Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5094/18.0T8OER-A.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: EXECUÇÃO
LETRA DE CÂMBIO
TÍTULO EM BRANCO
REFORMA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
AVALISTAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1 – Com a entrega do título cambiário em branco, ocorre, por princípio, a atribuição de poderes para o seu preenchimento (acordo ou pacto de preenchimento) mediante contrato entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos aquele deve ter lugar, ou seja, determinando os elementos que o transformarão em título executivo ou em que a obrigação cambiária se torna exigível (tais como a fixação do montante, o tempo de vencimento, a estipulação dos juros, entre outros).
2 - Tendo o obrigado cambiário – no caso, os avalistas - participado do pacto de preenchimento de letra em branco, entre ele e o credor (sacador) estabelece-se uma relação imediata, conferindo aquele a este o poder de preencher o título, pelo que o acto de preenchimento terá o mesmo valor que teria se fosse praticado pelo subscritor ou se já tivesse sido praticado no momento da subscrição.
3 - Quem invoca o preenchimento abusivo de um título cambiário, tem o ónus de alegação e prova dos factos integrantes desse abusivo preenchimento.
4 - À emissão de diversas letras de câmbio e subsequente substituição destas («reforma» de letras), com vista ao pagamento de facturas emitidas no contexto de contrato de fornecimento de mercadoria, ainda que se esteja no domínio das relações imediatas, não deve ser aplicável o disposto no art.º 781º do Código Civil para considerar o vencimento antecipado de letras ainda não vencidas.
5 - A inserção no título em branco de uma quantia superior àquela que decorre do pacto de preenchimento, não determina a nulidade do título, mas apenas a redução do valor.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A, LDA., com domicílio à Rua .., Nº …, Guimarães apresentou, em 14 de Dezembro de 2018, requerimento executivo para pagamento de quantia certa contra B, S.A., com domicílio à Estrada …, Nº …., Rio Tinto; C, com domicílio à Travessa …, Alcabideche e D, com domicílio à Rua …, Cascais com base em título executivo constituído por letra de câmbio, em que a exequente figura como sacador, com data de emissão de 13-10-2015, vencimento em 10-12-2018, no valor de 485.458,27€, figurando como sacada, a sociedade executada e como avalistas os executados pessoas singulares (cf. Ref. Elect. 13765908 dos autos de execução).
No seu requerimento executivo, a exequente invocou a celebração, por documento particular autenticado de “Contrato de Reconhecimento de Dívida e de Fornecimento e Prestação de Serviços com Constituição de Garantias Pessoais”, datado de 13/10/2015, em que a executada B, se confessou devedora da quantia de 244.114,43€, decorrente da falta do pagamento do preço dos fornecimentos efectuados pela exequente, assumindo os encargos com despesas bancárias, e os executados C  e  D  se constituíram avalistas e principais pagadores de todas as obrigações assumidas pela sua representada (1ª executada) junto da exequente, qualquer que fosse a sua natureza e origem, constituídas ou a constituir, de encargos decorrentes dessas obrigações, nomeadamente decorrente da obrigação de pagar o preço de fornecimentos, de pagar juros pelo atraso no pagamento do preço, de indemnizações que pudessem ser assacadas à 1ª executada, qualquer tipo de financiamento ou outros contratos atípicos, até ao limite máximo de 500.000,00€ (quinhentos mil euros), tendo entregado à exequente letra de câmbio assinada em branco, autorizando-a preenchê-la, pelo valor que lhe for devido, qualquer que fosse a sua natureza ou proveniência, a fixar as datas de emissão e vencimento e a designar o local de pagamento, e bem assim a descontar a referida letra de câmbio e usar o referido título como título executivo, no caso da falta de cumprimento de qualquer obrigação assumida pela 1ª Executada junto da exequente, podendo esta incluir nos valores a preencher na letra, todo e qualquer valor que se encontrasse em mora, quer corresponda a qualquer valor enunciado naquele documento/contrato, como outros correspondentes a qualquer fornecimento posterior, juros ou despesas bancárias, sem necessidade de qualquer tipo de interpelação admonitória prévia.
Mais alegou que forneceu à 1ª executada os bens constantes das facturas que identificou, emitidas entre Junho de 2018 e Outubro de 2018, que se venciam 30 dias após a sua data de emissão, estando em dívida o montante total de 167.076,07€; além disso, a sociedade executada aceitou letras que entregou à exequente, para pagamento de diversos fornecimentos, que não foram pagas na data do seu vencimento (ocorrido entre Agosto e Dezembro de 2018), no valor total de 33.044,31€
Alegou ainda a exequente que aceitou a reforma de 15 letras da 1ª executada, vencidas entre Outubro e Novembro de 2018, não tendo esta procedido à amortização total resultante da reforma, estando em falta um valor total de 43.263,52€; as operações bancárias efectuadas com desconto de letras e reformas importaram em encargos de 20.720,47€,
A exequente aceitou outras letras de câmbio para pagamento de fornecimentos respeitante a uma série de facturas, que, apresentadas a desconto, foram sendo devolvidas, de Setembro a Dezembro de 2018, por falta de pagamento.
A sociedade executada deve um total de 485.458,27€, pelo que a exequente preencheu a letra de câmbio dada à execução, vencendo-se juros legais à taxa comercial sobre aquele valor desde a data de 10/12/2018 até integral e efectivo pagamento.
A exequente requereu ainda a realização da penhora sem a citação prévia do executado, alegando factos justificativos do receio de perda da garantia patrimonial do seu crédito.
Em 29 de Janeiro de 2019 foi proferido despacho a ordenar a realização da penhora sem citação prévia (cf. Ref. Elect. 117348740 dos autos de execução).
Realizadas as diligências de penhora e citados os executados, vieram estes, em 26 de Junho de 2019, deduzir oposição à execução mediante embargos de executado e oposição à penhora, com a seguinte ordem de fundamentos (cf. Ref. Elect. 14983553):
- A nulidade processual por falta de citação prévia, caso a dispensa da citação não tenha sido ordenada;
- As penhoras ocorreram em Fevereiro e Abril e os executados apenas foram citados em Junho de 2019, o que consubstancia uma nulidade por violação do disposto no art.º 856º, n.º 2 do Código de Processo Civil[1], para além de constar do auto uma data que não corresponde à da realização da penhora;
- A letra foi preenchida com a data de vencimento de 2018/12/10, verificando-se que as letras discriminadas por último no requerimento executivo têm todas datas de vencimento posteriores àquela data, pelo que não se tendo verificado o seu vencimento não eram devidas, não podendo o seu valor integrar o montante inscrito na letra em branco, pelo que a execução não pode prosseguir ou, sem prescindir, o valor das letras vincendas à data do preenchimento – 221.346,90€ - deve ser excluído do título executivo;
- Tendo existido o desconto de todas as letras, estas foram endossadas pela exequente às entidades bancárias, pelo que todos os direitos emergentes dessas letras se transmitiram para as instituições bancárias, limitando-se a exequente a ser uma mera garante do pagamento;
- A exequente apenas demonstra o pagamento, nessa qualidade, de nove letras, com as datas de vencimento de 2018/08/11 a 2018/11/22, no valor global de 16.208,33€, que podia ser incluído no valor de preenchimento da letra, sendo que quanto às restantes, não sendo devidas à exequente, o respectivo valor deve ser excluído da letra dada à execução;
- Os executados e a exequente estavam em negociações para uma solução que permitisse à executada empresa pagar integralmente todos os valores, vencidos e vincendos, à exequente, sendo que esta nunca deixou de efectuar pagamentos;
- A falta de pagamento atempado dos créditos vencidos deveu-se a dificuldades de tesouraria, em grande parte causadas pela quebra de vendas ocorrida em 2018, devido às alterações climáticas verificadas nesse ano e que, aliás, se mantêm este ano;
- Incluindo as letras que se soube agora estarem descontadas junto de instituições bancárias, o valor actualmente em dívida à exequente é de apenas 376.742,88€, pois que foram efectuados diversos pagamentos quanto a letras vencidas, quanto às amortizações resultantes de reformas de letras e quanto a letras vincendas;
- Existe um excesso de penhora, pois a primeira verba constante do auto de penhora é a marca “Mike Davis”, propriedade da sociedade executada, avaliada, em Outubro de 2017, em 7.149.890,00€, sendo a quantia exequenda de apenas 185.390,92€;
- Além disso foram penhorados aos executados vários saldos bancários, num total de 19.699,05€, devendo ser ordenado seu imediato levantamento.
Concluem pedindo que se considere a citação dos executados ferida de nulidade processual, a nulidade processual da falta de citação dos executados nos cinco dias subsequentes às primeiras penhoras e, bem assim, do auto de penhora e que seja extinta a execução por falta de exigibilidade da obrigação exequenda, por violação do pacto de preenchimento; subsidiariamente, que seja reduzido o valor da letra e do crédito exequendo na proporção dos pagamentos feitos após a propositura da acção executiva e que seja ordenado o levantamento da penhora sobre os saldos bancários.
Mais requereram a atribuição de efeito suspensivo aos embargos e consequente suspensão da instância executiva.
Em 8 de Agosto de 2019 foi informado nos autos a entrada junto do Juízo de Comércio de Santo Tirso, Juiz 4, de um processo especial de revitalização relativo à executada B, Lda., que correu termos sob o número 2576/19.0T8STS (cf. Ref. Elect. 15233865).
Em 14 de Outubro de 2019 a senhora agente de execução determinou a suspensão da execução, nos termos do art.º 17º-E do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas quanto à executada B, prosseguindo as diligências de penhora quanto aos executados, pessoas singulares (cf. Ref. Elect. 15589041 dos autos de execução).
Em 10 de Dezembro de 2019 foi proferido despacho que admitiu liminarmente os embargos de executado apresentados por C e D, sendo ordenada a notificação da exequente para contestar (cf. Ref. Elect. 122725396).
Em 22 de Junho de 2020, a exequente/embargada apresentou contestação alegando, em síntese, o seguinte (cf. Ref. Elect. 16983805):
- A citação prévia foi dispensada por despacho judicial e o acto de citação só deveria ocorrer efectivada a última penhora, para além do que a nulidade por falta de citação deve ser arguida no processo executivo;
- O documento n.º 2 junto com a petição inicial de embargos de executado faz prova contra os próprios executados, atenta a posição devedora inscrita naquele documento de meados de Dezembro de 2018, onde surge como valor em dívida da executada à exequente precisamente o valor pelo qual foi preenchida a letra dada à execução;
- As letras foram entregues para pagamento de facturas vencidas, como se de plano de pagamento se tratasse, pelo que o não pagamento de uma das letras na data do seu vencimento faria vencer imediatamente, como fez, toda a dívida, sendo desde esse momento imediatamente exigível aos executados o montante global da dívida que tinha para com a exequente;
- No início de dezembro de 2018 havia já incumprimento reiterado das obrigações por parte da executada, não só com falta de pagamento de letras, bem assim das suas reformas e amortizações, das despesas bancárias e de facturas, com clara diminuição das garantias do crédito,
- A letra foi preenchida pelo valor devido à exequente;
- Na pendência da presente execução, a executada B procedeu a diversos pagamentos à exequente, cifrando-se a dívida, actualmente, no valor de 376.693,99€ (juros não incluídos), conforme resulta também da lista definitiva de créditos constante do processo especial de revitalização n.º 2576/19.0T8STS, crédito reconhecido definitivamente.
Pugnou, assim, pela improcedência dos embargos de executado.
Em 22 de Novembro de 2021 teve lugar a realização de audiência prévia, no âmbito da qual foi proferida decisão que julgou extintos os autos de embargos de executado quanto à embargante B, por inutilidade superveniente da lide, atento o facto de ter sido homologado o plano de recuperação da empresa, o que determinou a extinção da execução quanto a esta e mais determinou o prosseguimento da execução quanto aos executados pessoas singulares.
Foi também apreciada a matéria da oposição à penhora que, em face da extinção da execução quanto à sociedade executada, foi julgada improcedente e foi ainda decidido não se mostrarem reunidos os requisitos para a suspensão da execução e, bem assim, julgada improcedente a arguição de nulidade processual por falta de citação e do auto de penhora.
Nesse acto foi ainda fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova, sem reclamação (cf. Ref. Elect. 134054608).
Realizada a audiência de julgamento, em 12 de Outubro de 2023 foi proferida sentença que julgou os embargos de executado procedentes e declarou extinta a execução (cf. Ref. Elect. 146548068).
Inconformada com esta decisão, a exequente/embargada veio interpor o presente recurso concluindo a sua motivação do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 24492365):
A. O presente recurso incide sobre matéria de facto e de direito, de acordo com os artigos 639.º, n.º 2 e 640.º do C.P.C.
B. Errou o Tribunal a quo ao dar como provados, com a redacção constante da sentença recorrida, os factos 2, 4, 5 e 14, bem assim ao não dar como provado que existiam obrigações vencidas por parte da 1.ª Executada, quer no momento da instauração da execução, quer na data do preenchimento da letra.
C. No que se refere à matéria de Direito, a sentença viola, por erro de interpretação, as normas contidas nos artigos 780.º e 781.º do Código Civil.
D. Os títulos executivos dados à presente execução foram o “contrato de reconhecimento de dívida e de fornecimento e prestação de serviços com constituição de garantias pessoais”, sob a forma de documento autenticado e a letra.
E. No documento particular autenticado já referido, os embargantes atribuíram àquele documento e à letra a natureza de título executivo, bem como os embargantes/pessoas singulares se assumiram a título pessoal, principal e solidário os valores em dívida, bem assim constituíram-se avalistas, tudo conforme cláusulas segunda, terceira e quinta.
F. Além da letra avalizada, a Recorrente tinha ainda como título executivo o próprio contrato formalizado em documento particular autenticado que podia, só por si, ser utilizado como título executivo contra todos os executados.
G. O facto provado n.º 2 devia ter redacção diversa da constante da sentença recorrida, uma vez que devia constar que as facturas se venciam nos 30 dias posteriores à sua emissão, até porque a data de vencimento consta das mesmas, passando a ter a seguinte redacção:
“2 – A exequente forneceu à 1ª executada as coisas descritas nas facturas emitidas em 22-VI-18, 9-VII-18, 27-VII-18, 10-VIII-18, 10-VIII-18,10-VIII-18, 5-IX-18, 5-IX-18, 11-IX-18, 14-IX-18, 28-IX-18, 28-IX-18, 11-X-18, 16-X-18, 26-X-18 e 31-X-18 e já vencidas aquando da instauração da execução e do preenchimento da letra (juntas com o r.e., e cujos teores se dão aqui por reproduzidos).”
H. Também o Tribunal a quo no facto provado 4 não teve acerto na redacção dada ao mesmo, uma vez que a prova documental e testemunhal impunha redacção diversa.
I. As letras mencionadas no ponto 4 dos factos provados pretendiam dar pagamento a fornecimentos anteriores aos referidos no ponto 2 dos factos provados, sendo que o não pagamento nas datas do respectivo vencimento, no montante total de 33.044,31€, integrou, conforme acordado entre as partes, o valor a preencher na livrança dos quais os executados/embargantes haviam assumido a condição de avalistas.
J. Tudo isso resulta do depoimento da testemunha JG, Director Financeiro da Exequente/Embargada, ouvido em audiência de discussão e julgamento, cujo depoimento que se encontra gravado em suporte digital do dia 16/12/2022, das 11:20 às 11:41 horas, concretamente aos minutos 06:00 a 08:00, supra transcrito.
K. O facto provado 4 deverá passar a ter a seguinte redacção: “Para pagamento de facturas de fornecimentos anteriores às referidas em 2, a 1ª executada aceitou diversas letras, com vencimentos em 11-VIII-18 (1.748,16€), 10-X-18 (1.840,64€), 10-XI-18 (1.519,53€), 11-XI-18 (1.200,00€), 12-XI-18 (1.200,00€), 12-XI-18 (1.200,00€ + 2.940,00€), 20-XI-18 (1.200,00€), 22-XI-18 (1.200,00€ + 3.360,00€), e 10-XII-18 (6.268,35€ + 3.294,91€ + 3.089,67€ + 2.965,42€)”.
L. Também o facto provado n.º 5 omite que as amortizações das letras não foram pagas pela 1.ª Executada, tudo no montante de 43.263,52€.
M. Aquele valor em dívida resulta da própria comunicação da 1.ª Executada à Recorrente/Embargada, datada de 13/12/2018, que constitui documento particular e, por isso, faz prova plena contra o declarante uma vez que lhe é desfavorável, de acordo com o artigo 376.º, n.º 2 do Código Civil (documento junto em audiência de discussão e julgamento do dia 20/06/2023, que aqui se reproduz).
N. Atendendo às amortizações das letras reformadas, bem como a missiva da 1.ª executada datada de 13/12/2018 e ainda o “extracto de terceiro”, deve o facto provado 5 passar a ter a seguinte redacção:
“5 - Foram reformadas diversas letras: com vencimento em 10-XI-18, de 13.863,69€ para 2.772,74€; v.em 10-XII-18, de 6.268,35€ para 1.880,50€; v.em 12-XI-18, de 17.967,66€ para 3.593,53€; v.em 12-XI-18, de 6.792,02€ para 2.037,61€; v.em 20-XI-18, de 3.403,75€ para 1.701,87€; v.em 20-XI-18, de 7.163,82€ para 3.581,91€; v.em 20-XI-18, de 3.160,05€ para 1.580,02€; v.em 20-XI-18, de 3.765,62€ para 1.882,81€; v.em 20-XI-18, de 5.624,00€ para 2.812,24€; v.em 21-XI-18, de 3.399,74€ para 1.699,87€; v.em 22-XI-18, de 18.203,89€ para 9.101,94€; v.em 22-XI-18, de 12.447,77€ para 6.223,88€; v.em 22-XI-18, de 11.799,55€ para 5.899,77€; e v.em 22-XI-18, de 14.236,20€ para 7.118,10€, letras essas que não foram amortizadas pela 1.ª Executada no montante total de 43.263,52€, valor esse que tem já subtraídos os pagamentos de 4.653,24€ e 7.500,00€.”
O. O facto provado 14 devia ainda fazer referência ao saldo em dívida pela Executada B na data do preenchimento da letra dada à presente execução.
P. O “Extracto de terceiro” junto a fls. 17v a 39v pode verificar-se que na data do preenchimento da livrança em 10/12/2018, a 1ª Executada tinha um saldo em dívida à Exequente de 493.124,86€, por sinal até superior ao inscrito na letra apresentada à execução.
Q. O facto provado 14 deve passar a ter a seguinte redacção: “14 - Em 25-VI-19 a 1ª executada emitiu o ‘Extracto de Terceiro’ junto a fls 17v a 39v – indicando um ‘saldo’ de 376.742,88€ (em 30-VI-19) e um “saldo” de 493.124,86€ na data do preenchimento da letra (em 10-XII-18)”.
R. Deve ser aditado, porque essencial, que na data do preenchimento da letra e da instauração da execução existiam já valores vencidos e não pagos.
S. Vejam-se os depoimentos (e transcrições supra) das testemunhas RS, funcionário da executada desde 2001, ouvido em audiência de discussão e julgamento, cujo depoimento que se encontra gravado em suporte digital do dia 16/12/2022, das 10:14 a 10:34, concretamente aos minutos 10:34 a 11:40 e 13:40 a 15:13 e de LT, funcionária da executada desde 1998, ouvida em audiência de discussão e julgamento, cujo depoimento que se encontra gravado em suporte digital do dia 16/12/2022, das 10:34 às 10:54, concretamente aos minutos 04:25 a 05:33.
T. Impõe-se que seja aditado o seguinte facto: “No momento do preenchimento da letra dada à execução havia dívida vencida e não paga por parte da 1.ª Executada à Exequente”.
U. No tocante à matéria de direito, entende a Recorrente que não existiu qualquer preenchimento abusivo da letra dada à execução, tendo aquela cumprido o estritamente acordado com os executados, mormente o pacto de preenchimento, tendo a exequente comunicado o valor em dívida, bem como os montantes vencidos e não pagos, apesar de a isso não estar obrigada.
V. A embargada não considerou vencidas unilateralmente as “prestações”, uma vez que esse vencimento resultava do acordo comercial entre a Executada e Exequente, que no caso das facturas, se venciam a 30 dias e no caso das letras entregues se venciam na data aposta nas mesmas, para além da 1.ª Executada reconhecer os valores em dívida na missiva de 13/12/2018 a que já se fez referência.
W. Incumprida que fosse uma das prestações/obrigações, a Embargada tinha o direito de preencher a letra entregue, conforme resulta do acordo celebrado, mas também do artigo 781.º do Código Civil para além de que, como se disse, o próprio contrato celebrado por documento particular pudesse (e valesse) de igual modo como título executivo.
X. A Recorrente não preencheu abusivamente a letra em causa, mas caso o tivesse feito, a letra manteria a sua validade ainda que lhe devesse ser aplicadas as regras da redução dos negócios – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 08/05/2019, processo n.º 287/17.0T8VIS-A.C1, disponível para consulta em www.dgsi.pt
Y. No limite de se entender que a Recorrente não podia preencher a letra com os valores constantes das letras não vencidas na data do preenchimento daquela, deverá ainda assim considerar-se válido o preenchimento relativamente aos valores das facturas vencidas e não pagas, letras não pagas na data do vencimento, amortizações em virtude da reforma de letras por pagar e despesas bancárias, no valor de 264.104,37€ (duzentos e sessenta e quatro mil, centro e quatro euros e trinta e sete cêntimos).
Z. A sentença recorrida violou por erro de interpretação o artigo 781.º do CC.
Concluiu pedindo a procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que julgue totalmente improcedentes os embargos e determine o prosseguimento da execução.
Os embargantes/recorridos apresentaram contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
*
II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, pág. 135.
Assim, perante as conclusões da alegação da embargada/recorrente há que apreciar as seguintes questões:
a. Impugnação da matéria de facto:
b. A verificação de preenchimento abusivo da letra de câmbio e suas consequências.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Na primeira instância foram considerados provados os seguintes factos:
1. Em 13-X-15 exequente e executados assinaram o “Contrato de Reconhecimento de Dívida e de Fornecimento e Prestação de Serviços com Constituição de Garantias Pessoais” junto com o r.e. (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê:
“(…) CLÁUSULA QUINTA - Declaram as partes que pretendem atribuir a este documento e à letra de câmbio, cujo pacto de preenchimento se encontra supra enunciado, a natureza de título executivo, podendo a primeira outorgante incluir nos valores a preencher na letra, todo e qualquer valor que se encontrar em mora, quer corresponda a qualquer valor aqui enunciado, como outros correspondentes a qualquer fornecimento posterior, juros ou despesas bancárias, sem necessidade de qualquer tipo de interpelação admonitória prévia.
CLÁUSULA SEXTA - O presente contrato é válido por tempo indeterminado, e não pode ser por qualquer uma das partes denunciado, enquanto a primeira e segunda outorgantes mantiverem relações comerciais. (…)”.
2. A exequente forneceu à 1ª executada as coisas descritas nas facturas emitidas em 22-VI-18, 9-VII-18, 27-VII-18, 10-VIII-18, 10-VIII-18, 10-VIII-18, 5-IX-18, 5-IX-18, 11-IX-18, 14-IX-18, 28-IX-18, 28-IX-18, 11-X-18, 16-X-18, 26-X-18 e 31-X-18 (juntas com o r.e., e cujos teores se dão aqui por reproduzidos).
3. A 1ª executada pagou 7.606,63€ do valor supra, e a exequente emitiu, em nome da 1ª executada, as notas de crédito juntas com o r.e. (cujos teores se dão aqui por reproduzidos) – ficando em dívida o valor total de 167.076,07€.
4. Para pagamento, a 1ª executada aceitou diversas letras, com vencimentos em 11-VIII-18 (1.748,16€), 10-X-18 (1.840,64€), 10-XI-18 (1.519,53€), 11-XI-18 (1.200,00€), 12-XI-18 (1.200,00€), 12-XI-18 (1.200,00€ + 2.940,00€), 20-XI-18 (1.200,00€), 22-XI-18 (1.200,00€ + 3.360,00€), e 10-XII-18 (6.268,35€ + 3.294,91€ + 3.089,67€ + 2.965,42€).
5. Foram reformadas diversas letras: com vencimento em 10-XI-18, de 13.863,69€ para 2.772,74€; v. em 10-XII-18, de 6.268,35€ para 1.880,50€; v. em 12-XI-18, de 17.967,66€ para 3.593,53€; v. em 12-XI-18, de 6.792,02€ para 2.037,61€; v. em 20-XI-18, de 3.403,75€ para 1.701,87€; v. em 20-XI-18, de 7.163,82€ para 3.581,91€; v. em 20-XI-18, de 3.160,05€ para 1.580,02€; v. em 20-XI-18, de 3.765,62€ para 1.882,81€; v. em 20-XI-18, de 5.624,00€ para 2.812,24€; v. em 21-XI-18, de 3.399,74€ para 1.699,87€; v. em 22-XI-18, de 18.203,89€ para 9.101,94€; v. em 22-XI-18, de 12.447,77€ para 6.223,88€; v. em 22-XI-18, de 11.799,55€ para 5.899,77€; e v. em 22-XI-18, de 14.236,20€ para 7.118,10€ - tendo a 1ª executada efectuado pagamentos de 4.653,24€ e 7.500,00€.
6. Das operações bancárias efectuadas com desconto de letras e reformas resultaram para a exequente as despesas discriminadas nas facturas emitidas em 20-IX-18, 20-IX-18, 9-X-18 e 28-XI-18 (juntas com o r.e., e cujos teores se dão aqui por reproduzidos) – no valor total de 20.720,47€.
7. Até XI-18, a exequente forneceu à 1ª executada camisas, e suportou despesas bancárias – e, para pagamento, recebeu letras com vencimentos em 11-XII-18, 12-XII-18, 20-XII-18, 21-XII-18, 22-XII-18, 10-I-19, 12-I-19, 19-I-19, 20-I-19, 21-I-19, e 22-I-19.
8. Em 30-XI-18 a exequente enviou à 1ª executada a ‘mensagem’ junta a fls. 480 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê: “(…) Só a título de amortizações não pagas, devem a quantia de 50.763,52€. A título de letras de câmbio não pagas à data do vencimento devem a quantia de 16.208,33€ (10.448,33€ + 5.760,00€). A título de despesas bancárias suportadas pela A com o giro das letras, devem a quantia de 20.720,47€. Tudo isto, sem esquecer que, a vossa conta corrente apresenta um saldo devedor (não titulado) de 167.087,13€, bem assim um montante titulado por letras em circulação de 238.189,88€. No total a vossa conta é de 492.969,33€. (…)”.
9. Em 10-XII-18 a exequente preencheu a letra apresentada como título executivo – com o valor de 485.458,27€.
10. Em 11-XII-18 a exequente enviou aos 1ª e 2º executados a carta junta a fls. 477 a 479 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê:
“(…) À data, e conforme comunicações de 30/11/2018 e do próprio dia de ontem, enviadas por email, o montante da dívida fixa-se em 485.458,27€, e decorre da falta de pagamento do preço de fornecimentos, de despesas bancárias suportadas, de amortizações de letras não pagas, de letras não pagas à data do seu vencimento e de letras em circuito bancário sucessivamente por pagar às datas dos seus vencimentos. Assim, procedemos ao preenchimento da letra com aposição do montante em dívida (…). (…)”.
11. Em 11-XII-18 a exequente enviou à 1ª executada a ‘mensagem’ junta a fls. 480 v (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
12. Em 13-XII-18 a 1ª executada enviou à exequente a carta junta a fls. 471 a 473 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – relativa a “Denúncia do Acordo de 2015 entre as Partes/Preenchimento de Letra Apresentação para Pagamento”, e onde se lê:
“(…) As letras que não foram pagas em outubro e novembro (…) totalizam o montante de €14.460,17. As reformas de letra (…) perfazem €58.683,88, (…). Existem também encargos com reformas de letras por pagar, ou sejam quatro facturas num total de €26.271,28. Existem facturas de mercadorias por titular no montante de €163.333,38. Por fim, temos o montante de €218.614,23 do total de letras emitidas. (…)”
13. Os montantes mencionados nas letras vencidas em 11-XII-18 (1.470,00€), 11-XII-18 (1.470,00€), 12-XII-18 (9.540,37€), 12-XII-18 (8.000,00€), 12-XII-18 (2.940,00€), 12-XII-18 (10.969,01€), 20-XII-18 (19.050,04€), 20-XII-18 (7.163,82€), e 20-XII-18 (3.294,91€) foram pagos (pela embargada às endossatárias).
14. Em 25-VI-19 a 1ª executada emitiu o ‘Extracto de Terceiro’ junto a fls. 17v a 39v – indicando um ‘saldo’ de 376.742,88€ (em 30-VI-19).
15. Em 2-IX-19 foi junta ao processo 2576/19.0T8STS a ‘Lista Provisória de Créditos’ junta a fls. 216 a 231 – incluindo os reclamados pela ora exequente, no valor total (reconhecido) de 376.693,99€.
16. Em XII-19 a 1ª executada apresentou no processo supra o “Plano de Recuperação e Reestruturação do Passivo” junto a fls. 128v a 148 – homologado por sentença de 8-III-20 (fls. 177 a 189), confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Porto de 14-VII-20 (fls. 290v a 305).
17. Após pagamentos na pendência da execução, a embargada considera que o capital actualmente em dívida é de 376.693,99€.
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O Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos:
18 - A falta de pagamento atempado dos créditos vencidos deveu-se a dificuldades de tesouraria, em grande parte causadas pela quebra de vendas ocorrida em 2018, devido às alterações climáticas verificadas nesse ano.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.2.1 Da Impugnação da matéria de facto
Estabelece o art.º 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Ao assim dispor, pretendeu o legislador que a Relação fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto.
Dispõe o art.º 640º, n.º 1 do CPC:
“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
À luz do normativo transcrito afere-se que, em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
Fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados (existem três tipos de meios de prova: os que constam do próprio processo – documentos ou confissões reduzidas a escrito -; os que nele ficaram registados por escrito – depoimentos antecipadamente prestados ou prestados por carta, mas que não foi possível gravar -; os que foram oralmente produzidos perante o tribunal ou por carta e que ficaram gravados em sistema áudio ou vídeo), o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
O recorrente deve consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que se exige no contexto do ónus de alegação, de modo a evitar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.
De notar que a exigência de síntese final exerce a função de confrontar o recorrido com o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente – cf. António Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 201, nota 345.
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-05-2016, processo n. 1393/08.7YXLSB.L1-7[2] refere-se:
“É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum.”
A recorrente convoca para reapreciação os factos vertidos nos pontos 2., 4., 5. e 14. da matéria de facto provada e pretende o aditamento de um novo facto provado, indicando a prova em que assenta a sua convicção de que tais factos devem receber uma redacção distinta e se encontram provados, pelo que se passa à apreciação da matéria de facto impugnada.
Antes de se avançar no conhecimento da impugnação incidente sobre a decisão sobre matéria de facto, cumpre notar que, tal como se extrai claramente do preenchimento do requerimento executivo subjacente aos autos principais de que estes embargos constituem apenso - e resulta do relatório supra -, o título executivo dado à execução, conforme expressa indicação da exequente, é a letra de câmbio, com data de emissão de 13-10-2015 e vencimento em 10-12-2018, no valor de 485.458,27€, independentemente de, como veio a recorrente referir na motivação do recurso, as partes terem atribuído força executiva ao documento particular autenticado, por elas subscrito e intitulado de “Contrato de Reconhecimento de Dívida e de Fornecimento e Prestação de Serviços com constituição de Garantias Pessoais”, que consta dos autos de execução e em cuja cláusula Primeira, a B, se declarou devedora perante a exequente, ali primeira outorgante, do valor de 244.161,43€, quantia de que, e respectivos juros, os terceiros outorgantes, os aqui embargantes, se constituíram devedores e principais pagadores.
Assim, sem prejuízo de na apreciação dos factos impugnados se dever atender ao conteúdo de tal documento, não impugnado pelas partes, seguro é que não pode proceder a argumentação da apelante no sentido de, a verificar-se, tal como o tribunal recorrido entendeu, o preenchimento abusivo da letra de câmbio, sempre existiria título executivo para o prosseguimento da execução relativamente aos embargantes, com base naquele documento particular autenticado, porquanto não foi este o título executivo apresentado pela exequente, que apenas o convocou para enquadramento da relação material subjacente à emissão da letra em branco e não enquanto o próprio título executivo que pretendia dar à execução.
Passa-se, pois, à apreciação da impugnação da matéria de facto.
Ponto 2. da matéria de facto provada
O Tribunal recorrido deu como provado o seguinte:
2. A exequente forneceu à 1ª executada as coisas descritas nas facturas emitidas em 22-VI-18, 9-VII-18, 27-VII-18, 10-VIII-18, 10-VIII-18, 10-VIII-18, 5-IX-18, 5-IX-18, 11-IX-18, 14-IX-18, 28-IX-18, 28-IX-18, 11-X-18, 16-X-18, 26-X-18 e 31-X-18 (juntas com o r.e., e cujos teores se dão aqui por reproduzidos).
Entende a recorrente que o Tribunal a quo deveria ter consignado neste ponto a data de vencimento das facturas por ser essencial à decisão da causa, resultando das que foram juntas à execução, que se venciam nos 30 dias posteriores à sua emissão, pelo que se encontravam vencidas à data da instauração da execução, propondo que tal facto passe a ter a seguinte redacção: “A exequente forneceu à 1ª executada as coisas descritas nas facturas emitidas em 22-VI-18, 9-VII-18, 27-VII-18, 10-VIII-18, 10-VIII-18, 10-VIII-18, 5-IX-18, 5-IX-18, 11-IX-18, 14-IX-18, 28-IX-18, 28-IX-18, 11-X-18, 16-X-18, 26-X-18 e 31-X-18 e já vencidas aquando da instauração da execução e do preenchimento da letra (juntas com o r.e., e cujos teores se dão aqui por reproduzidos).”
Os embargantes/recorridos referem a este propósito terem sido apresentadas provas em julgamento dos pagamentos, não tendo a exequente feito prova do incumprimento que justificasse o preenchimento da letra, para além de não ter demonstrado que facturas correspondem a que letras, tendo estas sido pagas, reformadas e amortizadas.
O fundamento da oposição dos embargantes à execução reside no preenchimento abusivo da letra em branco, em violação do previsto no pacto de preenchimento, que se encontra vertido no quarto parágrafo da Cláusula Terceira e na Cláusula Quinta do contrato referido no ponto 1. da matéria de facto, de onde resultam segundo aqueles, que a letra apenas poderia ser preenchida pelo montante «devido», daí que não pudessem ter sido tidas em conta quantias atinentes a letras com vencimento posterior a 10 de Dezembro de 2018, que ainda não eram devidas, o que corresponderia a um valor de 221.346,90€[3]; mais alegaram que a exequente/embargada apenas pagou às instituições bancárias a quem endossou letras, a quantia de 16.208,33€, valor este que podia ser inscrito na letra em branco; além disso, referiram a realização de pagamentos de modo que, mesmo considerando as letras vencidas e vincendas, o valor em dívida seria de 376.742,88€.
Já em sede de contra-alegações, os embargantes/recorridos vêm colocar a questão sob outra perspectiva, referindo que “as relações comerciais entre as partes” se mantinham, “não havendo fundamento para a invocada perda do benefício do prazo”, não existindo prova do incumprimento pelos recorridos que justificasse o preenchimento da letra, pois que as letras para pagamento das facturas, dentro do prazo de vencimento destas, altera a data de vencimento da obrigação de pagamento, daí que, ao que se depreende, venham sustentar que não existiam valores vencidos à data do preenchimento da letra exequenda.
Para análise dos factos impugnados, cumpre esclarecer o modo como decorriam as relações comerciais entre as partes.
Conforme se pode retirar do depoimento das testemunhas JG, director financeiro da A, Lda., a exercer funções nesta empresa desde 2000 e RS, director do departamento de compras na B, desde 2001 e declarações de parte do executado/embargante D, administrador da B, esta empresa, que se dedica à comercialização de peças de vestuário, com a marca comercial Mike Davis, que lhe pertence e a exequente, empresa que se dedica à indústria e comercialização de vestuário, principalmente camisas e blusas, vinham mantendo relações comerciais há algum tempo, procedendo a A, Lda. ao fornecimento de peças de vestuário à B, mediante o pagamento do respectivo preço, sendo que, seja pelo aumento do nível de negócio, seja pelas consequentes dificuldades no cumprimento da obrigação de pagamento do preço, teve lugar a celebração do acordo referido no ponto 1. da matéria de facto para permitir o desenvolvimento dessa actividade.
Como explicaram as testemunhas, o meio utilizado para pagamento das facturas emitidas foi sempre o aceite de letras, com prazos de pagamento, inicialmente a 90 dias, depois 120 dias, sucedendo que as letras iam sendo reformadas, algumas com amortização, outras sem amortização, assumindo a B a responsabilidade pelo pagamento das despesas. Era esse o modo como a relação comercial funcionava. Aliás, também a testemunha LT, funcionária da B desde 1-07-1998, a exercer funções na área de contabilidade e financeira, explicou que por cada fornecimento normalmente eram emitidas letras, sempre com o compromisso prévio de não ser ultrapassado o valor de 500 mil euros; a empresa emitia as letras, que seriam pagas no vencimento ou reformadas, conforme a tesouraria da empresa, ou seja, na data de vencimento, se tivesse encaixe financeiro, a letra era liquidada; se não, era solicitada a reforma, pagavam a amortização e a letra seguinte seria a mais 30, 60 ou 90 dias, consoante a amortização feita, de modo que o fornecimento de mercadoria nunca poderia originar uma dívida superior a 500 mil euros – cf. minuto 1.45 e seguintes e 5.40 e seguintes do seu depoimento.
O declarante D explicou, precisamente, o circunstancialismo subjacente à assinatura do mencionado contrato, face ao aumento do nível do negócio, atingindo um valor pecuniário já relevante, daí que tivessem negociado os termos daquele contrato para fixar os procedimentos a adoptar, ou seja, para que a B pudesse realizar o seu negócio, beneficiando de crédito junto da A, Lda., para o que os responsáveis daquela aceitaram a responsabilidade pessoal pelo pagamento de valores devidos até ao montante de 500 mil euros, de modo a “acompanhar o crescimento da empresa” – cf. minuto 10.00 e seguintes das declarações de D.
Também a testemunha RS mencionou a existência de uma “dívida corrente a funcionar normalmente”, sendo com base nesse acordo que a relação comercial funcionava, ou seja, existia um acordo para múltiplos fornecimentos, que podiam atingir cerca de meio milhão de euros, isto é, seria este o plafond para a compra anual, existindo um relacionamento constante com entregas mensais de peças, funcionando com base nesse valor de compras anual, o que constituía um mecanismo para a B poder trabalhar sem estar preocupada até esse volume de compra anual – cf. minuto 1.50 e seguintes e 4.35 e seguintes do seu depoimento.
Subjacente ao depoimento de todas estas testemunhas está a existência de fornecimentos da exequente à B, para cuja garantia de pagamento do preço correspondente as partes gizaram um acordo em que asseguravam que os legais representantes daquela assumiam, como principais pagadores, o valor em dívida até ao limite de 500 mil euros, ou seja, a partir deste valor o património destes não garantiria o pagamento.
Também decorre dos depoimentos e das próprias declarações de parte, que os fornecimentos existiram e que à data da subscrição da letra (10-12-2018) eram devidos à exequente cerca de 480 mil euros, sejam representados pelas facturas ou pela emissão de letras, reformas, despesas bancárias, entre o mais, embora, segundo a versão dos embargantes, não se tratasse de uma dívida totalmente vencida.
Como referiu a testemunha LT, “dever, a empresa devia esse valor”, mas existia dívida titulada e não titulada, sendo que o valor vencido seria apenas de cerca de 60 mil euros, pois que os demais valores estavam titulados (por letras, depreende-se) e vencer-se-iam posteriormente.
Como resulta das Cláusulas Terceira e Quinta do contrato, em sede de pacto de preenchimento, a letra em branco, avalizada pelos representantes da sociedade aceitante, a B, foi emitida e avalizada precisamente para garantir o efectivo pagamento das obrigações assumidas por esta empresa perante a exequente, seja relativamente aos valores já vencidos à data da celebração do contrato, seja relativamente a obrigações futuras, pois que os outorgantes C  e  D  se obrigaram como principais pagadores relativamente a todas as obrigações assumidas, constituídas ou a constituir, sejam decorrentes do preço de fornecimentos, juros, indemnizações ou outros, até ao montante de 500 mil euros, tendo autorizado a exequente a preencher a letra “pelo valor que lhe for devido”, no “caso de falta de cumprimento de qualquer obrigação assumida” pela B junto da A, Lda..
No valor a apor na letra emitida em branco, estava a exequente autorizada a incluir “todo e qualquer valor que se encontrar em mora”, ainda que corresponda a fornecimentos posteriores, juros ou despesas bancárias” (cf. Cláusula Quinta).
Assim, em discussão nos autos está saber se o preenchimento da letra em branco, ora dada à execução, observou os pressupostos subjacentes ao pacto de preenchimento, designadamente, saber se o valor nela inscrito correspondia ou não a valores “em mora” por falta de cumprimento pela B de alguma das obrigações que assumiu perante a A, Lda..
Feito este enquadramento, verifica-se que a questão suscitada pela recorrente a propósito do ponto 2. da matéria de facto provada está associada ao vencimento das facturas e à sua eventual elegibilidade para integrar o valor inscrito na letra pela exequente, pelo que a data de vencimento das facturas poderá relevar para se apurar se o seu pagamento era então exigível, tendo presente que foi referido pelas testemunhas a existência de facturas não tituladas por letras.
Tal como a apelante sustenta, as facturas indicadas nesse ponto, que foram juntas com o requerimento executivo e correspondem às facturas cujos números de terminação são os 520, 604, 672, 716, 725, 726, 728, 729, 737, 748, 797, 798, 820, 835, 870 e 880[4], contêm a indicação de pagamento a 30 dias, pelo que nada obsta a que seja aditado esse elemento ao facto provado, que passará a ter a seguinte redacção:
2. A exequente forneceu à 1ª executada as coisas descritas nas facturas emitidas em 22-VI-18, 9-VII-18, 27-VII-18, 10-VIII-18, 10-VIII-18, 10-VIII-18, 5-IX-18, 5-IX-18, 11-IX-18, 14-IX-18, 28-IX-18, 28-IX-18, 11-X-18, 16-X-18, 26-X-18 e 31-X-18, todas com pagamento a 30 dias após a data da sua emissão (juntas com o r.e., e cujos teores se dão aqui por reproduzidos).
Ponto 4. dos Factos Provados
A 1ª instância deu como provado o seguinte:
4. Para pagamento, a 1ª executada aceitou diversas letras, com vencimentos em 11-VIII-18 (1.748,16€), 10-X-18 (1.840,64€), 10-XI-18 (1.519,53€), 11-XI-18 (1.200,00€), 12-XI-18 (1.200,00€), 12-XI-18 (1.200,00€ + 2.940,00€), 20-XI-18 (1.200,00€), 22-XI-18 (1.200,00€ + 3.360,00€), e 10-XII-18 (6.268,35€ + 3.294,91€ + 3.089,67€ + 2.965,42€).
Alega a recorrente que as letras referidas neste ponto visaram dar pagamento a fornecimentos anteriores aos referidos no ponto 2., pelo que o não pagamento na sua data de vencimento implicou uma dívida de 33.044,31€ e, conforme acordado, podia ser atendida no valor a preencher na livrança, para o que invoca o depoimento da testemunha JG, que explicou que as facturas desde Junho de 2018 não estavam tituladas e que as letras em circulação eram para pagar facturas mais antigas, pelo que propõe que o ponto 4. passe a ter a seguinte redacção: “Para pagamento de facturas de fornecimentos anteriores às referidas em 2., a 1ª executada aceitou diversas letras, com vencimentos em 11-VIII-18 (1.748,16€), 10-X-18 (1.840,64€), 10-XI-18 (1.519,53€), 11-XI-18 (1.200,00€), 12-XI-18 (1.200,00€), 12-XI-18 (1.200,00€ + 2.940,00€), 20-XI-18 (1.200,00€), 22-XI-18 (1.200,00€ + 3.360,00€), e 10-XII-18 (6.268,35€ + 3.294,91€ + 3.089,67€ + 2.965,42€)”.
Os embargantes/recorridos sustentam que tal não corresponde à verdade, sendo que a testemunha JG apenas declarou que quando a executada deixou de emitir letras havia facturas por pagar desde Junho de 2018, resolvendo passar o problema para a gerência, pelo que não tinha conhecimento directo sobre se tinham sido emitidas novas letras ou reformadas e amortizadas as anteriores.
Na verdade, da leitura sequencial dos pontos 2. a 4. parece resultar que o Tribunal recorrido considerou que as letras ali identificadas foram emitidas para pagamento dos fornecimentos referidos em 2., embora no ponto 3. se mencione que, após a consideração das notas de crédito aí mencionadas e pagamento efectuado, ficou em dívida o valor de 167.076,07€ referente a tais facturas.
A este propósito convém ter presente, para além do depoimento da testemunha JG, o depoimento de PN, contabilista, que trabalha para a A, Lda. há 6 anos e meio, executando funções de classificação de todos os documentos, controlo dos meios de pagamento, facturas, notas débito, efectuando os movimentos entre as duas empresas, em conta-corrente, e apuramento de saldo.
Esta testemunha explicou que a conta-corrente se reporta a facturas e que por cada fornecimento/factura não era entregue uma letra, isto é, não existiam letras emitidas e direccionadas para uma factura, pois muitas vezes a B emitia um conjunto de letras com valores que poderiam, eventualmente, coincidir com o valor de facturas, esclarecendo que a conta-corrente apurada em Dezembro de 2018 relativa a fornecimentos e facturas, ou seja, aquelas identificadas no ponto 2., se encontravam vencidas e relativamente a elas não tinha sido emitida nenhuma letra, não estando os valores ali mencionados titulados por qualquer tipo de documento. Mais esclareceu que na conta-corrente em causa as facturas não estão tituladas por nada, sucedendo que à medida que as facturas são tituladas transitam de uma “conta-corrente normal” para uma “conta-corrente de letras a desconto”, e depois as letras a desconto transitam para a “conta-corrente de letras descontadas e ainda não pagas”, sendo que foi do apuramento de todos estes valores (facturas vencidas, letras descontadas na banca, entre o mais) que obtiveram o valor em dívida de cerca de 485 mil euros. Referiu também que as letras descontadas na banca tinham vencimento posterior a 10-12-2018, mas já estavam descontadas, e não tinham sido pagas, ascendendo a um valor na ordem dos 220 mil euros – cf. minuto 14.06 e seguintes; 18.03 e seguintes; 21.20 e seguintes do seu depoimento.
Tenha-se presente, porque pertinente a este propósito, que a testemunha RS confirmou que sempre trabalharam com base no aceite de letras como meio de pagamento das mercadorias – facto também confirmado pela testemunha JG (cf. minuto 3.10) -, sustentando que a dívida vencida era de apenas 60 mil euros, por amortizações vencidas, porquanto existia um volume de letras na mão da A, Lda. que ainda não estavam vencidas, mas não deixou de reconhecer que em 10-12-2018 existia uma dívida de cerca de 400 mil e tal euros; de igual modo, confirmou que, não obstante o mencionado plafond de 500 mil euros, a B tinha de pagar as facturas na respectiva data de vencimento; sendo emitidas letras, estas teriam de ser pagas na sua data de vencimento e se tal não sucedesse, tinha de se proceder à sua «reforma», assim como tinha de pagar as amortizações das «reformas», sendo muito claro ao referir que o plafond de 500 mil euros não significava que até esse montante a empresa não tinha de pagar, sucedendo apenas que o modo de trabalhar sempre foi o de obterem fornecimentos até o valor de 500 mil euros, irem emitindo letras, sendo feitas reformas e amortizações e trabalhavam nessa base – cf. minutos 10.51 e seguintes; 14-01 e seguintes e 16-20 e seguintes do seu depoimento.
Assim, o que resultou provado no ponto 2. foi a emissão daquelas concretas facturas, pelos valores indicados e com data de vencimento a 30 dias, e que desse valor, como resulta do ponto 3., se encontra em dívida o montante 167.076,07€.
Tal como emerge do teor do requerimento executivo, para além dessa dívida, a exequente identifica uma outra que corresponde a letras vencidas entre 11 de Agosto de 2018 e 10 de Dezembro de 2018, que não foram pagas, cujos valores são essencialmente os reproduzidos no ponto 4., estando em dívida a esse título 33.042,31€, valor esse que foi expressamente mencionado como sendo o correspondente a letras vencidas e não pagas, pela testemunha PN– cf. minuto 4.00 e seguintes do seu depoimento.
Ora, ao contrário do sustentado pelos apelados, a testemunha JG, foi muito clara ao referir que, na parte final, ou seja, no final do ano de 2018, tinham facturas vencidas desde Junho relativamente às quais B não aceitou letras, daí que, as letras mencionadas no ponto 4. não possam ser associadas à facturação descrita no ponto 2., tratando-se sim de letras que se reportavam ao pagamento de facturas mais antigas, como aquela testemunha afirmou com clareza e segurança – cf. minuto 7.07 e seguintes do seu depoimento.
Por outro lado, a própria B reconheceu na carta que dirigiu à exequente, com data de 13 de Dezembro de 2018, junta aos autos na sessão da audiência de julgamento de 20 de Junho de 2023[5], que em Outubro e Novembro de 2018 não foram pagas letras que totalizam 14.460,17€, valor que coincide, note-se, com o total das letras identificadas no ponto 4., com vencimento em Outubro e Novembro daquele ano, sendo que, simultaneamente, ali se reconhece que existem facturas de mercadoria por titular, no montante de 163.333,38€, valor muito próximo do que é referido em 2. e 3., daí que saia reforçada a convicção de que as letras mencionadas em 4. não se destinaram ao pagamento das facturas referidas em 2..
Assim, importa clarificar a redacção do ponto 4. e corrigir a referência aos valores das letras em causa onde se detectam alguns lapsos, pelo que o ponto 4. passa a ter a seguinte redacção:
4. Para pagamento de diversos fornecimentos de mercadorias anteriores aos vertidos nas facturas identificadas em 2., a executada B aceitou diversas letras, que entregou à exequente, e que não vieram a ser pagas na data do seu vencimento, num total de 33 042,31 €: letras com vencimentos em 11-VIII-18 (1.748,16€), 10-X-18 (1.840,64€), 10-XI-18 (1.519,53€), 11-XI-18 (1.200,00€), 12-XI-18 (1.200,00€ + 2.940,00€), 20-XI-18 (1.200,00€), 22-XI-18 (1.200,00€ + 3.360,00€) e 10-XII-18 (6.268,35€ + 3.294,91€ + 1215,63€ + 3.089,67€ + 2.965,42€).
Ponto 5. dos Factos Provados
O Tribunal recorrido deu como provado o seguinte:
5. Foram reformadas diversas letras: com vencimento em 10-XI-18, de 13.863,69€ para 2.772,74€; v. em 10-XII-18, de 6.268,35€ para 1.880,50€; v. em 12-XI-18, de 17.967,66€ para 3.593,53€; v. em 12-XI-18, de 6.792,02€ para 2.037,61€; v. em 20-XI-18, de 3.403,75€ para 1.701,87€; v. em 20-XI-18, de 7.163,82€ para 3.581,91€; v. em 20-XI-18, de 3.160,05€ para 1.580,02€; v. em 20-XI-18, de 3.765,62€ para 1.882,81€; v. em 20-XI-18, de 5.624,00€ para 2.812,24€; v. em 21-XI-18, de 3.399,74€ para 1.699,87€; v. em 22-XI-18, de 18.203,89€ para 9.101,94€; v. em 22-XI-18, de 12.447,77€ para 6.223,88€; v. em 22-XI-18, de 11.799,55€ para 5.899,77€; e v. em 22-XI-18, de 14.236,20€ para 7.118,10€ - tendo a 1ª executada efectuado pagamentos de 4.653,24€ e 7.500,00€.
Entende a apelante que este ponto omite o facto de as amortizações das letras não terem sido pagas pela B, num valor global de 43 263,52 €, o que emerge da comunicação dirigida por aquela à exequente e que faz prova plena contra a declarante, por lhe ser desfavorável, pelo que do ponto 5. deve constar o seguinte: “Foram reformadas diversas letras: com vencimento em 10-XI-18, de 13.863,69€ para 2.772,74€; v. em 10-XII-18, de 6.268,35€ para 1.880,50€; v. em 12-XI-18, de 17.967,66€ para 3.593,53€; v. em 12-XI-18, de 6.792,02€ para 2.037,61€; v. em 20-XI-18, de 3.403,75€ para 1.701,87€; v. em 20-XI-18, de 7.163,82€ para 3.581,91€; v. em 20-XI-18, de 3.160,05€ para 1.580,02€; v. em 20-XI-18, de 3.765,62€ para 1.882,81€; v. em 20-XI-18, de 5.624,00€ para 2.812,24€; v. em 21-XI-18, de 3.399,74€ para 1.699,87€; v. em 22-XI-18, de 18.203,89€ para 9.101,94€; v. em 22-XI-18, de 12.447,77€ para 6.223,88€; v. em 22-XI-18, de 11.799,55€ para 5.899,77€; e v. em 22-XI-18, de 14.236,20€ para 7.118,10€, letras essas que não foram amortizadas pela 1ª executada no montante total de 43.263,52€, valor esse que já tem subtraídos os pagamentos de 4.653,24€ e 7.500,00€.”
Os apelados argumentam que o tribunal não desconsiderou a existência de amortizações por pagar, como foi referido pelas testemunhas JG, LT e PN e o documento particular invocado não pode fazer prova plena da existência de um valor de 43 mil euros, pois que esse valor não é mencionado em nenhum momento e não prova o pretendido pela recorrente.
Da prova testemunhal produzida resulta claro que existiam amortizações de reformas de letras não pagas, tendo a testemunha RS mencionado que à data do preenchimento da letra seria um valor inferior (relativamente ao valor da letra), de cerca de 60 mil euros (cf. minuto 10.51 e seguintes do seu depoimento); também a testemunha PN confirmou a existência de valores atinentes a amortizações de reformas de letra por pagar, assim como a testemunha JG disse que no valor inscrito na letra foram considerados diversos valores em dívida, entre eles, amortizações por pagar, no montante de 43.263,52€ (cf. minuto 10.45 e seguintes do seu depoimento).
O documento particular junto em audiência - a carta dirigida pela B  à A, Lda. com data de 13 de Dezembro de 2018 - mostra-se subscrito pela administração da B, relativamente a quem a execução foi extinta e extintos também os embargos, por inutilidade superveniente, pelo que a declaração dele constante, ainda que desfavorável à B e, por consequência, aos seus legais representantes que se assumiram principais pagadores, não pode valer como confissão relativamente a estes.
A confissão corresponde ao “reconhecimento da realidade dum facto (passado, ou presente duradoiro) desfavorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu dever ou sujeição, extintivo ou impeditivo dum seu direito ou modificativo duma situação jurídica em sentido contrário ao seu interesse, ou, ao invés, a negação da realidade dum facto favorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu direito, extintivo ou impeditivo dum seu dever ou sujeição ou modificativo duma situação jurídica no sentido do seu interesse” – cf. José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, Volume I, 2ª Edição Revista e Actualizada, Ana Prata (Coord.), pág. 471.
A confissão extrajudicial terá força probatória plena quando conste de documento, autêntico ou particular (subscrito pelo confitente), e seja feita à parte contrária ou a quem a represente – cf. art.º 358º, n.º 2 do Código Civil.
Dado que os aqui embargantes, pessoas singulares, não subscreveram, nessa qualidade, a mencionada carta, ainda que se esteja perante uma responsabilidade solidária, o reconhecimento daqueles valores em dívida efectuado pela sociedade B cinge-se à posição desta, não afectando os demais responsáveis – cf. art.º 353º, n.º 2 do Código Civil.
Contudo, não se deixará de atender ao conteúdo de tal missiva, enquanto meio de prova sujeito à livre apreciação do Tribunal, dali decorrendo, em conjugação com os depoimentos a que se acima se aludiu, que existia, efectivamente, um valor em dívida atinente a amortizações que não foram pagas, que se cifrava então, como referiu a testemunha JG, no valor de 43.263,52€.
Assim, o ponto 5. dos factos provados passará a ter a seguinte redacção:
5. Foram reformadas diversas letras: com vencimento em 10-XI-18, de 13.863,69€ para 2.772,74€; v. em 10-XII-18, de 6.268,35€ para 1.880,50€; v. em 12-XI-18, de 17.967,66€ para 3.593,53€; v. em 12-XI-18, de 6.792,02€ para 2.037,61€; v. em 20-XI-18, de 3.403,75€ para 1.701,87€; v. em 20-XI-18, de 7.163,82€ para 3.581,91€; v. em 20-XI-18, de 3.160,05€ para 1.580,02€; v. em 20-XI-18, de 3.765,62€ para 1.882,81€; v. em 20-XI-18, de 5.624,00€ para 2.812,24€; v. em 21-XI-18, de 3.399,74€ para 1.699,87€; v. em 22-XI-18, de 18.203,89€ para 9.101,94€; v. em 22-XI-18, de 12.447,77€ para 6.223,88€; v. em 22-XI-18, de 11.799,55€ para 5.899,77€; e v. em 22-XI-18, de 14.236,20€ para 7.118,10€, relativamente às quais a B efectuou os pagamentos de 4.653,24€ e 7.500,00€, não tendo amortizado um valor total de 43 263,52€.
Ponto 14. dos Factos Provados
O Tribunal recorrido deu como provado o seguinte:
14. Em 25-VI-19 a 1ª executada emitiu o ‘Extracto de Terceiro’ junto a fls. 17v a 39v – indicando um ‘saldo’ de 376.742,88€ (em 30-VI-19).
Entende a apelante que a redacção deste ponto deve fazer referência ao saldo em dívida pela B na data do preenchimento da letra, que, conforme se extrai do extracto em causa, era, em 10 de Dezembro de 2018, de 493.124,86€, propondo a seguinte redacção: “Em 25-VI-19 a 1ª executada emitiu o ‘Extracto de Terceiro’ junto a fls. 17v a 39v – indicando um ‘saldo’ de 376.742,88€ (em 30-VI-19) e um saldo de 493.124,86€ na data do preenchimento da letra (em 10-XII-18).”
Os recorridos referem que depois do requerimento foram feitos pagamentos, pelo que o valor correcto é o de 376.742,88€.
O ponto 14. baseou-se no documento nele mencionado e que constitui um documento contabilístico atinente ao extracto de conta referente à B, sendo que foi apenas dado como provado o valor que surge nesse extracto, sem que do texto se retire qualquer afirmação sobre a correspondência desse valor com o efectivo valor em dívida.
De todo o modo, porquanto aquilo que releva é apurar o valor em dívida, ou melhor, em mora, à data do preenchimento da letra, nada obsta a que se introduza o aditamento pretendido pela apelante, enquanto mera reprodução daquilo que consta do documento.
Assim, o ponto 14. passa a ter a seguinte redacção:
14. Em 25-VI-19 a B emitiu o ‘Extracto de Terceiro’ junto a fls. 17v a 39v indicando um ‘saldo’ de 376.742,88€, à data de 30 de Junho de 2019 e um saldo de 493.124,86 € à data de 10 de Dezembro de 2018.
Facto a aditar
Pretende ainda a apelante que seja aditado à matéria de facto provada o seguinte facto: “No momento do preenchimento da letra dada à execução havia dívida vencida e não paga por parte da 1ª executada à exequente.”
Sustenta que resulta do depoimento das testemunhas RS e LT que existiam valores de fornecimentos de mercadorias que ascendiam a mais de 400 mil euros e amortizações e valores vencidos, o que foi admitido pelos embargantes na sua petição inicial.
Aquilo que a apelante pretende introduzir nos factos provados assume uma natureza conclusiva, ou seja, saber se existiam valores vencidos e não pagos à data do preenchimento da letra é uma conclusão a retirar de elementos de facto que revelem quais os valores vencidos e não pagos nessa data, ou seja, a partir dos demais factos apurados, designadamente daqueles que foram impugnados e a cuja análise se procedeu supra.
Acresce que afirmar aquilo que pretende a apelante nenhuma utilidade teria para a apreciação do mérito da causa, pois que em nada auxiliaria para efeitos de se apurar se o valor inscrito na letra era ou não devido à data do seu preenchimento, seja na sua totalidade, seja parcialmente.
Como tal, improcede, nesta parte, a pretensão impugnatória em sede de matéria de facto:
Assim, os factos que foram objecto de modificação são os seguintes:
2. A exequente forneceu à 1ª executada as coisas descritas nas facturas emitidas em 22-VI-18, 9-VII-18, 27-VII-18, 10-VIII-18, 10-VIII-18, 10-VIII-18, 5-IX-18, 5-IX-18, 11-IX-18, 14-IX-18, 28-IX-18, 28-IX-18, 11-X-18, 16-X-18, 26-X-18 e 31-X-18, todas com pagamento a 30 dias após a data da sua emissão (juntas com o r.e., e cujos teores se dão aqui por reproduzidos).
4. Para pagamento de diversos fornecimentos de mercadorias anteriores aos vertidos nas facturas identificadas em 2., a executada B aceitou diversas letras, que entregou à exequente, e que não vieram a ser pagas na data do seu vencimento, num total de 33 042,31 €: letras com vencimentos em 11-VIII-18 (1.748,16€), 10-X-18 (1.840,64€), 10-XI-18 (1.519,53€), 11-XI-18 (1.200,00€), 12-XI-18 (1.200,00€ + 2.940,00€), 20-XI-18 (1.200,00€), 22-XI-18 (1.200,00€ + 3.360,00€) e 10-XII-18 (6.268,35€ + 3.294,91€ + 1215,63€ + 3.089,67€ + 2.965,42€).
5. Foram reformadas diversas letras: com vencimento em 10-XI-18, de 13.863,69€ para 2.772,74€; v. em 10-XII-18, de 6.268,35€ para 1.880,50€; v. em 12-XI-18, de 17.967,66€ para 3.593,53€; v. em 12-XI-18, de 6.792,02€ para 2.037,61€; v. em 20-XI-18, de 3.403,75€ para 1.701,87€; v. em 20-XI-18, de 7.163,82€ para 3.581,91€; v. em 20-XI-18, de 3.160,05€ para 1.580,02€; v. em 20-XI-18, de 3.765,62€ para 1.882,81€; v. em 20-XI-18, de 5.624,00€ para 2.812,24€; v. em 21-XI-18, de 3.399,74€ para 1.699,87€; v. em 22-XI-18, de 18.203,89€ para 9.101,94€; v. em 22-XI-18, de 12.447,77€ para 6.223,88€; v. em 22-XI-18, de 11.799,55€ para 5.899,77€; e v. em 22-XI-18, de 14.236,20€ para 7.118,10€, relativamente às quais a B efectuou os pagamentos de 4.653,24€ e 7.500,00€, não tendo amortizado um valor total de 43.263,52€.
14. Em 25-VI-19 a B emitiu o ‘Extracto de Terceiro’ junto a fls. 17v a 39v indicando um ‘saldo’ de 376.742,88€, à data de 30 de Junho de 2019 e um saldo de 493.124,86€ à data de 10 de Dezembro de 2018.
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3.2.2. Do abuso no preenchimento da letra em branco
A exequente instaurou a execução de que os presentes embargos de executado constituem apenso alegando ter celebrado com a sociedade B  um contrato mediante o qual lhe vendeu diversos artigos têxteis, sendo que, para pagamento do preço das mercadorias, a sociedade compradora aceitou diversas letras de câmbio à exequente, que foram sendo sucessivamente reformadas; apesar das reformas, o preço das mercadorias não foi integralmente pago, encontrando-se por pagar facturas, letras vencidas, amortizações e despesas bancárias, daí que tenha procedido ao preenchimento da letra que lhe foi entregue em branco, em garantia do cumprimento das obrigações assumidas pela B avalizada pelos embargantes, que apresenta como título executivo, com data de vencimento a 10 de Dezembro de 2018, e valor inscrito de 485.458,27€.
Os embargantes opuseram-se à execução referindo que a quantia inscrita na letra inclui valores relativos a letras que ainda não se encontravam vencidas à data do preenchimento, pelo que não eram devidos, não podendo a execução prosseguir ou, assim se não entendendo, devendo o valor não vencido – 221.346,90€ - ser excluído do título executivo; mais referiu que as letras foram endossadas a entidades bancárias, pelo que os respectivos direitos foram transmitidos para estas, sendo a exequente mera garante, aceitando apenas como valor suportado pela exequente o de 16.208,33€, acrescentando ainda que foram feitos pagamentos e que o valor em dívida à exequente é de apenas 376.742,88€.
A sentença recorrida apreciou a questão em referência nos seguintes termos:
“A única questão a decidir é a de saber se existiu “abuso de preenchimento” da letra pela embargada (sem prejuízo da eventual existência de um crédito) – e, por tanto, se esta pode valer como título executivo – alegando os embargantes que o valor das letras não vencidas (em 10-XII-18) não podia ter sido incluído na letra preenchida pela embargada; mais alegam que os valores das letras endossadas (pela embargada a instituições bancárias) não podiam ter sido incluídos na letra – salvo quanto às nove letras pagas pela embargada (ponto 13).
Respondeu a embargada que “o não pagamento de uma das mencionadas letras na data do seu vencimento faria vencer imediatamente, como fez, toda a dívida, sendo desde esse momento imediatamente exigível aos executados o montante global da dívida”, e “ainda que houvesse, coisa que não havia benefício do prazo a favor da executada, esta sempre o teria perdido (…) (conforme estipula o artigo 780º do C.C.).” – tendo a letra sido preenchida “pelo valor que lhe for devido”.
Importa começar por notar que o “contrato de fornecimento” (ponto 1) não foi formalmente (ponto 10) “denunciado” ou resolvido (apesar do aparente incumprimento da embargada, com o fim dos fornecimentos) – e nem o poderia ser, à luz da cláusula sexta, uma vez que as letras vincendas (entregues à embargada) significam que as “relações comerciais” se mantinham.
A embargada decidiu unilateralmente considerar vencidas as “prestações” (admitindo-se, como a embargada na contestação, que a entrega de letras para pagamento corresponde a uma forma de pagamento em prestações) – incluindo as tituladas por letras ainda não vencidas -, e preencher a letra – sendo certo que só poderia preencher a letra com valores “em mora”.
Não tendo sido denunciado ou resolvido o contrato, desconhece-se que incumprimento de qual das “prestações” foi considerado para implicar o “vencimento de todas” (CC 781º) – e não foi alegado ou demonstrado que “por causa imputável ao devedor, diminuírem as garantias do crédito ou não forem prestadas as garantias prometidas” (CC 780º/1).
Com a entrega de letras, e diferimento de pagamento aí explícito, o “prazo” foi estabelecido a favor da executada, e não podia a embargada “exigir o cumprimento imediato da obrigação” (CC 780º/1) – pelo que terá que concluir-se que o preenchimento da letra foi abusivo: ainda existiam “relação comerciais”, e não havia fundamento para a invocada “perda do benefício do prazo”.
A solução consignada na decisão recorrida assenta, ao que se depreende, no entendimento de que a entrega de letras para pagamento dos fornecimentos constituiu uma forma de pagamento em prestações e que a exequente/embargada decidiu unilateralmente considerar vencidas as “prestações”, incluindo as tituladas por letras ainda não vencidas, quando o contrato ainda não fora denunciado ou resolvido, nem podia ser, face à sua Cláusula Sexta, por se manterem as “relações comerciais”, não tendo sido apurado qual o incumprimento - e de que prestações - que teria originado o vencimento de todas, sem que estivesse alegado e demonstrado uma diminuição das garantias do crédito, convocando-se o estatuído nos art.ºs 781º e 780º, n.º 1 do Código Civil.
Nas suas alegações, a apelante sustenta que comunicou aos embargados o valor em dívida e montantes vencidos e não pagos, sendo que as facturas se venciam a trinta dias, para além de estes últimos terem admitido na sua petição inicial que existiam valores vencidos, estando provado o aceite de letras que não foram pagas (pontos 4. e 5.), facturas vencidas (ponto 2.) e despesas bancárias, o que a autorizava a preencher a letra em branco, como resulta do acordo celebrado e do art.º 781º do Código Civil, considerando que não tendo sido pagos os valores vencidos, se venceram a totalidade das obrigações; mais refere que ainda que se considere que a letra foi preenchida por um valor superior ao que se encontrava em dívida, tal não afecta a totalidade do título, que deve então ser objecto de redução.
Os apelados, por sua vez, sustentam que existiu abuso no preenchimento da letra porque o contrato não foi resolvido, nem podia ser, porque ainda existiam relações comerciais, não podendo ser exigida a totalidade da dívida, pelo que a decisão se deve manter.
Tal como resulta do despacho de fixação do objecto do litígio[6], a questão que importa resolver é a de saber se ocorreu, por parte da exequente, um preenchimento abusivo da letra dada à execução.
Os títulos de crédito, como é o caso da letra, constituem títulos executivos passíveis de basearem uma execução, atento o estatuído no art.º 703º, n.º 1, c) do CPC.
A mencionada alínea c) do n.º 1 do art.º 703º do CPC decompõe-se em duas normas com previsões distintas, quais sejam: à execução podem servir de base títulos de crédito e à execução podem servir de base títulos de créditos, meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.
Na primeira previsão estão em causa “documentos que incorporam certo direito de crédito – o crédito não existe sem o título -, caracterizados pela literalidade, autonomia e abstração. Eles valem nos estritos limites objetivos e subjetivos do que enunciam e independentemente das vicissitudes que afetem a relação subjacente que lhes dá causa. Por isso […] a causa de pedir da sua execução consiste no facto aquisitivo do direito à prestação pecuniária – cambiária, diga-se – e não a relação subjacente (causa debendi) correspondente a esse direito.” – cf. Rui Pinto, A Acção Executiva, 2019 Reimpressão, pág. 193.
É sabido que “o direito cartular pressupõe uma relação jurídica prévia e tem normalmente o mesmo conteúdo económico de um dos direitos que decorrem dessa relação jurídica. O título de crédito em confronto com a relação fundamental apresenta-se com uma feição unilateral: refere-se exclusivamente aos direitos de uma só das partes” – cf. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial - Letra de Câmbio, vol. III, pág. 8.
Uma das características do negócio cambiário, para além da formalidade, é a sua abstracção, ou seja, embora pressupondo uma relação jurídica anterior (subjacente ou fundamental), e podendo desempenhar uma diversidade de funções económico-jurídicas[7], é independente da sua causa, da função determinada que visa.
No entanto, embora seja abstracto, o negócio cambiário radica sempre numa causa, sucedendo apenas que esta é separada daquele, decorrendo não dele próprio, mas de uma convenção subjacente, extra-cartular, sendo que os vícios de que esta padeça não poderão ser opostos ao portador mediato de boa-fé, mas já o poderão ser ao portador imediato.
Nas relações imediatas tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, ficando sujeita às excepções que se fundamentam nessas relações pessoais.
Enquanto título de crédito, a letra incorpora um direito de crédito, o que implica que este direito não pode ser exercido sem a posse do documento. Assim, o crédito incorporado na letra existe independentemente do crédito causal que lhe serve de base e pode transmitir-se separadamente (autonomia do direito cartular).
Sucede que esta autonomia nem sempre é total no âmbito dos títulos de crédito, pois variará conforme o tipo de título.
Sendo o título executivo uma letra, quem nele se obriga, mediante a aposição da respectiva assinatura, assume a respectiva obrigação cambiária.
A letra de câmbio, cujo documento deve conter os dados indicados no art.º 1º da Lei Uniforme relativa a Letras e Livranças[8], é um título de crédito à ordem, sujeito a determinadas formalidades, pelo qual uma pessoa (sacador) ordena a outra (sacado) que lhe pague a si ou a terceiro (tomador) determinada importância, representando, pois, a forma de uma ordem de pagamento.
A letra incorpora um direito de crédito pecuniário, constituindo um título à ordem, ou seja, circula por endosso – cf. art.º 11º da LULL.
O saque é o negócio cambiário que cria o título. “É um negócio unilateral abstracto que tem por conteúdo uma ordem dirigida ao sacado para que pague uma quantia ao tomador ou à sua ordem e uma promessa dirigida ao tomador ou à sua ordem de que o sacado irá aceitar e pagar a letra e que, caso tal não suceda, o sacador pagará ele próprio.” – cf. Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial – Títulos de Crédito, AAFDL 1990, pág. 107.
É através do aceite (cf. art.º 21º da LULL) que o sacado se torna obrigado cambiário, assumindo a obrigação de pagar a letra. É o negócio jurídico cambiário, unilateral e abstracto, pelo qual o sacado aceita a ordem de pagamento que lhe foi dirigida pelo sacador e promete pagar a letra no vencimento ao tomador ou à sua ordem – cf. art.º 28º da LULL.
O art.º 30.º da LULL estabelece que o “pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval”.
O aval é o negócio cambiário unilateral e abstracto que tem por conteúdo uma promessa de pagar a letra e por função a garantia desse pagamento, tendo de ser prestado a favor de um dos obrigados – cf. art.ºs 30º e 31º da LULL.
O aval é garantia não subsidiária mas cumulativa, porque não goza do benefício de excussão prévia e o avalista responde solidariamente, nos termos do art.º 47º § 1º da LULL, introduzindo um novo valor patrimonial que acresce ao valor patrimonial de direito do crédito que é próprio da operação, garantindo-o.
É garantia cambiária do pagamento da letra e não obrigação de cumprimento da obrigação avalizada.
A maioria da doutrina tende a considerar o aval como uma garantia pessoal especial, distinta da fiança, materialmente autónoma (cf. art.º 32º, 2º parágrafo, primeira parte da LULL) e formalmente dependente (cf. art.º 32º, 2º parágrafo, segunda parte da LULL) da obrigação avalizada – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-05-2011, processo n.º 5903/09.34TVLSB.L1.S1.
Tendo os recorridos prestado o seu aval à sociedade aceitante da letra dada à execução, respondem da mesma forma que a pessoa afiançada, atento o estatuído no art.º 32º da LULL.
O avalista não é um obrigado cambiário posicionado ao lado do aceitante, garantindo, de forma puramente acessória, o crédito do legítimo portador do título sobre o aceitante. Na verdade, embora a medida da responsabilidade do avalista se defina pela do avalizado, o avalista é titular de uma obrigação cambiária materialmente autónoma da que vincula o avalizado, que vive e subsiste independentemente da obrigação deste.
Os embargantes, enquanto avalistas da sociedade sacada, respondem solidariamente com os demais obrigados (cf. art.º 47º, § 1º, da LULL).
A obrigação do avalista mantém-se ainda que a obrigação garantida seja “nula por qualquer razão que não seja um vício de forma” - cf. art.º 32º, § 2º da LULL.
Nas letras e livranças, o art.º 17º da LULL permite que ao portador que surge a cobrar o título possam ser opostas excepções decorrentes da relação subjacente que correlacione o demandado com o demandante.
De acordo com o disposto no art.º 728º do CPC o executado pode opor-se à execução, sendo que, quando esta não se baseie em sentença, pode alegar, para além dos fundamentos enunciados no art.º 729º do mesmo diploma legal, quaisquer outros que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração - cf. art.º 731º do CPC.
Os embargantes vieram precisamente sustentar que a letra dada à execução não pode servir como título de crédito, porquanto, tendo sido entregue em branco à exequente (conforme se retira do ponto 1. dos factos provados), esta procedeu ao seu preenchimento em desconformidade com o que resultava do acordo celebrado.
Estatui o art.º 10º da LULL que “Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.”
A letra em branco[9] configura-se como crédito cambiário que está correlacionado com uma autorização para completar a letra.
Simultaneamente à entrega do título, existirá a atribuição de poderes para o seu preenchimento (acordo ou pacto de preenchimento) mediante contrato entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária.
O contrato de preenchimento mais não é do que o acertar os termos da relação cambiária, a fixação do seu montante, o tempo de vencimento, e a estipulação dos juros, além de outros elementos, o que o avalista só pode questionar se, ao subscrevê-lo, tiver condicionado a esses termos a prestação da sua garantia - cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-01-2011, processo n.º 31/05 – 4TBVVD – B.G1.S1.
Tal sucede porque, em regra, ao momento da subscrição da letra em branco a dívida não se mostra apurada ou vencida.
Vencida e não cumprida a obrigação causal é preenchida a letra, que deverá ser paga na data do vencimento, sucedendo, contudo, que o beneficiário do título em branco assinado pelo subscritor e demais obrigados para em momento posterior a preencher, fica com a obrigação de o fazer nos precisos termos acordados, ou seja, estabelecer a quantia efectivamente em dívida e o respectivo prazo de pagamento.
Como refere Carolina Cunha[10], “a utilização do título em branco compreende-se como uma prestação de garantia num contexto de relativa incerteza. Supõe, normalmente, uma relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido […], ou no seio da qual se prevê como apenas eventual a constituição de um direito de crédito” e tem lugar sobretudo no contexto de relações duradouras com prestações pecuniárias, visando fazer face a um incumprimento.
Tendo existido um pacto de preenchimento de letra em branco em que os executados/embargantes foram parte interveniente, entre estes e a exequente estabeleceu-se uma relação imediata, no âmbito da qual aqueles têm direito a invocar qualquer preenchimento da letra fora dos termos acordados, isto é, a invocar o preenchimento abusivo da letra.
Com a entrega da letra assinada em branco o subscritor confere à pessoa a quem faz a entrega o poder de a preencher e, portanto, o acto de preenchimento tem o mesmo valor que teria se fosse praticado pelo subscritor ou se já tivesse sido praticado no momento da subscrição. Aquilo que se escreve na letra em branco considera-se escrito pelo subscritor, sendo de presumir que o conteúdo da letra representa a vontade daquele; esta presunção pode, no entanto, ser ilidida pelo subscritor demonstrando que houve abuso no preenchimento – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-03-2011, processo n.º 11870/09.7T2SNT-A.L1-2.
Na situação sub judice, a recorrente, a sociedade B e os recorridos, na altura membros do conselho de administração daquela, subscreveram o contrato de reconhecimento de dívida e de fornecimento e prestação de serviços identificado no ponto 1. dos factos provados, onde reconheceram a existência de um dívida, então já vencida, no valor de 244.161,43€, referente ao preço devido pela mercadoria fornecida pela primeira, quantia de que aquela sociedade se confessou devedora, pretendendo estabelecer um plano de pagamento, para o que se responsabilizou pelo pagamento de encargos com despesas bancárias, designadamente, com reformas de letras e juros, tendo os aqui embargantes declarado que se constituíam devedores e principais pagadores dessa quantia, juros e despesas bancárias - cf. Cláusulas Primeira e Segunda do contrato.
Na Cláusula Terceira do referido contrato as partes consignaram o seguinte:
“Com vista a garantir o efectivo pagamento das obrigações assumidas pela segunda outorgante junto da primeira, os terceiros outorgantes constituem-se ainda como avalistas e principais pagadores de todas as obrigações assumidas pela sua representada junto da primeira outorgante, qualquer que seja a sua natureza ou origem, constituídas ou a constituir, de encargos decorrentes dessas obrigações, nomeadamente decorrentes da obrigação de pagar o preço de fornecimentos, de pagar juros pelo atraso no pagamento do preço, de indemnizações que possam ser assacadas à representada dos terceiros outorgantes, quaisquer tipo de financiamentos ou outros contratos atípicos, até ao limite máximo de 500.000,00€ (quinhentos mil euros).
Acordam as partes que, em caso de incumprimento por parte da segunda outorgante da obrigação de pagar o montante supra confessado, ou qualquer uma das suas obrigações futuras, decorrentes da falta de pagamento do preço de fornecimentos ou despesas bancárias e até este montante de 500.000,00€, garantem os terceiros outorgantes o efectivo pagamento, que garantem pessoalmente, por si, e com todo o seu património pessoal.
O montante de 500.000,00€ engloba o montante confessado referido na cláusula primeira.
Para tanto, e através do presente contrato, os terceiros entregam nesta data à primeira outorgante letra de câmbio assinada em branco, donde consta a assinatura da segunda outorgante no local próprio para o aceite e a aposição nas costas da expressão "bom para aval" e a respectiva assinatura dos terceiros no local destinado aos avalistas, autorizando desde já a primeira outorgante a preencher a referida letra, pelo valor que lhe for devido, a fixar as datas de emissão e vencimento e a designar o local de pagamento, e bem assim a descontar a referida letra de câmbio e usar o referido título, como título executivo, no caso de falta de cumprimento de qualquer obrigação assumida pela segunda junto da primeira outorgante.”[11]
Os termos do acordo celebrado, sejam quanto às regras que regeriam a relação comercial vigente entre as partes, seja quanto às condições para o preenchimento da letra entregue em branco devem ser analisados no confronto entre o estipulado nestas cláusulas e, bem assim, nas cláusulas Quinta e Sexta reproduzidas no ponto 1. dos factos provados, sendo que o acordo de preenchimento deve ser objecto de interpretação à luz dos critérios previstos nos art.ºs 236º e seguintes do Código Civil – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-10-2022, processo n.º 3070/20.1T8LLE-A.E1.S1.
Nos termos do art. 236º, n.º 2 do Código Civil a declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário; assim não sucedendo, a declaração valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele – cf. art. 236º, n.º 1 do Código Civil.
Nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto – cf. art.º 238º, n.º 1 do Código Civil. Porém, esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e essa validade – cf. art.º 238º, n.º 2.
“A interpretação nos negócios jurídicos é a actividade dirigida a fixar o sentido e alcance decisivo dos negócios, segundo as respectivas declarações integradoras. Trata-se de determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com tais declarações []” – cf. Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, pág. 444 e 445.
Deste modo, e em face dos normativos acima referidos, o sentido das declarações negociais das partes será aquele que possa ser deduzido por um declaratário normal colocado na posição do declaratário real - atende-se “ao real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável”[12] –, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, sem prejuízo de, conhecendo o declaratário a vontade real do declarante, ser de acordo com ela que vale a declaração emitida (trata-se da teoria da impressão do destinatário).
No caso dos negócios formais já a declaração valerá desde que tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expressado, salvo se sentido diverso corresponder à vontade real das partes.
Para efeitos de interpretação e fixação do sentido da declaração haverá que atender à letra do negócio, às circunstâncias de tempo, lugar e outras que precederam a sua celebração ou dela são contemporâneas, às negociações prévias, à finalidade prática visada pelas partes, ao próprio tipo negocial, à lei e aos usos e costumes por ela recebidos e ainda às precedentes relações negociais entre as partes.
Quanto a interpretação conduza a um resultado duvidoso há que lançar mão do estatuído no art.º 237º do Código Civil, sendo que nos negócios gratuitos prevalece o sentido menos gravoso para o disponente e, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
A interpretação do negócio visa determinar o seu sentido juridicamente relevante de modo a que, salvaguardando-se a autonomia privada – o sentido da declaração deve corresponder à vontade do próprio declarante sob pena de nada restar da sua autodeterminação –, se atenda também ao princípio da tutela da confiança.
De relevar que a interpretação não pode, também, deixar de atender à boa-fé e, neste contexto, existe a necessidade de “atender à globalidade do contrato, à totalidade do comportamento das partes – anterior ou posterior ao contrato -, à particularização das expressões verbais, ao princípio da conservação dos actos – o favor negotii – e à primazia do fim do contrato. O declaratário normal, figura normativamente fixada, atenderá a todos estes vectores.” – António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2000, pág. 553.
Tendo presentes estes critérios de interpretação, sabendo-se que à data da celebração do contrato existia já uma dívida da B para com a exequente, com letras emitidas para pagamento das facturas e também elas não pagas e que aquela pretendeu acertar com a fornecedora um acordo que lhe permitisse saldar essa dívida e continuar a obter os fornecimentos de que carecia para a continuação da sua actividade comercial, para o que os então membros do conselho de administração, os aqui recorridos, aceitaram constituir-se devedores e principais pagadores das obrigações assumidas pela sociedade, já constituídas ou a constituir, apondo ainda o seu aval numa letra emitida em branco e aceite pela sociedade B, parece claro que o título em branco foi emitido para garantia da satisfação das dívidas emergentes daquele contrato de fornecimento de mercadoria, que fossem surgindo na vigência daquela relação comercial, nada se retirando do texto do contrato que permita concluir que essa letra só devesse ser preenchida após a cessação da relação contratual ou relativamente a uma dívida global que se encontrasse vencida.
Aliás, parece claro que o facto que promoveria o accionamento do título era o incumprimento da B de “qualquer obrigação assumida[13].
Assim, a posse da letra em branco representava para a credora, a ora exequente, a garantia do cumprimento das obrigações assumidas pela B, garantia quer porque lhe concedia o recurso à acção executiva, quer porque conferia à credora a segurança de, com o título em seu poder, verificados os respectivos pressupostos, poder completá-lo segundo o convencionado e sem dependência de qualquer nova manifestação de vontade do devedor – cf. José Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito, 3º Edição Revista e Atualizada, pp. 66-67, no sentido que a letra de câmbio deixou de funcionar como um meio de pagamento, para passar a representar, quase exclusivamente, um instrumento de garantia e (cobrança de) créditos, pois que na sua maioria são sacadas à ordem do próprio sacador e aceite de imediato, não se destinando a ser transmitidas pelo credor cambiário mas a muni-lo de um título executivo contra o devedor cambiário, caucionando o cumprimento das obrigações.
Por outro lado, face ao que resulta expressamente consignado no aludido contrato, é evidente que existiu da parte da B e, bem assim, dos avalistas, a emissão voluntária de um título incompleto, cometendo à A, Lda. o seu preenchimento, verificada que fosse a falta de cumprimento de qualquer obrigação assumida por aquela sociedade perante esta.
Na decisão recorrida concluiu-se que o preenchimento da letra foi abusivo porque ainda existiam relações comerciais entre a exequente e a B e a entrega de letras para pagamento do preço significa que o prazo foi estabelecido a favor desta, pelo que a exequente não podia exigir o cumprimento imediato da obrigação, partindo da configuração do aceite de letras para pagamento das facturas como um plano de pagamento ou pagamento a prestações (configuração que a embargada convocou na sua contestação, argumentando que o não pagamento de uma letra faria vencer imediatamente toda a dívida).
Fazendo apelo às regras da interpretação do negócio acima descritas e considerando um declaratário normal, colocado na posição da B, em face, ademais, do circunstancialismo que conduziu à celebração do contrato (a dívida já então existente, vencida e não paga), o sentido juridicamente relevante a atribuir à cláusula Terceira, 4º parágrafo não pode deixar de ser o de que o aceitante e os avalistas da letra emitida em branco quiseram autorizar a sacadora a preenchê-la verificada que fosse a falta de cumprimento de qualquer obrigação e não apenas quando, cessadas as relações comerciais ou terminado o contrato por iniciativa de alguma das partes, se mantivesse algum valor em dívida.
Aliás, o que se retira do texto do documento – designadamente do seu Considerando L) – é que as partes pretendiam manter a relação comercial com fornecimentos de mercadorias pela A, Lda. à B  e para isso houve que prestar garantias à primeira, para que esta continuasse a efectuar os fornecimentos, não obstante o preço não ser integralmente pago, mas de modo a que, até um determinado plafond – 500.000,00€ -, além do património da B, um outro património – o dos seu administradores -garantisse a satisfação dos créditos, não podendo de modo algum entender-se que essa garantia só poderia ser accionada quando as relações comerciais terminassem ou toda a dívida se encontrasse vencida, até porque nessa situação se perderia a base do acordado, ou seja, a existência de um montante de endividamento até o qual os fornecimentos seriam assegurados e a actividade comercial prosseguia.
Aquilo que pressupunha a possibilidade de preenchimento da letra era a falta de cumprimento de qualquer obrigação, designadamente, a falta de pagamento de letras aceites para pagamento de facturas e já vencidas, pois que essa falta de pagamento levaria a que a conta-corrente entre a exequente e a B  tendesse para um aumento da dívida desta, agravando a garantia de satisfação do crédito, pois os fornecimentos assegurados ou garantidos pelo património dos avalistas tinham um limite de 500.000,00€.
Não se colhe, pois, o entendimento de que teria de existir ou o vencimento da totalidade das “prestações”, nem, por outro lado, que houvesse que se ter o contrato por denunciado ou resolvido para que a letra pudesse ser preenchida. Nem o conteúdo da Cláusula Sexta autoriza tal entendimento, onde as partes estipularam que o contrato é válido por tempo indeterminado e não pode ser denunciado enquanto se mantiverem as relações comerciais entre as sociedades, pois que esta cláusula já nada tem que ver com a falta de cumprimento de alguma obrigação por parte da B, mas sim com a pretensão das partes em conferir uma natureza duradoura e indeterminada ao contrato celebrado, na vigência do qual, aliás, se mantinha a letra entregue em branco e os termos da autorização para o seu preenchimento[14].
Não está em discussão saber se existiu ou não existiu denúncia do contrato referido em 1., mas apurar se o preenchimento da letra pela exequente respeitou os termos da autorização que lhe foi concedida pela aceitante e pelos avalistas, sendo que, conforme se disse, do pacto vertido nas cláusulas mencionadas nada resulta no sentido de que o preenchimento da letra apenas devesse ocorrer vencida que se mostrasse toda a dívida ou cessada a relação comercial.
Também não se acompanha a decisão recorrida quando faz corresponder às sucessivas letras aceites para pagamento, uma forma de pagamento em prestações, de tal ordem que pudesse aqui colher aplicação o regime vertido nos art.ºs 780º, n.º 1 e 781º do Código Civil.
Tal como se extrai da factualidade apurada sob os pontos 2., 3., 4., 7. e 13. as mercadorias eram fornecidas pela exequente B, sendo emitidas as correspondentes facturas, com datas de vencimento a trinta dias.
Porém, o pagamento destas facturas ia sendo dilatado em face da emissão de letras, com as respectivas datas de vencimento e que, por sua vez, muitas vezes não eram pagas na data do seu vencimento e eram substituídas por outras, com ou sem amortização do valor em dívida.
É sabido que o termo “reforma” de um título de crédito surge muitas vezes utilizado em sentido impróprio para designar a substituição voluntária, por parte dos sujeitos cambiários, de uma letra de câmbio (letra reformada) por outra ou outras letras de montante igual ou inferior (letras de reforma), sendo estas «reformas» acompanhadas, frequentemente, do pagamento parcial da letra substituída, pelo que o novo título contém usualmente uma nova quantia cambiária (o valor remanescente) e uma nova data de vencimento, e apenas implica a extinção da primitiva obrigação cambiária, por novação, quando a vontade de novar se manifeste de forma expressa[15] – cf. art.º 859º do Código Civil.
Este procedimento permite ao devedor uma gestão das suas dívidas, seja através do diferimento da data de vencimento, da amortização parcial do débito com emissão de uma nova letra de montante inferior, ou divisão do montante inicial por várias novas letras. A reforma tem por fim diferir o pagamento da obrigação constante da letra renovada, traduzindo-se numa espécie de pagamento, porque com a letra nova se amortizou a antiga (o que sucede porque o devedor cambiário não logra pagar a letra, total ou parcialmente, no prazo do vencimento).
Assim, a subscrição de letras não teve por efeito extinguir as obrigações directamente emergentes da relação subjacente ou causal, relativa ao fornecimento das mercadorias, pela exequente à B, reflectindo apenas um acordo no sentido de adiar o vencimento da dívida para as datas apostas em cada uma das referidas letras, consubstanciando uma datio pro solvendo[16], com a correspondente modificação das obrigações primitivas, que subsistiram, ocorrendo apenas a criação de um novo título, ao lado da obrigação fundamental, destinado a facilitar a satisfação do crédito – cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26-03-1998, processo n.º 97A664 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-01-2015, processo n.º 26/12.1TBTBU-A.C1.
Ainda que a emissão das letras para pagamento das facturas conduza a um fraccionamento da prestação, importa ressalvar que a relação fundamental subjacente, podendo ser reconduzida a um contrato de fornecimento[17], caracterizando-se pela periodicidade ou continuidade das várias prestações singulares, conduzirá a um pagamento periódico, não caindo no âmbito de aplicação da norma do art.º 781º do Código Civil, como liquidação de uma obrigação em prestações, daí que não se acompanhe a decisão recorrida no sentido de a entrega das letras pela aceitante corresponda a uma liquidação de uma única obrigação em prestações.
Na verdade, não se trata aqui de uma situação em que a dívida originária e total está titulada numa pluralidade de letras, com vencimentos em datas diferentes, isto é, letras emitidas em função das prestações convencionadas, de modo a que se pudesse admitir que, não sendo paga a letra relativa a uma das prestações, as outras se venceriam automaticamente, nos termos do art.º 781 do Código Civil.
Mas ainda que disso se tratasse, sempre não se poderia deixar de ter presentes todos os princípios subjacentes aos títulos de crédito acima mencionados e, sobremaneira, as características da literalidade e da abstracção de que se revestem as letras, pelo que não se compagina como adequada a aplicação do regime geral das obrigações, e, por via disso, o disposto no art.º 781º do Código Civil, mesmo no caso de se estar no domínio das relações imediatas.
Tal como decorre do disposto no art.º 10º da LULL, é ao subscritor que cabe o ónus de provar a desconformidade do conteúdo inserido na letra em branco com a vontade por si manifestada (quem emite uma letra incompleta suporta o risco dessa actuação, ou seja, o risco de um conteúdo não coincidente com a sua vontade).
Portanto, o que releva será a vontade do subscritor tal como foi manifestada, seja a partir do pacto, seja de outros elementos a partir dos quais essa vontade possa ser reconstituída. Trata-se de apurar a vontade seja quanto à configuração das menções a inserir no título, seja quanto à oportunidade dessa inserção.
Quanto à oportunidade, em conformidade com atrás explanado, aquilo que se pode retirar da letra do contrato e do circunstancialismo que o rodeou, é que os intervenientes quiseram conferir à exequente autorização para, perante a falta de cumprimento de qualquer obrigação assumida pela B , poder incluir nos valores a preencher na letra “todo e qualquer valor que se encontrar em mora”, seja aquele já vencido e reconhecido no contrato, sejam outros correspondentes a qualquer fornecimento posterior, juros ou despesas bancárias – cf. Cláusula Quinta.
Não se detecta, pois, no caso concreto, uma desconformidade consistente num preenchimento injustificado ou extemporâneo, corporizado na falta de verificação da ocorrência à qual o próprio preenchimento do título estava subordinado (tipicamente, a constituição, o vencimento ou o incumprimento de um crédito no seio da relação fundamental), desconformidade que, aliás, nem foi concretamente alegada pelos embargantes (posto que apenas vieram colocar em causa que fosse devida, à data do preenchimento, a totalidade da quantia aposta na letra), pelo que tal excepção não procede, nem se verifica.
No que diz respeito à invocada discrepância relativa às menções introduzidas no título – em concreto, o valor que nele foi aposto - é evidente que a exequente apenas estava autorizada a inscrever na letra um valor atinente a quantias que se encontrassem em mora, ou seja, vencidas e não pagas, decorrendo da factualidade apurada que no valor inscrito foram considerados montantes atinentes a letras ainda não vencidas.
Uma vez que a exequente apenas poderia inscrever na letra em branco valores que se encontrassem em mora, tinham razão os embargantes para se oporem ao prosseguimento da execução pelo valor que nela foi inscrito, pois que tal valor contemplou (tal como foi admitido pelas testemunhas e emerge da enunciação das letras efectuadas no requerimento executivo), em desconformidade com o acordo de preenchimento, valores constantes de letras ainda não vencidas à data de 10 de Dezembro de 2018 (ainda que tivessem sido descontadas[18] junto de instituição bancária, mas sem que, porém, tenha sido invocada a sua devolução pelo banco ao sacador endossante e restituição por parte deste das quantias recebidas), que perfazem um total de 221.346,90€.
No entanto, está demonstrado que nessa data se encontravam vencidos e não pagos os seguintes montantes:
- As facturas identificadas no ponto 2., das quais se encontrava em dívida o montante de 167.076,07€;
- Letras vencidas e não pagas, num total de 33.042,31€;
- Amortizações já vencidas e não pagas decorrentes da substituição de letras, no valor total de 43.263,52€;
- Despesas bancárias, tituladas por facturas já vencidas e não pagas, no valor de 20.720,47€.
Assim, a exequente estava autorizada, em 10 de Dezembro de 2018, a preencher a letra em branco pelo valor total de 264.102,37€.
Como refere Carolina Cunha, apenas no caso de um preenchimento injustificado ou extemporâneo, a excepção de desconformidade a que alude o art.º 10º da LULL implicará o afastamento da pretensão cambiária. Tratando-se de discrepâncias quanto às menções inseridas no título, o que ocorrerá será uma reconfiguração da pretensão cambiária, de modo a contê-la dentro dos limites excedidos – cf. op. cit., pp. 184-185.
A incorrecção do valor introduzido no título de crédito determina a extinção parcial da execução, com a consequente redução desta a fim de se conter nos limites do título executivo, entendendo-se que o acordo de preenchimento ainda obteve na letra alguma tradução, embora em excesso, podendo ser atendido, nos termos do art.º 238º, n.º 2 do Código Civil, através da interpretação da vontade real do declarante (i.e. a vontade do subscritor em branco do título) ou mediante a redução do negócio jurídico, nos termos do art.º 292º do Código Civil, valendo o valor realmente querido pelas partes, – cf. art.º 732º, n.º 4, segunda parte do CPC; Carolina Cunha, op. cit., pp. 185-186, referindo ainda que não existe motivo para isentar o subscritor de responsabilidade na medida efectivamente por ele querida; cf. neste sentido, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11-10-2022, processo n.º 3070/20.1T8LLE-A.E1.S1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-01-2020, processo n.º 4211/11.5TBLRA-A.C1; e do Tribunal da Relação do Porto de 5-11-2012, processo n.º 29/10.0TBCNF-A.P1.
Em face do expendido, a exequente, titular da letra dada à execução, já vencida, pode exigir dos embargantes/avalistas tudo aquilo por que respondem, isto é, todos os valores que à data de 10 de Dezembro de 2018 se encontravam em mora.
Procede, assim, parcialmente, o recurso, impondo-se alterar a decisão recorrida, no sentido de declarar a extinção da instância relativamente à quantia inscrita em excesso na letra, devendo prosseguir para cobrança coerciva do valor devido.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art.º 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art.º 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A recorrente obteve vencimento parcial quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a cargo daquela e dos apelados, na proporção do respectivo decaimento.
Em face do ora decidido impõe-se alterar a condenação em custas em 1ª instância, cuja responsabilidade deverá ser atribuída aos embargantes e embargada, na proporção do decaimento.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência
a. Julgar os embargos parcialmente procedentes e determinar a extinção parcial da execução relativamente ao valor de 221.091,90€;
b. Determinar o prosseguimento da execução para cobrança do valor de 264.102,37€ (duzentos e sessenta e quatro mil cento e dois euros e trinta e sete cêntimos).
Custas a cargo da apelante e dos apelados, na proporção do respectivo decaimento.
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Lisboa, 5 de Março de 2024
Micaela Marisa da Silva Sousa
Paulo Ramos de Faria
Luís Filipe Pires de Sousa
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[1] Adiante designado pela sigla CPC.
[2] Acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram acessíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[3] Cf. Artigos 21º a 27º da petição inicial.
[4] Cf. Ref. Elect. 13765908 dos autos de execução, páginas 21 a 36.
[5] Cf. Ref. Elect. 145072554.
[6] Cf. Acta de 22 de Novembro de 2021 com a Ref. Elect. 134054608.
[7] “A obrigação cambiária pode ser assumida “pro soluto” ou “pro solvendo”, com uma função de garantia ou de pagamento, com ou sem eficácia novadora, e pode ser assumida em face das mais diversas relações jurídicas: compra e venda, mútuo, etc.” - Ferrer Correia, op. cit., pág. 47.
[8] Estabelecida pela Convenção internacional assinada em Genebra em 7 de Junho de 1930, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei nº 23 721, de 29 de Março de 1934, e ratificada pela Carta de Confirmação e Ratificação, no suplemento do "Diário do Governo", nº 144, de 21 de Junho de 1934, adiante designada pela sigla LULL.
[9] Letra em branco é o documento que, não contendo todas as menções obrigatórias essenciais referidas no art.º 1º da LULL, possui já a assinatura de, pelo menos, um dos signatários cambiários, acompanhado de um acordo expresso ou tácito de preenchimento futuro das menções em falta.
[10] In Manual de Letras e Livranças, 2016, pp. 165-166.
[11] Texto realçado nosso.
[12] Cf. Mota Pinto, op. cit., pág. 447.
[13] Sem prejuízo de se poder admitir que o preenchimento da letra, ocorrendo face a incumprimentos que se mantêm, implique o reconhecimento de que a exequente não mais queria permanecer vinculada àquele acordo, podendo traduzir, sob essa perspectiva, uma denúncia do contrato.
[14] Cláusula cuja validade sempre seria de colocar em causa, por eventual contrariedade à ordem pública (cf. art.º 280º do Código Civil), em face do princípio da desvinculação ou de não vinculação indefinida, no âmbito de relações duradouras e indeterminadas, que visa tutelar a liberdade dos sujeitos, que seria comprometida por um vínculo demasiadamente duradouro, não podendo a denúncia ser condicionada de forma exorbitante – cf. Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 2017 – 3ª Edição, pp. 217-219.
[15] Um meio directo de manifestação dessa vontade será a devolução dos títulos reformados.
[16] Cf. Art.º 840º do Código Civil.
[17] Aquele em que o vendedor se obriga a entregar ao comprador uma quantidade fixa ou determinada, para cada vez, ou ilimitada, posteriormente determinável, de mercadorias da espécie e qualidade convencionadas, por um preço, a convencionar ou previamente estipulado, em que existe um único vínculo jurídico para as diversas prestações.
[18] O desconto consiste na operação através da qual o banco (descontante) se obriga a entregar ao cliente (descontário) a importância de um crédito pecuniário não vencido sobre terceiros, em troca da transferência da titularidade do crédito e do pagamento das competentes comissão e juros compensatórios - cf. José Engrácia Antunes, op. cit., pág. 66, notas (131).