, do arguido e seus encargos, essencial para as 3 operações subsequentes que a seguir se apreciarão – todas omitidas.
Quer, aqui, como ali, será, porventura, desde logo, essencial e quiçá, decisiva, a realização de relatório pré-sentencial.
Começando pelo fim – aposição da condição para suspensão da execução da pena - com reflexo necessário nos passos que necessariamente antecedem tal operação - primeiro da escolha da espécie da pena na alternativa entre prisão e multa e depois na questão da substituição da pena de prisão por multa.
E desde logo ressalta que na decisão recorrida, depois de se ter afirmado que os arguidos praticaram o crime de abuso de confiança fiscal e se passa para o capítulo subsequente, denominado da medida concreta da pena, que se inicia com a referência de que importaria agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar - procedimento que se desenvolve em três fases: investigação e determinação da moldura da pena abstracta; investigação e determinação, dentro da moldura abstracta, da medida concreta da pena a aplicar; e, finalmente, escolha da espécie de pena que deve efectivamente ser cumprida - o certo é que depois de se enunciar qual a moldura penal abstracta, afinal se refere, de imediato, sem mais, que agora se impõe a determinação da pena concreta a aplicar, com a invocação do artigo 71.º CP.
Isto é, se é certo que – como referem os arguidos – que se não formulou um qualquer juízo sobre a possibilidade do pagamento da quantia imposta como condição da suspensão ao arguido, da mesma forma se omitiu, de todo, qualquer apreciação acerca das ditas operações, que antecedem, lógica e necessariamente, a operação de determinação da espécie da pena, em relação ao arguido.
Se sobre a razoabilidade da imposição da dita condição nada se disse, também em relação às operações de escolha da espécie da pena, em sede de alternativa, também a sentença é omissa.
Se em relação a estas duas omissões, o arguido suscita a omissão de pronúncia e a nulidade da sentença, é certo que, da mesma forma, entende que seria caso de aplicação na alternativa, da aplicação de uma pena de multa, desde logo.
Nunca refere a revogação da decisão, mas antes a sanação das nulidades invocadas e, no que aqui importa, a nulidade por omissão de pronúncia.
Se a omissão da apreciação da questão da dimensão e razoabilidade da quantia a pagar como condição imposta para suspensão já, de si, é decisiva, não pode deixar de o ser, da mesma forma, a apontada omissão que lhe antecedeu.
E, desde logo – como de resto, aconteceu em relação à arguida - na sequência de não terem sido recolhidos factos suficientes para a formulação do juízo de prognose, depois, é, incontornável que não houve formulação de tal juízo.
O Tribunal da primeira instância não se referiu nunca à existência de jurisprudência uniformizada.
Ao omitir pronúncia sobre o ponto está-se a contrariar a jurisprudência fixada e no caso concreto a integrar a previsão da uniformização no sentido de presença de nulidade por omissão de pronúncia.
O arguido arguiu, e bem, a nulidade em causa, pois como estabelece o artigo 379.º/2 CPP, as nulidades da sentença, como era o caso, devem ser arguidas ou conhecidas em recurso.
Dúvida não há de que não foi feita qualquer pronúncia sobre a razoabilidade da imposição de pagamento da quantia fixada como condição para a suspensão da execução da pena.
E, não está aqui em causa, a questão de saber se estão, ou não, verificados os pressupostos de que depende a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão.
É certo que suscita o arguido a questão de se não ter fundamentado a opção pela pena de substituição de multa, quando se decidiu pela suspensão da execução da pena.
Estabelece o artigo 50.º/1 CP que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
O n.º 5 do mesmo preceito vem dispor que “o período de suspensão o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos”.
De referir ainda o n.º 2 daquela norma que determina que “se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, o tribunal subordina a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”.
Importa ainda ter em conta o disposto no artigo 14.º do RGIT, o qual dispõe que, “a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”.
Sobre esta matéria, também, o STJ através do AUJ 8/2012, se pronunciou, fixando jurisprudência no sentido de que, “no processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º/1 CP, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º/1 do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia”.
Ou seja, em suma fixa jurisprudência no sentido de considerar nula, por omissão de pronúncia, a sentença que determine a aplicação de pena de prisão suspensa sob condição de pagamento, pela prática de crime de abuso de confiança fiscal, quando não se efetue um juízo de prognose favorável sobre a capacidade de pagamento do condenado.
E, mais uma vez, por se revelarem excertos absolutamente esclarecidos e esclarecedores e, porque não diríamos nem mais nem melhor, transcrevemos excertos relevantes da sua fundamentação.
“De pouco valerá impor um dever económico de forma cega só porque a lei a impõe de forma automática, dir-se-ia, num posicionamento que roça a total e completa alienidade em relação ao concreto ser julgado e condenado, quando não só pelo exagero do montante, não arbitrado, mas imposto, pelo muito curto prazo assinado para o cumprimento e sobretudo pela já consabida sua deficiente capacidade de solvência, de cumprir o imposto, seria dentro de um juízo de normalidade das coisas da vida do cidadão comum, de um juízo de verosimilhança, de antever o inevitável incumprimento, a menos que lhe sorrisse em sorte a “sorte grande”, ou mesmo uma média, com que pudesse recompor a sua vida e cumprir a injunção condicionante da suspensão.
Ao decretar-se a imposição da condição deve ter-se uma imagem global do condicionamento, da real dimensão económica do dever imposto, que a opaca fórmula legal de jeito algum deixa transparecer, em que se incluem juros compensatórios e moratórios, com vista à reparação integral, plena, a que pode ser acoplada, caso o juiz o entenda, o montante previsto na segunda parte do n.º 1 do artigo 14.º do RGIT, ou seja, uma “quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”, o que tendo em conta que a pena de multa, artigo 105.º/1, vai até 360 dias e que cada dia de multa pode ir até €500,00, artigo 15.º/1, significa que se estará a falar de uma quantia que terá como limite máximo €180.000,00.
Na avaliação da opção pela suspensão não podem ser olvidados os condicionalismos inerentes ao agente e se é certo que a impossibilidade de cumprimento não integra os elementos constitutivos do tipo, tal avaliação tem de estar presente no juízo de opção pela substituição.
(…)
Ora, o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio; para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exactamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exactamente por isso a merecer maiores cuidados.
A suspensão está subordinada, ela própria, à verificação de pressupostos, carecendo de avaliação a situação presente. Como afirmar a presença do pressuposto material de suspensão sem atender à carga imposta? Aliás, na lei de autorização de 1993 referia-se a possibilidade de suspensão com imposição de pagamento; não é a suspensão que é imposta; uma vez eleita a solução de suspensão, sabido é que terá necessariamente aqueles contornos, aquela forma de reparação e não outra, a reposição na íntegra do devido, mas não só, pois acresce o demais, ultrapassando a condenação o montante do imposto e demais acréscimos, sem reduções, sem cortes, sem descontos.
Para que sobrevenha a aplicação da pena fixa em que consiste a “condição”, necessário é que se opte pela suspensão; de contrário, que sentido teria falar em medida de sentido pedagógico e reeducativo?
Assim descaracterizada sempre seria de colocar a questão de saber se ainda se estará perante uma pena suspensa.
Não colhe grande sentido que o mesmo preceito tenha dois pesos e duas medidas para a concretização, composição, da condição. O artigo 14.º/1 alberga duas hipóteses. Uma primeira em que impõe o condicionamento e uma segunda, prevista na última parte do mesmo n.º 1, em que sem qualquer dúvida se abre a janela da liberdade de escolha e ponderação, pois caso o juiz o entenda, fica a suspensão condicionada ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
A óbvia, patentemente expressa e declarada compressão da liberdade do julgador, levada em forma de lei no artigo 14.º/1 do RGIT, reeditando semelhante “diktat” proveniente do n.º 7 do artigo 11.º do RJIFNA, não se verifica em, nosso entender, de forma inexorável, em toda a linha, afigurando-se-nos que a impossibilidade de ultrapassagem surge apenas num segundo momento, num subsequente/ulterior estádio de cognição da concreta situação, avaliação e ponderação das variáveis em equação, na análise do circunstancialismo concreto e decisão, até porque a própria suspensão, sendo um exercício ainda em liberdade, de um poder-dever, de um poder vinculado, é ainda um exercício de plena liberdade de apreciação/valoração, está ela própria subordinada a condições de êxito, como a imprescindível verificação dos pressupostos do artigo 50.º, aplicáveis ex vi do artigo 3.º do RGIT.
A suspensão em si mesma não deixa de ser uma faculdade, como se acentua no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 242/2009, de 12-05-2009, processo n.º 250/09, da 2.ª Secção, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 75.º, pág. 209, onde se afirma: “a norma do artigo 14.º do RGIT, ao estabelecer, de forma geral e abstracta, uma condição à faculdade de o tribunal decretar a suspensão da execução da pena de prisão, em todas as situações em que essa faculdade se lhe depare, assume claramente natureza de acto legislativo”.
A escolha da pena de substituição é um prius em relação à imposição da condição.
Prevendo a penalidade a alternativa prisão/multa, incidindo a opção sobre a pena de prisão, de duas uma: ou é eleita a pena de prisão efectiva ou a pena de substituição, a pena suspensa.
Mas porque no caso a suspensão ficará subordinada a condição com contornos pré-definidos, a opção não pode ser cega, tem que ser ponderada, avaliada, porque senão deixa de ser um poder dever, o exercício de um poder vinculado, sem necessidade de específica fundamentação.
A conformidade constitucional da norma do artigo 14.º/1 do RGIT sempre foi apreciada na óptica dos interesses do arguido, na perspectiva da violação dos princípios da igualdade, adequação e proporcionalidade, e nunca analisada na perspectiva de limitação da liberdade de julgar.
Por outro lado, todas as decisões incidem sobre a primeira parte do n.º 1, sendo certo que a composição da condição pode abranger para além do pagamento da prestação tributária evadida e legais acréscimos, 1.ª parte do n.º 1, o pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa, parte final do mesmo n.º 1.
O argumento (…) da possibilidade de ingresso de melhor fortuna pode certamente parecer aliciante, mas só pode ser entendido como mero exercício de fé em dias melhores, de esperança no anúncio de uma inesperada herança e de perseverança (no caso de aposta, jogo de fortuna e azar).
A margem de liberdade do julgador situa-se no justo ponto e momento em que pode optar pela substituição, mas para o fazer tem de estar de posse do pleno das informações possíveis, de modo a bem fundamentar a opção.
Feita a escolha, a adopção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é a impor a subordinação ao pagamento.
Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha de pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio não foi tida então em consideração e tomada como boa solução.
Por último, o julgador sempre terá uma palavra a dizer sobre o prazo de pagamento, para mais no âmbito de uma norma especial”.
Esta jurisprudência impõe que se pondere a real situação económica do arguido e a sua capacidade para proceder ao pagamento da quantia em dívida. Nesse juízo deve ter-se em conta que o artigo 14.º/1 do RGIT deve ser interpretado conjugadamente com o artigo 51.º/2 do CP, sendo este o entendimento, sufragado nos acórdãos da RP de 20.4.2016 (proc. n.º 21/14.6IDAVR.P1), da RG de 10.10.2016 (proc. n. 263/11.6IDBRG.G1) e deste Tribunal de 18.2.2016 (proc. n.º 949/14.3IDLSB.L1-9), todos consultados, nesta data, no site da dgsi e o último assim, sumariado:
“I - O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/2012 do Supremo Tribunal de Justiça, tal como o artigo 14.º do RGIT, não afastam a aplicabilidade do artigo 51.º/2 CP, o qual materializa a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana, como se alcança do artigo 1.º da CRP.
II - O que tal AUJ obriga é que se faça, em sede de decisão, um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, isto é, o julgador tem de aquilatar se o condenado está em condições de proceder ao pagamento da prestação tributária, durante o período da suspensão de execução da pena, e, estando, condicionar tal suspensão a esse pagamento. O acórdão não obriga, nem poderia obrigar, sob pena de violação do princípio da igualdade, a que, não tendo o condenado condições para pagar a prestação tributária, mas reunindo os demais requisitos para a suspensão de execução da pena, a mesma não seja suspensa. Seria uma verdadeira “prisão por dívidas ao Estado”.
Desse modo, o condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao pagamento das quantias em dívida não é um imperativo automático; isto é, o Tribunal não faz uma aplicação mecânica, automática desta. Esta aplicação legal tem de subordinar-se a critérios de ponderação, aos princípios da razoabilidade e da dignidade da pessoa, bem como do respeito pelos direitos fundamentais do próprio condenado, como seja a garantia do mínimo necessário à sua subsistência.
De facto, o AUJ não obriga, nem poderia obrigar, sob pena de violação do princípio da igualdade, a que não tendo o condenado condições para pagar a prestação tributária, mas reunindo os demais requisitos para a suspensão de execução da pena, a mesma não seja suspensa.
Daqui resulta que o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão só seja imposto quando do juízo de prognose realizado resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida.
Tal dever de pagamento também não tem de ser na totalidade do devido, podendo ser objecto de graduação/redução.
Para além de que a revogação da suspensão por falta de cumprimento da condição, apenas poderá ocorrer em caso de violação grosseira desse dever (cfr. artigo 56.º/1 alínea a) CP) e não tiver lugar a aplicação de qualquer das situações previstas no artigo 55.º.
A situação de facto delineada nos autos constitui um bom exemplo da necessidade de efectuar o juízo de prognose sobre a razoabilidade do cumprimento da obrigação imposta, pois que é disso que se trata.
Como ressalta dos factos provados, última declaração de rendimentos do arguido BB data de 2015.
Atendendo à fonte de rendimento, uma única e aparentemente cessada e, ao montante da quantia a pagar €22.676,49 – aparentemente, no prazo de 1 ano, período pelo qual vigora a suspensão da execução da pena de 6 meses de prisão - impõe-se a formulação de um específico juízo acerca da razoabilidade da medida substitutiva, pois que julgar implica, deve implicar, o exercício de alguma sensibilidade perante o concreto quadro fáctico em análise, não esquecendo a falta de antecedentes criminais e a dimensão da condição agora imposta.
E, assim, se conclui que não tendo tido a decisão recorrida presente a jurisprudência fixada no AUJ 8/2012, não efectuou o necessário juízo de prognose de razoabilidade acerca da possibilidade de o arguido satisfazer a apontada condição da suspensão da execução da pena.
E, assim, ao omitir,
- a ponderação, qualquer juízo, sobre a opção pela aplicação da pena de substituição de multa;
- e, ainda, tendo-se optado pela aplicação da pena de substituição da suspensão da execução da pena de prisão, qualquer ponderação sobre razoabilidade de cumprimento da condição imposta, para a aplicação daquela pena de substituição,
- incorreu a decisão recorrida em omissão de pronúncia, determinativa de nulidade, nos termos do artigo 379.º/1 alínea c) e 2 do CPP.
Procede, assim, este segmento o recurso.
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III. Dispositivo
Em face do exposto acordam os Juízes desta Relação em conceder parcial provimento aos recursos apresentados pelos arguidos, em função do que,
-se ordena o reenvio parcial do processo, com a reabertura da audiência, para a produção da prova suplementar, necessariamente, com a realização de relatório pré-sentencial, em relação a ambos os arguidos, para conhecimento das suas reais, concretas e actuais situações sócio-económicas e financeiras, rendimentos, património e encargos;
- após o que se renovará a realização das operações, omitidas na decisão recorrida, em relação ao arguido de,
- fundamentada ponderação nos termos do artigo 45.º CP, pela pena de substituição de multa;
- se for caso disso - opção pela pena de substituição de suspensão da execução da pena - fundamentado juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição para a decretada suspensão da execução da pena.
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Sem custas, atento o provimento parcial (artigo 513.º/1 do CPP)
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Notifique.
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Lisboa, 21/03/2024
Elaborado e integralmente revisto pela relatora, nos termos do artigo 94.º/2 do CPP.
Maria João Lopes
José Castro
Jorge Rosas de Castro