Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13381/22.6T8LSB-A.L1-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: INVENTÁRIO
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
DÍVIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Entre os interessados directos da partilha, no âmbito de processo especial de inventário, existe situação de litisconsórcio necessário legal.
II. O artigo 1106º do Código de Processo Civil enuncia de forma expressa o efeito cominatório da não impugnação por alguns dos interessados directos das dívidas relacionadas, que é o de estas serem reconhecidas, relativamente à quota-parte dos interessados que as não impugnem, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574º do mesmo Código.
III. Não sendo aplicada a excepção do art.º 568º, a) do Código Processo Civil a esse efeito.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. O relatório
A, interessada nos presentes autos de inventário por morte de
B e C
deduziu reclamação à relação de bens oportunamente apresentada pelo cabeça de casal no que apenas ao passivo importa.
O cabeça de casal D deduziu resposta, no qual pugna pelo indeferimento da reclamação e da consequente manutenção da relação de bens tal qual foi apresentada.
*
Com data de 28/11/2023, foi proferido despacho, com o seguinte teor:
Apenas a interessada A apresentou reclamação contra a Relação de Bens, na qual impugna determinadas verbas do passivo, a saber:
• alíneas e) da verba 1 do passivo;
• alínea f) da verba 1 do passivo;
• alínea a) da verba 2 do passivo;
• alínea b) da verba 2 do passivo;
• alínea a) da verba 3 do passivo;
• alínea b) da verba 3 do passivo;
• alínea c) da verba 3 do passivo.
Conclui, a interessada que as verbas do passivo impugnadas não devem ser consideradas, devendo a questão ser remetidas para os meios comuns.
Considerando que os demais interessados não apresentaram qualquer reclamação contra a Relação de Bens e não impugnaram as dividas relacionadas, considero reconhecidas a quota parte desses interessados nas dívidas relacionadas, ao abrigo do disposto no artigo 1106.º, n.º 4 do CPC.
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Inconformado, o interessado E interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1.a
Considerando que:
a) Tal como acima se demonstra, entre os interessados A, E e F, interessados no inventario, encontram-se numa relação material controvertida, em litisconsórcio necessário, obrigatório:
b) Tal como se demonstra no relatório, nos casos em que se verifique a existência de litisconsórcio necessário, a questão da revelia não é operante, em face do disposto no art.º 568 alínea “a” do CPC.
c) A revelia a que se refere o n.º 4 do art.º 1106 do CPC, não tem aplicação no caso da existência de litisconsórcio necessário, em que o interesse dos consorciados, e uno tanto mais que nenhum deles repudiou o seu direito a herança.
d) Nos casos em que não opere a cominação do n.º 4 do art.º 1106. do CPC - como e o caso, cabe ao juiz pronunciar-se, ate a prolação do despacho referido na alínea “a” n.º 1 do art.º 1110 do CPC.
e) Uma vez que a M.a Juiz do Tribunal “a quo", já decidiu de mérito quanto aquele efeito cominatório, entende-se que tal decisão e ilegal e claramente viola o disposto no art.º 33., 35. e 568. do CPC.
f) Tendo em vista o exposto na questão previa, ao recurso devera ser fixado efeito suspensivo.
2.a
Tendo em vista o exposto na anterior conclusão devera revogar-se a R. decisão que atribuiu efeito cominatório pleno aos interessados que, por si, não deduziram oposição, embora lhe aproveite a oposição por outro consorte integrante do litisconsórcio, necessário, obrigatório, sobre os mesmos factos.
3.a
No entendimento do apelante, a R. decisão, violou as seguintes normas:
a) Do Código Civil
- Artigo 9.
b) Do Código de Processo Civil
- Artigo 33., 35. e 568.
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O cabeça-de-casal contra-alegou, rematando com as seguintes conclusões:
I) Nos termos previstos no n.º 1 do artigo 549.º do Cód. Proc. Civil, os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo o eu não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum;
II) No âmbito do processo especial de inventário, o n.º 4 do artigo 1106.º do Cód. Proc. Civil, dispõe, expressamente, que quanto ao reconhecimento da dívida, aplica-se o n.º 1 e n.º 2 do referido artigo 1106.º relativamente à quota parte dos interessados que a não impugnem.
III) O aqui recorrente não reclamou ou impugnou o passivo da herança apresentada na Relação de Bens pelo Cabeça-de-Casal pelo que, não o fazendo, o douto despacho recorrido decidiu que se mostrava reconhecida a sua quota parte nas dívidas relacionadas, bem como a quota parte dos demais interessados não reclamantes.
IV) O douto despacho recorrido mostra-se conforme o Direito e nenhum reparo deve merecer.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, nos autos e efeito suspensivo.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
Efeito cominatório da ausência de oposição ao passivo relacionado, por parte de alguns dos interessados.
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III. Os factos
Fluem dos autos os seguintes factos, para além dos supra descritos:
Em 18/4/2023, o cabeça de casal apresentou as seguintes declarações:

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IV. O Direito
Em causa neste recurso encontra-se a interpretação a dar ao disposto no art.º 1106º do Código de Processo Civil, que dispõe o seguinte:
Artigo 1106.º
Verificação do passivo
1 - As dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574.º, devendo a sentença homologatória da partilha condenar no respetivo pagamento.
2 - Se houver interessados menores, maiores acompanhados ou ausentes, o Ministério Público pode opor-se ao seu reconhecimento vinculante para os referidos interessados.
(…).
4 - Se houver divergências entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida, aplica-se o disposto nos n.ºs 1 e 2 relativamente à quota-parte dos interessados que a não impugnem e quanto à parte restante observa-se o disposto no número anterior.
(…).
Invoca o recorrente que a revelia, emergente da falta de oposição ao passivo da herança, por alguns dos interessados (tendo sido deduzida oposição pelos restantes), não tem efeito operante, face ao disposto no art.º 568º, a) do Código de Processo Civil e sendo caso de litisconsórcio necessário.
É verdade que, entre os interessados directos da partilha, no âmbito de processo especial de inventário, existe situação de litisconsórcio necessário legal.
Contudo, essa constatação permite a aplicação da excepção do art.º 568º, a) do citado Código ao efeito cominatório emergente da falta de oposição ao passivo relacionado, por alguns dos interessados? Parece-nos que não, pelas seguintes razões:
Tal como nos dizem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres [O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, pág. 8.] “O novo modelo do processo de inventário assenta em fases processuais relativamente estanques e consagra um princípio de concentração dado que fixa para cada ato das partes um momento próprio para a sua realização.”
Explicam estes autores que, no modelo ora instituído, o processo de inventário para fazer cessar a comunhão hereditária, comporta as seguintes fases:
- Uma fase dos articulados na qual as partes, para além de requererem instauração do processo, têm de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respectivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, activo e passivo, que constitui objecto da sucessão. Esta fase abrange a subfase inicial (art.ºs 1097º a 1002º) e a subfase da oposição (art.ºs 1104º a 1107º). No articulado de oposição devem os interessados impugnar concentradamente todas as questões que podem condicionar a partilha, nomeadamente, apresentar reclamação à relação de bens (vd. art.º 1104º).
- A fase de saneamento, na qual o juiz, após a realização das diligências necessárias – entre as quais se inclui a possibilidade de realizar uma audiência prévia – deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar e também proferir despacho sobre a forma da partilha.
- A fase da partilha onde ocorrerá a conferência de interessados na qual se devem realizar todas as diligências que culminam na realização da partilha.
Sendo que, por via do disposto no art.º 549º, nº 1 do mesmo Código, à tramitação do inventário são aplicáveis as disposições da parte geral desse Código, bem como as regras do processo civil de declaração que se mostrem compatíveis com o processo de inventário judicial.
“Abandonada a experiência subsequente de atribuição aos cartórios notariais da competência exclusiva para a tramitação dos inventários, tendo em conta os frustrantes resultados, a nova regulamentação foi orientada pelo objetivo de modernizar tal processo especial contribuir para a resolução célere e justa de partilhas litigiosas. Para tal, considerou-se, desde logo, impor ao requerente (seja ou não cabeça de casal) o ónus de alegar e demonstrar os factos mais relevantes, de modo que, citados, os demais interessados, possam exercer o seu direito de defesa em toda a amplitude, mas com efeitos preclusivos, tornando mais eficiente a tramitação, mediante a concentração dos atos em cada uma das diversas fases processuais. Não se compreendendo, aliás, a persistência no campo do processo civil de um “enclave” no qual as regras processuais pudessem ser manipuladas em função das conveniências de ordem meramente particular; ao invés, o facto de no inventário se conjugarem diversos interesses exige a fixação de regras que, embora sem uma absoluta rigidez formal, contribuam para a resolução oportuna das diversas questões e, a final, para a concretização de partilhas justas e equilibradas, num prazo razoável. Neste novo cenário, o requerimento inicial assemelha-se a uma verdadeira petição inicial”, como se decidiu no Acórdão da Relação de Guimarães, de 2/6/2022, disponível em www.dgsi.pt.
Feitas estas considerações genéricas, vejamos a situação em concreto.
Em primeiro lugar, um argumento lógico: a concordarmos com a tese do recorrente, o disposto no nº 4 do art.º 1106º, supra citado, nunca teria aplicação, pelo que esta norma seria inútil.
Na medida em que a situação nele descrita – pluralidade de interessados em inventário, sendo que nem todos impugnam o passivo relacionado – será sempre uma situação de litisconsórcio necessário.
Afastando-se o efeito cominatório emergente da falta de oposição, nunca seria aplicável o disposto no nº 1 do mesmo preceito, logo, esvaziaríamos de conteúdo a remissão operada pelo referido nº 4.
Em segundo lugar, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 549.º do Código citado, os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum;
Ora, no âmbito do processo especial de inventário, o n.º 4 do artigo 1106.º dispõe, expressamente, que quanto ao reconhecimento da dívida, aplicam-se os n.ºs 1 e 2 do mesmo preceito, relativamente à quota parte dos interessados que a não impugnem.
«(…) no novo regime do inventário, foi introduzido um ónus de contestação do requerimento inicial (art.ºs 1104.º e 1106.º) e um ónus de resposta à contestação (art.º 1105.º, n.º 1), o que implica, como efeito cominatório para a falta de resposta ao requerimento inicial ou à oposição, a aceitação dos termos desse requerimento inicial ou dessa oposição. Passa, assim, a vigorar um verdadeiro sistema de preclusões, até agora inexistente, no processo de inventário», como referem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, ob. cit., pág. 43.
Em terceiro lugar, a remissão para o disposto no art.º 574º, nº2 implica que a não impugnação das dívidas relacionadas só importa reconhecimento se não estiverem em oposição com a pronúncia considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre as mesmas ou se só puderem ser provadas por documentos escrito (neste sentido, João Espírito Santo, Revista de Direito Comercial, 16/02/2021).
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, em anotação ao artigo 574º, “não opera o ónus de impugnação quanto aos factos que careçam de ser provados por documento escrito. Apesar de, em matéria de declaração negocial vigorar o princípio da consensualidade ou da liberdade de forma (art.º 219º do CC), há diversas situações em que a lei exige, sob pena de nulidade (art.º 220º do CC) documento escrito ou uma formalidade ainda mais solene para a celebração de certos negócios, o que constitui um requisito ad substanciam (cf. entre outros 875, 947, 1143 e 1250) (…). (…) nestes casos ainda que o réu não impugne esse facto, nem por isso se dará como assente tal negócio.”
Efectivamente de acordo com o n.º 2 do citado artigo 574º, há situações em que falta de impugnação de um facto não pode implicar a confissão tácita dele, quando o mesmo esteja em inequívoca contradição com o que resulta da defesa globalmente considerada, sendo que no caso essa contradição está em oposição com a decisão tomada em relação à existência ou não da dívida e das situações acabadas de referir.
Mas trata-se da única excepção ao efeito cominatório expresso no nº 4 do art.º 1106º, quanto aos interessados que não impugnem o passivo, não lhe sendo aplicável o disposto no art.º 568º, a), ambos do Código de Processo Civil.
Seguindo esta posição, veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães de 25/5/2023 (Conceição Bucho), disponível em www.dgsi.pt:
I - O artigo 1106º do Código de Processo Civil enuncia de forma expressa o efeito cominatório da não impugnação pelos interessados directos das dívidas relacionadas, que é o de estas serem reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574º.
II - Se um dos interessados impugnar a dívida, a não impugnação das dívidas relacionadas pelos demais interessados só importa reconhecimento se não estiverem em oposição com a pronúncia considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre as mesmas ou se só puderem ser provadas por documentos escrito, nos termos do disposto no artigo 574 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do n.º 1 do artigo 1106, 2ª parte.
Pelo que a decisão recorrida não nos merece qualquer censura, improcedendo a apelação.
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V. A decisão                                                       
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na improcedência da apelação, manter a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Lisboa, 18 de Abril de 2024
Nuno Lopes Ribeiro
Jorge Almeida Esteves
João Cordeiro Brasão