Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
934/07.1JDLSB-A.L1-3
Relator: ALFREDO COSTA
Descritores: CUSTAS
QUANTIAS DECLARADAS PERDIDAS
AFECTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: As quantias retidas ou depositadas nos autos que podem ser afetas ao pagamento das custas em divida nos termos do aludido artigo 34º do RCP dizem, apenas, respeito àqueles que são responsáveis pelo seu pagamento, que não são, manifestamente, as quantias que forem declaradas perdidas nos termos do artigo 186º número 3 do Código Processo Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I.RELATÓRIO:

1.1.No âmbito de processo comum (Tribunal coletivo) nº 934/07.1JDLSB que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, JC Criminal - Juiz 5, por despachos datados de 21-10-2019, com a Refª 391024345 e 17/11/2020 com a Refª 400579352, foi decidido o seguinte:

Do despacho datado de 21-10-2019
No acórdão proferido nos autos não foi dado destino a objectos apreendidos, designadamente os documentados nos autos de apreensão de fls. 103 (€ 40), 108 (€ 40) e 113 (X-ato).
Porém, tal não implica que se considere que existe lapso ou obscuridade que possibilite a correcção do decidido, tanto mais que não se encontram verificados os pressupostos previstos no art. 380º, nº 1, al. b), do CPP.
É notório que da leitura dos elencos respeitantes à factualidade que resultou provada e não provada, não se apurou que o X-ato se destinasse a ser utilizado na prática dos factos pelos quais os arguidos foram condenados. Todavia, trata-se de objeto que claramente oferece sério risco de colocar em perigo a segurança das pessoas, pelo que, nos termos previstos no art. 109º, nºs 1 e 4, do Código Penal, declaro o mesmo perdido a favor do Estado e determino que se proceda à respectiva destruição.
Quanto às quantias monetárias apreendidas, no valor total de € 80, tendo resultado apurado que ao ofendido FC os arguidos retiraram entre € 8 e € 15, notifique-se o referido ofendido para, querendo, requerer o levantamento da quantia em causa – art. 186º, nº 3, do CPP.
A quantia excedente, na importância de € 65, deverá ser afeta ao pagamento das custas em dívida.

Do despacho datado de 21-01-2020
Face ao silêncio do notificado, declaro perdida a favor do Estado a quantia monetária em apreço (€15), a qual deverá ser afeta ao pagamento de eventuais custas em dívida – art. 186º, nº 3, do CPP.
Notifique.
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1.2. Inconformado com a decisão proferida o MP interpôs recurso expendendo as seguintes conclusões:
a)- Foi decidido no despacho recorrido que a quantia monetária apreendida, no valor de € 15, pertença do ofendido e por este não levantada na sequência da notificação a que alude o art. 186º, nº 3, do C.P.P., e por tal declarada perdida a favor do Estado, deverá ser afeta ao pagamento de eventuais custas em dívida.
b)- Ora, no douto despacho recorrido confunde-se:
- A declaração de perdimento a favor do Estado e o destino posterior legal do dinheiro assim declarado, destino sujeito ao regime estabelecido no art. 39º do D.L. nº. 15/93, de 22/01, por um lado,
- com a responsabilidade pelo pagamento das custas, dos arguidos, a declaração de perdimento a favor do Estado de quantia pertença do ofendido nos termos do art. 186º do C.P.P. e o destino legal posterior do dinheiro assim declarado, por outro um lado, - e com o destino das quantias a reter/afetar ao pagamento das custas, que apenas podem ser consideradas em sede de incumprimento e de direito de retenção nos termos do art. 34º do Regulamento de Custas Processuais/R.C.P., relativamente a quantias de que seja titular o responsável pelas custas e devam ser a este entregues (nº 1, al. d)), logo não declaradas perdidas a favor do Estado, a repartir nos termos consagrados neste preceito legal, por outro lado ainda.
c)- Estando no caso em dívida as custas do processo a cargo dos arguidos, por um lado não se tratando no despacho recorrido de quantia a estes apreendida, de que fossem titulares e que lhes devesse ser entregue, tratando-se sim de quantia pertença de ofendido e declarada perdida a favor do Estado nos termos do art. 186º, nº 3, do C.P.P., não se trata de retenção/afetação nos termos do art. 34º, nº 1, al. d), do R.C.P..
d)- Na verdade, regem quanto ao pagamento de custas, por um lado, o art. 34.º, nº 1, al. d), do R.C.P. (Incumprimento e direito de retenção), que dispões que, passado o prazo para o pagamento voluntário sem que estejam pagas as custas, e não tendo sido apresentada reclamação ou até que esta seja alvo de decisão transitada em julgado, o tribunal tem o direito a reter qualquer quantia depositada à sua ordem que deva ser entregue ao responsável pelas custas, o que não é manifestamente o caso dos autos, e o art. 35º do mesmo diploma legal quanto à execução para a cobrança coerciva das custas.
e)- Sendo diverso o regime quanto ao destino/repartição das quantias declaradas perdidas a favor do Estado, como acima se deixou expresso.
f)- Ora, tudo ponderado, carece de suporte legal a decidida afetação da quantia pecuniária apreendida nos autos pertença do ofendido e declarada perdida a favor do Estado ao pagamento das custas devidas pelos arguidos, suporte legal que a Mmª Juíza “a quo”, aliás, não invoca no despacho recorrido, não tendo virtualidade bastante para o efeito a simples remissão final para o art. 186º, nº 3, do C.P.P. que apenas suporta a declaração de perdimento a favor do Estado.
g)- Face a todo o exposto, ao decidir como decidiu, a Mmª Juiz “a quo” no douto despacho recorrido violou o disposto nos arts. 186º do C.P.P., 39º do D.L. nº 15/93, e 34º e 35º do R.C.P.
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1.3. Não houve resposta ao recurso interposto.
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1.6. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo o Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto proferido parecer no qual pugna pela procedência do recurso, acompanhando os argumentos do Mº Pº da 1ª instância.
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1.5. Cumprido o disposto no artigo 417º, 2, do CPP não foi deduzida resposta.
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1.6. Efetuado o exame preliminar e corridos os vistos teve lugar conferência.
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II.FUNDAMENTAÇÃO
2.1.- É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Assim, a questão a apreciar reside em saber se em face da declaração de perda a favor do Estado, nos termos do art. 186º, nº 3, do C.P.P., de quantia pecuniária pertença do ofendido e estando em dívida as custas do processo a cargo dos arguidos, existe, ou não, fundamento legal para proceder à sua retenção/afetação nos termos do art. 34º, nº 1, al. d), do R.C.P..
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2.2. Apreciemos:
Vejamos o teor dos normativos que enquadram a questão suscitada
Preceitua o artigo 186.º do Código Processo Penal sob a epígrafe “Restituição de animais, coisas e objetos apreendidos”:
1- Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os animais, as coisas ou os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito ou, no caso dos animais, a quem tenha sido nomeado seu fiel depositário.
2- Logo que transitar em julgado a sentença, os animais as coisas ou os objetos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.
3- As pessoas a quem devam ser restituídos os animais, as coisas ou os objetos são notificadas para procederem ao seu levantamento no prazo máximo de 60 dias, findo o qual, se não o fizerem, se consideram perdidos a favor do Estado.
4- Se se revelar comprovadamente impossível determinar a identidade ou o paradeiro das pessoas referidas no número anterior, procede-se, mediante despacho fundamentado do juiz, à notificação edital, sendo, nesse caso, de 90 dias o prazo máximo para levantamento dos animais, das coisas ou dos objetos.
5- Ressalva-se do disposto nos números anteriores o caso em que a apreensão de animais, coisas ou objetos pertencentes ao arguido, ao responsável civil ou a terceiro deva ser mantida a título de arresto preventivo, nos termos do artigo 228.º
6- Quando a restituição ou o arresto referidos nos números anteriores respeitarem a bem cuja apreensão tenha sido previamente registada, é promovido o cancelamento de tal registo e, no segundo caso, o simultâneo registo do arresto.
7- No que respeita à restituição de animais, deve ser sempre salvaguardado que estão reunidas as condições de bem-estar animal previstas na lei.
Esta norma é aplicável aos casos dos objectos apreendidos que não são levantados após decisão de restituição, consagrando o sistema da notificação para proceder, no prazo máximo de 90 dias ao levantamento, findo o qual o interessado passa a suportar os custos resultantes do depósito e se o levantamento não tiver lugar dentro de um ano a contar da notificação referida os objectos são declarados perdidos a favor do Estado.
Por sua vez, o artigo 34º do RCP (DL n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro) preceitua:
1- Passado o prazo para o pagamento voluntário sem que estejam pagas as custas, multas e outras quantias contadas e não tendo sido apresentada reclamação ou até que esta seja alvo de decisão transitada em julgado, o tribunal tem o direito a reter qualquer bem na sua posse ou quantia depositada à sua ordem que:
a) Provenha de caução depositada pelo responsável pelas custas;
b) Provenha de arresto, consignação em depósito ou mecanismo similar, relativos a bens ou quantias de que seja titular o responsável pelas custas;
c) Provenha da consignação, venda ou remição relativa a bens penhorados que fossem propriedade do responsável pelas custas;
d) Deva ser entregue ao responsável pelas custas.
2- Verificado o incumprimento ou transitada em julgado a decisão a que se refere o número anterior, e quando se trate de quantias depositadas à ordem do tribunal, tem este faculdade de se fazer pagar directamente pelas mesmas, de acordo com a seguinte ordem de prioridade, salvo disposição em contrário:
a)- Taxa de justiça;
b)- Outros créditos do Instituto de Gestão Financeira e das Infra-Estruturas da Justiça, I. P.;
c)- Créditos do Estado;
d)- Reembolsos a outras entidades por força de colaboração ou intervenção no processo, incluindo os honorários e despesas suportadas pelo agente de execução, que não seja oficial de justiça.
3- Sobre a totalidade das quantias contadas, com excepção das multas e penalidades, incidem juros de mora à taxa legal mínima.
4- Sempre que as quantias disponíveis para o pagamento das custas se afigurem insuficientes, e realizados os pagamentos referidos nas alíneas a) a c) do n.º 2, o remanescente é rateado pelos restantes credores aí referidos e, sendo caso disso, pelos outros credores que sejam reconhecidos em sentença.
Ora, da leitura conjugada destes dois normativos resulta que a razão está do lado do MP quando afirma que tratando-se de quantia pecuniária declarada perdida a favor do Estado pertença de pessoa diversa do responsável do pagamento das custas, in casu dos arguidos, não pode chamar-se à colação a aplicação do disposto no artigo 34º do Regulamento das Custas Processuais. Desde logo, porque a própria letra da lei o impede, concretamente o disposto nas diversas alíneas do número 1 do referido artigo 34º do mencionado diploma, que não se enquadram nos pressupostos que presidiram à prolação do despacho recorrido.
Assim:
Cotejando o teor dos autos constata-se que apenas os arguidos são devedores das custas em divida.
As quantias retidas ou depositadas nos autos que podem ser afetas ao pagamento das custas em divida nos termos do aludido artigo 34º do RCP dizem, apenas, respeito àqueles que são responsáveis pelo seu pagamento, que não são, manifestamente, as quantias que foram declaradas perdidas nos termos do artigo 186º número 3 do Código Processo Penal, pois eram pertença do ofendido.
Temos, pois, de concluir que é ilegal a declaração da afetação das quantias declaradas perdidas a favor do Estado do ofendido ao pagamento das custas em divida da exclusiva responsabilidade dos arguidos.
Nesta conformidade e sem mais desenvolvidas considerações por supérfluas, o recurso deve merecer provimento, o que consequentemente determina a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que dê integral e escrupuloso cumprimento ao disposto no art. 186º do CPP.
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III. DECISÃO:

Termos em que os Juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa acordam em conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido, determinando a sua substituição por outro que dê integral execução ao cumprimento do artigo 186º, nº 3, do C.P.P..
Sem custas.
Notifique.

Tribunal da Relação de Lisboa, aos 28 de abril de 2021


(Texto elaborado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP).

Alfredo Costa
Rui Gonçalves