Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1440/23.2YLPRT.L1-2
Relator: PAULO FERNANDES DA SILVA
Descritores: APENSAÇÃO DE ACÇÃO
PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
SANEADOR-SENTENÇA
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (artigo 663.º, n.º 7, do CPCivil):
I. A apensação de ações deve ser suscitada no Tribunal em que corre termos o processo ao qual os demais devam ser apensados, correspondendo tal Tribunal, em regra, àquele onde está pendente o primeiro dos processos instaurados, exceto se entre os pedidos dos diversos processos em causa houver uma relação de dependência ou algum dos processos correr termos em Juízo Central, casos em que a apensação deve ser suscitada no Tribunal onde está pendente o pedido principal ou no Juízo Central, respetivamente.
II. Em procedimento especial de despejo, caso o Requerido tenha alegado que o Requerente não sucedeu ao primitivo senhorio e tenha negado a subsistência do contrato de arrendamento à data da propositura da ação devem os autos prosseguir para julgamento.
III. Naquele contexto, a prolação de saneador-sentença constitui uma decisão-surpresa, devendo declarar-se a nulidade da mesma por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), parte final do CPCivil: o juiz conheceu de questão «de que não podia tomar conhecimento».
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
RELATÓRIO.
Neste procedimento especial de despejo, instaurado em 06.07.2023, em que são Requerentes SM, PM e DM e é Requerida AP, vieram aqueles pedir o despejo do locado sito na Rua …, lote …, r/c, Costa da Caparica, Almada.
Como fundamento do despejo os Requerentes indicaram a «resolução pelo senhorio (…) nos termos do nº 3 do artº 1083 do Código Civil».
Alegaram, em suma, que em 01.04.2018 FC deu o referido imóvel de arrendamento à Requerida, para habitação desta, mediante o pagamento da renda mensal de €290,00, sendo que FC faleceu em 15.06.2021 e os Requerentes foram, entretanto, habilitados como herdeiros daquele e registaram a seu favor a propriedade do referido imóvel.
Referiram também que em 28.11.2018 deram a conhecer à Requerida a aquisição do locado e solicitaram-lhe o pagamento da respetiva renda, o que não sucedeu, estando em dívida as rendas de janeiro de 2023 e seguintes, tendo comunicado a resolução do contrato.
A Requerida foi citada e deduziu oposição.
Além do mais, arguiu a ilegitimidade substantiva dos Requerentes, impugnando a titularidade da propriedade do locado por parte daqueles e alegando que o locado «é de propriedade da própria requerida, conforme negócio jurídico de compra e venda realizado pela requerida e o falecido proprietário».
Referiu também que em 27.06.2023 instaurou contra os Requerentes uma ação declarativa, a que foi atribuído o n.º …/…, na qual discute a validade do referido testamento e a propriedade do locado.
Nestes termos, concluiu pedindo que seja declarada a ilegitimidade dos Requeridos e, subsidiariamente, a apensação dos presentes autos à referida ação n.º …/… e, caso assim não se entenda, seja designada «audiência de instrução e julgamento, oportunidade em que» a «requerida apresentará as suas testemunhas, para que, ao final, a ação de despejo seja julgada improcedente por inexistência de facto constitutivo de direito dos requerentes, absolvendo a requerida do pedido de condenação solicitado pelos requerentes, vez que, conforme resta provado, o imóvel é de propriedade da própria requerida, conforme negócio jurídico de compra e venda realizado pela requerida e o falecido proprietário»
Com a oposição a Requerida juntou diversos documentos e arrolou três testemunhas.
Os Requerentes pronunciaram-se quanto à sua legitimidade, concluindo pela mesma.       
Em 07.11.2023, o Juízo Local Cível de Almada (i) indeferiu a requerida apensação de ações, (ii) julgou «improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa» e (iii) proferiu sentença na qual condenou a Requerida a entregar o locado aos Requerentes e declarou «serem devidas pela ré aos autores as rendas respeitantes aos meses de janeiro de 2023 a agosto de 2023, no montante de €2.320,00 (…) acrescido de juros de mora à taxa legal civil em vigor desde a data dos respetivos vencimentos até efetivo e integral pagamento».
Notificado daquela decisão, a Requerida veio dela recorrer, apresentando as seguintes conclusões:
«a) Que dado o grave estado de saúde física e psicológica da recorrente, bem como, aliado ao fator da mesma não possuir outro imóvel, não possuir condições financeiras suficientes para arrendar outro local e haver uma discussão nos autos do processo n. …/…, sobre a propriedade, pugna para que seja atribuído efeito suspensivo à decisão terminativa do processo que ora se recorre, para que a situação de saúde da recorrente não se agrave, com base no que dispõe o próprio artigo 863, n. 3 do Código de Processo Civil;
b) Em seguida, se declare nula a decisão recorrida, por oposição entre os fundamentos da acção e a decisão;
c) que se declare nula a decisão recorrida, especificamente, na parte que julgou improcedente a exceção dilatória, para que, seja a mesma julgada procedente e com o respetivo envio dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível de Almada, para ser apensado ao processo sob o número …/…, vez que, as partes são as mesmas e a causa de pedir envolve o mesmo objeto e cujas decisões, como ora ocorreu, pode ter conflito em seus resultados, e colocando grave prejuízo a ambas as partes;
d) Em caso do não acolhimento anterior sobre a exceção dilatória, pugna então para que se declare nula a decisão recorrida, determinando-se a designação de audiência de julgamento com vista a que seja cumprido o disposto nos artigos 3º, n. 3 c/c artigo 507, n. 1 e 2, todos do Código de Processo Civil - pois, este é o fundamento específico da recorribilidade ante a sua violação - , com referência a testemunha de FJ, sendo de seguida proferida nova sentença».
Os Requerentes contra-alegaram, sustentando a manutenção da decisão recorrida.
II.
OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pela Requerida/Recorrente, não havendo questões de conhecimento oficioso, nos presentes autos está em causa apreciar e decidir:
· Da apensação do presente procedimento especial de despejo à ação declarativa n.º …/…;
· Da nulidade da decisão recorrida.
A Recorrente requereu que o recurso tivesse efeito suspensivo.
Tal foi conferido pelo Tribunal recorrido, conforme decisão de 15.12.2023, e não se vislumbra ora razão para divergir daquela decisão, atento o disposto nos artigos 629.º, n.º 3, alínea a), e 647.º, n.º 3, alínea b), do CPCivil, bem como o objeto dos autos, estando em causa de certa forma a propriedade de casa de habitação, termos em que confere-se ao recurso o apontado efeito suspensivo.
III.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A factualidade a considerar na motivação de direito é a que consta do relatório desta decisão que aqui se dá por integralmente reproduzida, sendo que o Tribunal recorrido, em sede de «fundamentação de facto» referiu o seguinte:
«1. Factos Provados
Com relevância para a decisão a proferir, foram considerados provados os seguintes factos:
1) Através de acordo datado de 1.4.2018, intitulado “Arrendamento”, FC e a requerida AP convencionaram o arrendamento, destinado a habitação, do imóvel sito na Rua …, Lote …, r/c, da freguesia de Costa da Caparica, Concelho de Almada, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, da freguesia da Costa da Caparica, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o nº ….
2) FC faleceu em 15.6.2021.
3) Os requerentes foram habilitados como únicos herdeiros de FC, através de escritura de habilitação de herdeiros datada de 1.6.2022.
4) O acordo referido em 1) foi celebrado pelo prazo de 1 (um) ano, com início em 01 de abril de 2018, podendo ser renovado automaticamente por períodos sucessivos de igual duração.
5) Foi estabelecida a renda mensal no valor de € 290,00 (duzentos e noventa euros), a ser entregue no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito, por meio de transferência bancária para a conta com o NIB: … da Caixa Geral de Depósitos.
6) No dia 28 de novembro de 2022, os requerentes deram conhecimento à requerida da aquisição do imóvel por sucessão testamentária, por meio de carta registada, indicando o IBAN para o qual o valor da renda deveria passar a ser transferido.
7) A requerida deixou de proceder ao pagamento das rendas em janeiro de 2023.
8) No dia 8 de fevereiro de 2023, os requerentes enviaram à requerida uma carta de interpelação para pagamento de rendas em atraso, a fim de, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, proceder ao pagamento do valor de € 870,00 (oitocentos e setenta euros), acrescido de € 174,00 (Cento e setenta e quatro euros), correspondente a 20% do valor devido.
9) Em 24.4.2023, através de notificação judicial avulsa, foi comunicada à requerida a resolução do contrato de arrendamento.
2. Factos não provados
a) Que a requerida seja proprietária do imóvel identificado em 1).
Inexistem outros factos não provados com relevância para a decisão da causa.
Os restantes factos alegados pelas partes são conclusivos, respeitantes a matéria de direito, repetidos ou não revestem relevância para decisão do mérito da causa, pelo que não foram elencados.
Note-se que, em sede de oposição, a requerida invoca, essencialmente, a inexistência de vínculo de arrendamento (matéria que constitui mera negação de factos considerados assentes).
*
3. Motivação
A convicção do Tribunal alicerçou-se, em primeira linha, na confissão ficta produzida em sede de articulados, tendo em consideração que a requerida não impugnou os factos elencados em 6) a 8) (falta de pagamento de rendas; data de início do incumprimento e interpelações para pagamento).
Quanto aos factos 1), 4) e 5), o Tribunal atendeu ao teor do contrato de arrendamento junto aos autos.
Os factos 2) e 3) resultam da análise do assento de óbito de FC e da escritura de habilitação de herdeiros datada de 1.6.2022.
No que concerne ao facto 9), o Tribunal valorou os documentos atinentes à notificação judicial avulsa que correu termos com o n.º …/… no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de Almada, J1.
Relativamente ao facto não provado, elencado em a), não logrou a requerida fazer prova da sua ocorrência».
IV.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
A Requerida/Recorrente requereu a apensação de ações e arguiu a nulidade da decisão recorrida.
Vejamos.
1. Da apensação do presente procedimento especial de despejo à ação declarativa n.º …/…;
A apensação de ações encontra-se regulada no artigo 275.º do CPCivil.
Segundo o disposto nos n.ºs 2 e 3 daquele preceito legal, «[o]s processos são apensados ao que tiver sido instaurado em primeiro lugar, salvo se os pedidos forem dependentes uns dos outros, caso em que a apensação é feita na ordem da dependência, ou se alguma das causas pender em instância central, a ela se apensando as que corram em instância local», sendo que «[a] junção deve ser requerida ao tribunal perante o qual penda o processo a que os autos tenham de ser apensados».
Ou seja, a apensação de ações deve ser suscitada no Tribunal em que corre termos o processo ao qual os demais devam ser apensados, correspondendo tal Tribunal, em regra, àquele onde está pendente o primeiro dos processos instaurados, exceto se entre os pedidos dos diversos processos em causa houver uma relação de dependência ou algum dos processos correr termos em Juízo Central, casos em que a apensação deve ser suscitada no Tribunal onde está pendente o pedido principal ou no Juízo Central, respetivamente.
Ora, conforme decorre da consulta eletrónica da referida ação n.º …/…, esta foi instaurada em 26.06.2023 e encontra-se pendente no Juízo Central Cível de Almada.
Por sua vez, o presente procedimento especial de despejo foi instaurado em 06.07.2023 e correu termos no Juízo Local Cível de Lisboa.
A relação de dependência entre tais processos não é clara, muito em razão de deficiências expositivas da aqui Recorrente, embora a existir uma tal relação sempre os pedidos deduzidos no referido processo n.º …/… teriam natureza principal, por relacionarem-se com a titularidade da propriedade do aqui locado.
Em consequência, quer por a presente ação ter sido instaurada em segundo lugar, quer por correr termos em Juízo Local, ao passo que aquela outra correr termos em Juízo Central e não estar, ao que se percebe, dependente da presente ação, é manifesto que a apensação de ações não deveria ter sido requerida no âmbito dos presentes autos, conforme disposto no referido artigo 267.º, n.ºs 2 e 3, do CPCivil.
Nestes termos, sem necessidade mais considerações, nomeadamente quanto à verificação ou não in casu dos requisitos a que alude o n.º 1, do CPCivil, carece de fundamento legal a pretendida apensação de ações no âmbito dos presentes autos.
Improcede, assim, nesta parte o recurso.
2. Da nulidade da decisão recorrida.
Nesta sede a Requerida/Recorrente requereu que «se declare nula a decisão recorrida, por oposição entre os fundamentos da ação e a decisão» e, caso assim não se entenda, «se declare nula a decisão recorrida, determinando-se a designação de audiência de julgamento».
Apreciemos.
2.1. Quanto àquele primeiro segmento recursivo, constata-se que o mesmo não está minimamente motivado.
Dito de outro modo, percorrendo a motivação de recurso, dela não decorre a fundamentação da alegada nulidade, pelo que o pedido de nulidade, por alegada oposição entre os fundamentos da ação e a decisão, não foi justificado pela Recorrente, carecendo, assim, de causa.
De todo modo, diga-se ainda, que inexiste uma tal oposição: a decisão recorrida fundamentou a procedência do procedimento especial de despejo na causa de pedir deduzida na petição inicial, falta de pagamento de rendas relativas a um contrato de arrendamento.
Improcede, pois, também nesta parte o recurso.
2.2. No que respeita à nulidade por falta de audiência de julgamento.
Se bem entendemos a Recorrente, em causa está ora uma nulidade por excesso de pronúncia, conforme artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do CPCivil: o Tribunal conheceu «de questões de que não podia tomar conhecimento».
Vejamos.
O presente procedimento especial de despejo, conforme petição inicial, funda-se na existência de um contrato de arrendamento e na falta de pagamento de rendas, sendo as Requerentes, ora Recorridas, e a Requerida, ora Recorrente, senhorias e arrendatária em tal contrato, respetivamente.
Por sua vez, na oposição a Requerida/Recorrente coloca em causa que as Requerentes tenham sucedido da posição contratual do primitivo senhorio e, mais que isso, colocam em causa a própria existência de tal contrato de arrendamento à data da propositura da presente ação.
Naquela última vertente, a Requerida, aqui Recorrente, alega nomeadamente que «o imóvel é de propriedade da própria requerida, conforme negócio jurídico de compra e venda realizado pela requerida e o falecido proprietário», pelo que «não há que se falar em despejo por falta de pagamento, pois, inexiste arrendamento».
Nestes termos, afigura-se impugnada a existência do contrato de arrendamento à data da propositura da presente ação, pelo que os autos devem prosseguir seus termos.
A prolação naquelas circunstâncias de saneador-sentença, como a decisão recorrida, configura-se como uma decisão-surpresa, importando entender que o Tribunal recorrido conheceu de questões que por ora não podia conhecer, termos em que incorreu um excesso de pronúncia.
A prolação de decisão surpresa não constitui uma nulidade processual, mas antes uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), parte final do CPCivil: o juiz conhece de questão «de que não podia tomar conhecimento».
Importa, assim, declarar nula a decisão recorrida e, pois, revogá-la, devendo os autos prosseguir seus termos no Tribunal recorrido, designadamente para julgamento.
Procede, pois, nesta sede o recurso.
*
Quanto às custas.
Segundo o disposto nos NIB
s 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais, «[a] decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa», entendendo-se «que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção que o for».
Ora, in casu procede a pretensão da Recorrente e improcede a pretensão dos Recorridos, pelo que estes configuram-se como parte vencida.
Nestes termos, as custas do recurso devem ser suportadas pelos Recorridos.

V. DECISÃO  
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir seus termos no Tribunal recorrido, designadamente para julgamento.
Custas do recurso pelos Recorridos.

Lisboa, 21 de março de 2024
Paulo Fernandes da Silva
Higina Castelo
João Vaz Gomes