Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6350/21.5T8LSB.L1-4
Relator: ALBERTINA PEREIRA
Descritores: TRABALHO PORTUÁRIO
EQUIPARAÇÃO REMUNERATÓRIA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I.O trabalho portuário e o trabalho temporário apresentam similitudes estruturais. Em ambas as modalidades de trabalho a relação laboral encontra-se fragmentada, assumindo carácter tripartido, integrante de uma união de contratos. À semelhança do trabalho temporário, também no trabalho portuário existe um contrato de prestação de serviços (correspondente ao contrato de utilização entre operador portuário que explora áreas de serviço privativo e a empresa de trabalho portuário) e um contrato de trabalho por tempo indeterminado ou a termo entre a empresa de trabalho portuário e o trabalhador portuário. Existindo ainda, na terceira vertente desta relação tripartida, uma relação jurídica legal (não contratual) entre o trabalhador e o utilizador, ou seja, o operador portuário ou a empresa que explora áreas de serviço privativo.

2.Todavia, o trabalho portuário, circunscreve-se às funções “de movimentação de cargas nas áreas portuárias de prestação de serviço público e nas áreas portuárias de serviço privativo” (art.º 1.º n.º 2, do DL 280/93, de 13 de agosto), enquanto o trabalho temporário, pese embora sujeito a várias exigências (artigos 139.º a 149.º, do Código do Trabalho), abarca uma generalidade de atividades.

3.Não estando demonstrada a existência de trabalho igual entre o Autor, trabalhador portuário, e os trabalhadores da empresa utilizadora onde exerce funções, que o mesmo genericamente indicou, não se pode concluir pela violação do princípio da paridade retributiva.

4.E porque a Ré não está vinculada à aplicação do CCT invocado pelo Autor, por não ser filiada em associação patronal subscritora desse convénio (art.º 486.º, n.º 1, do Código do Trabalho), não cabe à mesma aplicar os valores aí previstos relativamente ao subsídio de turno e trabalho suplementar, reclamados pelo trabalhador.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


1.–Relatório:


1.1.AAA intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra BBB, pedindo a condenação desta a voltar a aplicar-lhe, com efeitos retroativos a junho de 2020, o instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicável aos trabalhadores das suas quatro sócias que exerçam as mesmas funções, ou seja, o Contrato coletivo entre a AOPL – Associação de Operadores do Porto e Lisboa e outras e o Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 37, 8/10/2016, em todas as suas vertentes relacionadas com o modo, lugar, duração do trabalho e suspensão do contrato de trabalho, segurança e saúde no trabalho e acesso a equipamentos sociais, e também com a remuneração, em todas as suas vertentes, tendo como referência o nível Base X.

Mais pede que se lhe pague, em incidente de liquidação, os créditos salariais e restantes prejuízos relacionados com o incumprimento da Ré em matéria de aplicação do CCT publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 37, 8/10/2016, nas condições referidas na alínea anterior. Para tal, sustenta a sua posição no facto de a Ré ser uma empresa de trabalho temporário portuário e o Autor ser seu trabalhador, exercendo funções de trabalhador portuário. Refere ter um horário de turnos, e quando trabalha ao domingo o seu trabalho é considerado como suplementar mas recebe de modo distinto no primeiro turno do que é pago se esse trabalho for prestado no segundo ou terceiro turnos. Conclui, referindo, que o modo como é pago não tem em conta o número de horas efetivamente trabalhadas, tal como prevê o Código de Trabalho. Mais refere que a Ré sempre aplicou os CCTs, menos em 2015 e 2016. Refere ainda que, atualmente, a Ré não paga o subsídio de turno e de trabalho suplementar de acordo com o CCT de 2016, alterou os procedimentos e efetua o pagamento à hora. Conclui em sintonia com o pedido.

Teve lugar a realização de audiência de partes, sem conciliação.

A Ré foi citada e contestou.  Alegou, em suma, que não é uma empresa de trabalho temporário, e que o CCT celebrado entre a associação de operadores do porto de Lisboa e o sindicato dos estivadores não lhe é aplicável porque nunca foi associada da AOPL e não existe portaria de extensão. Por outro lado, refere que o próprio Autor admite ser o regime decorrente do Código de Trabalho mais favorável do que o do CCT e nessa medida nada cumpre alterar. Por fim, reconhece ser devido ao Autor €45,16 que lhe será liquidado brevemente. Conclui pela improcedência da ação.

Teve lugar a audiência final.

Proferida sentença, nela se finalizou com o seguinte dispositivo:
Por todo o exposto o Tribunal julga a ação improcedente e em consequência absolve a R. do pedido.”

1.2.Inconformado com esta decisão dela recorre o Autor, rematando as alegações com as seguintes conclusões.
(…)

1.3.A Ré contra-alegou, com vista à improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

1.4.O recurso foi admitido no efeito e regime de subida adequados.

1.5.Remetidos os autos a esta Relação, foi ordenada vista, tendo o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido do provimento do recurso.

1.6.A esse parecer respondeu a Ré, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

1.7.Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

Cumpre apreciar e decidir

2.Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º s 3, 639.º, n.º 1e 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado e das que se não encontrem prejudicadas pela solução dada a outras. Assim, as questões que se se colocam à apreciação deste tribunal consistem na nulidade da sentença por omissão de pronúncia, na impugnação da matéria de facto e se deve aplicar-se ao Autor o CCT publicado no BTE 37, de 08-10-2016, em virtude de ser trabalhador da Ré (ETTP), e ser cedido exclusivamente a entidades que estão sujeitas ao dito IRCT por força da aplicação do disposto nos artigos 10.º e 185.º do Código do Trabalho.

3.Fundamentação de facto

Encontram-se provados os seguintes factos: 

1.A Ré, BBB NIPC … foi criada em 2013;
2.A Ré é detida por quatro empresas de Operação Portuária, a saber: a)-  ….., com sede … Lisboa, titular do número único de registo e de pessoa coletiva …  b)-  …., com sede … Lisboa, titular do número único de registo e de pessoa coletiva …;  c)- …., com sede … Lisboa, titular do número único de registo e de pessoa coletiva …;  d)- …. com sede …, titular do número único de registo e de pessoa coletiva …, em termos e condições que constam das certidões da conservatória de registo comercial de cada empresa juntas aos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
3.Os trabalhadores da Ré só são cedidos às quatro empresas que são detentoras da totalidade do seu capital social sendo que, no âmbito da cedência, os trabalhadores da Ré apenas exercem, de forma exclusiva, as funções de trabalhador portuário;
4.O Autor é trabalhador da Ré há mais 6 (seis) anos;
5.Vigorando entre Autor e Ré um contrato de trabalho sem termo, em termos e condições que constam de fls. 138v a 140 dos autos, posteriormente convertido em contrato sem termo e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
6.Enquanto trabalhador da Ré o Autor foi única e exclusivamente cedido a empresas de Operação Portuária que operam no porto de Lisboa todas elas sócias da Ré;
7.No âmbito das cedências de trabalhadores em que o Autor foi integrado pela Ré, aquele exerceu sempre as funções de trabalhador portuário de base;
8.Os trabalhadores da Ré estão, atualmente, cedidos exclusivamente a empresas sócias daquela, e sempre para exercerem funções de trabalhador portuário;
9.O Autor é sócio do Sindicato Nacional dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego, Conferentes Marítimos e Outros;
10.Por fim, refira-se que o procedimento da Ré é contabilizar o trabalho suplementar prestado de ao dia 15 de cada mês, isto é, v.g., no dia 15 de junho é contabilizado o trabalho suplementar efetuado entre o dia 16 de maio e o dia 15 de junho, inclusive, e proceder ao pagamento do mesmo no recibo de junho;
11.Sendo que o trabalho suplementar prestado entre o dia 16 de junho e o dia 15 de julho é contabilizado neste último mês e pago no final do mês;
12.O Autor trabalhou no sábado dia 5/6/2020 na empresa …, das 8h às 17h, em regime de trabalho suplementar, sendo que à data da contestação tal trabalho ainda não tinha sido pago;
13.No dia 13 de junho, sábado, o Autor também prestou trabalho suplementar na empresa …, durante dois turnos – 08h,00/17h,00 e 17h,00/00h,00;
14.Tendo a Ré pago o valor de € 87,22;
15.Apesar de o Autor não integrar os quadros das empresas de operação portuária o mesmo, tal como todos os restantes trabalhadores portuários da Ré, está afeto a turnos;
16.Consta do recibo do A. 13 (treze) horas pagas com um acréscimo de 25%, o que corresponde ao pagamento da primeira hora de um turno de trabalho suplementar;
17.No referido período o Autor também prestou trabalho suplementar num sábado – 20/06/2020 - e num Domingo - 28/06/2020 -, ambos na empresa …;
18.A Ré tem por objeto social a cedência temporária de trabalhadores para o exercício de tarefas portuárias de movimentação de cargas;
19.A atividade da Ré rege-se pelo Regime Jurídico do Trabalho Portuário, previsto no Decreto-Lei n.º 280/93, de 13 de agosto, alterado pela Lei n.º 3/2013, de 14 de janeiro, e apenas subsidiariamente pelo disposto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro;
20.A Ré encontra-se devidamente licenciada para o exercício da sua atividade de cedência de trabalhadores qualificados (habilitados nos termos da lei) a empresas que têm por objeto a atividade de operação portuária de movimentação de cargas (empresas de estiva) ou a utentes de áreas portuárias privativas;
21.De modo a que aquelas utilizem essa mão-de-obra nas tarefas de embarcar ou desembarcar as mercadorias na zona portuária;
22.Por seu turno, a atividade de operação portuária é uma atividade económica irregular, no sentido de não possuir uma cadência linear, que depende dos fluxos de mercadorias nos portos (quantidade de navios);
23.Tais fluxos apresentam flutuações ao longo do tempo.
24.E tais flutuações refletem-se, direta e necessariamente, nas necessidades de mão-de-obra a utilizar nas operações portuárias.
25.A Lei prevê, para a atividade portuária, a existência de empresas de estiva e de empresas de trabalho portuário.
26.São 7 (sete) as empresas de estiva a operar no porto de Lisboa.
27.Atendendo ao carácter irregular que caracteriza a operação portuária, todas as empresas de estiva a operar no porto de Lisboa dispõem de um quadro mínimo fixo de trabalhadores.
28.Em função das necessidades diárias – volume de trabalho – de cada uma daquelas empresas, tal quadro de trabalhadores vai sendo ajustado com recurso à requisição de mão-de-obra portuária a empresas de trabalho portuário.
29.No Porto de Lisboa, existem atualmente duas empresas de trabalho portuário: a R. e a … (ETP), Lda.
30.A Ré vem cedendo mão-de-obra portuária desde janeiro de 2014.
31.A Ré cede habitualmente mão-de-obra a empresas de estiva como a …., a …., a …. e o …. 
32.Contudo, a Ré pode e deve, por força da Lei, ceder mão de obra portuária a toda e qualquer empresa portuário que o solicite.
33.A Ré não é, nem nunca foi, associada da AOPL – Associação de Operadores do Porto de Lisboa;
34.Por outro lado, inexiste qualquer portaria de extensão que incida sobre aquele CCT;
35.O A. sempre recebeu um complemento remuneratório designado por “subsídio de função” por cada vez que desempenhe as funções elencadas na cláusula nona do seu contrato de trabalho.

4.Fundamentação de Direito

4.1.- Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia

Sustenta o Autor padecer a sentença recorrida de omissão de pronúncia em virtude de o Mmo. Juiz não se ter pronunciado sobre o regime jurídico aplicável à relação triangular entre o Recorrente, Recorrida e empresas a quem a segunda cede o primeiro.
Nos termos do art.º 615.º do Código de Processo Civil,
É nula a sentença quando:
(…)
d)- O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
(…)”

Este dispositivo articula-se com o preceituado no art.º 608.º n.º 2, do mesmo diploma segundo qual, “2 - O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

Como é sabido, as nulidades da sentença, previstas taxativamente no citado art.º 615.º, são seus vícios intrínsecos (quanto à estrutura, limites e inteligibilidade), que traduzem error in procedendo, não se confundindo com os erros de julgamento, error in iudicando, seja em matéria de facto, seja em matéria de direito.

Entende-se por questões, o que resulta do pedido, causa de pedir e exceções deduzidas, e não os argumentos, as teses ou pareceres invocados pelas partes. Deste modo, não constitui omissão de pronúncia considerar linhas de fundamentação na sentença diversas das que as partes hajam invocado, uma vez que o juiz não se encontra sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º, n.º 3, do Código de Processo Civil), podendo, quanto muito, nesse caso, verificar-se erro de julgamento. (Nesse sentido, entre outros, Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 5.º Vol., Coimbra Editora, Reimpressão, págs. 142 e 143 e também Rodrigues Bastos “Notas ao Código de Processo Civil”, Lisboa 2000, II Vol. pág. 123). 

No presente caso, o Mmo. Juiz conheceu da questão suscitada nos autos, no referente à aplicabilidade ao Autor de determinado IRCT para efeitos de pagamento de trabalho suplementar e subsídio de turno, tendo concluído, segundo a interpretação jurídica dos normativos que considerou relevantes, pela improcedência do pedido. O caso não se compagina, pois, a nulidade por omissão de pronúncia, mas, sim, eventualmente, a erro de julgamento.

Destarte, sem necessidade de outros considerandos, indefere-se a arguida nulidade, improcedendo a presente questão.

4.2.- Da impugnação da matéria de facto

Aduz também o Autor que se deve ter como provado que às quatro sócias da Ré é aplicável o CCT entre a AOPL – Associação de Operadores dos Portos de Lisboa e outras e o Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal, publicado no BTE 37, de 08-10-2016, o que demonstrou com a junção do referido BTE e invocou no art.º 12.º da p.i. Mais diz que a matéria dos artigos 78.º a 85.º da sua petição deve ser dada como provada visto se encontrar alicerçada nos docs. 27 a 30, os quais não foram postos em causa pela Ré. Ao não entender assim violou o Mmo. juiz o disposto nos artigos 605.º n.º 5, do Código de Processo Civil “ex vi”, do art.º 87.º, do Código de Processo do Trabalho.

Relativamente ao primeiro aspeto, consta do doc. 6, junto pelo Autor com a p.i.,  referente à Cláusula 1.ª, n.º 2, do Contrato coletivo entre a AOPL – Associação de Operadores dos Portos de Lisboa e outras e o Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal, publicado no BTE 37, de 08-10-2016 , que “Este CCT se aplica a oito entidades empregadoras, designadamente, (…) à Sotagus - Terminal de Contentores de Santa Apolónia, SA, à Liscont – Operadores de Contentores, SA, à Multiterminal – Sociedade da Estiva e Tráfego, SA e a Terminal Multusos dp Beato – Operações Portuárias SA e estimativamente a 257 trabalhadores”.

Assim, uma vez que o dito documento não foi impugnado e a referida matéria se configura com interesse para a boa decisão da causa, visto o Autor alegar a sua cedência pela Ré a esse universo empresarial, nos termos do art.º 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil, passará a mesma a constar dos factos provados, com a seguinte redação:
“Nos termos da Cláusula 1.ª, n.º 2 do Contrato coletivo entre a AOPL – Associação de Operadores dos Portos de Lisboa e outras e o Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal, publicado no BTE 37, de 08-10-2016, constante de fls. 53, o referido CCT aplica-se  “a oito entidades empregadoras, designadamente, (…) à Sotagus - Terminal de Contentores de Santa Apolónia, SA, à Liscont – Operadores de Contentores, SA, à Multiterminal – Sociedade da Estiva e Tráfego, SA e a Terminal Multiusos do Beato – Operações Portuárias SA e estimativamente a 257 trabalhadores”..

No concernente à factualidade dos artigos 78.º a 85.º, da p.i. a mesma, de relevante, apenas espelha (através da correspondência trocada) a divergência de posições entre o Autor e a Ré, relativamente à aplicação do supra aludido CCT -  que o Autor entende se lhe aplica, conforme volta a evidenciar no presente recurso, e a Ré refuta.

Deste modo, por não assumir pertinência para a solução do pleito, não deve a mesma integrar o elenco dos factos provados.

Procede, assim, apenas em parte a presente questão.

4.3.- Da aplicação ao Autor do CCT entre a AOPL – Associação de Operadores dos Portos de Lisboa e outras e o Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal publicado no BTE 37, de 08-10-2016, em virtude de ser trabalhador da Ré (ETTP), e ser cedido exclusivamente a entidades que estão sujeitas ao dito IRCT por força da aplicação do disposto nos artigos 10.º e 185.º do Código do Trabalho.

Sustenta o Autor que a Ré é uma empresa de trabalho portuário, cujo regime prevê de forma expressa a aplicação subsidiária das regras de trabalho temporário, pelo que estando o Autor cedido a empresa a que se aplica o dito CCT, deve ao mesmo aplicar-se as mesmas condições (remuneratórias) de que beneficiam os trabalhadores das empresas utilizadoras.

Vejamos,

Como resulta da factualidade provada, a Ré é uma empresa de trabalho portuário, licenciada para esse efeito, com a qual o Autor mantém um contrato de trabalho há mais de seis anos. É detida pelas sociedades, …, ..., … e …, às quais a mesma vem cedendo trabalhadores, de entre eles o Autor.

Ao trabalho portuário é aplicável o DL n.º 280/93, de 13 de agosto, que estabelece o regime jurídico do trabalho portuário, com a redação decorrente da Lei n.º 3/2013, de 14 de janeiro, aplicando-se também o Decreto Regulamentar n.º 2/94, de 13 de agosto (que regula o exercício da atividade portuária) e a Portaria 178/94, de 29 de março (onde se preveem os requisitos de atribuição de licença as entidades que pretendam exercer a atividade de cedência de mão de obra).

Para o que ora releva, importa destacar do referido DL n.º 280/93, o seguinte:
Art.º 1.º
(…)
2- Considera-se, trabalho portuário, para efeitos do presente diploma, o prestado nas diversas tarefas de movimentação de cargas nas áreas portuárias de prestação de serviço público e nas áreas portuárias de serviço privativo, dentro da zona portuária”.

Art.º 2.º
Para efeitos do presente diploma, entende-se por:
a)- «Efetivo dos portos», o conjunto de trabalhadores que, possuindo aptidões e qualificação profissional adequadas ao exercício da profissão, desenvolvem a sua atividade profissional na movimentação de cargas, ao abrigo de um contrato de trabalho;
b)- «Atividade de movimentação de cargas», a atividade de estiva, desestiva, conferência, carga, descarga, transbordo, movimentação e arrumação de mercadorias em cais, parques e terminais;
c)- «Empresa de trabalho portuário», a pessoa coletiva cuja atividade consiste exclusivamente na cedência de trabalhadores qualificados para o exercício das diferentes tarefas portuárias de movimentação de cargas;
(…).

Art.º 3.º
Ás relações entre o trabalhador que desenvolve a sua atividade profissional na movimentação de cargas e as empresas de estiva, as empresas de trabalho portuário e as empresas que explorem áreas de serviço privativo é aplicável o disposto no presente diploma, no Código do Trabalho e demais legislação complementar”.

Art.º 7.º
1-É aplicável à atividade de movimentação de cargas o disposto no artigo 142.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro, não podendo a duração total de contratos de trabalho a termo de muito curta duração celebrados com o mesmo empregador para a atividade de movimentação de cargas exceder 120 dias de trabalho no ano civil.
2-O contrato de trabalho a termo para movimentação de cargas pode ser celebrado por prazo inferior a seis meses, desde que a sua duração não seja inferior à prevista para a tarefa ou serviço a realizar.
3-O contrato de trabalho a termo celebrado para movimentação de cargas não tem limite de renovações, não podendo, no entanto, a sua duração exceder três anos.
4-É admitida a prestação de trabalho de movimentação de cargas na modalidade de trabalho intermitente.
5-Para os efeitos previstos no número anterior, o empregador deve informar o trabalhador do início de cada período de prestação de trabalho com a antecedência de 10 dias, podendo em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ser acordado um prazo inferior.
6-A prestação do trabalho portuário suplementar só pode ser feita até ao limite máximo de 250 horas anuais.
7-O limite máximo referido no número anterior pode ser afastado por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho quando a adoção de outro regime contratual de trabalho suplementar ou de outro limite máximo melhor se harmonizem com a adoção e implementação de outras disposições sobre utilização, contratação e remuneração de pessoal que favoreçam a eficiência e competitividade do respetivo porto.

Art.º 9.º
Podem requerer a licença referida no artigo anterior as pessoas coletivas de direito privado constituídas sob forma de associação, de cooperativa ou de sociedade comercial, cujo objeto social consista exclusivamente na cedência temporária de trabalhadores portuários.
2-A concessão de licença depende do preenchimento dos requisitos de natureza técnica, económica e financeira, a estabelecer por decreto regulamentar.
3- Aplica-se subsidiariamente à atividade das empresas referidas nos números anteriores o disposto no Decreto-Lei n.º 358/89, de 17 de outubro.
4- As empresas de trabalho portuário podem ceder trabalhadores que para esse efeito tenham contratado diretamente ou, nos termos a definir em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, com recurso a relações contratuais celebradas com empresas de trabalho temporário, não constituindo esta relação cedência ilícita tal como prevista no n.º 2 do artigo 173.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro”.

Atentas as particularidades que envolvem o trabalho portuário, que se caracteriza pela imprevisibilidade, depende dos fluxos (irregulares) de bens ou mercadorias, e implica para as empresas portuárias a impossibilidade de manterem um contingente fixo de trabalhadores permanentes, tendo antes de recorrer a trabalhadores externos quando as necessidades de trabalho justifiquem, o legislador criou um regime especial para o contrato de trabalho portuário, a que se aplica o Código do Trabalho. 

Segundo o art.º 9.º, do Código do Trabalho, “Ao contrato de trabalho com regime especial aplicam-se as regras gerais deste Código que sejam compatíveis com a sua especificidade”. (Será a este normativo que o Autor se quer referir quando, certamente por lapso, faz menção ao art.º 10.º do Código de Trabalho, que para o caso não releva).

Importa ainda considerar, que atenta a similitude existente entre o trabalho portuário e o trabalho temporário, estabeleceu-se que ao trabalho portuário se aplica subsidiariamente o disposto no regime previsto para o trabalho temporário - atualmente regulado pelo Código de Trabalho de 2009 (artigos 172.º a 192.º) e pela Lei n.º 19/2007, de 22 de maio, na parte não revogada pela Lei n.º 7/2009, que aprovou aquele Código (respeitante à matéria relacionada com a empresa de trabalho temporário e exercício da respetiva atividade).

Na verdade, em ambas as modalidades de trabalho a relação laboral se encontra fragmentada, assumindo carácter tripartido, integrante de uma união de contratos. Á semelhança do trabalho temporário, também no trabalho portuário, existe um contrato de prestação de serviços (correspondente ao contrato de utilização entre operador portuário que explora áreas de serviço privativo e a empresa de trabalho portuário) e um contrato de trabalho por tempo indeterminado ou a termo entre a empresa de trabalho portuário e o trabalhador portuário.  Existindo ainda, na terceira vertente desta relação tripartida, uma relação jurídica legal (não contratual) entre o trabalhador e o utilizador, ou seja, o operador portuário ou a empresa que explora áreas de serviço privativo.

Como sustenta Maria do Rosário Ramalho,a operação de cedência dos trabalhadores portuários pelas empresas de trabalho portuário às empresas de estiva é titulada por um contrato de utilização (artigo 10.º do Decreto Regulamentar n.º 2/94) e tal como sucede no contrato de trabalho temporário, observa-se aqui, em maior ou menor grau, um desdobramento dos poderes laborais, com a atribuição do poder diretivo à entidade que utiliza os serviços de trabalho portuário, mas mantendo-se o poder disciplinar na esfera do empregador”.

Essa similaridade é, igualmente, reconhecida por Pedro Romano Martinez, que afirma que o trabalho portuário se enquadra num regime análogo ao do trabalho temporário, em que também há uma relação tripartida; os trabalhadores são contratados por empresas de trabalho portuário para trabalhar em tarefas portuárias de movimentação de cargas em benefício de diferentes empresas que dirigem esse trabalho(Vd. Acácio Pita Negrão, “ Reflexões em torno das principais alterações introduzidas ao trabalho portuário pela Lei n.º 3/2013, de 14 de janeiro”, inEstudos Dedicados ao Professor Doutor, Bernardo Gama Xavier”,  UCP, Vol. I,  2015, pág. 56-57).

Realce-se ainda que as semelhanças ocorrem, sobretudo, em termos estruturais (no modo como estão delineadas as relações entre os agentes envolvidos), não se devendo olvidar as particularidades que rodeiam o trabalho portuário, que o distinguem do demais – particularidades essas a refletir-se, também, no modelo jurídico traçado para essa modalidade de trabalho.

Efetivamente, como refere Nunes de Carvalho, Liberdade e Compromisso – Estudos dedicados ao Professor Mário Fernando Campos Pinto, Trabalho Portuário: especificidades, evolução histórica e regime atual”; UCP Vol. II, pág. 188,[…] procurou-se aproveitar um modelo legal existente mas com as limitações postuladas pela especificidade da atividade portuária e, necessariamente, com as adaptações devidas e que decorriam, desde logo, do perfil dado pelo legislador às empresas de trabalho portuário (processo e requisitos próprios de licenciamento, regime de admissão de trabalhadores, etc.)”.

Por ser assim, o regime legal do trabalho portuário, prevê ele próprio, que constitui atividade das empresas de trabalho portuário, a cedência de mão de obra aos operadores portuários e a empresas que explorem áreas de serviço privativo, não sendo necessário recorrer nesse caso ao regime supletivo do contrato de trabalho temporário. Resultando ainda da referida legislação reguladora desta temática, que os contratos de utilização celebrados entre empresas de trabalho portuário e os operadores não estão sujeitos aos limites de duração aplicáveis ao contrato de trabalho temporário (art.º 178.º, n.º 2, do Código do Trabalho), podendo ser duradouros (art.º 10.º, n.º 2 do Decreto Regulamentar n.º 2/94, de 28 de janeiro).

Acresce que o trabalho portuário, com a suas especificidades e características próprias, se circunscreve às sobreditas funções (“movimentação de cargas nas áreas portuárias de prestação de serviço público e nas áreas portuárias de serviço privativo”), enquanto o trabalho temporário, pese embora sujeito a várias exigências de forma e de conteúdo (artigos 139.º a 149.º, do Código do Trabalho), abarca uma generalidade de atividades.

O Autor, fazendo apelo ao regime do contrato de trabalho temporário, pretende que estando cedido a empresa sócia da Ré, para a qual presta trabalho portuário, se lhe deve aplicar o CCT aplicável aos demais trabalhadores que aí operam no que concerne ao pagamento do trabalho suplementar e subsídio de turno. Invoca, para o efeito, os artigos 10.º (querendo referir-se, como se viu, ao art.º 9.º) e 185.º, n.º 5, do Código do Trabalho.

Estabelece-se no referido art.º 185.º, n.º 5, do Código do TrabalhoO trabalhador tem direito à retribuição mínima de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicável à empresa de trabalho temporário ou ao utilizador que corresponda às suas funções, ou à praticada por este para trabalho igual ou de valor igual, consoante a que for mais favorável.”

Consagra-se neste normativo a equiparação entre a retribuição auferida pelos trabalhadores temporários ao serviço do utilizador e os trabalhadores subordinados a este último. Atenta a precaridade que caracteriza o trabalhador temporário, o legislador pretendeu defendê-lo, quer do utilizador, quer da empresa de trabalho temporário (ETT). Quanto ao primeiro, evitando “que se sirva do trabalhador temporário para diminuir custos de mão de obra, discriminando salarialmente os trabalhadores externos face aos internos; relativamente ao segundo, evitando a majoração do seu lucro à custa da redução salarial dos trabalhadores envolvidos”. (Vd. Abílio Neto “Novo Código do Trabalho”, 3.ª Edição Ediforum, pág. 382).

Afigura-se-nos ser também esse desiderato que está na base do disposto no n.º 6, do referido art.º 185.º, do Código do Trabalho (“O trabalhador tem direito, em proporção da duração do respetivo contrato, a férias, subsídios de férias e de Natal, bem como a outras prestações regulares e periódicas a que os trabalhadores do utilizador tenham direito por trabalho igual ou de valor igual”).

Como resulta do citado normativo o legislador determina, no plano retributivo do trabalhador temporário, que se aplique o regime que seja mais favorável, apelando ao princípio de trabalho igual ou de valor igual.

O dito princípio de trabalho igual, salário igual decorre do art.º 59.º, da nossa Constituição:
1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:
À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna; (…)”.

A este propósito tem vindo a ser entendido que a identidade ou semelhança de funções, não traduz, necessariamente, “trabalho igual”. Na verdade, mesmo considerando dois postos de trabalho absolutamente idênticos, a prestação de atividade em cada um deles pode ser diferente: um dos trabalhadores é mais assíduo ou pontual do que o outro, é mais produtivo ou realiza com maior perícia técnica ou autonomia as suas tarefas.  Como refere Maria do Rosário Ramalho, inTratado de Direito do Trabalho”, II Volume, Almedina, pág. 643, “o princípio da igualdade, na sua dimensão remuneratória, «não impede diferenças remuneratórias entre trabalhadores, mas apenas um tratamento remuneratório discriminatório. Por outras palavras, apenas estão aqui contempladas as situações em que, perante um trabalho igual ou de valor igual, a retribuição seja diferente, sem uma causa de justificação objetiva”. (No mesmo sentido, entre outros, veja-se Monteiro Fernandes, in “Direito do Trabalho”, Almedina, 16.ª Edição, pág. 387 e João Leal Amado, inContrato de Trabalho”, Coimbra Editora, 2009, págs. 307-308).

Para além da paridade formal das funções exercidas ao abrigo de certa categoria profissional deve existir também identidade ou equivalência no plano da quantidade ou qualidade do trabalho produzido. (Vd., nomeadamente, os Acórdãos do STJ de 02-01-1993, proc. 00341, de 22-09-1993, CJ/STJ, 3.º Vol. pág. 269, de 23-01-2001, proc. 003401, 06-02-2002, proc.1441/2001, Social, de 07-05-2003, Revista 4396/4.ª Secção, de 24-09-2003, proc. 03S1193, de 02-11-2005, proc. 05S1589 e de 13-09-2006, proc. 06S575, bem como os Acórdãos do TRL de 02-06-2004, proc. 1435/2004, disponíveis em in www.stj.pt/Sumários/Acordãos/Secção e www.dgsi.pt).

Para aferir da violação do apontado princípio, deve pois poder estabelecer-se a comparação entre o trabalho desenvolvido pelos trabalhadores em questão – o que deve assentar, como se viu, em critérios objetivos e não discriminatórios.

Para o efeito, é mister que se apurem factos que, no mínimo, nos permitam afirmar a existência de trabalho igual em termos dificuldade, penosidade e perigosidade, qualidade (responsabilidade, exigência técnica conhecimento, capacidade, prática e experiência) e quantidade (duração e intensidade).

No presente caso, o Autor pretende auferir idêntica retribuição (trabalho suplementar e subsídio de turno) à dos trabalhadores das empresas utilizadoras onde desempenha as suas funções de trabalhador portuário.

Não indicou, contudo, concretamente, a que trabalhadores se refere.Desconhecendo-se, outrossim, as circunstâncias contratuais em que desempenham funções os trabalhadores com os quais o Autor se compara; ignorando-se se têm vínculos precários (a que corresponde uma maior debilidade da posição contratual, uma menor duração do trabalho e uma degradação socio profissional do seu estatuto sócio profissional  - Vd. Maria Regina Redinha “Relações atípicas de emprego”, CIJE, pág. 139), ou, se pelo contrário, têm contratos de trabalho por tempo indeterminado – como sucede com o Autor. Sendo que essa diferença estatutária também releva para se aquilatar da violação (ou não) do mencionado princípio de trabalho igual, salário igual (Vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-04-2004, proc. 04S3426, www.dgsi.pt).

Destarte, não se dispõe de elementos que nos permitam concluir pela violação do princípio da paridade retributiva, visto se desconhecer se ocorre trabalho igual em termos de quantidade, natureza e qualidade, de acordo com os requisitos acima assinalados, no que se refere ao Autor e aos demais trabalhadores a que genericamente se refere. Sendo que essa prova, por dizer respeito a facto constitutivo do seu direito, nos termos do art.º 342.º do Código Civil, cabia ao Autor.

Desta feita, não estando a Ré vinculada à aplicação do aludido CCT por não ser filiada em associação patronal subscritora desse convénio (art.º 486.º, n.º 1, do Código do Trabalho), nem cabendo à mesma aplicar os valores aí previstos relativamente ao subsídio de turno e trabalho suplementar, pelas razões acima referidas, apenas nos resta concluir pela improcedência da presente questão.
5.Decisão
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão a recorrida.
Custas pelo Autor.



Lisboa, 2022-06-22



Albertina Pereira
Leopoldo Soares
Alves Duarte



Decisão Texto Integral: