Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
528/18.6T8ALQ.L1-2
Relator: RUTE SOBRAL
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DEPOIMENTO
GRAVAÇÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
DEFICIÊNCIA DA GRAVAÇÃO
PRAZO DE ARGUIÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RECIBO DE RENDA
LEI Nº 2023 DE 22-06-1948
RESPONSABILIDADE CIVIL
CONCURSO
PRESUNÇÃO DE CULPA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I–Cumpre o ónus de indicação das passagens da gravação em que fundamenta a impugnação da matéria de facto, previsto no artigo 640º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil, o recorrente que indica pormenorizadamente apenas o momento do início de tais depoimentos, omitindo o respetivo termo, desde que tal indicação permita ao recorrido e ao tribunal enquadrar e localizar os enxertos da gravação que fundamentam o erro de julgamento invocado.

II–Revogada pelo Tribunal da Relação a decisão proferida no despacho saneador que julgou não verificada a exceção de prescrição e determinado o seu conhecimento a final, incorre em nulidade por omissão de pronúncia, subsumível ao disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, a sentença que não procedeu ao seu conhecimento.

III–O nº 4 do artigo 155º do Código de Processo Civil fixa o prazo perentório de 10 dias para as partes arguirem a deficiência da gravação, o qual se inicia na data em que lhes tenha sido disponibilizado o respetivo registo, devendo considerar-se que tal vício fica sanado quando não foi atempadamente arguido perante o Tribunal de Primeira Instância.

IV–Tal regime não obstaculiza a iniciativa oficiosa do Tribunal da Relação na apreciação do recurso da matéria de facto, designadamente quanto à possibilidade de anulação da decisão da primeira instância, quando não constarem do processo todos os elementos que permitem a sua alteração e se revelar necessário renovar a prova indevidamente gravada, nos termos do disposto no artigo 662º, nº 2, alínea c), e nº 3 do Código de Processo Civil.

V–A prova do contrato de arrendamento celebrado no ano de 1966 apenas pode ocorrer por exibição dos recibos de renda, por aplicação do artigo 36º da Lei nº 2023 de 22-06-1948, devendo considerar-se que o arrendatário cumpriu tal ónus quando apresentou recibos que identificam ambos os contraentes e as datas de pagamento, não obstante a existência de imprecisões na identificação jurídica do prédio, supridas pelos demais meios de prova produzidos.

VI–Uma única conduta, geradora de um direito único de indemnização, ainda que subsumível às regras da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual, determina no plano jurídico um concurso meramente aparente de regimes de responsabilidade civil, impondo-se, em regra, o seu enquadramento no âmbito da responsabilidade contratual, em face do princípio da prevalência da autonomia privada na regulamentação do direito das obrigações, da circunstância de ser mais favorável para o lesado o regime da responsabilidade contratual, e do facto dos deveres principais, laterais e acessórios decorrentes da celebração dos contratos conferirem plena satisfação aos interesses do lesado.

VII–A presunção de culpa consagrada no artigo 799º, nº 1, do Código Civil não desonera o lesado do ónus de demonstrar a prática pelo lesante de um ato ilícito e gerador de danos, que constituem factos constitutivos do direito indemnizatório que se proponha exercer em caso de responsabilidade contratual, nos termos do disposto no artigo 342º, nº 1 do Código Civil.


Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:



I–RELATÓRIO


1.1–A. (…), identificada nos autos, instaurou em 13-07-2018 no Juízo Local Cível de (…) a presente ação declarativa comum contra B. (…), igualmente identificado nos autos, pedindo a condenação do réu no pagamento de quantia indemnizatória não inferior a € 32.000,00, acrescida de juros calculados desde a citação e até efetivo e integral pagamento, relativa a danos patrimoniais e não patrimoniais.
Fundamentando tal pretensão, invocou a autora ser arrendatária do réu, tendo assumido tal posição por substituição do seu falecido marido em contrato de arrendamento que remonta a 1966, que teve por objeto prédio misto, destinado quer à habitação do seu agregado familiar, quer à prática de uma agricultura de subsistência. Sucede, porém, que desde 2005 ocorreram vários atos danosos no prédio, praticados pelo réu ou a seu mando (retirada de telhas, arrombamento da porta, incêndio, arranque e destruição de videiras) que visaram provocar o seu abandono pela autora. Certo é que o autor nunca lançou mão de qualquer instrumento legal para fazer cessar o contrato de arrendamento, mas com os atos descritos privou a autora de habitar o locado, vendo-se esta forçada a passar a residir com as filhas, dado que não possui meios económicos para obter outra casa de habitação. Por força dos atos descritos, a autora perdeu todos os seus bens e deixou de habitar no local onde sempre viveu com o seu falecido marido e onde cresceram os seus filhos, o que lhe causou danos de natureza patrimonial e não patrimonial de que pretende ser ressarcida por via da presente ação.

1.2–O réu contestou a ação, arguindo a nulidade da sua citação, por  não lhe terem sido remetidos dois dos documentos juntos com a petição inicial, e excecionou a incompetência territorial do tribunal, por a ação não ter sido instaurada no seu domicílio, contrariamente ao critério consagrado no artigo 71º, nº 1, CPC, defendendo a remessa do processo para o Tribunal (…).
O réu arguiu ainda a exceção de prescrição, pugnando pela sua absolvição do pedido, invocando o prazo de três anos consagrado no artigo 498º, do Código Civil, dado que os factos que lhe foram imputados pela autora deram origem a processo crime, nos quais foram proferidas decisões de arquivamento, a última das quais notificada em 13-07-2018.
Por fim, impugnou a celebração do contrato de arrendamento verbal invocado pela autora, bem como o recebimento de quaisquer rendas, alegando que no ano de 2006 adquiriu a propriedade de determinado prédio misto que identificou, no qual se mostravam implantados vários prédios urbanos, todos em ruína, onde ninguém habitava.
Concluiu o réu não se verificarem os pressupostos da obrigação de indemnização invocada pela autora.

1.3–Julgada improcedente a nulidade da citação (despacho com a referência 139246029), foi proferida decisão sobre a exceção de incompetência territorial, julgando-a procedente, com a consequente remessa dos autos ao Juízo (…).

1.4–Exercendo contraditório sobre a exceção de prescrição arguida pelo réu, a autora apresentou a resposta a que corresponde a referência 3187668, na qual considerou que a causa de pedir da ação não radica na prática pelo réu de factos de cariz criminal, nem se enquadra no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, pelo que não é aplicável o prazo prescricional previsto no nº 1 do artigo 498º do Código Civil.  Ao invés, na sua perspetiva, a causa de pedir radica no incumprimento do contrato de arrendamento celebrado entre o primitivo proprietário do imóvel e o marido da autora, reconduzindo-se, consequentemente, à responsabilidade civil contratual do réu, para a qual se mostra previsto, no artigo 309º do Código Civil, um prazo de prescrição de 20 anos.
Concluiu a autora que deverá improceder a exceção de prescrição invocada.

1.5–Convidada a suprir imprecisões na concretização da matéria de facto alegada, por forma a identificar os danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu com a conduta do autor (despacho de 25-04-2019 – referência 386292863), veio a autora a apresentar petição inicial aperfeiçoada.
Neste articulado (com a referência 32407861), a autora concretizou os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência da conduta que imputa ao réu, tendo computado os primeiros em € 27.700,00 e indicado o valor de € 4,300,00 como adequado para a compensação dos segundos.
O réu exerceu contraditório relativamente à petição inicial aperfeiçoada, mantendo a posição já assumida na contestação anteriormente apresentada (requerimento com a referência 32543613).

2–No decurso da audiência prévia, realizada em 4-03-2020, atenta a complexidade inerente à apreciação da exceção de prescrição, foi determinado o seu conhecimento por escrito, na sequência do que veio a ser proferido o despacho com a referência 395116286.
Em tal despacho, considerou-se que os factos alegados pela autora se reconduziam quer à violação do contrato de arrendamento, quer à prática de atos ilícitos. Assim, por existir um concurso entre responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual, operando entre ambas uma relação de consunção, considerou-se aplicável o regime da primeira, e, consequentemente, do prazo de prescrição de 20 anos previsto no artigo 309º do Código Civil.
Em consonância, foi julgada improcedente a exceção de prescrição invocada pelo autor.

3–Não se conformando com tal decisão, o réu da mesma interpôs recurso, que foi admitido e decidido por este Tribunal da Relação de Lisboa em 20-01-2021, constando do dispositivo do acórdão proferido:
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o saneador-sentença recorrido, que julgou não verificada a exceção de prescrição, substituindo-o pela decisão de relegar para final o conhecimento dessa exceção.

4–Foi designada data para continuação da audiência prévia, no decurso da qual foi identificado o objeto do litígio e selecionados os temas de prova.

5–Realizou-se a audiência de julgamento, com produção de prova, cujas sessões decorreram em 17-05-2022, 14-07-2022 e 14-06-2023, e foi proferida sentença, em 21-06-2023, que julgou a ação improcedente, constando do seu dispositivo o seguinte:
Pelo exposto e nos termos das disposições legais supra citadas, julgo a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolvo o réu do pedido.

6–Não se conformando com a decisão proferida, a autora da mesma interpôs recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que, julgando a ação procedente, condene o réu no pedido formulado, terminando as suas alegações com a seguintes conclusões, que se transcrevem:
1.–O presente recurso tem por objeto a decisão proferida no âmbito dos autos de supra e à margem melhor identificados, que julgou totalmente improcedente a ação intentada pela autora contra o réu, absolvendo-o do pedido.
2.–Discordando a aqui Recorrente da decisão proferida, quer quanto à matéria de facto quer quanto à matéria de direito, pretende, pela presente Apelação, sujeitar à douta reapreciação de V. Exas, as seguintes questões:
a)- Incorreto julgamento da matéria de facto;
b)- Erro de julgamento.
3.–A sentença recorrida - ao contrário do que dela consta e como se impunha pela aplicação do art.º 607.º, n.º 4 do CPC - não teve em conta toda a prova produzida e analisada em audiência.
4.–Na verdade, a sentença é omissa quanto ao depoimento prestado pela testemunha arrolada pela autora, C. (…), a qual foi inquirida na sessão de julgamento realizada em (…) e cujo depoimento se encontra gravado.
5.–Tal omissão influiu necessariamente na decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente na matéria de facto dada como não provada, uma vez que é do depoimento desta testemunha que se extrai, entre outra, a prova da estreita ligação dos factos provados ao Réu, no sentido de ter sido este quem, intitulando-se dono do imóvel locado, se encontrou com esta testemunha, a fim de lhe propor uma indemnização pela cessação do arrendamento, em data contemporânea com a prática/ocorrência dos factos.
6.–Por outro lado, a sentença recorrida padece ainda do vício de contradição entre a matéria de facto dada como provada, constante, nomeadamente do facto 15 dos factos provados (FP) e a não provada, constante das alíneas d), parte final, e) e f) dos factos dados como não provados (FNP).
7.–Na verdade, se o Tribunal “a quo” deu como provado que, “em consequência do incêndio da parte urbana do locado, o mesmo ficou totalmente inabitável, facto que obrigou a aqui Autora a refugiar-se definitivamente em casa das suas filhas D. (…) e E. (…)” (Facto n.º 15 dos FP), resulta à saciedade que o Tribunal “a quo” não podia ter dado como não provados os factos constantes das alíneas supra mencionadas da matéria de facto dada como não provada, pois que, ao fazê-lo, dá, simultaneamente, como provado um facto e o seu contrário, do que resulta uma manifesta contradição entre a matéria de facto dada como provada e não provada.
8.–Tal erro ou vício da decisão de facto acarreta a necessidade de modificabilidade da decisão de facto, por parte do Tribunal da Relação, nos termos do disposto no artigo 662.º n.º 1 do CPC, o que se requer
9.– A aqui Recorrente discorda, ainda, que o Tribunal “a quo” tenha dado como não provados os factos constantes das alíneas d), parte final, e), f), g) e h) da matéria de facto dada como não provada, uma vez que a resposta positiva aos mesmos se encontra claramente suportada nos depoimentos prestados pelas testemunhas E.  e sua irmã, D., os quais, conforme melhor consta da motivação da decisão de facto, não levantaram ao Tribunal “a quo” quaisquer “suspeitas”, antes lhe “merecendo credibilidade”.
10.–Não obstante o depoimento destas duas testemunhas, considera-o isento e merecedor de credibilidade pelo Tribunal “a quo”, este deu como não provados os danos sofridos no imóvel, objeto do arrendamento, quer na parte urbana quer na parte rústica, designadamente em consequência do incêndio que tornou a casa inabitável e destruiu todo o seu recheio, bem como o arranque das árvores e videiras na parte rústica, tornando todo o prédio locado insuscetível de cumprir os fins a que se destinava o arrendamento em vigor
11.–Assim sendo, não se compreende que, tendo o depoimento destas testemunhas sido valorado para a resposta positiva aos factos provados sobre os números 1 a 15, não tenha sido igualmente valorado, nas respostas dadas aos factos dados como não provados, resultando, assim, que o Tribunal “a quo” teve dois pesos e duas medidas na análise destes depoimentos.
12.–Ademais, o depoimento destas duas testemunhas foi corroborado pelo depoimento da testemunha C., ignorado pelo Tribunal “a quo” nos termos em que a aqui Recorrente supra deixou expostos, do qual se extrai a prova da ligação de todos os factos ao Réu, quer sejam os que foram dados como provados, quer os que, não o tendo sido, o deveriam ser, nos exatos termos expostos na motivação do presente recurso.
13.–O Tribunal “a quo” fez uma incorreta apreciação de toda a matéria de facto carreada para os autos, quer testemunhal, quer documental, violando, assim, o disposto no art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, parte final, do CPC.
14.–Na verdade, competia ao Tribunal “a quo” compatibilizar toda a matéria de facto adquirida, extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei e pelas regras de experiência, conforme resulta do artigo 607.º, n.º 3 e n.º 4, parte final, do CPC, dando como provados os factos descritos sob as alíneas a), b), d), e), f), g) e h), dos FNP, os quais correspondem aos danos sofridos pela Autora e, bem assim, a autoria do Réu no cometimento desses mesmos factos, os quais, enquadrados à luz da legislação atualmente em vigor, não deixariam de ser certamente enquadrados como uma clara manifestação de assédio no arrendamento
15.–Compulsada toda a prova produzida, designadamente a testemunhal, não resultou provado terem existido quaisquer outras pessoas, que não o Réu, com interesse e ligação ao prédio locado e aos atos de destruição dados como provados, que o tornaram inabitável e que obrigaram a autora a ausentar-se do mesmo.
16.–Pelo que se discorda totalmente da tese sufragada pelo Tribunal “a quo” na motivação da decisão de facto, no segmento em que refere “ é temeroso dizer que o réu é a única pessoa na terra que tem interesse nos atos lesivos”, designadamente porque, no seu entendimento, “ tais tipos de atos de vandalismo podem decorrer das mais variadas situações e ter por escopo, vingança, malvadez, más-relações pessoais, sendo a imaginação o limite”, para além de puderem até resultar de “ato não humano”.
17.–Acrescendo que todos os factos dados como provados na sentença recorrida, mormente o destelhamento do telhado, o arrobamento da porta de entrada, o incêndio da parte urbana e o arranque e destruição das videiras e árvores de fruto, consistem todos eles, sem exceção, em factos cuja ocorrência depende necessariamente de ação humana, não sendo suscetíveis, por isso, de ocorrer fruto de atuação irresistível de circunstâncias fortuitas, ou em consequência de qualquer causa de força maior.
18.–Sendo, in casu, aplicável o regime da responsabilidade civil contratual, conforme resulta patente da sentença proferida, é inegavelmente aplicável aos presentes autos o disposto no artigo 799.º do Código Civil, nos termos de cujo n.º 1 “incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua”.
19.–Estando em causa uma relação contratual de arrendamento, nos termos do art.º 1031.º do CC, constitui obrigação do Réu (locador) assegurar à Autora (locatária) o gozo do locado para os fins a que o mesmo se destinava, qual seja a habitação da parte urbana e a agricultura de subsistência na parte rústica.
20.–Atendendo a que o Tribunal “a quo” deu como provado: 1) o arrendamento,  atualmente a favor da Autora, do prédio locado, de que o Réu é, atualmente, o proprietário (factos 1 e 2 dos FP); 2) que esse arrendamento se destinava à habitação permanente da Autora e seu agregado familiar, bem como à agricultura de subsistência na parte rústica; 3) que esse arrendamento se encontrava em vigor à data da prática dos factos (factos 6 a 11 dos FP) ; 4), bem como a ocorrência dos factos 12, 13,14 e 15 dos FP, impunha-se, desde logo, ao Tribunal “a quo” uma decisão diversa daquela que proferiu, imposição essa que sai agora reforçada face à alteração da matéria de facto requerida.
21.–Ante tudo o que supra se deixa exposto, e tendo-se presente as regras da repartição do ónus da prova, aplicáveis ao caso em apreço (artigo 799.º do CC), não impendia sobre a Autora o ónus de provar que os factos provados 12 a 15 foram praticados pelo Réu, ou a mando deste, mas apenas que estes factos ocorreram e impediram o gozo do imóvel para os fins do arrendamento.
22.–Pelo que, incumbia ao Réu a prova de que tais factos não foram por si, ou a seu mando, praticados, o que este manifestamente não logrou conseguir, não tendo, por conseguinte ilidido a presunção de que a impossibilidade do gozo do prédio locado por banda da Autora, procedeu de culpa sua.
23.– Pelo que, o Tribunal “a quo” incorreu em manifesto erro de julgamento ao não aplicar a presunção de culpa, prevista pelo supra dispositivo legal, o qual se mostra, assim, violado.
24.–Com efeito, ao contrário do que consta vertido na sentença recorrida (vide págs. 10 a 12), mostram-se verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil contratual, quais sejam: 1) o facto; 2) a ilicitude; 3) a imputação do facto ao lesante; 4) o dano; 5) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
25.–O Tribunal “a quo“ considerou não se encontrar verificado, desde logo, o primeiro pressuposto, ou seja, o facto, porquanto, no seu entender, “o facto há-de ser um facto humano voluntário”, o qual o Tribunal “ a quo” entendeu não se mostrar provado, mais entendendo que os factos 12 a 14 dos FP “não se provaram decorrentes de qualquer ato do Réu”.
26.–Tal decisão enferma de manifesto erro, porquanto, conforme supra se deixou referido, todos os atos constantes dos factos 12 a 14 dos FP são necessariamente atos que envolvem na sua génese uma ação humana, em virtude da qual o prédio locado ficou totalmente inutilizado para o fim a que se destina, mostrando-se violada, por parte do Réu, a obrigação contratual estabelecida no artigo 1031.º do CC, qual seja a de assegurar à Autora, na qualidade de arrendatária, o gozo do locado para os fins a que este se destinava
27.–Recaindo sobre o Réu, que não sobre a Autora, o ónus de provar que a impossibilidade do gozo da coisa não procedia de culpa sua, o que este manifestamente não fez.
28.–Termos em que deve ser modificada a decisão de facto nos termos supra requeridos nos pontos 6 a 8 destas conclusões, dando como provados os factos constantes das alíneas a), b), e d) a h) dos FNP, e em consequência ser revogada a decisão proferida e substituída por outra que, julgando procedente a ação condene o réu no pedido formulado na petição inicial (…)”.

7.–O réu apresentou contra-alegações e requereu a ampliação do recurso, nos termos do disposto no artigo 636º, nºs 1 e 2, CPC, formulando as seguintes conclusões:
“Ora, salvo melhor opinião, não assiste qualquer razão à Recorrente, devendo manter-se a Douta Sentença nos precisos termos em que foi exarada.
iii.-Assentando o presente Recurso, essencialmente, na impugnação da matéria de facto dada como não provada, com recurso à prova gravada, impendia sobre a Recorrente a observância dos requisitos que resultam do disposto no artigo 640.º, n.º1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do C.P.C.
v.-Com efeito, a Recorrente deveria ter indicado “com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
v.-Esta exatidão que resulta do disposto no artigo 640.º, n.º 2, alínea a) do C.P.C. exige que seja indicado o início e o termo das passagens das gravações que a Recorrente pretende que sejam analisadas e que fundamentam o erro na apreciação da matéria de facto dada como não provada.
vi.-Isso constitui um ónus da Recorrente e tem como objetivo facilitar o exercício do direito de defesa por parte do Recorrido.
vii.-Sucede que, a Recorrente indica apenas o início de cada uma das passagens dos depoimentos das testemunhas cuja análise pretende, o que não permite compreender, com clareza e exatidão, em que partes do depoimento fundamenta a Recorrente o erro na apreciação da matéria de facto dada como não provada.
viii.-Por outro lado, a Recorrente faz resumos, da sua autoria, sobre cada um dos depoimentos, os quais não correspondem ao que é mencionado pelas testemunhas.
ix.-Termos em que, deverá concluir-se que a Recorrente incumpriu com os requisitos que resultam do disposto no n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do artigo 640.º do C.P.C., pelo que deverá o presente Recurso ser rejeitado, na parte respeitante ao “Incorreto julgamento da matéria de facto” (Parte II.1 das Alegações a que a que corresponde as Conclusões 1. a 14.) nos termos do disposto no n.º 2, alínea a) da mesma disposição legal, mantendo-se a Douta Sentença nos precisos termos em que foi exarada pelo Tribunal “a quo”.
Caso assim se não entenda, o que apenas se admite por mero dever de patrocínio, Sempre se dirá que,
x.-O depoimento da testemunha, C. é absolutamente inaudível e impercetível, não tendo esta circunstância sido suscitada perante o tribunal “a quo” no momento processual próprio (cf. artigo 155º, n.º 4, do C.P.C.)
xi.-Tal depoimento não poderia ter sido considerado pelo Tribunal “a quo”, nem tão pouco poderá ser considerado em sede de Recurso.
xii.-Nestes termos e nos demais de direito, deverá improceder tudo quanto alegado pela Recorrente quanto ao depoimento desta testemunha, mantendo-se a Douta Sentença nos precisos termos em que foi exarada pelo Tribunal “a quo”.
Por outro lado, sempre se dirá que,
xiii.-A Douta Sentença não padece de qualquer vício de contradição entre os factos constantes do ponto 15 da matéria de facto dada como provada e das alíneas d), e) e f) da matéria de facto dada como não provada.
xiv.-Tais factos são totalmente distintos entre si, contrariamente ao que a Recorrente pretende dar a entender.
xv.-O que resulta do ponto 15. da matéria de facto dada como provada pela Douta Sentença é que, por consequência do incêndio, o imóvel ficou totalmente inabitável, facto que obrigou a Recorrente a refugiar-se definitivamente em casa das suas filhas.
xvi.-Pelo contrário, o que resulta das alíneas d), e) e f) é que tal ato de destruição foi praticado pelo Réu, ora Recorrido.
xvii.-Tais factos são absolutamente distintos, não se verificando qualquer contradição na Douta Sentença.
xviii.-Termos em que, deverá improceder o argumento de que a Douta Sentença padece de contradição entre os factos dados como provados e os factos dados como não provados, mantendo-se nos precisos termos em que foi exarada pelo Tribunal “a quo”. Mais,
xix.-Impugna a Recorrente a matéria de facto dada como não provada constante das alíneas d), e), f), g) e h), com base nos depoimentos das testemunhas NB... .
xx.-Ora, à semelhança do exposto supra, o que resulta dos factos constantes nas alíneas d), e), f), g) e h) é que os atos de destruição foram praticados pelo Réu, ora Recorrido, o que resultou na inabitabilidade do locado, na destruição do mobiliário e que a Recorrente, em virtude de tais atos perpetrados pelo Recorrido, viu-se obrigada a refugiar-se em casa das suas filhas.
xxi.-Todavia, não é isso que resulta dos depoimentos das testemunhas e, por sua vez, que ficou provado nos presentes autos.
As testemunhas, quando questionadas acerca do autor dos atos de destruição, responderam que não sabiam e que não podiam acusar ninguém.
Prova disso é que sempre apresentaram as queixas-crime contra incertos, em virtude de desconhecerem o autor dos alegados atos praticados.
xxiv.-Quando questionadas sobre se o dono do locado seria o Réu, ora Recorrido, as testemunhas responderam que não tinham a certeza.
xxv.-Nas alegações da Recorrente, é possível verificar que esta última fundamenta as acusações contra o Réu, ora Recorrido, no facto de, alegadamente, inexistir outra pessoa com interesse em ver o locado desocupado.
xxvi.-Ora, tal argumento é absolutamente inviável e não pode fundamentar nenhuma condenação.
xxvii.-Dos autos resulta mais do que evidente que a Recorrente não logrou provar que qualquer dos atos alegadamente praticados o tenham sido pelo Réu, ora Recorrido.
xxviii.-Termos em que, não padecem de qualquer erro os factos dados como não provados constantes das alíneas d), e), f), g) e h), pelo que, deverá o presente Recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a Douta Sentença nos precisos termos em que foi exarada pelo Tribunal “a quo”.
xxix.-Por fim, alega a Recorrente que, “constituindo a obrigação do locador, ora Réu, assegurar à Autora, na qualidade de arrendatária, o gozo do locado para os fins a que o mesmo se destinava (habitação da parte urbana e agricultura de subsistência da parte rústica), nos termos do disposto no artigo 1031.º do Código Civil, recaía sobre o Réu, em cumprimento do supra citado artigo 799.º do CC, ilidir a presunção de que a impossibilidade de gozo da coisa procedia de culpa sua, ou seja incumbia ao Réu a prova de que não havia sido ele o autor dos factos dados como provados nos pontos 12 a 14 da matéria de facto provada.”
xxx.-Salvo o devido respeito, não tem a Recorrente nenhuma razão.
xxxi.-O objeto do litígio resume-se à questão de saber se existe um dever de indemnizar a Recorrente por parte do Recorrido decorrente de responsabilidade civil por atos por este praticados (cf. despacho saneador)
xxxii.-Com efeito, a Recorrente instaurou a presente ação pedindo a condenação do Recorrido a pagar-lhe uma indemnização invocando como causa de pedir a existência de um contrato de arrendamento celebrado entre o seu falecido marido e o primitivo proprietário F., ao qual sucedeu, por sucessão, o Recorrente e a prática por este, ou a seu mando, de atos conducentes a impedir o gozo do locado.
xxxiii.-Estamos, pois, no domínio da responsabilidade civil contratual.
xxxiv.-O instituto da responsabilidade civil contratual tem como pressupostos: a) existência de um facto voluntário praticado pelo agente lesante; b) a ilicitude; c) a culpa; d) o dano; e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Os pressupostos são de verificação cumulativa.
xxxvi.-Em matéria de responsabilidade civil contratual, não está a Autora dispensada de alegar e provar a factualidade integradora do primeiro pressuposto.
O facto invocado pela Autora é a prática pelo Réu de diversos atos que privaram a Autora do gozo do locado.
xxxviii.-Assim, competia à Autora a prova da prática pelo Réu de tais atos (cf. artigo 342º do CC), o que não fez.
xxxix.-Pelo que a Autora não provou, como lhe competia, a verificação do primeiro pressuposto da responsabilidade civil;
xl.-E, sendo assim, não tem qualquer cabimento falar-se em culpa presumida do Réu quando não se provou a prática por este do facto ilícito que integra a causa de pedir invocada pela Autora.
xli.-Não tendo sido provado que os factos descritos em 12. 13. e 14. foram praticados pelo Réu, ora Recorrido, como a Autora alegou, não há lugar à responsabilização do Réu e ao consequente direito da Autora ser indemnizada.
xlii.-Nestes termos e nos de mais de Direito, deverá o Recurso apresentado pela Recorrente ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a Douta Sentença nos precisos termos em que foi exarada.
Da ampliação do âmbito do Recurso
Vem o Recorrido requerer, ao abrigo do disposto no artigo 636º n.ºs 1 e 2 do C.P.C. a ampliação do presente Recurso aos fundamentos em que decaiu, nos termos seguintes
Em primeiro lugar, a Douta Sentença recorrida errou ao considerar que “conheceu-se da prescrição, entendendo ser aplicável ao caso o regime da responsabilidade contratual, o qual prevê quanto ao prazo de prescrição o prazo ordinário de 20 anos – cf. artigo 309º do Código Civil – tendo assim a exceção sido julgada improcedente” (cf. página 1. da Douta Sentença recorrida).
xlvi.-Ora, do Douto Despacho Saneador - que julgou improcedente a exceção de prescrição invocada pelo Réu na sua contestação e que considerou aplicável ao caso o regime da responsabilidade contratual - foi interposto recurso pelo Réu;
xlvii.-O qual foi julgado procedente pelo Tribunal da Relação de Lisboa que, em consequência, revogou o despacho saneador nessa parte (cf. Autos de recurso apensos com o nº 528/18.6T8ALQ-A);
xlviii.-A decisão do Tribunal da Relação de Lisboa não foi objeto de recurso pelo que transitou em julgado (cf. Autos de recurso de apelação apensos com o nº 528/18.6T8ALQ-A)
xlix.-Assim, a exceção perentória da prescrição deveria ter sido conhecida na Douta Sentença recorrida que, nesta parte, se encontra ferida de nulidade nos termos do artigo 615º n.º 1 alínea d) do C.P.C.; l. E, como se demonstrará, tal exceção deveria ter sido julgada procedente uma vez que estamos no domínio da responsabilidade extracontratual e não no domínio da responsabilidade contratual.
li.-Com efeito, a Douta Sentença recorrida errou ao julgar como provada a matéria constante dos números 1, 2, 3, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 dos Factos Provados.
lii.-Competia à Autora provar a existência de um contrato de arrendamento de que a mesma fosse titular e que o mesmo tinha por objeto um prédio propriedade do Réu (cf. artigo 342º do Código Civil)
Porém, não o fez.
liv.-Considerando a data desde a qual a Autora diz ser arrendatária – 1966 – há que atender à disposição do artigo 1088º do Código Civil de 1966 nos termos da qual “Se o arrendamento for válido independentemente de título escrito e este não existir, o arrendatário só pode provar o contrato desde que exiba recibo de renda”;
lv.-Assim, e no caso subjudice, o arrendamento invocado pela Autora só podia ser provado mediante a apresentação por esta dos recibos de renda;
lvi.-Não podendo ser valorada pelo tribunal qualquer outro tipo de prova.
lvii.-Ora, a este propósito, a Autora, na petição inicial, referiu expressamente que o prédio de que se diz arrendatária “sempre se denominou “Casal do Porém”” (cf. artigo 2º da p.i.)
lviii.- E que, “Desde o início do arrendamento até ao ano de 2005, a Autora e o seu cônjuge pagavam a respetiva renda ao senhorio, F., quer diretamente a este, quer ao seu procurador, G., também conhecido por G (…), conforme se comprova pelos recibos que se anexam (…) Cfr: Docs nºs 1 a 5” (cf. artigo 9º da petição inicial). Vejamos:
lix.-Quanto ao documento n.º 1, o mesmo agrega dois documentos: o primeiro (na parte superior) faz referência a “renda do Casal H(…)” e o segundo (na parte inferior) faz referência a “renda do Casal I. (…)” (cf. documento n.º 1 junto com a petição inicial).
lx.-Quando ao documento n.º 2, o mesmo igualmente agrega dois documentos: o primeiro (na parte superior) faz referência a “renda do Casal H…” e o segundo (na parte inferior) nada refere quanto ao prédio a que a renda respeita
Assim, os documentos n.ºs 1 e 2 juntos pela Autora não correspondem a qualquer renda referente ao prédio que a Autora descreve nos artigos 1º e 2º da petição inicial.
lxii.-E também não correspondem a qualquer renda referente ao prédio do qual o Réu é proprietário.
lxiii.-Com efeito, o Réu demonstrou, mediante a junção da competente certidão do registo predial (cf. documento n.º 2 junto com o Requerimento Probatório do Réu de 02/12/2021) que é proprietário do prédio misto denominado “(…)”, sito no Casal do (…) Lugar de (…) – junto ao Alcaide (…), próximo da Quinta de (…), descrito na Conservatória do registo Predial de (…), sob o nº (….), da Freguesia de (…), Concelho de (…).
lxiv.-Assim, o prédio propriedade do Réu não tem nenhuma das denominações referidas nos documentos n.ºs 1 e 2 juntos pela Autora com a sua petição inicial;
lxv.-Pelo que os documentos n.ºs 1 e 2 não correspondem a qualquer renda referente ao prédio que é propriedade do Réu.
lxvi.-Quanto aos documentos n.ºs 3, 4 e 5, o Réu, na sua contestação, impugnou-os por falsos (cf. artigo 45º da contestação);
lxvii.-Pelo que, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 374º do Código Civil, incumbia à Autora a prova da sua veracidade, o que não fez.
lxviii.-Resulta do exposto que a Autora não só não logrou provar a existência de qualquer contrato de arrendamento do prédio que descreve nos artigos 1º e 2º da petição inicial, como também não provou que esse arrendamento tivesse por objeto o prédio propriedade do Réu
Deste modo, não tendo sido provada a existência de contrato de arrendamento de que a Autora tivesse sido titular e que o mesmo tinha por objeto o prédio propriedade do Réu, a Douta Sentença recorrida não poderia ter considerado provados os factos constantes dos n.ºs 1., 2., 3., 6., 7., 8., 9., 10., e 11.;
lxx.-Ao fazê-lo, violou a Douta Sentença recorrida as disposições dos artigos 342º n.º 1 e 374º n.º 1 do Código Civil e 1088º do Código Civil de 1966
lxxi.-Mas, e ainda que, por absurdo, se entendesse que o arrendamento poderia ser provado por outros documentos - no que não se concede - ainda assim a Autora não fez essa prova.
lxxii.-Por requerimento de 17 de novembro de 2021, a Autora veio juntar aos autos vários documentos.
lxxiii.-Os documentos n.ºs 1 a 6 juntos com tal requerimento respeitam ao prédio propriedade do Réu mas não provam que o mesmo tenha sido objeto do arrendamento de que a Autora alega ser titular.
lxxiv.-O documento n.º 7 junto com tal requerimento é uma imagem retirada do Google maps que também não prova que o que aí está representado corresponda ao prédio propriedade do Réu.
lxxv.-O documento n.º 8 junto com tal requerimento é uma imagem parcial da Secção Cadastral D.
lxxvi.-A Secção Cadastral D abrange, pelo menos, 3 prédios:
- o prédio misto registado na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) e inscrito na matriz rústica sob o artigo (…), Secção (…) (cf. escritura pública junta sob o documento n.º 2 com a contestação do Réu – página 3 e certidão da Conservatória do Registo Predial de (…);
- o prédio misto registado na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) e inscrito na matriz rústica sob o artigo (…) (cf. escritura pública junta sob o documento n.º 2 com a contestação do Réu – página 3-4), - o prédio misto registado na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) inscrito na matriz rústica sob o artigo (…) (cf. escritura pública junta sob o documento n.º 2 com a contestação do Réu – página 4 e certidão da Conservatória do Registo Predial de Alenquer do prédio (…) junta com o req. probatório do Réu de 2/12/21)
lxxvii.-Assim a secção cadastral D abrange vários prédios, não se podendo extrair do documento n.º 8 que a parte aí representada corresponda ao prédio propriedade do Réu.
lxxviii.-Em suma, não existe nos autos nenhuma prova da existência do arrendamento de que a Autora se arroga titular e de que o mesmo tenha por objeto prédio que seja propriedade do Réu.
lxxix.-E, sendo assim, atendendo às datas dos atos descritos nos números 12. a 14. dos Factos Provados, ainda que tivesse sido provado – que não foi, como vimos – que os mesmos haviam sido praticados pelo Réu, sempre o direito indemnizatório invocado pela Autora estaria prescrito nos termos do artigo 498º do Código Civil, por ter "decorrido um período superior a 3 anos entre àquelas datas e a data da apresentação da petição inicial em juízo (13 de julho de 2018);
lxxx.-Pelo que a exceção de prescrição deveria ter sido julgada procedente”.

8.–Foi admitido o recurso interposto pela autora, como apelação, com subida imediata e nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, bem como a sua ampliação, requerida pelo réu/recorrido nos termos do artigo 636º CPC.

9.–Remetidos os autos a este tribunal, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.

II–QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Consequentemente, nos presentes autos, inexistindo questões de conhecimento oficioso a apreciar, as questões a decidir, são as seguintes:

A– QUESTÃO PRÉVIA – REJEIÇÃO DO RECURSO
Deverá o recurso deduzido pela autora, relativo à impugnação da matéria de facto ser rejeitado, como defende o réu, por falta da indicação precisa dos momentos da gravação dos depoimentos testemunhais que fundam tal impugnação?

B– NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
O tribunal recorrido não conheceu da exceção de prescrição invocada pelo réu, padecendo a sentença de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), CPC?

C– IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO (suscitada quer pela recorrente quer pelo recorrido, em ampliação do recurso):
- O tribunal não ponderou o depoimento de C., impondo-se a sua ponderação?
- Existe uma contradição entre o facto provado nº 15 e as alíneas d), e), e f), dos factos não provados?
- A matéria constante das alíneas d) – parte final, e), f), g) e h) deveria ter sido dada como provada, em face da prova produzida?
- A matéria constante dos factos provados sob os números 1, 2, 3, 6, 7, 8, 9, 10 e 11, no que se reporta à celebração do contrato de arrendamento em discussão nos autos, deveria ter sido considerada não apurada?

D– IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE DIREITO
-Caso proceda a arguida omissão de pronúncia relativamente à exceção de prescrição, reúnem os autos os elementos necessários para o seu conhecimento?
-Discutindo-se nos autos uma relação contratual de arrendamento, por aplicação da presunção de culpa consagrada no artigo 799º do Código Civil, em face da factualidade apurada, deveria o tribunal ter considerado que a impossibilidade de gozo do prédio locado procede de culpa do réu?

*
III–FUNDAMENTAÇÃO

A - Questão prévia – da rejeição do recurso

O réu apontou à recorrente a falta de indicação, com exatidão, das passagens da gravação que fundamentam o invocado erro quanto à decisão da matéria de facto. Para tanto, considerou que a recorrente apenas indicou o início de cada uma das passagens dos depoimentos das testemunhas cuja análise pretende, não indicando o seu termo, assim incumprindo os ónus legalmente estabelecidos para a impugnação da matéria de facto, pelo que o recurso deverá ser rejeitado, nessa parte.
Sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto estabelece o nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil:
1- A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Já do nº 2 daquela norma resulta que:
2- A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a)-Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b)-Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c)-Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d)-Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Por outro lado, a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso implica que o recorrente, nas alegações em que impugna a decisão relativa à matéria de facto, cumpra os ónus que o legislador estabeleceu a seu cargo, enunciados no artigo 640º CPC, com a seguinte redação:
1–Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)-A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2–No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)-Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b)-Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3–O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Incumbe, pois, ao recorrente, no essencial, identificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados  (640º, nº 1, alínea a), CPC), os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa (640º, nº 1, alínea b), PCP) e qual a decisão que deve ser proferida quanto aos factos impugnados (640º, nº 1, alínea c), CPC).
No que à indicação dos meios probatórios diz respeito, estabelece o artigo 640º, nº 2, alínea a), CPC: “(…) incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com precisão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso (…)”.
Compulsadas as respetivas alegações, verifica-se que na motivação do recurso a recorrente indicou quais os pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, bem como os depoimentos testemunhais que impunham solução diversa, o que exemplificando, fez nos seguintes termos: “E… e D…., designadamente nas seguintes passagens: E…. aos minutos 28m08s; 31m14s; 31m53s, 32m08s e 01m09s e D. na passagem constante de 01h12m, todos da sessão de julgamento do dia 17/05/2023” e ainda “E. Aos minutos 36m05s; 39m38s; 42m38s e D. nas passagens de 01h07m; 01h09m e 01h11m” e “E., ao minuto 41,00 e D. na passagem constante de 01h09m”.
Na perspetiva do recorrido, a indicação apenas do início da passagem de cada um dos depoimentos cuja análise se pretende, não permite compreender com clareza e exatidão em que partes do depoimento se fundamenta a impugnação da matéria de facto, o que justifica a rejeição do recurso, nessa parte.
Porém, apreciando a questão suscitada, constata-se que, no que se reporta à indicação das passagens da gravação em que a recorrente se fundamenta, se mostra razoavelmente cumprido tal ónus, com a indicação pormenorizada do início dos depoimentos em causa, devendo entender-se que o termo da passagem relevante ocorre quando a testemunha muda de tema no seu depoimento. Ou seja, com tal indicação, o tribunal não terá dificuldades em enquadrar a discordância da recorrente no concreto meio probatório indicado, assim como o recorrido logrou exercer contraditório sobre as questões suscitadas, afigurando-se que a rejeição do recurso por falta de indicação do termo da passagem relevante redundaria em solução extremamente formal, inviabilizando, de forma desproporcionada, a apreciação do mérito da impugnação.
A este propósito, tem vindo a salientar-se que os ónus a cargo do recorrente que impugne a matéria de facto se inscrevem num patamar muito exigente relativamente aos que estão previstos no nº 1 do artigo 640º CPC (indicação dos concretos factos impugnados, indicação dos meios de prova que impunham diversa decisão,  e qual a decisão a proferir), mas mais atenuado quanto aos previstos no nº 2 daquela norma. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/10/2015[1]: “Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente de impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes e consta atualmente do nº 1 do artigo 640º; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e da várias reformas (…) Este ónus da indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exata e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo tribunal dos enxertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento (…)”.
No caso concreto, reitera-se não existir dificuldade em identificar os enxertos dos depoimentos testemunhais em que a autora/recorrente funda a impugnação da matéria de facto, dada a pormenorizada – e até sistemática - indicação do início dos mesmos, e a extrapolação de que o termo da sua relevância deve extrair-se dos próprios depoimentos, coincidindo com a mudança de tema.
Consequentemente, procede-se à apreciação da impugnação da matéria de facto deduzida pela autora/recorrente, por se considerar suficientemente cumprido o ónus da indicação das passagens da gravação em que fundamenta o recurso, indeferindo-se a pretensão de rejeição do recurso apresentada pelo réu/recorrido.

B– NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA

Ampliando o objeto do recurso interposto pela autora, invocou o réu que o não conhecimento da exceção perentória da prescrição importa a nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea a), CPC.
Exercendo contraditório sobre tal matéria, pronunciou-se a autora, defendendo, no essencial, que não opera a causa de nulidade invocada, porquanto o tribunal recorrido conheceu da referida exceção, considerando ser aplicável o prazo de 20 anos consagrado no artigo 309º Código Civil por se discutir nos autos a responsabilidade contratual decorrente da celebração de um contrato de arrendamento.
Apreciando e decidindo, dir-se-á que, nos termos que constam do relatório antecedente, foi arguida pelo réu a exceção de prescrição, invocando, para o efeito, o prazo de três anos consagrado no artigo 498º, do Código Civil, por os factos em discussão se reconduzirem ao âmbito da responsabilidade extracontratual. Tal entendimento mereceu a oposição da autora, que invocou o prazo de 20 anos, previsto no artigo 309º do Código Civil, por a questão em debate se inscrever no âmbito da responsabilidade contratual.
A exceção de prescrição foi conhecida no despacho saneador, aí se considerando que, enquadrando-se os factos alegados pela autora quer na violação do contrato de arrendamento, quer na prática de atos ilícitos, existia um concurso da responsabilidade contratual e extracontratual, operando entre ambas uma relação de consunção, prevalecendo a primeira, com a consideração do prazo de prescrição de 20 anos previsto no artigo 309º do Código Civil. Consequentemente, foi julgada improcedente a exceção de prescrição invocada pelo autor.
No entanto, dessa decisão foi interposto recurso para este Tribunal da Relação de Lisboa, tendo sido proferido, em 20-01-2021, acórdão já transitado em julgado, no qual se decidiu:
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o saneador-sentença recorrido, que julgou não verificada a exceção de prescrição, substituindo-o pela decisão de relegar para final o conhecimento dessa exceção. A tal decisão não foi alheia a circunstância de se encontrarem controvertidos os factos alegados pela autora, atinentes à existência de um contrato de arrendamento, revelando-se, consequentemente, necessária a produção de prova para o conhecimento, com segurança, da exceção de prescrição.
Em face de tal decisão, ficou sem efeito o conhecimento da prescrição efetuado no despacho saneador e foi o mesmo relegado para a decisão final.
O certo é que compulsada a sentença recorrida, proferida em 21-06-2023, verifica-se que a tal propósito, apenas se exarou no respetivo relatório:
Produziu-se saneador e conheceu-se da prescrição, entendendo ser aplicável ao caso o regime da responsabilidade contratual, o qual prevê quanto ao prazo de prescrição o prazo ordinário de 20 anos – cf. artigo 309º do Código Civil - tendo assim a exceção sido julgada improcedente.
Ou seja, tendo ficado revogado o conhecimento da exceção de prescrição efetuado no despacho saneador e relegado o seu conhecimento para a decisão de mérito a proferir a final, e não tendo este ocorrido, a sentença recorrida omitiu a apreciação de questão que devia apreciar, verificando-se a causa de nulidade de sentença prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 615º, CPC.
A propósito do vício ora em análise, tem vindo a referir-se que, com maior propriedade, trata-se de um fundamento de anulabilidade da sentença, relacionado com os seus limites, ocorrendo quando o juiz não esgotou todas as questões que lhe incumbia conhecer – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[2]. Na realidade, ao juiz incumbe o conhecimento de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela decisão dada a outrascfr. artigo 608º, nº 2, CPC.
Ora, a exceção de prescrição, por ter sido expressamente invocada e o seu conhecimento ter sido relegado para o momento da decisão final, não poderia deixar de ser conhecida, sob pena de omissão de pronúncia nos termos expostos. E assim é, embora se extraia da sentença recorrida que a afirmação ali efetuada da existência de um vínculo contratual implicaria, decerto, a consideração do prazo prescricional de 20 anos, consagrado no artigo 309º, CC e, consequentemente, a improcedência da exceção. No entanto, tal conhecimento não ocorreu, o que gera a invalidade da sentença, cumprindo a este Tribunal da Relação, em substituição do tribunal recorrido, ao mesmo proceder, dado que os autos reúnem os elementos necessários para o efeito – cfr. artigo 665º, CPC. Conhecimento esse a que se procederá depois de apreciada a impugnação da matéria de facto, fixado que esteja o acervo factual a considerar.
Pelo exposto, procede o recurso no que se reporta à invalidade decorrente da omissão de pronúncia quanto à exceção de prescrição suscitada pelo réu/recorrido, relegando-se o seu conhecimento para momento ulterior ao da decisão da impugnação da matéria de facto.

C– IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO (suscitada quer pela recorrente quer pelo recorrido, em ampliação do recurso).

C.1-A autora recorrente começou por invocar que a sentença é omissa relativamente ao depoimento da testemunha C., e que tal omissão influiu na decisão da matéria de facto, dado que aquela testemunha foi interpelada pelo réu, que lhe propôs uma indemnização com vista à cessação do contrato de arrendamento e evidenciou, ao longo do seu depoimento, a estreita relação dos factos ao réu.
A tal propósito, o recorrido invocou que o testemunho em questão é inaudível e impercetível, circunstância essa que não foi suscitada perante o tribunal recorrido no momento processual próprio, nos termos do disposto no artigo 155º, nº 4, CPC. Consequentemente, na sua perspetiva, tal depoimento não poderia ter sido considerado pelo tribunal recorrido, nem o poderá ser pelo tribunal de recurso.
Apreciando a questão suscitada, importa referir que na fundamentação de facto da sentença recorrida não foi, na verdade, efetuada qualquer alusão expressa ao depoimento da testemunha em questão. No entanto, ali se refere: Teve-se em conta toda a prova produzida e analisada em audiência com recurso às regras da experiência comum”. Daqui julgamos dever extrair-se que o depoimento em questão foi ponderado, mas que ao mesmo não foi atribuída a relevância que expressamente decorre da motivação relativamente aos restantes depoimentos testemunhais.
Por outro lado, dado que a decisão da matéria de facto se encontra motivada, o vício em questão apenas poderá ser reconduzido a uma insuficiência de fundamentação e não ao vício mais grave de falta de fundamentação, cominado com a nulidade – cfr. artigo 615º, nº 1, alínea b), CPC.
Procedeu-se à audição da gravação do referido depoimento constatando-se que, em grande parte, o mesmo apresenta deficiências que dificultam a perceção do seu teor.

Porém, a recorrente não arguiu a deficiência da gravação, como lhe era imposto pelo nº 4 do artigo 155º, CPC, não devendo considerar-se admissível que o possa arguir no prazo de interposição do recurso. Efetivamente, como refere Abrantes Geraldes[3]: o artigo 155º, n.º 4, veio resolver as dúvidas, impondo à parte o ónus de invocar as irregularidade, no prazo de 10 dias a contar da data em que lhe tenha sido disponibilizada a gravação (disponibilização que deve ocorrer no prazo de 2 dias a contar do ato, nos termos do n.º 3), (…). Tratando-se de uma nulidade processual, terá de ser arguida autonomamente, sendo submetida a posterior decisão do juiz a quo, não sendo admitida a sua inserção imediata nas alegações de recurso.
A este propósito, refere-se no acórdão da Relação do Porto de 17-12-2014[4], «(…) o novo Código de Processo Civil fixou expressamente prazo para as partes arguirem o vício decorrente da falta ou deficiente gravação da prova, que, ao contrário do que antes sucedia, é sempre obrigatória em sede de julgamento, sendo esse prazo de 10 dias a contar da disponibilização do registo da gravação (…) O vício em causa deve, assim, ser arguido em primeira instância, e no prazo perentório agora legalmente estabelecido, sob pena de ocorrer, por decurso desse prazo, a sua sanação”.
Por isso se tem vindo a entender que: “a omissão ou deficiência das gravações é, após a entrada em vigor do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, um problema que deve ficar definitivamente resolvido ao nível da primeira instância, quer pela intervenção oficiosa do juiz que preside ao ato quer mediante arguição dos interessados” - Acórdão da Relação de Guimarães de 11-09-2014[5].
Claro que tal regime não obstaculiza a iniciativa oficiosa da Relação na apreciação do recurso da matéria de facto, designadamente a possibilidade de anulação da decisão de primeira instância quando não constem do processo todos os elementos que permitam a sua alteração – cfr. artigo 662º, nº 2, alínea d), CPC.
No entanto, não se vê efeito útil em ordenar a repetição de tal depoimento, desde logo por se desconhecer da sua viabilidade, já que a testemunha se encontrava gravemente doente quando depôs em 22-07-2022.
Por outro lado, da alegação da autora resulta que a principal relevância atribuída a esta testemunha reside no facto de ter sido interpelada pelo réu, que lhe propôs a cessação do contrato de arrendamento, a troco do pagamento de uma quantia pecuniária. Ora, tendo sido dado como provada a existência de tal contrato de arrendamento (negado pelo réu nos articulados), a renovação do seu depoimento perderia sentido útil.
Acresce que sendo a testemunha genro da autora, para além das duas conversas que terá tido com o réu sobre a cessação do contrato de arrendamento, quanto aos demais factos dados como não provados, daquilo que foi percetível do seu depoimento, não sabia mais do que as próprias filhas da autora, as testemunhas Natália e Paula Bento.
Conclui-se, pois, que embora da sentença recorrida não conste qualquer análise crítica específica ao depoimento testemunhal em questão, na ausência de arguição atempada da deficiência da gravação, e não revelando os autos a necessidade de renovar tal meio de prova, improcede o recurso, nesta parte.

C.2–Na perspetiva da autora/recorrente existe contradição entre o facto provado nº 15 e os não provados constantes das alíneas d), e) e f.
Ao facto provado sob o nº 15 foi atribuída a seguinte redação
15.- Em consequência do incêndio da parte urbana do locado, o mesmo ficou totalmente inabitável, facto que obrigou a aqui Autora a refugiar-se definitivamente em casa das suas filhas I. e E..”
Às alíneas d) e) e f) dos factos não provados foi atribuída a seguinte redação:
d)-Os atos praticados pelo réu tiveram como único objetivo que a autora abandonasse o locado, o que esta se viu obrigada a fazer por deixarem de estar reunidas quaisquer condições de habitabilidade e segurança do locado.
e)-Os atos de destruição do locado, da autoria e responsabilidade do réu, obrigaram a autora a refugiar-se na casa das suas filhas, E. e I. e, assim a viver alternadamente em casa de cada uma elas, o que, não sucederia, se o réu não tivesse procedido à destruição do locado;
f)-A autora viu destruídas todas as árvores de fruto e videiras existentes no locado, plantadas por si e pelo seu falecido marido; viu-se ainda privada do seu mobiliário e objetos pessoais existentes no locado que ficaram destruídos pelo incêndio; ficou privada de habitar o locado, onde sempre viveu com o seu falecido marido e onde criou e cresceram os seus filhos, facto que, atenta a longevidade da sua permanência no locado, lhe causou graves incómodos e transtornos de ordem pessoal, por virtude dos atos perpetrado”
Analisando a contradição apontada pela recorrente, importa, desde logo, ter presente que, na perspetiva do tribunal recorrido, não resultou provado que o réu tenha praticado os factos que lhe foram imputados pela autora.
Porém, ficou demonstrado que, na sequência do incêndio, o locado ficou inabitável como, aliás, decorre da matéria transposta para o artigo 15º dos factos provados, e sem condições de segurança. Consequentemente, a afirmação na alínea d), de que não ficou provado que deixaram de estar reunidas condições de segurança e de habitabilidade no locado, evidencia uma contradição que importa corrigir.
Assim, procedendo parcialmente a impugnação da matéria de facto, por forma a suprimir a contradição em causa, decide-se reformular o artigo 15º dos factos provados e a alínea d) dos factos não provados nos seguintes termos:
15.-Em consequência do incêndio da parte urbana do locado, o mesmo ficou totalmente inabitável e sem condições de segurança, facto que obrigou a aqui Autora a refugiar-se definitivamente em casa das suas filhas I. e E..”
Já quanto à alínea d) dos factos não provados, opta-se por suprimir a sua parte final, relativa à falta de condições de habitabilidade e segurança, conferindo-se àquela alínea a seguinte redação:
d)- Os atos praticados pelo réu tiveram como único objetivo que a autora abandonasse o locado”;

Relativamente à alínea e) não se alcança a existência de contradição com o facto provado nº 15 pois neste afirma-se que por causa do incêndio a casa ficou inabitável (e sem condições de segurança), o que levou a autora a refugiar-se em casa das filhas. Na alínea e) dos factos não provados afirma-se que foram os atos de destruição do réu que levaram a autora a refugiar-se na casa das filhas. Ora, na ausência da demonstração da prática pelo autor de tais atos, não pode concluir-se pela existência de contradição.
Consequentemente, nesta parte, improcede a impugnação da matéria de facto.

No que se reporta à contradição com a matéria constante da alínea f) dos factos não provados, interessa ter presente que o facto nº 15 refere-se à destruição do edifício habitacional. Da sua redação não decorre que tal destruição operada pelo incêndio se tenha estendido às árvores de fruto e videiras. E em rigor, a existência do incêndio, também não permite concluir que a autora tenha ficado privada de todo o seu mobiliário e objetos pessoais. Porém, não deixa de ser manifesto que a autora ficou privada de habitar naquele local, o que, por já estar afirmado nos factos provados, terá que ser suprimido dos factos não provados.
Assim, por forma a harmonizar o constante do artigo 15º dos factos provados com a alínea f) dos não provados deverá forçosamente, nesta última, suprimir-se a expressão ficou privada de habitar o locado.
Consequentemente, procedendo parcialmente a impugnação da matéria de facto, confere-se a seguinte redação à alínea f) dos factos não provados:
A autora viu destruídas todas as árvores de fruto e videiras existentes no locado, plantadas por si e pelo seu falecido marido; viu-se ainda privada do seu mobiliário e objetos pessoais existentes no locado que ficaram destruídos pelo incêndio; a autora sempre viveu no locado com o seu falecido marido e ali criou e cresceram os seus filhos, facto que, atenta a longevidade da sua permanência no locado, lhe causou graves incómodos e transtornos de ordem pessoal, por virtude dos atos perpetrados pelo réu;

C.3–Defende a recorrente que a matéria constante das alíneas d), e), f) g) e h) deverá ser dada como provada, tendo por base os depoimentos das testemunhas E., D. e C.
Em face da decisão que antecede, a alínea d) dos factos não provados passou a ter a seguinte redação:
d)- Os atos praticados pelo réu tiveram como único objetivo que a autora abandonasse o locado”;
Já a alínea e) manteve a sua redação, designadamente:
e)-Os atos de destruição do locado, da autoria e responsabilidade do réu, obrigaram a autora a refugiar-se na casa das suas filhas, E. e I. e, assim a viver alternadamente em casa de cada uma elas, o que, não sucederia, se o réu não tivesse procedido à destruição do locado;”
Relativamente a estas duas alíneas dos factos não provados, a decisão da impugnação radica em saber se foi produzida prova que evidencie que foi o réu quem praticou os atos apurados (retirada de telhas, arrombamento da porta, incêndio).
A este propósito, o tribunal recorrido motivou nos seguintes termos a decisão:
É clamorosamente inexistente qualquer facto de onde derive a imputação objetiva dos factos ao imputado agente, aqui réu. Mesmo assumindo que o réu pretendeu que a ocupação do imóvel cessassem, é temeroso dizer que o réu é a “única pessoa na terra” que tem interesse nos atos lesivos; tais tipos de atos de vandalismo podem decorrer das mais variadas situações e ter por escopo, vingança, malvadez, más relações pessoais, sendo a imaginação é o limite. Alguns, como o incêndio, podem até decorrer de ato não humano. Fazer uma extrapolação dessa ordem seria ir além do razoável. Assim, mesmo entendendo que o réu queria desocupar o local, não é possível dar como provada a autoria dos factos, provando-se, todavia, o demais”.
Não sendo possível ponderar o depoimento da testemunha C., nos termos já expostos, compulsados os restantes meios de prova indicados pela recorrente, desde já se adianta não se encontrar fundamento consistente para a pretendida alteração  da matéria constante das alíneas d) e e) dos factos não provados.
Efetivamente, as testemunhas E. e D., ao longo dos respetivos depoimentos (a cuja audição integral se procedeu), nunca imputaram ao réu os atos de destruição do locado apurados. Embora tenham referido que os donos do prédio tinham interesse em ver o edifício destruído, por forma a que fosse colocado termo ao contrato de arrendamento, não afirmaram que os atos de destruição tivessem sido praticados pelo réu. A testemunha E. referiu mesmo a gente não pode acusar absolutamente ninguém”. É certo que dos respetivos depoimentos extraem-se suposições, tendo designadamente considerado estranho que as botijas de gás existentes no locado não tenham explodido, insinuando, de alguma forma, que o incêndio foi deliberadamente ateado de modo a impedir a permanência no locado da autora, mas sem causar destruição excessiva.
Porém, a mera suspeição não se revela suficiente para a afirmação de que o autor praticou os factos descritos, tanto mais que não se mostra suportada em qualquer fundamento objetivo. Aliás, segundo resultou dos respetivos depoimentos, tais factos foram participados ao órgão de polícia criminal, que não logrou provar a sua autoria.
É sabido que, em regra, o juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – cfr. artigo 607º, nº 5, CPC. Porém, tal não significa que a convicção do juiz se forme arbitrariamente porquanto (…) lhe é imposto um processo de valoração racional, dirigido à formação de um prudente juízo crítico global, o qual deve assentar na ponderação conjugada dos diversos meios de prova, aferidos segundo as regras de experiência, atendendo aos princípios de racionalidade logica e considerando as circunstâncias do casoAcórdão da Relação do Porto, de 18-09-2023[6]. Como refere Marta João Dias[7]: a decisão sobre a veracidade dos factos não se poderá basear em critérios irracionais, isto é, em intuições,palpites ou crenças.
Consequentemente, não tendo sido produzido qualquer meio de prova que, de forma segura e consistente, evidencie que foi o autor que praticou os factos descritos, forçosa é a conclusão de que não se apurou a factualidade mencionada nas alíneas d) e e) dos factos não provados.
Improcede, pois, nesta parte, a impugnação da matéria de facto.

Às alíneas f) e g) foi atribuída a seguinte redação:
f)-A autora viu destruídas todas as árvores de fruto e videiras existentes no locado, plantadas por si e pelo seu falecido marido; viu-se ainda privada do seu mobiliário e objetos pessoais existentes no locado que ficaram destruídos pelo incêndio; a autora sempre viveu no locado com o seu falecido marido e ali criou e cresceram os seus filhos, facto que, atenta a longevidade da sua permanência no locado, lhe causou graves incómodos e transtornos de ordem pessoal, por virtude dos atos perpetrados pelo réu;
g)-Em virtude da conduta do réu, a autora perdeu todos os seus bens, sejam aqueles que representavam uma utilidade económica (todas as peças de mobiliário, eletrodomésticos, e demais bens que constituíam o recheio da sua casa, todos essenciais à economia doméstica), sejam os bens pessoais, como toda a sua roupa que ficou destruída, sejam ainda aqueles bens de valor estimativo, mas insubstituíveis, como sejam peças de ouro, fotografias de família e pequenos objetos decorativos que ficaram irremediavelmente perdidos;

A matéria em questão prende-se, desde logo, com a extensão do incêndio às árvores de fruto existentes na propriedade, objetos pessoais, mobiliário, eletrodomésticos existentes no locado.
E embora as testemunhas E. e D. tenham afirmado a total destruição do locado, dos respetivos depoimentos é forçoso extrair que tal destruição não foi total. Efetivamente, como já referido, a testemunha E. afirmou mesmo que o incêndio não atingiu as bilhas de gás depositadas no locado. Por outro lado, analisadas as fotografias juntas como documentos nºs 12, 11, 10 e 9 (documentos juntos em 17-11-2021 – requerimento com a referência 40478857), não pode concluir-se pela total destruição do recheio do locado. A este propósito, salienta-se que a foto nº 16 representa a sala da habitação e não apresenta qualquer destruição. Acresce que não foi produzido qualquer meio de prova objetivo (e de fácil obtenção) evidenciador de que a destruição se estendeu também às árvores de fruto, sendo que a fotografia aérea que constitui o documento nº 7 também não permite concluir pela extensão do incêndio à parte agrícola, designadamente às árvores ali existentes ou que estas tenham sido retiradas por ação do réu.
Salienta-se que da circunstância de terem sido considerados credíveis os depoimentos das testemunhas E. e D. não resulta que todas as suas afirmações devam, necessariamente, ser transpostas para os factos provados. E o certo é que, embora ambas tenham afirmado que todos os bens móveis e as árvores ficaram destruídos, a ausência de corroboração desses factos impede que possam considerar-se apurados. Consequentemente, no que se reporta às alíneas f) e g) dos factos não provados, nenhuma censura merece a sentença recorrida, improcedendo a impugnação da matéria de facto.

No entanto, evidenciando a prova produzida, com destaque, pela sua objetividade, para as fotografias juntas sobre as quais incidiram os depoimentos testemunhais de E. e D., que as analisaram de forma segura e consistente, é manifesto que a casa em questão ficou, parcialmente, sem telhado e, consequentemente inabitável.
Também se apurou que foi naquela casa que a autora viveu desde 1966, juntamente com o marido, dedicando-se ambos à agricultura e à criação de animais domésticos, para consumo da família, nos terrenos e aposentos adjacentes à casa e que ali nasceram os filhos do casal e faleceu o arrendatário.
Ora, tendo-se prolongado tal situação até fevereiro de 2009 (altura em que ocorreu o incêndio que, de forma definitiva, inviabilizou a permanência da autora no locado) não poderá deixar de ter-se presente que grande parte da vida da autora se desenrolou naquele espaço, onde sempre viveu com a família que constituiu. Deverá assim considerar-se, por resultar do depoimento das suas filhas E. e D., e merecer corroboração nas regras de experiência comum, que a vivência naquele espaço por mais de 40 anos criou necessariamente uma ligação abruptamente interrompida por força de um incêndio para o qual a autora não contribuiu, o que manifestamente produziu repercussões psicológicas que deverão considerar-se apuradas.
Assim, deverá ser aditado aos factos provados o seguinte facto:
16-Na sequência do incêndio, a autora ficou privada de habitar o locado, onde sempre viveu com o seu falecido marido e onde criou e cresceram os seus filhos, facto que, atenta a longevidade da sua permanência no locado, lhe causou graves incómodos e transtornos de ordem pessoal”.
Em consonância altera-se a alínea f) dos factos não provados, por forma a suprimir a matéria que transita para os factos provados, com a seguinte redação:
f)- A autora viu destruídas todas as árvores de fruto e videiras existentes no locado, plantadas por si e pelo seu falecido marido; viu-se ainda privada do seu mobiliário e objetos pessoais existentes no locado que ficaram destruídos pelo incêndio (…) que tais atos tenham sido perpetrados pelo réu;”

No facto não provado sob a alínea h) afirma-se:
h)- Em virtude da conduta do réu, a autora viu-se incapacitada, por falta de condições económicas, de obter pelos seus próprios meios uma nova casa de habitação, vendo-se obrigada a residir alternadamente em casa dos filhos, com os inerentes incómodos e transtornos para todos, situação que muito a desgostou e desgosta até hoje, por se ver totalmente dependente dos seus filhos; o que, pese embora o lapso de tempo já decorrido, têm-lhe retirado anos de vida e a alegria de viver, passando muitas noites em claro, a reviver o passado e a recear pelo seu futuro.
Verifica-se que factualidade descrita nesta alínea está toda imputada ao réu. Efetivamente, ali se afirma, no essencial, que foi por causa da conduta do réu, que a autora se viu privada de viver no locado. Ora, não se tendo provado que foi o autor dos factos lesivos, não merece censura a sua inclusão nos factos não provados.
Improcedente se revela, por isso, a impugnação da matéria de facto no que se reporta à alínea h) dos factos não provados.

C.4–Ampliando o objeto do recurso, defendeu o réu que o tribunal errou ao considerar provada a existência de um contrato de arrendamento nos artigos 1,2,3,6,7,8,9,10 e 11 dos factos provados, dado que, em face do ano da sua alegada celebração (1966), tal prova apenas poderia ser efetuada pela exibição do recibo de renda. Porém, os recibos juntos não identificam o prédio que a autora identifica na petição inicial, nem qualquer prédio de que o réu seja proprietário. Concluiu que não ficou demonstrada a celebração de qualquer contrato de arrendamento, o que, além do mais, produz impacto na apreciação da exceção de prescrição, determinando a sua procedência.
Em resposta à ampliação do recurso, considerou a autora, no essencial, que os recibos juntos aos autos comprovam a existência do contrato de arrendamento por si invocado.
Apreciando a questão suscitada, deverá ter-se presente que o contrato de arrendamento invocado terá sido celebrado em data concretamente não apurada do ano de 1966.
À data da celebração do contrato estava em vigor a Lei nº 2030 de 22-06-1948 que, relativamente à forma do contrato de arrendamento urbano instituía um regime dito mitigado (do qual se excecionavam os arrendamentos sujeitos a registo e os comerciais ou industriais, para os quais se exigia escritura pública). Assim, a referida lei estabelecia no seu artigo 36º que não era necessária a forma escrita para a celebração de contrato de arrendamento urbano, mas que o arrendatário apenas do mesmo poderia fazer prova desde que exibisse recibo de renda assinado pelo proprietário ou pelo seu representante – cfr. Pinto Furtado, Jorge Henrique da Cruz[8]. Refere-se no parecer da Câmara Corporativa responsável pelo projeto do diploma: se o senhorio não recebe rendas, nem assina recibo, o contrato pode confundir-se com um comodato e não é conveniente que a cedência gratuita de uma casa possa transformar-se num contrato de arrendamento pelo simples depoimento de duas testemunhas”.Naquele diploma foi ainda conferida ao arrendatário a possibilidade de provar a existência do contrato pelo depósito da renda, referindo-se no artigo 36º, nº 1: Equivale ao recibo do depósito feito dentro dos três meses posteriores ao vencimento da primeira renda, quando não seja impugnado ou a oposição improceda, assim acautelando uma eventual fraude do senhorio.
Esta solução, no essencial, foi transposta para o Código Civil de 1966, estabelecendo o artigo 1029º a obrigatoriedade de celebração de escritura pública relativamente aos contratos de arrendamento sujeitos a registo e os destinados a comércio, indústria ou exercício de profissão liberal.
Já do artigo 1088º, do Código Civil, na sua versão originária constava: Se o arrendamento for válido, independentemente de título escrito e este não existir, o arrendatário só pode provar o contrato desde que exista recibo de renda.
Verificando-se que o atual código civil entrou em vigor no dia 1 de junho de 1967, como resulta expressamente do artigo 2º, nº 1 do Dl 4734/66, de 25/11, que aprovou tal diploma, forçosa é a conclusão que a relação contratual em debate nos autos se constituiu em momento anterior ao da sua vigência.
Certo é que tendo-se sucedido no tempo regimes similares, simplificada fica a questão da sucessão de leis no tempo, dado não diferirem os resultados práticos da aplicação de um ou de outro regime. De todo o modo, sempre se dirá, a este propósito, que estando em causacondições de validade substancial ou formal de quaisquer factos”, devem as mesmas ser aferidas pela lei vigente ao tempo em que o contrato foi celebrado – cfr artigo 12º, nº 2, 1ª parte do Código Civil, Pires de Lima e Antunes Varela[9].
Assim, apesar de não ter sido reduzido a escrito, nada obsta, nos termos expostos à validade do contrato de arrendamento em discussão nos autos (que, aliás, não foi colocada em causa por nenhuma das partes).
Por outro lado, quanto à prova do contrato, dúvidas não restam que deverá ser observada a restrição já enunciada, relativa à exigência de recibo de renda. Ou seja, está em causa formalidade ad probationem, exigindo a lei a apresentação de um específico documento – o recibo da renda – apenas para facilitar a prova da declaração. A propósito da distinção doutrinal entre formalidades ad substanciame formalidades ad probationem refere Mota Pinto[10] que: as primeiras são insubstituíveis por outro género de prova, gerando a sua falta a nulidade do negócio, enquanto a falta das segundas pode ser suprida por outros meios de prova mais difíceis de conseguir (confissão…)”. A este propósito, estabelece o artigo 364º, nº 2 do Código Civil: Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório.
Ora, assente que o réu, além de não ter confessado o contrato de arrendamento invocado, negou mesmo a sua existência, apenas com recurso aos recibos de renda poderia ser dado como demonstrado.
Cabe, pois, perguntar se os recibos juntos aos autos assumem a virtualidade de demonstrar o contrato de arrendamento invocado.
Ora, temos como certo que a resposta a tal questão não poderá deixar de ser afirmativa, dado que os recibos juntos demonstram, de forma segura, a celebração do contrato de arrendamento invocado pela autora. Efetivamente, naqueles recibos se refere o nome do arrendatário (J.), mostrando-se suficientemente identificado o prédio como Casal(…), especificando-se que o arrendamento incide sobre casa e tereno”. Embora nos recibos mais antigos (cfr. documentos 1 e 2 juntos com a petição inicial) o prédio não se mostre devidamente identificado, o certo é que da articulação desse recibos com a prova testemunhal resulta que foi o senhorio F. quem celebrou o contrato de arrendamento inicial  com o marido da autora, sendo ele próprio quem assina os recibos em questão.  E o certo é que entre aquele senhorio e aquele arrendatário apenas foi celebrado o contrato que teve por objeto o prédio cuja identificação física e concreta localização ambas as partes conhecem. E tanto basta para que se comprove a celebração do contrato, tanto mais que a restante prova evidencia que foi naquele local (casa e terreno) que o arrendatário viveu com a sua família, ao longo de várias décadas. Assim, independentemente da maior ou menor precisão usada na identificação do prédio, o certo é que as filhas do arrendatário, as testemunhas E. e D. lograram identificá-lo na fotografia aérea, sabendo bem ambas as partes ser aquele o prédio em discussão. A exigência de um maior rigor na identificação do prédio (por exemplo de harmonia com a que consta dos registos cadastrais), à época (1966) não era exigível. A este propósito, haverá que ter em conta o horizonte cultural dos contraentes, com especial enfoque para o arrendatário, que não poderá ser prejudicado por o senhorio não ter identificado o prédio com a precisão que resulta dos respetivos títulos. Recorde-se que, como foi referido pela testemunha D., a mãe (autora) não sabe ler, nem escrever.
Afigura-se, pois, que nenhuma censura merece a decisão do tribunal recorrido, no que se reporta ao apuramento do contrato de arrendamento, improcedendo a impugnação da matéria de facto deduzida pelo réu.

III–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Ponderando a decisão recorrida e a decisão que antecede, são os seguintes os FACTOS PROVADOS:
1.–A autora é, desde 1966, arrendatária, por transmissão do arrendamento por morte de seu marido J., de um prédio misto, composto por uma parte urbana, composta por casa de habitação e dependências e, por uma parte rústica, composta por cultura arvense, vinha e árvores de fruto, sito em Casal (…), atual União de Freguesias de (…), concelho de (…).
2.–O arrendamento do referido prédio foi celebrado entre o falecido marido da aqui autora – J. - e o seu primitivo proprietário, F., também igualmente já falecido (e avô do réu), por cuja sucessão o réu foi investido no direito de propriedade sobre o mesmo.
3.–O arrendamento foi destinado a habitação permanente da autora, seu marido e demais membros do seu agregado familiar, sendo que, na parte rústica, a autora e seu marido se dedicavam à agricultura de subsistência.
4.–A autora e seu falecido marido procederam à plantação, não só de todas as árvores de fruto existentes no prédio, quais sejam 2 laranjeiras, 4 damasqueiros, 1 nogueira, 3 macieiras, 2 oliveiras, 2 figueiras e 8 pereiras, como também da vinha, sendo eles, com exclusão de quaisquer outras pessoas, que procediam à colheita dos seus frutos, quer para consumo próprio, quer vendendo o excedente, situação que se manteve inalterada após o falecimento do marido da autora.
5.–Para além das culturas acima descritas, a autora e seu falecido marido dedicavam-se ainda à criação de animais domésticos, igualmente para consumo do seu agregado familiar.
6.–Após a morte do cônjuge da autora, em 06/01/2000, passaram a residir no locado e a cultivar a parte agrícola, a Autora e uma filha do casal, de seu nome D.
7.–Desde o início do arrendamento do locado até ao ano de 2005, a Autora e o seu cônjuge pagavam a respetiva renda ao senhorio, F., quer diretamente a este, quer ao seu procurador, G., também conhecido por (…).
8.–A partir do ano de 2006, e porque o referido procurador deixou de receber as rendas, e emitir os respetivos recibos, a aqui autora viu-se obrigada a proceder ao depósito liberatório anual da renda, o qual era feito pela sua filha, E., em virtude da autora ser analfabeta, conforme fls. 12 a 20, docs. 6 a 17 junto com a Pi.
9.–A autora comunicou ao senhorio, na pessoa do seu procurador, G., que iria, doravante, proceder ao depósito liberatório das rendas.
10.–O valor da renda devida pela ocupação do locado era de 20,00€ anuais, pagável habitualmente nos meses de agosto ou setembro de cada ano.
11.–O senhorio nunca procedeu à atualização da renda, pelo que o valor da mesma se manteve inalterado até à presente data.
12.–No ano de 2005, a autora deparou-se com o telhado destelhado, com as telhas colocadas em pequenos montes em cima das traves de madeira que suportavam o telhado.
13.–No ano de 2007, em data que não consegue precisar, a autora foi confrontada com o arrombamento da porta de entrada do imóvel, sem que o mesmo tenha sido acompanhado de qualquer furto dos seus pertences, facto pelo qual apresentou queixa-crime junto da GNR de (…), a qual deu origem ao processo n.º (…) o qual foi, igualmente, objeto de arquivamento.
14.–Em finais de fevereiro de 2009, a aqui autora deparou-se com o incêndio da parte urbana do locado, mais concretamente, da parte destinada a habitação, bem como, com o arranque e destruição de todas as videiras e árvores de fruto existentes na parte rústica do locado.
15.–Em consequência do incêndio da parte urbana do locado, o mesmo ficou totalmente inabitável e sem condições de segurança, facto que obrigou a aqui Autora a refugiar-se definitivamente em casa das suas filhas I. e E..
16.–Na sequência do incêndio, a autora ficou privada de habitar o locado, onde sempre viveu com o seu falecido marido e onde criou e cresceram os seus filhos, facto que, atenta a longevidade da sua permanência no locado, lhe causou graves incómodos e transtornos de ordem pessoal.

E são os seguintes os FACTOS NÃO PROVADOS:
a)-Desde o ano de 2005, a autora sofreu, concretamente por parte do réu, toda a espécie de pressões com vista a que desocupasse o locado.
b)-Todos referidos atos do ponto 12 FP e seguintes, praticados com o propósito da autora deixar o locado, foram levados a cabo pelo réu ou a seu mando.
c)-A autora tomou conhecimento que o arranque das árvores e da vinha e subsequente terraplanagem do terreno foram realizados pela empresa Transolelas –T... R... M... em T... C..., Lda., com o NIPC 5.......5, com sede na Rua C..., O..., 2...-4.. - A_____ do B____, cujos serviços foram contratados pelo réu.
d)-Os atos praticados pelo réu tiveram como único objetivo que a autora abandonasse o locado.
e)-Os atos de destruição do locado, da autoria e responsabilidade do réu, obrigaram a autora a refugiar-se na casa das suas filhas, E. e I. e, assim a viver alternadamente em casa de cada uma elas, o que, não sucederia, se o réu não tivesse procedido à destruição do locado;
f)-A autora viu destruídas todas as árvores de fruto e videiras existentes no locado, plantadas por si e pelo seu falecido marido; viu-se ainda privada do seu mobiliário e objetos pessoais existentes no locado que ficaram destruídos pelo incêndio (…); que tais atos tenham sido perpetrados pelo réu;
g)-Em virtude da conduta do réu, a autora perdeu todos os seus bens, sejam aqueles que representavam uma utilidade económica (todas as peças de mobiliário, eletrodomésticos, e demais bens que constituíam o recheio da sua casa, todos essenciais à economia doméstica), sejam os bens pessoais, como toda a sua roupa que ficou destruída, sejam ainda aqueles bens de valor estimativo, mas insubstituíveis, como sejam peças de ouro, fotografias de família e pequenos objetos decorativos que ficaram irremediavelmente perdidos;
h)-Em virtude da conduta do réu, a autora viu-se incapacitada, por falta de condições económicas, de obter pelos seus próprios meios uma nova casa de habitação, vendo-se obrigada a residir alternadamente em casa dos filhos, com os inerentes incómodos e transtornos para todos, situação que muito a desgostou e desgosta até hoje, por se ver totalmente dependente dos seus filhos; o que, pese embora o lapso de tempo já decorrido, têm-lhe retirado anos de vida e a alegria de viver, passando muitas noites em claro, a reviver o passado e a recear pelo seu futuro.

IV–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A- Prescrição
Nos termos anteriormente referidos, debate-se nos autos a questão do prazo de prescrição a ponderar, designadamente se deve ser considerado o de 20 anos inerente à responsabilidade contratual (cfr. artigo 309º, Código Civil), como pretende a autora, ou o prazo de três anos decorrente da responsabilidade extracontratual (cfr. artigo 498º Código Civil), como defende o réu.
A prescrição, consubstanciando uma exceção perentória inominada, desencadeadora da absolvição do réu do pedido (cfr. artigo 576º, nºs 1 e 3, CPC), constitui uma particular forma de extinção dos direitos, mediante o simples decurso de um lapso temporal. Assim, “se o titular de um direito o não exercer durante certo tempo fixado na lei, extingue-se esse direito. Diz-se, nestes casos, que o direito prescreveu (ou caducou)” - Mota Pinto[11]). A prescrição inscreve-se, assim, na problemática da repercussão do tempo nas relações jurídicas, devendo ser invocada por aquele a quem aproveita – cfr. artigos 296º e ss e 303º, Código Civil – iniciando o seu curso  quando o direito puder ser exercido; se, porém o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a  interpelação só findo esse tempo se inicia o prazo da prescriçãocfr. artigo 306º, nº 1, Código Civil.
Ponderando a causa de pedir invocada pela autora, dúvidas não restam de que imputa ao réu a prática de factos que se reconduzem quer à violação do contrato de arrendamento por parte do senhorio, quer à prática de atos ilícitos no domínio da responsabilidade extracontratual.
Como refere Fernando A. Ferreira Pinto[12], os casos de concurso, em sentido próprio, entre ambas as responsabilidades ocorrem quando um único facto danoso, praticado por uma só pessoa, integra simultaneamente os pressupostos de aplicação dos regimes da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual, representando, pois, concomitantemente, a inexecução de uma obrigação em sentido estrito e a violação do genérico dever de neminem laedere. São duas, por conseguinte, as suas caraterísticas essenciais: por um lado, do ponto de vista subjetivo, lesante e lesado correspondem, respetivamente, ao devedor e ao credor de uma relação obrigacional, por outro lado, do ponto de vista objetivo, o dano aquiliano é consequência direta do inadimplemento da obrigação
A este propósito refere Vaz Serra que: o contrato não priva as partes da proteção geral, pois pela celebração de um negócio jurídico não se renuncia à defesa que se teria independentemente dele (…) não sendo de presumir que, com o contrato, se tenha querido afastar a responsabilidade delitual, principalmente quando os contraentes teriam dificuldade em prever a possibilidade de dano” (…) com a celebração do contrato, os direitos do credor são reforçados e não limitados (…) se a existência de um contrato estabelece entre as partes mútuos deveres de proteção, mais intensos do que em relação a terceiros, não se justifica que a tutela do credor seja inferior à destes[13].
A questão do concurso entre ambas as responsabilidades tem merecido grande discussão doutrinária e jurisprudencial, vindo a fixar-se fundamentalmente duas orientações, designadas como “sistema de cúmulo” e “sistema do não cúmulo”.
No sistema de cúmulo “(…) cabem três diretrizes: a de o lesado se socorrer, numa única ação, das normas da responsabilidade contratual e da extracontratual, amparando-se nas que entenda mais favoráveis; a de conceder-se-lhe opção entre os procedimentos fundados apenas numa ou noutra dessas responsabilidades; e a de admitir, em ações autónomas, ao lado da responsabilidade contratual, a responsabilidade extracontratual.” -  Almeida Costa[14]
Para os defensores do sistema que exclui o cúmulo de responsabilidades, em regra aplicar-se-á o sistema da responsabilidade contratual, por operar entre ambas um princípio de consunção que a fará prevalecer. A este propósito, refere Almeida Costa que as hipóteses de concurso da responsabilidade contratual e da extracontratual (…), reconduzem-se à figura do concurso aparente, legal ou de normas”, residindo, por isso, a essência do problema “na solução do conflito positivo de regimes, que deriva da circunstância de uma mesma factualidade ser simultaneamente subsumível[15]” aos dois complexos de regulamentação. Defende este autor que o regime da responsabilidade contratual “consome” o da extracontratual (princípio da consunção) dado que no direito das obrigações impera o princípio da autonomia privada, que impõe que numa situação de concurso “o facto tenha, em primeira linha, de considerar-se ilícito contratual”. Assim, a regra será em princípio a do não cúmulo de ambas as responsabilidades, prevalecendo nos termos expostos a responsabilidade contratual, sem prejuízo da introdução de desvios, em homenagem à solução substancialmente mais justa[16], dado estar-se perante uma hipótese de consunção impura. Julgamos ser esta a orientação prevalecente, quer em termos doutrinários, quer jurisprudenciais – cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 24-09-2019[17], Acórdão da Relação de Lisboa de 07-02-2012[18], e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-08-2003[19].
Na ausência de opção legislativa quanto a esta problemática, julgamos mais adequada ao plano da justiça material e à coerência sistemática, a teoria da exclusão do cúmulo, que determinará que a indemnização seja, em regra, fundamentada nas regras da responsabilidade contratual. Efetivamente, tal conflito positivo de regimes deverá ser resolvido com base num ponto de vista teleológico”, partindo sempre da prevalência do princípio da autonomia privada na regulamentação do direito das obrigações. Nessa perspetiva, deverá considerar-se que se as partes celebraram um negócio jurídico, pretenderam afastar as regras da responsabilidade delitual. Acresce que a responsabilidade contratual impõe um regime mais gravoso para o lesante (cfr. presunção de culpa consagrada no artigo 799º, do Código Civil), além de que da celebração de um contrato derivam não só deveres de prestação, mas também deveres acessórios e laterais, o que dá plena satisfação aos interesses do lesadoAlmeida Costa[20] .
Em síntese, uma única conduta, geradora de um direito único de indemnização, ainda que subsumível às regras da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual, determina no plano jurídico um concurso meramente aparente de regimes, impondo-se o seu enquadramento no âmbito da responsabilidade contratual.
Consequentemente, apurada a celebração do contrato de arrendamento como resulta dos factos provados, forçosa é a conclusão de que deve ser eleito o prazo prescricional aplicável à responsabilidade contratual, ou seja, o prazo de vinte anos.
Os ilícitos descritos nos autos, como resulta da factualidade apurada, ocorreram nos anos de 2005, 2007 e 2009 (factos nºs 12, 13 e 14), sendo manifesto que não decorreu, desde então o prazo prescricional de vinte anos, pelo que, na ausência de quaisquer causas interruptivas ou suspensivas (cfr. artigos 318º e ss e 323º e ss, do Código Civil), não opera a prescrição.
Pelo exposto, acorda este coletivo julgar improcedente a exceção de prescrição invocada pelo réu.

B–Erro de Julgamento – Presunção de culpa do artigo 799º Código Civil
Invoca a recorrente que o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento considerando que em face das regras de repartição do ónus da prova não lhe competia provar que os atos descritos nos factos provados sob os nºs 12 a 15 foram praticados pelo autor em face do disposto no artigo 799º Código Civil. Ao invés, ao réu incumbia a prova de quer tais factos não foram praticados por si ou a seu mando. Certo é que após os danos causados no telhado, na porta e com o incêndio, o locado deixou de reunir condições para possibilitar o seu gozo. Não tendo o réu logrado provar que tais factos não procediam de culpa sua, impunha-se a sua condenação no pedido formulado.
O recorrido considerou, em síntese, que a responsabilidade civil contratual tem como pressupostos cumulativos a existência de um facto voluntário praticado pelo agente lesante, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Porém, não tendo a autora logrado provar a autoria dos factos ilícitos por si alegados, não tem cabimento aludir-se à culpa presumida do réu, pelo que não poderá ser indemnizada.
Cumpre apreciar e decidir:
No domínio da responsabilidade contratual é ao devedor que compete provar  que o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua – cfr. artigo 799º, nº 1, Código Civil. Debruçando-se sobre a presunção de culpa consagrada naquele preceito, referem Antunes Varela e Pires de Lima[21]: Só o devedor está, por via de regra, em condições de fazer a prova das razões do seu comportamento em face do credor, bem como dos motivos que o levaram a não efetuar a prestação a que estava obrigado.
Reportando-se o contrato de arrendamento a vínculo oneroso, bilateral e sinalagmático, importa ter presente que a principal obrigação que gera para o senhorio é a de conceder o gozo efetivo do prédio, assumindo, em contrapartida o inquilino a obrigação de pagar a renda acordada. Assim, ao senhorio cabe, como obrigação principal, a de assegurar ao inquilino o gozo do prédio arrendado, para o fim a que ele se destina, conforme dispõe a alínea b) do artigo 1031º, do Código Civil.
Sendo manifesto que a retirada de telhas, o arrombamento da porta e, de forma mais significativa, o incêndio, retiraram de forma definitiva condições de habitabilidade ao locado, o certo é que não se apurou que tais atos tenham decorrido de ação do autor. Ou seja, ficou por demonstrar que a sua ocorrência tenha resultado de facto voluntário deste.
Porém, a presunção de culpa consagrada no artigo 799º, nº 1, do Código Civil opera quando se apure a prática pelo contraente faltoso de um ato, ilícito e gerador de danos. Ou seja, a presunção de culpa consagrada naquele preceito não se estende aos demais pressupostos da responsabilidade civil contratual.
Não tendo a autora logrado demonstrar tais factos, cujo ónus lhe incumbia por se tratarem de factos constitutivos do direito que invoca nestes autos, nos termos do disposto no artigo 342º, nº 1, do Código Civil, não pode, com êxito invocar a presunção de culpa consagrada no artigo 799º, nº 1 do Código Civil.
Improcedente se revela, consequentemente, o recurso por si deduzido

Por terem ficado vencidos a autora/recorrente e o réu que ampliou o objeto do recurso, são ambos responsáveis pelo pagamento das custas processuais, em igual medida– cfr. artigo 527º, CPC.

III–DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta 2ª secção cível:
- Julgar improcedente a exceção de prescrição invocada pelo réu B.;
- Julgar improcedente quer o recurso de apelação interposto pela autora A., quer a sua ampliação deduzida pelo réu B., mantendo-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pela autora e réu, em partes iguais – cfr. artigos 527º, CPC.           
D.N.


Lisboa, 21 de março de 2024


Rute Sobral - (relatora)
Pedro Martins - (1º adjunto)
Paulo Fernandes da Silva - (2º adjunto)

(Assinatura eletrónica)


[1]Proferido no processo 233/09, disponível em www.dgsi.pt
[2]Código de Processo Civil Anotado, Volume 2ª, 3ª edição, pág. 735
[3]Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª edição, p. 210).
[4]Proferido no processo nº 927/12.7TVPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt
[5]Proferido no processo nº 4464/12.1TMGMR.C1
[6]Proferido no processo 4702/20.7T8BRG.P1, disponível em www.dgsi.pt
[7]“A fundamentação do juízo probatório-breves considerações”, Revista Julgar nº 13, pág. 180.
[8]Manual do arrendamento urbano, Vol. I, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 2007, pág. 437 e ss
[9]Código Civil anotados, Vol. I, 4ª edição pág. 61.
[10]Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 435
[11]“Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed., p. 373.
[12]O concurso entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual, Revista de Direito Comercial, www.revistadedireitocomercial.com  pág. 3 e 4
[13]Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual, in B.M.J. n.º 85, abril de 1959, pp. 115-238.
[14]Manual de Direito das Obrigações, 5ª edição, pág. 437/438.
[15]Almeida Costa, ob. Cit. Pág. 439 e 440
[16]Almeida Costa, o. Cit pág. 442
[17]Proferido no processo nº 1922/08.6TVLSB-A.L1-2, disponível em www.dgsi.pt
[18]Proferido no processo nº 512/10.8TCFUN.L1-2
[19]Proferido no processo nº 03B1021
[20]Ob. Cit. Pág. 440 a 442.
[21]Código Civil anotado, Vol. II, pág. 55