Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1132/23.2TOER-A.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: REGULAMENTO (CE) Nº1215/2012 DE 12/9
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PACTO ATRIBUTIVO DE JURISDIÇÃO
INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA TRANSNACIONAL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Inexistindo relação jurídica transnacional, carece de fundamento a invocação do direito da União Europeia, concretamente, do art. 25º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 para determinação do tribunal competente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
D, Lda, com sede em … Vila do Conde instaurou ação declarativa comum contra B.V Representação Permanente, com sede em Carnaxide, pedindo:
«- ser anulado o negócio de compra e venda do veículo com matrícula …;
- ser a ré condenada no pagamento da quantia global de €1.180,82 a título de indemnização pela anulação do negócio;
- ser a ré condenada a efetuar, a expensas suas, o cancelamento do registo de propriedade do veículo a favor da autora;
- ser a ré condenada a pagar os juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal aplicável desde a data da comunicação da resolução do negócio até efetivo e integral pagamento».
Alegou, em síntese:
- comprou à ré o referido veículo num leilão electrónico em sítio da internet da responsabilidade da ré;
- pretende a anulação do negócio por incumprimento da ré quanto à questão do transporte do veículo e porque este padece de defeito, pois não circula.
*
Na contestação, a ré invocou a excepção de incompetência internacional com fundamento em pacto atributivo de jurisdição nos termos do qual é competente o tribunal distrital de Kreuzberg, Berlim, Alemanha.
*
A autora respondeu, pugnando pela improcedência da excepção.
*
A 1ª instância julgou improcedente a excepção.
*
Inconformada, apelou a ré, terminando a alegação com estas conclusões:
«A) Independentemente do seu acerto quanto à validade substantiva do pacto atributivo de jurisdição, a verificação do pressuposto processual da competência internacional constitui condição para que o tribunal se pronuncie sobre o mérito do objeto da acção.
B) A aferição da competência internacional em matéria civil e comercial encontra-se atualmente regulada no regime interno nos termos dos art.º 62.º e 64.º do CPC.
C) Paralelamente ao regime interno, coexiste o regime constante do Regulamento (EU) 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, que regula a competência judiciária e o reconhecimento e execução de decisões em matéria civil ou comercial.
D) Assim, as situações jurídicas plurilocalizadas e transnacionais podem ser objeto de pactos atributivos de jurisdição, nos termos do art.º 25º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.
E) Por situações jurídicas plurilocalizadas não se entende que as partes intervenientes tenham de ter domicílio, ou qualquer outro tipo de conexão, em estados-membros diferentes.
F) Por força do princípio da autonomia das partes, a validade do pacto atributivo de jurisdição não exige a verificação de qualquer conexão das partes intervenientes, designadamente o domicílio, conforme prescreve o art.º 25.º, n.º 1, do Regulamento 1215;
G) As partes encontram-se domiciliadas em Estados Membros da União Europeia, pelo que sendo convocada a solucionar o litígio a jurisdição de um Estado Membro da União, considerando o primado do direito da União Europeia, a disciplina interna da competência internacional do CPC apenas é aplicável quando a ação não estiver abrangida pelo âmbito do Regulamento 1215, o que não sucede no caso dos autos (Cfr. Art.º 1.º, n.º 1, do Regulamento 1215).
H) De acordo com o disposto no art.º 25.º do Regulamento 1215, os requisitos de validade e existência da cláusula atributiva de jurisdição dependem da existência de um acordo entre as partes e a sua redução a escrito.
I) São válidas e hodiernamente aceites juridicamente as cláusulas de competência contidas nos contratos celebrados por meios eletrónicos, onde se incluem as que se formam e aceitam entre as partes contratantes, através da internet, via botão eletrónico virtual, conquanto que seja possível manter um registo duradouro da vontade manifestada, conforme prescreve o art.º 25.º, n.º 2, do Regulamento 1215, sendo este, também, o entendimento da doutrina a propósito, sendo exemplo o estudo de Alexandre Dias Libório
Pereira, em A jurisdição na internet segundo o Regulamento 44/2001 e as alternativas extrajudiciais e tecnológicas , disponível em https://estudo geral.uc.pt/bitstream, página 21.
J) Neste sentido, o contrato dos autos foi subscrito por via eletrónica, sendo que os Termos e Condições do mesmo, onde consta expressamente prevista a cláusula atributiva do pacto de jurisdição, foi pela recorrida aceite, que os pode ler e analisar;
K) Os potenciais compradores que pretendam adquirir veículos por via da plataforma em causa não o podem fazer sem que antes se vinculem aos Termos e Condições aí determinados (aceitação que é condição prévia à participação no leilão eletrónico operado pela plataforma) pelo que o clausulado aí contido é sempre do conhecimento desses potenciais compradores. Assim não fosse, a recorrida nunca poderia ter adquirido o veículo dos autos.
L) Esses Termos e Condições estão disponíveis em registo duradouro, na página da plataforma eletrónica (www.auto1.com) utilizada para a compra e venda de veículos e estão disponíveis em formato imprimível pdf.
M) No caso dos autos, mostra-se preenchido o requisito exigido na alínea a) do art.º 25.º do Regulamento 1215, pelo que a jurisdição competente para a apreciação do presente litígio é aquela que foi aceite pelas partes e constante dos Termos e Condições do Contrato.
N) O art.º 25º do Regulamento n.º 1215/2012 constituí uma derrogação dos critérios gerais em matéria de competência, pelo que, independentemente do domicílio das partes, estas podem validamente convencionar que um tribunal de um Estado-Membro da União Europeia;
O) Acresce que, salvo o devido respeito, o tribunal a quo não aferiu da existência e validade substancial da cláusula do pacto atributivo de jurisdição pelo direito da União Europeia e pelo direito alemão, exercício de análise que se lhe impunha conforme impõe o considerando (20) do Regulamento 1215 que dispõe que a questão da validade substantiva do pacto atributivo de jurisdição deverá ser decidida segundo a lei do Estado Membro do Tribunal designado no pacto, incluindo as regras de conflitos de leis desse Estado Membro.
P) Conforme é jurisprudência pacífica, a validade da cláusula em causa não pode ser apreciada pelas regras do direito interno, mas sim pelo direito da União Europeia Cfr. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça, 07/10/2021, processo número 448/184.T8FAR.E1.SI, disponível em www.dgsi.pt.
Q) Não são, por isso, convocáveis as regras do direito interno, nomeadamente o disposto no artigo 59º e a verificação de algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º do C.P.C., designadamente a exigência da verificação do requisito da conexão objetiva entre o tribunal designado com a relação jurídica designada, com os seus sujeitos ou com o seu objeto, como condição da validade substancial do pacto atributivo de jurisdição Cfr. Acórdão do STJ 04.02.2016 - processo 536/14.6TVLSB.L1. S1, disponível em www.dgsi.pt .
Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. suprirão, deverá:
a) Revogar-se o despacho-saneador a quo que decidiu julgar totalmente improcedente a exceção de incompetência internacional, proferindo-se nova decisão que julgue essa exceção procedente e declare o tribunal a quo internacionalmente incompetente com a consequente absolvição da recorrente da instância.».
*
A autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que a questão a decidir é:
- se o tribunal português é internacionalmente competente por haver pacto privativo da jurisdição
*
III – Fundamentação
Na decisão recorrida expôs-se esta fundamentação:
«(…) mesmo que se provasse que a Autora aceitou os «Termos e Condições de Venda», nos quais consta o pacto atributivo de jurisdição aos tribunais alemães, considera-se que o litígio em causa nos presentes autos não emerge de uma relação transnacional, mas sim de uma relação puramente interna.
Os elementos de conexão com relevo remetem todos para Portugal, em concreto, a sede de ambas as partes, o local de entrega do veículo e a matrícula do mesmo.
O facto de o site www.(...).com, (terceiro nesta relação contratual) usado para a compra do veículo automóvel realizado em leilão eletrónico, ser alegadamente operado por uma entidade alemã não configura um elemento de estraneidade juridicamente suficiente ou, dito por outras palavras, não constitui um indício minimamente consistente de transnacionalidade.
Com efeito, a competência internacional é aferida em função da relação material controvertida, tal como é delimitada pela Autora, não havendo qualquer menção a uma entidade alemã que gere a plataforma online.
Conclui-se, assim, que o pacto atributivo de jurisdição é ineficaz, pelo que os tribunais portugueses são competentes..».
O Código de Processo Civil prevê:
Art. 59º
«Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.».
Art. 94º
«1 - As partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica.
2 - A designação convencional pode envolver a atribuição de competência exclusiva ou meramente alternativa com a dos tribunais portugueses, quando esta exista, presumindo-se que seja exclusiva em caso de dúvida.
3 - A eleição do foro só é válida quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Dizer respeito a um litígio sobre direitos disponíveis;
b) Ser aceite pela lei do tribunal designado;
c) Ser justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra;
d) Não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
e) Resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente.
4 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se reduzido a escrito o acordo constante de documento assinado pelas partes, ou o emergente de troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de comunicação de que fique prova escrita, quer tais instrumentos contenham diretamente o acordo quer deles conste cláusula de remissão para algum documento em que ele esteja contido.».
Mas, o art. 25º do Regulamento (EU) nº 1215/2012 de 12/12 estabelece:
«1. Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário. O pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:
a)Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita;
b)De acordo com os usos que as partes tenham estabelecido entre si; ou
c)No comércio internacional, de acordo com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial concreto em questão.
2. Qualquer comunicação por via eletrónica que permita um registo duradouro do pacto equivale à «forma escrita».
3. O tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro a que o ato constitutivo de um trust atribuir competência têm competência exclusiva para conhecer da ação contra um fundador, um trustee ou um beneficiário do trust, se se tratar de relações entre essas pessoas ou dos seus direitos ou obrigações no âmbito do trust.
4. Os pactos atributivos de jurisdição bem como as estipulações similares de atos constitutivos de trusts não produzem efeitos se forem contrários ao disposto nos artigos 15.º, 19.º ou 23.º, ou se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do artigo 24.º.
5. Os pactos atributivos de jurisdição que façam parte de um contrato são tratados como acordo independente dos outros termos do contrato.
A validade dos pactos atributivos de jurisdição não pode ser contestada apenas com o fundamento de que o contrato não é válido.».
Nos considerandos desse Regulamento lê-se, designadamente:
«(4)
Certas disparidades das regras nacionais em matéria de competência judiciária e de reconhecimento de decisões judiciais dificultam o bom funcionamento do mercado interno. São indispensáveis disposições destinadas a unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial e a fim de garantir o reconhecimento e a execução rápidos e simples das decisões proferidas num dado Estado-Membro.
(5)
Tais disposições inserem-se no domínio da cooperação judiciária em matéria civil, na aceção do artigo 81.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).».
No Ac do STJ de 09/05/2023 (P. 2038/20.2T8LRA.C1.S1), discreteou-se:
«Encontramo-nos, pois, perante um pacto de jurisdição, uma vez que através da convenção celebrada, as partes regularam a competência internacional, constituindo este um pacto privativo de jurisdição na medida e, que as partes, ao atribuírem competência exclusiva aos tribunais do Reino Unido, privaram os tribunais portugueses da competência legal que eventualmente lhes fosse concedida. (…)
O presente caso reporta-se a um litígio emergente de uma relação transnacional – verificando-se a existência de um “elemento de estraneidade juridicamente relevante” consistente na circunstância de as partes, pessoas colectivas, apresentarem a sua sede em diferentes países – Portugal e… - e terem convencionado atribuir competência para dirimir litígios resultantes da relação contratual estabelecida aos tribunais de um terceiro país (…) e como salienta Luís de Lima Pinheiro, o domicílio das partes em Estados diferentes é, em princípio, condição suficiente para concluir pelo preenchimento do critério de internacionalidade relevante (…)
(…)
No plano interno, também o STJ, de modo que julgamos consolidado, tem entendido que a noção de pacto de jurisdição “constante do art. 25º do Regulamento 1215/2012 é autónoma relativamente ao direito interno dos Estados-Membros, devendo a validade de tal pacto ser exclusivamente aferida à luz da própria disposição do Regulamento (cfr os acórdãos …). Dando respaldo ao que deixamos afirmado, este último aresto salienta mesmo que “o Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado, constantemente, que as disposições do Regulamento nº 1215/2012, incluindo a disposição do art. 25º, têm prioridade sobre as normas do Código de Processo Civil; que as situações jurídicas plurilocalizadas, desde que transnacionais, podem ser objecto de pactos atributivos de jurisdição, nos termos do art. 25º do Regulamento nº 1215/2012;» e a liberdade de conformação de regras processuais «foi exercida pelo legislador da União dentro dos parâmetros constitucionalmente admissíveis, ao estabelecer as regras de competência internacional em análise, gizadas por referência a fatores de conexão relevantes, de natureza objetiva, no contexto de um litígio plurilocalizado».
No caso concreto, o negócio foi celebrado entre a apelante e a apelada, ambas com sede em Portugal, ainda que através de uma plataforma electrónica (on-line), pelo que inexiste relação jurídica transnacional.  Nesta conformidade, carece de fundamento a invocação do direito da União Europeia, concretamente, do art. 25º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 para determinação do tribunal competente. Em consequência, impõe-se a improcedência do recurso.
*
IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 21 de Março de 2024
Anabela Calafate
Eduardo Petersen Silva
Nuno Lopes Ribeiro (vencido)

*
Declaração de voto
Votei vencido, na medida em que discordo da solução adoptada pela maioria do colectivo, pelas razões que sintetizo da seguinte forma:
Pressupõe a posição vencedora a aplicabilidade exclusiva do art. 25º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 de 12/12 a relações jurídicas plurilocalizadas e transnacionais.
Ora, essa acepção contraria o recente acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 8/2/2024, disponível em
https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=7E9CA856EBF1D51A2516993C31763781?text=&docid=282586&pageIndex=0&doclang=PT&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=231610,
proferido no processo C-566/22, em sede de decisão prejudicial requerida pelo Supremo Tribunal da República Checa, no caso Inkreal s.r.o. vs Duha reality s.r.o., onde se decidiu:
O artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que: um pacto atributivo de jurisdição através do qual as partes num contrato estabelecidas num mesmo Estado‑Membro acordam atribuir competência aos tribunais de outro Estado‑Membro para dirimirem litígios resultantes deste contrato está abrangido por esta disposição, ainda que o referido contrato não comporte nenhuma outra conexão com esse outro Estado‑Membro.
Assim sendo, o pacto de jurisdição invocado deveria ser analisado à luz deste Regulamento, na interpretação do TJUE, prosseguindo os autos para apreciação da nulidade da cláusula, invocada no articulado de resposta à excepção (nos termos do disposto no citado art. 25º, nº1, 1ª parte, mediante aplicação do direito alemão substantivo).

Lisboa, 21 de Março de 2024
Nuno Lopes Ribeiro