Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3615/21.0T9SNT.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: IMPUGNAÇÃO AMPLA DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DEPOIMENTO INDIRECTO
CRIME DE COACÇÃO SEXUAL
CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I. A necessidade de fundamentar de facto e de direito, com indicação e exame crítico das provas, exige tão só que o Julgador explicite porque é que deu determinados factos como provados ou não provados, ou seja, dê a conhecer os motivos que determinaram a sua convicção.
II. Se o recorrente não tendo cumpriu com o ónus imposto no art. 412º, nº 3, alínea b) e nº 4 do Cód. Proc. Penal, não pode a Relação reexaminar amplamente a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, apenas podendo atender ao texto da decisão recorrida para averiguar dos vícios alegados nos termos do art. 410º 2 do Código citado, ou outros que sejam do conhecimentos oficioso.
III. O art. 129º do Cód. Proc. Penal estabelece a proibição, em princípio, do testemunho que não verse sobre factos concretos e de conhecimento directo, em particular do “testemunho de ouvir dizer”, mas estabelece as condições em que este pode ser permitido e valorado, sendo uma delas a confirmação do depoimento indirecto, com a consequente audição das pessoas “a quem se ouviu dizer”. Feita tal confirmação, pode o depoimento indirecto ser eficaz como meio de prova.
IV. O crime de coacção sexual, p. e p. pelo art. 163º do Cód. Penal tem sido objecto de sucessivas alterações.
V. O constrangimento exigido no nº 2 do art. 163º do Cód. Penal (coacção sexual “simples”) na redação da Lei 83/2015 de 5.08 requeria, tão só, uma oposição íntima (uma vontade contrária) da vítima à prática sexual; com a alteração introduzida ao art. 163º pela Lei 101/2019, aditou-se um nº 3 com a definição, legal, de “constrangimento”, a saber: “para efeitos do disposto no n.º 1 (onde agora se prevê a coacção “simples”), entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima” e a cognoscibilidade prende-se com a existência de factos e/ou circunstâncias que demonstrem – possam demonstrar – conhecimento por parte do agente de que a vítima tem a sua vontade limitada ou que nem sequer tem condições de transmitir a sua vontade real. Acresce que, ao contrário da redacção dada ao art. 163º do Cód. Penal pela Lei 83/2015 de 5.08, que previa que a vítima podia ser constrangida a sofrer ou praticar acto sexual de relevo (redacção de novo repristinada pela alteração ao normativo definida pela Lei 45/2023 de 17.08) a redacção dada ao nº 1 do art. 163º pela Lei 101/2019 de 6.09, deixou de prever a hipótese de a vítima ser constrangida a sofrer acto sexual de relevo, admitindo apenas a hipótese de a vítima ser constrangida a praticar acto sexual de relevo e a distinção terminológica dos conceitos sofrer e praticar “quer significar (…) a distinção entre um comportamento, do ponto de vista sexual, puramente passivo ou antes ativo da vítima”.
VI. Ainda que os crimes cometidos, de importunação sexual, p. e p. pelo art. 170º do Cód. Penal, permitam a opção por pena não detentiva, a ilicitude elevada dos factos e razões de prevenção geral (estamos perante um tipo de factos que repugna enormemente a sociedade, mais a mais tendo em conta as relações familiares entre perpetrador e vítima) conduz, necessariamente, à opção por pena detentiva.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório
No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular e nº 3615/21.0T9SNT, que corre termos no Juiz 4 do Juízo Local Criminal de Sintra, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi o arguido,
AA, divorciado, …, nascido a ........1982, na freguesia e concelho de ..., filho de BB e de CC, residente na ...,
condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada e agravada, de um crime de coação sexual, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 163º nºs 1 e 3 e 177º, nº 1, alínea b), ambos do Cód. Penal, na pena de 2 anos de prisão; e pela prática, em autoria material, na forma tentada e agravada, de um crime de coação sexual, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 22º, 23º, 73º, 163º, nºs 1 e 3 e 177º, nº 1, alínea b), todos do Cód. Penal, na pena de 1 ano de prisão.
Operado o cúmulo jurídico, ficou o arguido condenado na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa, na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, sujeita a regime de prova e às obrigações de:
1) Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;
2) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
3) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso; e
4) Obter autorização prévia do magistrado responsável pela execução para se deslocar ao estrangeiro.
Mais foi o arguido AA condenado a pagar à ofendida  DD, nos termos do disposto no art. 82º-A, do Cód. Proc. Penal, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), acrescida de juros vencidos e vincendos até integral pagamento.
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Sem se conformar com a condenação o arguido interpôs o presente recurso em que pede a revogação da sentença e a sua absolvição.
Para tanto formula as conclusões que se transcrevem:
I - Não se pode considerar provado que o preenchimento dos elementos objectivos e subjetivos do tipo de ilícito pelo qual o arguido veio a ser acusado e condenado.
II - Da audiência de discussão e julgamento, resultou, aliás conforme a douta sentença, que o arguido negou de forma contundente a prática dos factos de que vinha acusado.
III - Para dar como provado os factos assentes supra, o tribunal socorreu-se das declarações para memória futura da ofendida.
IV - Mais se fundou a prova nas declarações, na qualidade de testemunha, da irmã do arguido e mãe da ofendida.
Contrariamente ao que é referido nesse sentido, em sede de motivação, quanto a este depoimento, que este não foi presencial em nenhuma das duas ocasiões referidas na douta acusação.
V - O recorrente entende, quando nega em absoluto, qualquer contacto de natureza sexual com a sua sobrinha, ao dar o relevo que é dado a uma testemunha não presencial (a mãe da menor, DD), se está perante a violação direta do disposto no artigo 128º do CPP.
VI - O facto das versões do arguido e da vítima, serem totalmente dispares entre si, quanto ao alcance e significados dos contactos feitos por aquele àquela, nos momentos relatados na acusação, o Tribunal, deveria proceder a uma análise mais ponderada, cuidada, crítica dos depoimentos efetuados o que não fez, como resulta á saciedade da sentença posta em crise, no âmbito do presente recurso.
VII - O Tribunal, não fez uma análise crítica das provas que serviram para formar sua convicção, violando desse modo o disposto no artigo 374º, nº 2 do CPP.
VIII - Pelo que, os factos dados como provados nos itens 6, 9, 11 a 16, devem ser considerados não provados, nos termos e fundamentos supra referidos.
IX - A lei, refere que, comete o crime de coação sexual quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo.
X - A menor, tinha à data dos factos, 14 anos de idade. O bem jurídico tutelado é, sem dúvida a liberdade sexual.
XI - Os factos constantes na sentença, o que só, por mera hipótese académica se coloca, jamais poderia significar que estaríamos perante os crimes previstos no artigo 163º do CP (coação sexual), na sua forma consumada e tentada.
XII - Os atos que se limitam a tentativa de contato labial, e contato sem os seios, sem mais, poder-se-ia, em tese, a um contacto com significado sexual, caindo assim, no âmbito de um crime de importunação sexual.
XIII - O crime de coação sexual é um crime de execução vinculada, pois exige o crime de coação sexual que o constrangimento da vítima seja praticado por meio de violência, ameaça grave ou depois de o agente ter tornado a vítima inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir.
XIV - No que respeita à violência, a lei apenas exige que a mesma seja adequada ao resultado do constrangimento, ou seja, idónea, segundo as circunstâncias do caso, a vencer a resistência efetiva ou esperada da vítima.
XV - No caso presente nada disso aconteceu, e nada desses elementos típicos, a violência, a ameaça grave, se deram como provados.
XVI - Mal andou o Tribunal a quo a dar como assente, pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjetivos do tipo legal pelo qual o arguido veio a ser acusado e condenado.
XVII - O Tribunal, a quo, não poderia condenar o arguido, como condenou, pela prática dos crimes pelo quais veio a ser deduzida acusação.
XVIII - Poderíamos estar perante um crime de importunação sexual, p e p, pelo artigo 170º do CP – “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”, que é um acto de natureza sexual (que não tem a gravidade de acto sexual de relevo) praticado contra a vontade da vítima e na presença da mesma ou sobre esta (que seja constrangida a presenciar ou suportar) e, em tal medida, seja importunada, mas pelo qual nem sequer veio a ser acusada.
XIX - Pelo que o arguido deve ser totalmente absolvido dos crimes pelos quais veio a ser julgado, e condenado consequentemente da indemnização arbitrada.
XX – Assim, o Tribunal a quo, violou as disposições conjugadas das normas dos artigos 374, nº 2 do CPP, artigos 163º, nº 1º, e 3º, 177º nº 1, al, b), artigos 22º, 23º, 73º, do CP, por não preenchimento dos elementos objectivos e subjetivos do tipo,
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida e apresentando as seguintes conclusões:
A. A sentença recorrida não padece do vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, nos termos e moldes em que o mesmo deve ser atendido, porquanto os factos apurados e constantes da decisão recorrida são suficientes para a decisão de direito verificada.
B. Por outro lado, a sentença recorrida não padece do vício de erro notório na apreciação da prova, cf. artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, porquanto o Tribunal a quo mais não fez do que extrair, a partir da prova produzida, conclusão perfeitamente lógica, não atentatória das regras da experiência comum, decorrente do exercício (tão legítimo quanto devido) da livre apreciação da prova.
C. O que o recorrente pretende fundamentalmente pôr em crise é o princípio da livre apreciação da prova; na verdade, do que se trata é da discordância do mesmo relativamente ao modo como a prova produzida foi apreciada pelo Tribunal a quo, designadamente, o seu próprio depoimento, as declarações para memória futura da ofendida (menor de idade) e da testemunha EE, mãe da ofendida e irmã do arguido, conjugados com a prova documental que se mostra junta aos autos.
D. Sucede que, mesmo nos casos em que haja gravação da prova (como sucede(u) no caso concreto), o Tribunal da Relação não pode sindicar a valoração das provas, em termos de criticar o tribunal a quo por ter dado prevalência a uma(s) em detrimento de outra(s);
E. A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto jamais poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais e flagrantes erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto;
F. Como tal, necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o Tribunal indique os fundamentos suficientes para que se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado, o que foi feito - e bem feito - na sentença recorrida.
G. Tendo em conta a prova produzida e a fundamentação do enquadramento fáctico, é manifesto que a sentença recorrida fez uma acertada e ponderada apreciação da prova produzida em audiência de julgamento.
H. Por último, a factualidade dada como provada na sentença recorrida preenche os elementos objectivos e subjectivos do crime de coacção sexual agravada, previsto e punido pelos artigos 161.º, n.º 1 e 3 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, pelo que, bem andou o Tribunal a quo ao condenar o arguido/recorrente, pela prática de dois crimes (um na forma consumada e um na forma tentada).
I. A pena única aplicada ao arguido é justa, equilibrada e mostra-se devidamente sustentada com os argumentos aduzidos em tal decisão e nos critérios estabelecidos do 71.º do Código Penal, para determinação da medida das penas.
J. Face ao exposto, a sentença recorrida não merece qualquer censura, não padece de qualquer vício (mormente, aqueles que vêm invocados na peça processual a que se responde), achando-se em absoluta conformidade com a lei.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso, dizendo acompanhar integralmente o teor da resposta apresentada pelo MP junto da 1.ª instância, nada de útil, ou novo, tendo a aditar.
Efectuado o exame preliminar, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
No acórdão recorrido deram-se como provados os seguintes factos:
1. DD nasceu a ...-...-2005, é filha de EE e de FF.
2. O arguido AA é irmão de EE, sendo tio da, menor, DD.
3. Em dia e hora não concretamente apurados, mas no ano de 2018 e quando DD . tinha 14 anos de idade, o arguido encontrava-se na residência desta, sita na ..., quando a mencionada EE pediu à menor DD que fosse ao supermercado situado nas imediações da dita residência fazer uma compra.
4. Nessa sequência o arguido acompanhou, a menor, DD ao supermercado.
5. No regresso a casa o arguido e a menor DD utilizaram o elevador do prédio da habitação.
6. Quando aí se encontravam, o arguido encostou o seu corpo ao corpo da menor, DD, inclinou-se em direção à mesma, dirigiu a sua boca em direção à boca da menor e tentou beijá-la na boca, o que só não logrou em virtude de, entretanto, o elevador ter chegado ao quinto piso e, a menor, DD ter conseguido libertar-se e sair daquele local.
7. No dia 9 de Maio de 2021, realizou-se um almoço de família na já citada residência da menor DD para o qual o arguido foi convidado.
8. Quando o arguido chegou nesse dia à mencionada residência, pelas 12:00 horas, dirigiu-se à sala, local para onde a menor DD também se dirigiu depois de se vestir para a ocasião.
9. Quando a menor DD se lhe dirigiu para o cumprimentar, o arguido colocou-lhe um braço por cima do ombro e com o uso da mão do outro membro superior apalpou ambos os seios da menor DD ., o que fez por cima da roupa.
10. O arguido sabia que DD . . era sua sobrinha.
11. Aproveitou-se o arguido da relação familiar que tem com a referida DD . para praticar tais actos com a intenção de satisfazer os seus próprios impulsos sexuais, bem sabendo que agia contra a vontade da mesma e a obrigava a suportar os actos sexuais descritos, que a constrangeram, a perturbaram e ofenderam o seu pudor e a sua liberdade sexual.
12. Com a conduta descrita em 6., o arguido só não conseguiu concretizar os seus intentos de satisfação dos seus instintos libidinosos por razões alheias à sua vontade.
13. Com a conduta descrita no ponto 9., o arguido agiu com intuito, concretizado, de satisfazer os seus instintos libidinosos.
14. O arguido agiu, em todas as circunstâncias descritas, de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
15. Ao praticar os factos supra descritos, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos, o arguido causou prejuízos não patrimoniais à vítima DD.
16. Com a descrita actuação do arguido, a menor DD . sentiu-se humilhada e perturbada.
17. O arguido não tem antecedentes criminais registados, conforme resulta do seu CRC, actualizado, de fls. 113, dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
18. O teor do Relatório Social elaborado pela DGRSP, de fls. 117 a 119, dos autos, relativo ao arguido, que aqui se dá por integralmente reproduzido e que apresenta como conclusão que: “AA regista um percurso vivencial marcado por alguns condicionalismos na fase do seu crescimento, destacando-se o comportamento disfuncional do progenitor na sequência dos hábitos alcoólicos, o quadro de violência doméstica vivenciado no lar familiar e algumas limitações económicas que levaram a abandonar o percurso escolar para ingressar no mercado de trabalho ainda em idade precoce. O seu percurso laboral surge como regular especialmente na atividade como motorista de veículos de transporte e pesados.
No plano afetivo e, embora com uma relação já mantida e que surge como duradoura, surgem questões quanto à origem dessa estabilidade afetiva, se pela então companheira, se pela proximidade assim de certa forma garantida com eventual menor, o que leva a alguma reflexão na sua forma de estar/posicionar-se no seio familiar, seja de origem ou do núcleo alargado, o que nos leva à ponderação de eventual intervenção especializada junto do arguido com vista ao seu processo de reintegração social e prevenção da vítima”.
19. O arguido é divorciado e, antes de se encontrar em prisão preventiva, residia com a sua namorada que trabalha; tem dois filhos que se encontram entregues ás respectivas mães e a quem não presta qualquer quantia a título de pensão de alimentos.
20. O arguido, antes de se encontrar em prisão preventiva, era motorista de pesados de profissão e auferia, mensalmente, a quantia de cerca de €750.
21. O arguido tem, como habilitações literárias, o 9º ano.
E considerou-se inexistirem factos não provados a elencar.
A sentença recorrida motivou como segue a decisão sobre a matéria de facto:
A decisão sobre a matéria de facto formou-a, este tribunal, com base na apreciação crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, sendo que a convicção do tribunal, relativamente aos factos que considerou provados, teve por base as declarações prestadas pelo arguido e os depoimentos prestados pelas duas testemunhas, confrontados entre si e em conjugação com os documentos relevantes, constantes dos autos.
Efectivamente, o arguido, prestou declarações em que negou a prática dos factos imputados, dizendo que na 1ª situação que lhe é imputada, por força e nos termos da acusação pública, não tentou beijar a menor, sua sobrinha e que na 2ª situação apenas lhe deu dois beijinhos e um abraço e que estava presente a sua irmã GG.
Prestou declarações de natureza presencial, porquanto envolvido na situação, lembradas, porém parcas, pouco circunstanciadas, pouco explicadas, nada convincentes, não encontrando qualquer meio de prova (testemunhal ou documental) que corrobore a sua versão que não assumiu credibilidade.
Efectivamente, em sede de declarações para memória futura, que foram reproduzidas em audiência, prestou depoimento DD, ofendida, que circunstanciou os factos explicando que o arguido é seu tio, irmão da sua mãe e que á data dos factos residia com a sua mãe e que encontrava o arguido quando alguém fazia anos, em almoços.
Quanto aos factos disse que tinha cerca de 13 a 14 anos quando o arguido a “tocou”, explicando que este ia almoçar a casa da sua mãe e que esta lhe disse que fosse ao supermercado comprar o que faltava para o dito almoço e que o arguido podia ir com ela.
Assim, ao regressarem do supermercado o arguido encostou o seu corpo ao dela e aproximou-se, tentando beijá-la e a depoente desviou a ca., não se lembrando onde colocou o arguido as suas mãos.
Mais relatou outra situação em que o arguido também foi almoçar á casa da mãe da depoente, onde também vivia e que se encontravam na sala, quando a depoente cumprimentou o arguido e este colocou o seu braço próximo do ombro da depoente e com a outra mão apalpou-a nas mamas, por cima da roupa, altura em que só estavam os dois, na referida divisão da casa, sendo que os demais estavam todos na cozinha.
Acrescentou que não falou em relação a nenhuma das situações e que desde a 2ª situação supra relatada nunca mais viu o arguido e que nada mais aconteceu.
Depoimento prestado de forma conhecedora, porquanto envolvida nos factos que relatou de forma lembrada, pormenorizada, segura, lógica, clara, serena e, consequentemente, credível, em tudo consentâneas com a acusação pública que, assim, corroborou e que foi credibilizada, na medida do que soube, pelo depoimento da sua mãe, infra resumido.
Prestou depoimento, EE, mãe da ofendida e irmã do arguido, que esclareceu que na altura dos factos, residia na morada constante da acusação, com a ofendida, com outro filho e com o seu marido, confirmando que o arguido frequentava a sua casa.
Esclareceu que soube dos factos imputados ao arguido pela filha, ofendida, apenas quando teve lugar a 2ª situação, alguns dias depois.
Assim, a depoente não presenciou qualquer das duas situações, confirmando que a ofendida lhe contou que o arguido lhe apalpou as mamas, o que terá acontecido em 2021, assim como lhe disse que antes dessa situação o arguido também a tentou beijar, no elevador, o que já havia acontecido há cerca de 2 anos, sendo que a depoente se lembra de mandar a ofendida ao Pingo Doce e do arguido ir com ela.
Quando a ofendida lhe relatou o ocorrido fê-lo pelo telefone e mostrava-se nervosa.
Entretanto, o seu marido, pelo telefone, que colocou em alta voz e por isso a depoente ouviu, confrontou o arguido com a situação sendo que este último disse para não o meterem em mais alhadas, ou em mais situações (a depoente não se lembra bem qual das duas expressões ouviu).
Explicou que a sua filha, ofendida, teve que ter ajuda, através de apoio psicológico, que agora já não tem, está melhor, sendo que, actualmente, tem um comportamento normal para a idade, apenas é reservada.
Mais, explicou que aquando da 2ª situação, no almoço, estavam em casa os de casa, uma irmã e o arguido e que a relação do arguido com a ofendida parecia normal, porquanto o mesmo era meigo com toda a gente.
Acrescentou que em Outubro ou Novembro de 2020, durante cerca de 1 mês, o arguido residiu com a depoente e a ofendida, período durante o qual o arguido se mostrava desnorteado porque a companheira o tinha posto fora de casa.
Depoimento prestado de forma séria, lembrada, lógica, serena e que não sendo presencial, soube das situações - de forma lógica, uma vez que é natural que o ocorrido tenha sido contado pela ofendida á sua mãe - sendo o depoimento consonante com o relatado pela referida ofendida, assim corroborando e mais reforçando a acusação pública, de forma credível.
Assim considerada a prova produzida em audiência de julgamento, pese embora o arguido tenha negado a prática dos factos, a verdade é que a ofendida se lembrou da situação concreta que então relatou, nos termos supra, a testemunha inquirida prestou depoimento em consonância com o relatado pela ofendida, assim corroborando o teor da acusação pública, de forma segura e credível o suficiente para, em consonância com os escassos documentos dos autos, possibilitar que a acusação resultasse provada.
Na verdade, foram, ainda, considerados os documentos relevantes, dos autos: relatório médico de fls. 67; auto de declarações para memória futura da ofendida de fls. 91 a 93, que foram reproduzidas em audiência; assento de nascimento de fls. 96; CRC, actualizado, do arguido, de fls. 113 e o Relatório Social elaborado pela DGRSP relativo ao arguido, de fls. 117 a 119, dos autos.
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
O arguido invoca falta de exame crítico, erro de julgamento e errada integração jurídica.
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Da falta de exame crítico
Alega o arguido/recorrente que o Tribunal a quo não fez uma análise crítica das provas que serviram para formar sua convicção, violando o disposto no art. 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, pois que atendendo às versões antagónicas do arguido e da vítima, impunha-se, “uma análise mais ponderada, cuidada, crítica dos depoimentos efetuados o que não fez”.
Nos termos do nº 2 do art. 374º do Cód. Proc. Penal, é requisito da sentença “a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
A existência deste vício acarreta a nulidade da sentença, nos termos do nº 1, alínea a), do art. 379º do Cód. Proc. Penal.
A necessidade de fundamentar de facto e de direito, com indicação e exame crítico das provas, não pretende vincular processualmente o Juiz a efectuar uma enumeração mecânica de todos os meios de prova, mas apenas a seleccionar e a examinar criticamente os que serviram para fundamentar a sua convicção positiva ou negativa (explicitando porque deu mais relevo a uns em detrimento de outros), ou seja, aqueles que serviram de base à selecção da matéria de facto provada e não provada. Tal matéria é a que constitui objecto de prova e é juridicamente relevante para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da medida da pena aplicável (cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 30.6.1999, BMJ nº 488, p. 272 e o Ac. da Relação de Évora de 16.3.2004 proferido no âmbito do Proc. nº 1160/03.1).
O que é necessário é explicitar porque é que o Tribunal deu determinados factos como provados ou não provados, ou seja, dar a conhecer os motivos que determinaram a convicção do julgador – neste sentido o Ac. do STJ de 30.01.2002, no Proc. nº 3063/01, refere que “o exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”.
No caso em análise, apreciando a motivação que supra transcrevemos, verificamos que o Tribunal recorrido explicou claramente os motivos da sua convicção, dizendo porque é que a versão do arguido não foi convincente e porque é que acreditou na ofendida.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova, estando o fundamento da sua credibilidade dependente da convicção do Julgador (que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, valorando cada meio por si e na conjugação dos vários elementos, analisados de acordo com as regras da experiência). Efectivamente, nos termos do art. 127º do Cód. Proc. Penal, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” – é o princípio da livre apreciação da prova.
Certo que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 111).
Diz Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, vol. I, p. 199 e ss.), que esta liberdade está de acordo com um dever: o dever de perseguir a chamada “verdade material”. Ou seja, a liberdade do convencimento do julgador, se não deixa de ser expressão de uma convicção pessoal, também não é uma liberdade meramente intuitiva, é antes um critério de justiça que se tem que basear na verdade histórica das situações e necessita de dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza da decisão.
Este princípio da livre apreciação da prova está intimamente relacionado com os princípios da oralidade e da imediação. O primeiro exige que a produção da prova e a discussão, na audiência de julgamento, se realizem oralmente, de modo a que todas as provas (excepto aquelas cuja natureza não o permite) sejam apreendidas pelo Julgador por forma auditiva. O segundo, diz respeito à proximidade que o Julgador tem com os intervenientes no processo, ao contacto com todos os elementos de prova, através de uma percepção directa.
Como salienta o Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, vol. I, p.233 e 234) “só os princípios da oralidade e imediação… permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles, por outro lado, permitem avaliar o mais concretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”. É assim que o Julgador percepciona as reacções, os titubeios, as hesitações, os tempos de resposta, os olhares, a linguagem corporal, o tom de voz, tudo o que há-de constituir o acervo conviccional da fé e credibilidade que a testemunha há-de merecer.
Apreciou o Tribunal recorrido a prova, de acordo com a sua convicção, como exarou, efectuando desta forma o exame crítico da prova (ainda que o recorrente não concorde com o resultado), inexistindo a nulidade invocada.
Do erro de julgamento
Alega o recorrente que foram indevidamente dados como provados os factos elencados sob os nºs 6, 9 e 11 a 16 da matéria fáctica provada, afirmando que a convicção do Tribunal teve por base as declarações para memória futura da ofendida e o depoimento da testemunha irmã do arguido e mãe da ofendida, já que ele negou, em absoluto, qualquer contacto de natureza sexual com a sua sobrinha. E diz que ao dar relevo a uma testemunha não presencial (a mãe da menor, DD), o Tribunal recorrido violou o disposto no art. 128º do Cód. Proc. Penal.
A impugnação da decisão sobre matéria de facto pode fazer-se por duas vias: mediante a invocação de vícios da sentença enunciados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal (dita impugnação de âmbito restrito), ou mediante a invocação de erro de julgamento, detectável pela análise da prova produzida e valorada pelo Tribunal recorrido.
A impugnação mediante invocação de erro de julgamento deve ser feita de acordo com as directrizes precisas e exigentes previstas nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. Proc. Penal.
Assim é porque, como é consensual entre a doutrina e a jurisprudência, o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo Tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida – duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no Tribunal de recurso. O que está em causa neste tipo de impugnação é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa – sobre este ponto, cfr. os acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007 (Processo 07P21), de 23 de Maio de 2007 (Processo 07P1498) e de 3 de Julho de 2008 (Processo 08P1312), todos disponíveis em www. dgsi.pt).
Por isso, o recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (em conformidade com o nº 3 do citado art. 412º), além dos concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo Tribunal recorrido (obrigação só satisfeita com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida), também as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida).
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida.
Ora em obediência ao nº 3 do art. 412º do Cód. Proc. Penal, o recorrente deveria ter especificado, sob pena de rejeição do recurso (nos termos do nº 1 do art. 420º do mesmo Cód.), as provas que no seu entender impunham decisão diversa da recorrida, com referência aos respectivos suportes técnicos (nº 4 do citado art. 412º, com sublinhado nosso).
As menções feitas nas alíneas a), b) e c) dos nºs 3 e 4 do referido art. 412º estão intimamente relacionadas com a inteligibilidade da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão fáctica.
Estabelece a alínea b) do art. 431º do Cód. Proc. Penal que havendo documentação da prova (como no caso em concreto) a decisão do Tribunal da primeira instância só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do art. 412º do mesmo Cód..
No caso em análise, o recorrente pretende discutir apenas a convicção do Tribunal, pretendendo que a Relação faça um novo julgamento tendo por base a reapreciação de todas as provas, o que já vimos não ser admissível.
E, não tendo cumprido com o ónus imposto no art. 412º, nº 3, alínea b) e nº 4 citados, não pode a Relação reexaminar amplamente a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, apenas podendo atender ao texto da decisão recorrida (onde, aliás, estão suficiente e logicamente indicados, de forma bastante, os elementos de prova onde foi baseada a convicção) para averiguar dos vícios alegados nos termos do art. 410º 2 do Código que se tem vindo a citar, ou outros que sejam do conhecimentos oficioso.
No plano dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do Cód. Proc. Penal…
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (alínea a) daquele nº 2) ocorre quando, da factualidade elencada na decisão recorrida, resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância de o Tribunal recorrido não se ter pronunciado (dando como provados ou não provados) todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação ou pela defesa, ou tenham resultado da discussão.
Trata-se de um vício que consiste em ser insuficiente a matéria de facto para a decisão de direito. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III vol., p. 339) “é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada”. Ou seja, é necessário que se verifique uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito.
Como se refere no Acórdão do STJ de 21.06.2007 (Processo 07P2268), a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é “a insuficiência que decorre da circunstância de o Tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da decisão da causa, ou seja, os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia, segundo o art. 339º, nº 4 do CPP”.
Analisada a decisão recorrida, não se vê que esta não tenha dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão e constituam o objecto da decisão da causa, pelo que inexiste o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício previsto na alínea b) do nº 2 do citado art. 410º), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada.
É óbvio que não existe tal vício.
Finalmente, o erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal é pacificamente considerado, na doutrina e na jurisprudência, como aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da decisão, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Neste sentido veja-se o Acórdão do STJ de 9.12.1998 (BMJ 482, p. 68) onde se conclui que “erro notório na apreciação da prova é aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta” e o Acórdão do STJ de 12.11.1998 (BMJ 481, p. 325) onde se refere que o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado, “que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa”.
Alega o recorrente que ao dar relevo ao depoimento de testemunha não presencial (a mãe da menor, DD), o Tribunal recorrido violou o disposto no art. 128º do Cód. Proc. Penal.
Nos termos do nº 1 do art. 128º do Cód. Proc. Penal, “a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova”.
Pretende o recorrente que o Tribunal a quo formou a sua convicção em depoimento indirecto.
Expressa o nº 1 do art. 129º do Cód. Proc. Penal que “se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas”. Apenas nos casos do nº 3, este depoimento é proibido (“não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos”).
Assim, o depoimento indirecto é permitido, nos termos do nº 1 do art. 129º a que se alude, ainda que de forma condicionada. Como refere Frederico da Lacerda da Costa Pinto, in Depoimento Indirecto, Legalidade da Prova e Direito de Defesa, 2010, “a lei portuguesa não criou uma proibição de prova nestes casos, mas sim e apenas uma proibição de valoração do depoimento indirecto na parte em que a fonte da informação não seja chamada a depor (ressalvados os casos de impossibilidade de a fonte ser chamada” – no mesmo sentido vide Carlos Adérito Teixeira, in Depoimento Indirecto e Arguido: Admissibilidade e Livre Valoração Versus Proibição de Prova, Separata da Revista do CEJ, 2005, número 2.
Conclui-se, desta forma, que o art. 129º do Cód. Proc. Penal estabelece a proibição, em princípio, do testemunho que não verse sobre factos concretos e de conhecimento directo, em particular do “testemunho de ouvir dizer”, mas estabelece as condições em que este pode ser permitido e valorado, sendo uma delas a confirmação do depoimento indirecto, com a consequente audição das pessoas “a quem se ouviu dizer”. Feita tal confirmação, pode o depoimento indirecto ser eficaz como meio de prova.
No caso dos autos, a testemunha EE, mãe da ofendida e irmã do arguido, esclareceu que soube dos factos imputados ao arguido pela filha, ofendida, apenas quando teve lugar a 2ª situação, alguns dias depois, e que a filha lhe relatou o que teria sucedido nas duas situações. Mas o Tribunal a quo ouviu também a ofendida quanto a estes factos, pelo que o depoimento da testemunha nesta parte poderia ser valorado, como foi (Depoimento prestado de forma séria, lembrada, lógica, serena e que não sendo presencial, soube das situações - de forma lógica, uma vez que é natural que o ocorrido tenha sido contado pela ofendida á sua mãe - sendo o depoimento consonante com o relatado pela referida ofendida, assim corroborando e mais reforçando a acusação pública, de forma credível).
Mais, tal como relata o Tribunal recorrido na motivação, a testemunha depôs também relativamente a factos em que teve participação directa, contando o que viu e percepcionou directamente:
- Quando a ofendida lhe relatou o ocorrido fê-lo pelo telefone e mostrava-se nervosa.
- Explicou que a sua filha, ofendida, teve que ter ajuda, através de apoio psicológico, que agora já não tem, está melhor, sendo que, actualmente, tem um comportamento normal para a idade, apenas é reservada.
- Mais, explicou que aquando da 2ª situação, no almoço, estavam em casa os de casa, uma irmã e o arguido e que a relação do arguido com a ofendida parecia normal, porquanto o mesmo era meigo com toda a gente.
- Acrescentou que em Outubro ou Novembro de 2020, durante cerca de 1 mês, o arguido residiu com a depoente e a ofendida, período durante o qual o arguido se mostrava desnorteado porque a companheira o tinha posto fora de casa.
Inexiste, assim, qualquer erro notório na apreciação da prova.
Concluindo: no caso em apreço, os factos provados são suficientes para suportar a decisão de direito a que se chegou, nas suas diversas vertentes; visionando toda a matéria factual, não se verifica qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão; também não se patenteia a existência de erro notório na apreciação da prova.
Da integração jurídica…
Alega o recorrente que os factos provados não integram a prática de crimes previstos no art. 163º do Cód. Penal, quando muito tratar-se-ia de crimes de importunação sexual, com previsão no art. 170º do Cód. Penal.
Afirma que o crime de coação sexual exige que o constrangimento da vítima seja praticado por meio de violência, ameaça grave ou depois de o agente ter tornado a vítima inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, o que não aconteceu.
Sobre este aspecto disse o Tribunal recorrido:
Relativamente ao arguido, os factos apurados integram, sem dúvida, a prática por AA, em autoria material, de um crime de coação sexual, na forma tentada e agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22º, 23º, 163º, nºs 1 e 3 e 177º, nº 1, alínea b), todos do Código Penal e de um crime de coação sexual, na forma consumada e agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 163º, nºs 1 e 3 e 177º, nº 1, alínea b), ambos do Código Penal.
Na verdade, resulta do disposto no artigo 163º, do C. Penal que:
“1 - Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até cinco anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima”.
Tal crime é agravado, nos termos do disposto no artigo 177º, do Código Penal, que refere:
“Artigo 177.º
Agravação
1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
2 - As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos do n.º 2 do artigo 163.º, do n.º 2 do artigo 164.º, da alínea c) do n.º 2 do artigo 169.º e da alínea c) do n.º 2 do artigo 175.º
3 - As penas previstas nos artigos 163.º a 167.º e 171.º a 174.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o agente for portador de doença sexualmente transmissível.
4 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 174.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se dos comportamentos aí descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima.
5 - As penas previstas nos artigos 163.º, 164.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos.
6 - As penas previstas nos artigos 163.º, 164.º, 168.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.
7 - Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.
No caso em apreço, tal como consta da acusação dos autos, em ambos os crimes imputados, a qualificativa em causa é a vertida no nº 1, alínea b), deste artigo 177º, do C.P., dado que a ofendida menor de 14 anos, à data da prática da 1ª situação (tentativa) supra provada e com 16 anos á data da prática da 2ª situação (consumada) supra provada, se encontrava numa relação familiar com o arguido, porquanto este era seu tio, irmão da sua mãe e o crime foi praticado com aproveitamento desta relação.
O conceito de “acto sexual de relevo” podê-lo-emos surpreender no “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, anotação ao artigo 163º, do Código Penal, págs. 447 a 450”, podendo a sua noção ser resumida em: Aquele comportamento activo, excepcionalmente omissivo – dando o exemplo de, em certas circunstâncias permanecer nu – que de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por essa via, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre e pratica. Figueiredo Dias (autor da Douta anotação que ora acompanhamos) refuta a tese de que tal critério objectivo seja acompanhado por um critério subjectivo – a intenção libidinosa – desde logo porque os dois argumentos que fundamentam tal tese: a existência de situações de fronteira sem intenção libidinosa, como sejam actos médicos ginecológicos ou relações familiares de afecto e demonstrações de carinho e a necessidade de oferecer uma protecção intensificada dos sentimentos de pudor e de moralidade sexual, merecem, quanto à primeira, inserção nas causas de exclusão da ilicitude e, no caso da segunda, importa deixar claro que o bem jurídico tutelado nada tem que ver com a moralidade sexual, sendo desejável ver afastado tal conceito deste tipo de definição. Defende, no entanto, que não nos devemos circunscrever, na análise do que é ou deixa de ser acto sexual de relevo, à sua pura individualidade exterior. Relevante será igualmente o circunstancialismo de lugar, de tempo, de condições que o rodeiam e que o façam ser reconhecível pela vítima como sexualmente significativo. Parece-nos referir tal intervenção deste critério para aquelas situações de fronteira em que o acto praticado possa assumir uma interpretação equívoca em sede objectiva. Quanto à qualificativa, em causa, para a sua verificação a vítima terá que ter uma relação familiar com o arguido e o crime terá que ser praticado com aproveitamento desta relação, o que se verifica porquanto o arguido era tio da ofendida, irmão da sua mãe e o crime foi praticado com aproveitamento desta relação familiar – o que se verifica objectivamente – mas subjectivamente, importa que o autor do ilícito disso tenha consciência e de tal se aperceba.
O dolo abrange, assim, quer a prática do acto sexual de relevo quer a noção da relação familiar com a vitima e que o crime é praticado com aproveitamento desta relação, o que se verifica e resultou provado, o arguido bem sabia que a vitima era sua sobrinha e aproveitou-se dessa relação familiar para praticar o crime, nas duas formas dadas como provadas – tentativa e consumada.
O arguido tentou, na 1ª situação dada como provada supra, beijar a ofendida DD . na boca, não o conseguindo efectuar porque a ofendida desviou a face e numa 2ª situação o arguido apalpou as mamas da ofendida, por cima da roupa.
Nas circunstâncias – claramente de cariz sexual – em que o fez, o acto é, sem sombra de dúvida, acto sexual de relevo, pela forma como foi supra descrito.
Mostram-se, assim, inequivocamente e sem qualquer dúvida, preenchidos os elementos objectivos do tipo de crime previsto nos artigos 163º, nºs 1 e 3 e 177º, nº 1, alínea b), ambos do Código Penal, na sua forma tentada.
Tentada porquanto, tendo o arguido iniciado a execução do acto ilícito, não logrou obter o seu resultado típico porquanto a resistência ao mesmo montada pela ofendida DD . foi eficaz, não logrando o arguido consumar, por motivos alheios à sua vontade.
Também para além dos elementos objectivos, necessário se mostra o preenchimento do elemento subjectivo, o que no caso se mostra preenchido porquanto resultou provado supra que o arguido ao assim agir actuou dolosamente.
Assim, a 1ª situação dada como provada supra, mostra-se preenchida, tanto na vertente objectiva, bem como na vertente subjectiva, mais não restando ao tribunal a não ser condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de coação sexual, na forma tentada e agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22º, 23º, 73º, 163º, nºs 1 e 3 e 177º, nº 1, alínea b), todos do Código Penal.
Quanto á 2ª situação supra provada, em que o arguido com o uso da mão do outro membro superior apalpou ambos os seios da menor DD ., sua sobrinha, o que fez por cima da roupa, dúvidas não subsistem que a vertente objectiva do crime em causa se mostra preenchida, nomeadamente, que se trata de “acto sexual de relevo”, nos termos supra considerados, verificando-se a mesma qualificativa, porquanto ao assim actuar a vítima tinha uma relação familiar com o arguido e o crime foi praticado com aproveitamento desta relação, de tudo tendo o arguido pleno conhecimento.
Preenchidos que se mostram os elementos objectivos do mesmo tipo de crime supra explanado e qualificado da mesma forma, porém agora praticado na forma consumada, também os elementos subjectivos se mostram preenchidos, uma vez que resultou provado que o arguido, ao assim actuar, sabia que DD . . era sua sobrinha e aproveitou-se da relação familiar que tem com a referida DD . para praticar tais actos com a intenção de satisfazer os seus próprios impulsos sexuais, bem sabendo que agia contra a vontade da mesma e a obrigava a suportar os actos sexuais descritos, que a constrangeram, a perturbaram e ofenderam o seu pudor e a sua liberdade sexual.
Assim, a 2ª situação dada como provada supra, mostra-se preenchida, tanto na vertente objectiva, bem como na vertente subjectiva, mais não restando ao tribunal a não ser condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de coação sexual, na forma consumada e agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 163º, nºs 1 e 3 e 177º, nº 1, alínea b), ambos do Código Penal.
Verifica-se, assim, conforme consta da matéria de facto provada, que o arguido preencheu os elementos objectivos e subjectivo do crime de que se mostra acusado, bem como a qualificativa imputada, o que fez por duas vezes, a 1ª vez na forma tentada e a 2ª vez na forma consumada, em relação á mesma pessoa, em datas distintas, pelo que cometeu, consequentemente, em autoria material, um crime de coação sexual, na forma tentada e agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22º, 23º, 73º, 163º, nºs 1 e 3 e 177º, nº 1, alínea b), todos do Código Penal e um crime de coação sexual, na forma consumada e agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 163º, nºs 1 e 3 e 177º, nº 1, alínea b), ambos do Código Penal, pelo que consequentemente, será o arguido condenado, por tais crimes.
Analisando os factos provados, são duas as situações em causa, a saber:
- no ano de 2018, quando DD . tinha 14 anos de idade, num elevador, o arguido encostou o seu corpo ao corpo da menor DD, inclinou-se em direção à mesma, dirigiu a sua boca em direção à boca da menor e tentou beijá-la na boca, o que só não logrou em virtude de, entretanto, o elevador ter chegado ao quinto piso e, a menor, DD ter conseguido libertar-se e sair daquele local;
- em 9 de Maio de 2021, quando a menor DD tinha 16 anos de idade, o arguido colocou-lhe um braço por cima do ombro e com o uso da mão do outro membro superior apalpou ambos os seios da menor DD ., por cima da roupa.
O arguido é tio da menor DD e aproveitou-se da relação familiar para praticar tais actos com a intenção de satisfazer os seus próprios impulsos sexuais, bem sabendo que agia contra a vontade da mesma e a obrigava a suportar os actos sexuais descritos, que a constrangeram, a perturbaram e ofenderam o seu pudor e a sua liberdade sexual; sendo que na primeira ocasião só não conseguiu concretizar os seus intentos por razões alheias à sua vontade; o arguido agiu, em todas as circunstâncias descritas, de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Considerou o Tribunal recorrido que o arguido cometeu dois crimes na previsão dos arts. 163º nºs 1 e 3 e 177º, nº 1, alínea b), ambos do Cód. Penal, sendo um deles na forma tentada e o outro na forma consumada.
Resultou provado que o recorrente tentou constranger, e constrangeu, a sua sobrinha, em duas ocasiões diferentes, quando ela tinha 14 e 16 anos de idade, a sofrer acto sexual de relevo.
Efectivamente, um beijo na boca (no caso, tentado) é acto sexual de relevo. Tal como é acto sexual de relevo o acto de apalpar seios.
Acto sexual de relevo é “todo aquele (comportamento activo...) que, de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de autodeterminação sexual de quem a sofre ou pratica” (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 447).
Afirma Sénio Alves (in Crimes Sexuais, pág. 8 ss), a propósito do que seja acto sexual de relevo o seguinte: “O acariciar dos seios é um acto sexual? E se sim, é de relevo? (…) Numa noção pouco rigorosa (diria sociológica) de acto sexual têm cabimento actos como os supra referidos (o acariciar dos seios e de outras partes do corpo, que não só dos órgãos genitais). São aquilo que vulgarmente se designa como “preliminares da cópula” e, por isso, são actos de natureza sexual ou, se se preferir, actos com fim sexual”, pelo que “o acto sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas”.
E Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal) em anotação ao artigo 163º, concretizando o que seja acto sexual de relevo, nele integra o toque com partes do corpo nos seios, nádegas, coxas e boca.
Finalmente, citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02.02.2011, (proc. nº 889/09.8.TAPBL.C1, pesquisado em www.dgsi.pt.) diremos que “acto sexual de relevo é ( ... ) todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas e a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade (...) que considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda, com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas”.
Pelo que não há qualquer dúvida de que os actos cometidos pelo recorrente sobre a menor são actos sexuais de relevo.
Temos, porém, que o crime de coacção sexual, p. e p. pelo art. 163º do Cód. Penal tem sido objecto de sucessivas alterações.
Em 2018 (altura da 1ª ocorrência), a redacção do normativo, de acordo com a Lei 83/2015 de 5.08, era a seguinte:
1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 5 anos.
Posteriormente, nos termos da Lei 101/2019 de 6.09, a redacção do normativo passou a ser:
1 - Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até cinco anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima.
Actualmente, o crime de coacção sexual, p. e p. pelo art. 163º do Cód. Penal tem ainda uma outra redacção, atribuída pela Lei 45/2023 de 17.08:
“1 - Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até 5 anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima.”
O bem jurídico protegido com a incriminação deste tipo é a liberdade de autodeterminação sexual de outra pessoa, mas entre as 3 redacções do art. 163º do Cód. Penal que transcrevemos há nuances importantes.
Analisado o normativo em causa, diremos que a coacção sexual “agravada” – que exige que o agente constranja a vítima a sofrer ou a praticar acto sexual de relevo por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, ter tornado a vítima inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir – mantem idêntico conteúdo, mas o mesmo não acontece para os casos de coacção sexual “simples”, que é o que agora nos importa.
O primeiro elemento objectivo do tipo que cumpre dilucidar é o conceito, exigido, de “constrangimento”.
O constrangimento exigido no nº 2 do art. 163º do Cód. Penal (coacção sexual “simples”) na redação da Lei 83/2015 de 5.08 requeria, tão só, uma oposição íntima (uma vontade contrária) da vítima à prática sexual [assim Pedro Caeiro, Observações sobre a projectada reforma do regime dos crimes sexuais e do crime de violência doméstica, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Jorge de Figueiredo Dias (Dir.), Ano 29, n.º 3, 2019, (nota 10) p. 676]. Para Simas Santos e Leal-Henriques (Código Penal Anotado, Vol. 3, 4ª Edição, Lisboa, Rei dos Livros, 2016, p. 465) “constranger é obrigar, submeter à sua vontade, sem que a vítima tenha liberdade de determinação”.
Com a alteração introduzida ao art. 163º pela Lei 101/2019, aditou-se um nº 3 com a definição, legal, de “constrangimento”, a saber: “para efeitos do disposto no n.º 1 (onde agora se prevê a coacção “simples”), entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima” .
Admite-se, como anteriormente, que o elemento típico de constrangimento pode ser operado por qualquer outro meio não previsto no nº 2 (violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, ter tornado a vítima inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir), englobando a contrariedade da vontade – significando todas as situações em que o ato sexual de relevo não coincide com a vontade real da vítima, seja por ausência de vontade ou porque a vontade estava, de alguma forma, condicionada. Mas exige-se a prática “contra a vontade cognoscível da vítima”.
Urge, por isso, entender o que é “a vontade cognoscível da vítima”.
Liliana Cristina Gomes Correia (As alterações de 2019 ao Código Penal em matéria de crimes sexuais: os crimes de Coação Sexual e Violação, in Julgar online, Dezembro 2020, p. 12 e 13) defende, em termos com que não podemos deixar de concordar, que de acordo com esta alteração “a vontade contrária da vítima tem de ser cognoscível, ou seja, esta tem de agir de forma a dar a conhecer a sua recusa perante o ato, através da verbalização (um “não”), do choro, da própria linguagem corporal, etc. A cognoscibilidade prende-se com a existência de factos e/ou circunstâncias que demonstrem – possam demonstrar – conhecimento por parte do agente de que a vítima tem a sua vontade limitada ou que nem sequer tem condições de transmitir a sua vontade real. Não significa que o agente tem de conhecer, significa apenas que tem de poder conhecer”.
Ora, em face dos factos dados como provados na sentença recorrida, não podemos afirmar a verificação deste pressuposto na segunda situação. Na primeira situação, em que o arguido/recorrente tenta beijar a vítima na boca, sem o conseguir (em virtude de, entretanto, o elevador ter chegado ao quinto piso e a menor DD ter conseguido libertar-se e sair daquele local), ainda se poderia defender que a vontade contrária da vítima foi cognoscível, mas na segunda situação, quando o arguido/recorrente apalpou ambos os seios da menor, não se retira dos factos provados a cognoscibilidade da vontade contrária da vítima. Ainda que se dê como provado que o arguido/recorrente bem sabia que agia contra a vontade da vítima, em momento algum se dá como provado que a vítima lhe manifestou, na altura da prática do acto essa vontade contrária.
Acresce que, ao contrário da redacção dada ao art. 163º do Cód. Penal pela Lei 83/2015 de 5.08, que previa que a vítima podia ser constrangida a sofrer ou praticar acto sexual de relevo (redacção de novo repristinada pela alteração ao normativo definida pela Lei 45/2023 de 17.08) a redacção dada ao nº 1 do art. 163º pela Lei 101/2019 de 6.09, deixou de prever a hipótese de a vítima ser constrangida a sofrer acto sexual de relevo, admitindo apenas a hipótese de a vítima ser constrangida a praticar acto sexual de relevo.
E esta diferente previsão legal tem também consequências no caso em análise.
De acordo com Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Ed., Coimbra Editora, 2007, (nota 8), p. 722) a distinção terminológica dos conceitos sofrer e praticarquer significar (…) a distinção entre um comportamento, do ponto de vista sexual, puramente passivo ou antes ativo da vítima”.
No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Código Penal, 3ª Edição, (nota 18), p. 646] define “que a vítima assume uma posição sexual ativa (constranger a “praticar”) ou passiva (constranger a “sofrer”)”.
Assim, a Lei 101/2019 de 6.09, ao deixar fora da previsão o constrangimento da vítima a sofrer acto sexual de relevo, deixou de se considerar como vítima do crime de coacção sexual “simples” quem assuma uma posição sexual passiva.
Também Liliana Cristina Gomes Correia (obra citada, p. 9 e 10) chama a atenção que “com a Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro, eliminou-se a modalidade de ação «sofrer», pelo que, de acordo com uma interpretação literal da atual disposição, apenas preencherá o tipo objetivo do crime de Coação Sexual, o ato de constranger outra pessoa a praticar – consigo ou com outrem é uma outra questão – ato sexual de relevo. A tese que sustenta o raciocínio de que o conceito «praticar» envolve, em si mesmo, um sofrimento e que, por isso, a modalidade de ação «sofrer» permaneceria abrangida pela norma incriminadora, não colhe entre nós”.
Analisando os factos dados como provados na sentença recorrida verificamos que em qualquer das situações e vítima assumiu uma postura passiva, não prevista no tipo de coacção sexual do nº 1 do art. 163º do Cód. Penal na redacção da Lei 101/2019 de 6.09, que era precisamente a que se encontrava em vigor em 9.05.2021, quando ocorreu a 2ª situação descrita nos autos. E mesmo não sendo esta a redacção em vigor em 2018, aquando da 1ª situação descrita nos autos, em face do disposto no nº 4 do art. 2º do Cód. Penal, tem que se ter em consideração a mencionada redacção conferida ao nº 1 do art. 163º do Cód. Penal pela redacção da Lei 101/2019 de 6.09, por ser concretamente mais favorável ao recorrente.
Concluindo, o arguido/recorrente não pode ser punido pela prática de crimes de coacção sexual, não podendo subsistir a condenação pela prática de tais ilícitos.
O que não significa que as suas condutas, provadas, não sejam puníveis.
Efectivamente, a matéria fáctica provada integra a prática, pelo recorrente, de dois crimes de importunação sexual, p. e p. pelo art. 170º do Cód. Penal (como o recorrente admite em sede de recurso e também sem necessidade de se proceder à comunicação a que alude o nº 3 do art. 358º do Cód. Proc. Penal porque a alteração determina a convolação para crime menos grave) – esclarece-se que a integração no tipo previsto no art. 171º do Cód. Penal não pode equacionar-se porque a vítima, mesmo na primeira ocasião, não é menor de 14 anos [neste sentido veja-se, a título de exemplo da jurisprudência unânime, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 4.6.2014, proferido no Proc. 1298/09.4JAPRT.P1, pesquisado in www.dgsi.pt, em cujo sumário se indica, a propósito dos ilícitos p. nos arts. 171º a 174º do Cód. Penal: “VI - A integração harmónica dos diversos preceitos inculca, por si só, que o limite temporal mínimo nas duas últimas hipóteses corresponde à data em que se completem os 14 anos e, por seu turno, o limite superior é balizado pela data em que se completam os 18 ou 16 anos, respectivamente”].
Prevê o art. 170º do Cód. Penal que “quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
E nos termos do art. 177º, nº 1, do mesmo Cód., “as penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: (…) b) Se encontrar numa relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação (…)”.
Assim, cada um dos crimes cometidos pelo arguido é punível com pena de multa de 13 a 160 dias ou com pena de prisão de 40 dias a 1 ano e 4 meses.
Uma vez que o tipo legal abstracto prevê a possibilidade de aplicação alternativa de duas espécies de pena, há que atender ao disposto no art. 70º do Cód. Penal, donde resulta o dever de escolha de pena não privativa da liberdade sempre que esta se mostre adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.
Expressa-se neste preceito uma das ideias fundamentais subjacentes ao sistema punitivo do Cód. Penal: uma “reacção contra as penas institucionalizadas ou detentivas, por sua própria natureza lesivas do sentido ressocializador que deve presidir à execução das reacções penais” (Robalo Cordeiro, Jornadas de Direito Criminal, pág. 238).
A alternativa entre a pena privativa e a pena não privativa da liberdade resolve-se em favor da segunda, sempre que ela se mostre suficiente para promover a recuperação social do agente e satisfaça as exigências de reprovação e de prevenção do crime.
No caso concreto, o arguido não apresenta antecedentes criminais e está social e familiarmente integrado. Porém, a ilicitude elevada dos factos e razões de prevenção geral (estamos perante um tipo de factos que repugna enormemente a sociedade, mais a mais tendo em conta as relações familiares entre perpetrador e vítima) conduz, necessariamente, à opção por pena detentiva.
Diferente opção seria solução injustificável, por incompatível com um nível satisfatório de estabilização contrafáctica da comunidade na validade e vigência da norma infringida.
Quanto à concreta medida das penas…
De acordo com os nºs 1 e 2 do art. 40º do Cód. Penal, “a aplicação de penas… visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Figueiredo Dias (Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 65 a 111), diz que o legislador de 1995 assumiu no art. 40º do Cód. Penal, os princípios ínsitos no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida:
1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
Américo Taipa de Carvalho (Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, p. 322), interpreta o actual art. 40º do Cód. Penal concluindo que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção. Assim, está subjacente ao art. 40º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
A medida concreta da pena é determinada, nos termos definidos pelo art. 71º do Cód. Penal, “dentro dos limites definidos na lei… em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, atendendo-se “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) a intensidade do dolo ou da negligência; c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”
No caso, a ilicitude (sopesado o desvalor da acção e do resultado) mostra-se elevada. Na 1ª situação o arguido encostou o seu corpo ao corpo de menor com 14 anos de idade, dirigiu a sua boca em direção à boca da menor e tentou beijá-la na boca; na 2ª situação o arguido apalpou ambos os seios de menor com 16 anos de idade, por cima da roupa, sempre com intenção de satisfazer os seus próprios impulsos sexuais, bem sabendo que agia contra a vontade da mesma e a obrigava a suportar os actos sexuais descritos, que a constrangeram, a perturbaram e ofenderam o seu pudor e a sua liberdade sexual.
O dolo é, em ambas as situações, directo e intenso, pois que o recorrente previu e quis as consequências da conduta.
Há ainda que considerar as elevadas necessidades de prevenção geral, a que já nos referimos.
O arguido não regista antecedentes criminais e está social e familiarmente integrado.
Não confessou, tendo negado a prática dos factos – assim demonstrando não ter interiorizado o desvalor da conduta.
Analisando as circunstâncias apuradas na sua globalidade, justifica-se condenar o arguido na pena de 8 meses de prisão para cada um dos crimes praticados, penas que se entendem ajustadas à culpa e às exigências reclamadas pela prevenção especial e pela prevenção geral positiva (ou de integração), isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à norma violada.
Quanto à determinação do cúmulo jurídico…
Atento o disposto no art. 77º, nº 1, 1ª parte, do Cód. Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa pena única”.
Nos termos do art. 77º, nº 2 do mesmo Código, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, acrescentando o nº 3 que se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
Assim, a pena aplicável ao recorrente tem como limite mínimo 8 meses de prisão e como limite máximo 16 meses de prisão.
Na determinação da pena conjunta, deve atender-se a critérios gerais e a um critério especial, que entre si se conjugam e interagem. Com efeito, tal determinação obedece, em primeiro lugar, aos critérios gerais constantes do art. 71º, nº 1 do Cód. Penal, já supra referidos, e ainda ao critério especial a que alude o art. 77º, nº 1, in fine, do Cód. Penal, tendo que ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
De harmonia com este critério, a conjugar com os demais supra referidos, deve sopesar-se o conjunto dos factos para aquilatar da gravidade da sua ilicitude, sendo decisiva para esta avaliação o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.
Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo a uma “carreira” criminosa), ou tão só uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade.
No caso concreto, a consideração unitária dos factos e da personalidade do agente, leva-nos a considerar adequada a pena única de 13 (treze) meses de prisão – em face da ilicitude dos crimes (sobre cuja gravidade já discorremos supra) e da personalidade do recorrente revelada nos factos (agindo duas vezes sobre a mesma menor, sua sobrinha com um intervalo de cerca de 2 anos).
Mantem-se a suspensão da execução da pena única, nos termos e pelos motivos indicados na sentença recorrida, apenas modificando o período de suspensão da execução para 2 (dois) anos, no mais mantendo a sujeição a regime de prova e às obrigações fixadas.
Também a decisão sobre o pedido de indemnização civil se afigura correcta, ponderada e fixada tendo em atenção os necessários critérios de equidade.
* * *
Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, e decidem:
- proceder à convolação dos dois crimes de coação sexual, um na forma tentada e outro na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 163º nºs 1 e 3 e 177º, nº 1, alínea b), ambos do Cód. Penal, que o Tribunal a quo tinha imputado ao arguido, para dois crimes, na forma consumada, de importunação sexual, com previsão nos arts. 170º e 177º, nº 1 alínea b), ambos do Cód. Penal;
- aplicar ao arguido, pela prática de cada um destes crimes, uma pena de 8 (oito) meses de prisão e, operado o cúmulo jurídico de penas, condenar o arguido/ recorrente na pena única de 13 (treze) meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 (dois) anos, no mais confirmando a sentença recorrida.
Sem custas.

Lisboa, 19.03.2024
Alda Tomé Casimiro
Mafalda Sequinho dos Santos
Manuel Advínculo Sequeira