Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1005/21.3GEALM-C.L1-9
Relator: NUNO MATOS
Descritores: PENA DE PRISÃO SUPERIOR A OITO ANOS
LEI Nº 38-A/23 DE 02.08
PERDÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL EM SEPARADO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1.Por força do disposto no art. 3º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023, de 02-08, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.

2.Mostra-se excluído tal perdão não só quando a pena de prisão superior a 8 anos tenha sido aplicada apenas por um crime, como também quando a pena de prisão superior a 8 anos seja uma pena única, em resultado de várias penas parcelares, ainda que alguma dessas penas parcelares seja de medida inferior a 8 anos de prisão.

(Sumário da responsabilidade do relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.RELATÓRIO


1.No âmbito do processo supra identificado, por despacho de 23 de Novembro de 2023, foi decidido não haver lugar à aplicação do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023, de 02-08, à pena única de 15 anos de prisão que aí havia sido aplicada ao arguido AA (identificado nos autos).

O arguido, nascido em .../.../1994, havia sido condenado (por acórdão de 12/01/2023) pela prática, em 25/12/2021, de um crime de homicídio (art. 131º do Código Penal), agravado nos termos do art. 86º, nº 3, do RJAM, na pena de 14 anos e 6 meses de prisão, e de um crime de detenção de arma proibida (arts. 3º, nº 1 e nº 4, al. a), 6º, nº 1, todos do RJAM), na pena de 2 anos de prisão (a pena única, como já referido, foi fixada em 15 anos de prisão).

O arguido havia requerido (requerimento de 18/10/2023) a aplicação do perdão (de 1 ano de prisão), por referência ao mencionado crime de detenção de arma proibida (por ser crime não excluído do perdão e a pena [parcelar] ser inferior a 8 anos de prisão).

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso de tal decisão para o Tribunal da Relação, terminando a sua motivação com a extracção das seguintes conclusões (transcrição):

EM CONCLUSÃO:
a)-O presente recurso emerge da discordância em relação ao despacho tirado nos autos em 23.11.2023, com a referência nº 430572641 por meio do qual o tribunal a quo indeferiu o pedido que formulou, ao abrigo do disposto nos artigos 2º, 3º e 7º, a contrario sensu, da Lei nº 38-A/2023, de 02.08.2023, no sentido de lhe ser declarado perdoado 1 (um) ano de prisão na pena parcelar de 2 (dois) anos de prisão em que foi condenado nos autos pela pratica, em 25.12.2021, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), por referência aos artigos 3.º, n.º 1 e n.º 4, alínea a), 6.º, n.º 1, todos do RJAM.
b)-O recorrente encontra-se condenado na pena de 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática em autoria de um crime p. e p. artº 131º do Código Penal, agravado nos termos do artº 86º, nº 3 do RJAM e, ainda, na pena de 2 (dois) anos de prisão pela prática em autoria de um crime p. e p. artº 86º nº 1, al. c), por referência aos artºs 3º, nº 1 e 4, al. a) e 6º, nº 1, todos do RJAM, em cúmulo jurídico daquelas na pena de 15 (quinze) anos de prisão, por factos de 25.12.2021.
c)- No despacho em crise o tribunal a quo considerou que o crime de detenção de arma proibida é susceptível de perdão (artigo 7.º, n.º 1, f), e vi), a contrario)”,
d)- não obstante afastou a possibilidade de aplicação do perdão em causa por considerar que ao estabelecer expressamente que, em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (artigo 3.º, n.º 4, da citada lei), o legislador quis expressamente excluir do perdão as penas superiores a oito anos, quer se trate de uma só pena aplicada por um só crime, quer se trate de uma pena unitária resultante de cúmulo jurídico (inicial ou superveniente) de várias penas parcelares”, indeferindo o requerido com esses fundamento legal.
e)-Se é certo, segundo o disposto no nº 1 do artº 3º da referida Lei, que o perdão ali previsto não é aplicável a pena parcelar de 14 anos e 6 meses de prisão em que o recorrente foi condenado pela prática do crime de homicídio simples, por ser superior a 8 anos de prisão (nº1 do artº 3º), por um lado, e constituir excepção expressamente prevista na al. a) do nº 1 do artº 7º, por outro,
f)-não é menos certo que o mesmo perdão é aplicável à pena parcelar de 2 anos de prisão em que o mesmo foi condenado pela prática em autoria de um crime p. e p. artº 86º nº 1, al. c), por referência aos artºs 3º, nº 1 e 4, al. a) e 6º, nº 1, todos do RJAM, que não consta das excepções referidas no artº 7º daquele diploma legal.
g)-Destarte, a melhor interpretação do quadro legal aplicável na Lei 38-A/2023, de 28.08, impõe que se aplique o perdão em causa a esta última pena parcelar e se refaça o cúmulo jurídico das penas parcelares que resultem de tal aplicação.
h)-Pois, tal é o que resulta da melhor interpretação e aplicação do disposto da Lei 38-A/2023 de 02.08, mormente dos nºs 1 e 3 do seu artº 3º e artº 7º a contrario, coisa que o tribunal a quo não fez.
i)-Sendo certo que diferente interpretação da norma do nº 1 e 3 do artº 3º da Lei 38-A/2023, de 02.08, é contrária ao princípio constitucional da igualdade, consagrado no artº 13º da Constituição da república Portuguesa, que é preceito de aplicação imediata, visto o disposto no artº 18º, nº 1 da mesma Lei Fundamental.
j)-Em face do exposto o despacho em crise deve ser revogado e substituído por outro que declare perdoado 1 (um) ano de prisão na pena parcelar de 2 (dois) anos de prisão em que o recorrente foi condenado nos autos pela prática de um crime p. e p. artº 86º nº 1, al. c), por referência aos artºs 3º, nº 1 e 4, al. a) e 6º, nº 1, todos do RJAM, com as legais consequências.
Assim é de J U S T I Ç A!
* * *

O despacho recorrido violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nas disposições legais supra citadas.”.

3.Admitido o recurso, foi apresentada resposta pelo Ministério Público, na qual pugnou pela manutenção da decisão recorrida, extraindo as seguintes conclusões (transcrição):

CONCLUSÕES:
A)-Como se verifica da leitura do artigo 3.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, em clara contrariedade ao pretendido pelo recorrente, o legislador estabeleceu expressamente que o perdão deverá incidir sobre a pena única, e não sobre as parcelares.
B)-Como bem se refere no douto despacho recorrido: o legislador quis expressamente excluir do perdão as penas superiores a oito anos, quer se trate de uma só pena aplicada por um só crime, quer se trate de uma pena unitária resultante de cúmulo jurídico (inicial ou superveniente) de várias penas parcelares.
C)-Na base desta limitação está a intenção do legislador de excluir do âmbito de aplicação desta Lei a criminalidade muito grave, como é o caso de penas únicas globais superiores a 8 (oito) anos.
D)-A não ser assim, estaríamos perante uma visão atomística de uma pluralidade de crimes, em manifesta contrariedade ao sistema consagrado no artigo 77.º e 78.º do Código Penal, em que se institui a pena única como resultado da unidade relacional de ilícito e de culpa em face dos vários crimes praticados.
E)-Ao contrário do que sustenta o recorrente, não se vislumbra em que medida tal solução contende com o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República (sendo certo que o recorrente também não desenvolve tal argumento), já que todas as penas de prisão superiores a 8 (oito) anos se encontram identicamente excluídas do âmbito de aplicação deste perdão.
F)-Assim e salvo melhor entendimento, não merece qualquer censura ou reparo o despacho recorrido, devendo pois ser mantido na íntegra.
Assim se fazendo a acostumada Justiça.”.

4.Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso em apreço deve ser julgado improcedente.

5.Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.

6.Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

7.Nada obsta ao conhecimento do recurso.
*

II.FUNDAMENTAÇÃO

1.Delimitação do objecto do recurso.
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, onde sintetiza as razões do pedido, que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do tribunal superior (art. 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (sendo certo que os recursos servem para apreciar questões e não razões e não visam criar decisões sobre matéria nova), excetuadas as questões de conhecimento oficioso.
As questões de conhecimento oficioso prendem-se com (i) a detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19-10- 95, Proc. n.º 46580, publicado no DR, I Série-A, n.º 298, de 28-12-95, que fixou jurisprudência então obrigatória: É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”) e (ii) a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do CPP.

Face às conclusões extraídas pelo Recorrente da motivação apresentada, a questão a conhecer reconduz-se a saber se beneficia ou não do perdão de 1 ano de prisão previsto na Lei nº 38-A/2023, de 02-08, o arguido que foi condenado numa pena única de 15 anos de prisão (por referência a uma pena parcelar inferior a 8 anos de prisão e cujo crime não está excluído do perdão, verificando-se os demais requisitos legais de aplicação da mencionada Lei).

2.A decisão recorrida.

É o seguinte o teor da decisão recorrida (transcrição):

Requerimento de 18-10-2023
Apreciando:
AA, nascido a ...-...-1994, foi condenado na pena única pena unitária de 15 (quinze) anos, pela prática, em 25-12-2021, de factos integrantes de:
- Um crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131.º do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, do RJAM (pena parcelar de 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses de prisão)
- Um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), por referência aos artigos 3.º, n.º 1 e n.º 4, alínea a), 6.º, n.º 1, todos do RJAM (pena parcelar de 2 (dois) anos de prisão).
Requer o arguido seja declarado perdoado 1 (um) ano de prisão na pena que lhe foi imposta nos autos pelo crime de detenção de arma proibida.
Decidindo:
A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto estabeleceu que relativamente a crimes praticados até 19 de Junho de 2023, por pessoas com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, sendo ainda perdoadas: as penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão; a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa; a pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e as demais penas de substituição, excepto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova, excluindo-se os crimes expressamente previstos no artigo 7.º do diploma (artigos 2.º, 3.º e 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto).
O requerente tinha, à data da prática dos factos, menos de trinta anos (ainda não os completou), e pese embora o crime de homicídio se encontre excepcionado pelo artigo 7.º, n.º 1, alínea a), i, da citada lei, o crime de detenção de arma proibida é susceptível de perdão (artigo 7.º, n.º 1, f), e vi), a contrario).
Sucede, porém, que ao estabelecer expressamente que, em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (artigo 3.º, n.º 4, da citada lei), o legislador quis expressamente excluir do perdão as penas superiores a oito anos, quer se trate de uma só pena aplicada por um só crime, quer se trate de uma pena unitária resultante de cúmulo jurídico (inicial ou superveniente) de várias penas parcelares.
Considerando a medida da pena unitária aplicada ao arguido não se demonstra possível, em nosso entender, beneficiar do perdão.
Decisão:
Atento o exposto, e à luz das normas legais citadas, indefere-se, por falta de fundamento legal, o requerido.”.

3.Apreciação do mérito do recurso.

3.1.-Como é sabido, o perdão genérico (enunciado no art. 127º do Código Penal, ao lado da amnistia e do indulto, como um acto de graça e um pressuposto negativo da punição) extingue a pena, no todo ou em parte (art. 128º, nº 3, do Código Penal).
A amnistia, enquanto medida de graça de carácter geral, é aplicada em função do tipo de ilícito, considerando abstractamente as infracções (i.e., “apagando” a natureza criminal do facto).
O perdão genérico, igualmente uma medida de graça de carácter geral, é aplicado em função da pena e, nessa medida, pode ser total ou parcial, conforme seja perdoada a totalidade ou apenas uma parte da pena (implicando que a pena ou a medida de segurança não sejam, total ou parcialmente, cumpridas).
A Lei nº 38-A/2023, de 02-08 (doravante Lei nº 38-A/2023 ou Lei), estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (art. 1º).
Estão abrangidas pela referida Lei (que entrou em vigor em 01/09/2023), no que agora releva, as sanções penais relativas aos ilícitos que, reunidos os demais pressupostos por ela estabelecido, tenham sido praticados até ao final do dia 18/06/2023, ou seja, até à meia-noite de 18/06/2023 (art. 2º, nº 1).
Por outro lado, o agente, à data dos factos, tem de ter entre 16 e 30 anos de idade, inclusive (art. 2º, nº 1).
No caso dos autos, está pacificamente adquirida a verificação dos pressupostos atrás referidos (factos praticados em 25/12/2021, arguido nascido em .../.../1994).

3.2.-O litígio, tal como colocado no recurso em apreciação, situa-se ao nível da interpretação e aplicação das normas dos nºs 1 e 4 do art. 3º da Lei nº 38-A/2023 (podendo ainda ser ponderada a interpretação da norma do nº 3 do art. 7º).
O Recorrente (arguido) entende haver lugar à aplicação do perdão (de 1 ano) a uma pena única de 15 anos de prisão, quando uma das penas parcelares é inferior a 8 anos de prisão e corresponde a crime não excluído do perdão (o que sucede no caso dos autos, uma vez que o arguido foi condenado, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na pena [parcelar] de 2 anos de prisão), sendo essa a melhor interpretação das normas dos nºs 1 e 3 do art. 3º e do art. 7º, a contrario, da Lei nº 38-A/2023, de 02-08, e a única que se mostra conforme ao princípio constitucional da igualdade.

A decisão recorrida (acompanhada, em sede de recurso, pelo Ministério Público de 1ª Instância e junto deste Tribunal ad quem) entende não ser possível a aplicação do perdão a uma pena única superior a 8 anos de prisão (no caso dos autos, como já referido, foi aplicada a pena única de 15 anos de prisão), uma vez que o legislador quis excluir do perdão a criminalidade muito grave, como é o caso das penas únicas superiores a 8 anos de prisão.

O art. 3º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023 estabelece que é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos (a ressalva do disposto no art. 4º não tem relevo para o caso dos autos, significando apenas que a aplicação da amnistia aí prevista prefere à aplicação do perdão).
O art. 3º, nº 4, da mesma Lei estabelece que em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
O art. 7º, nº 3, da mesma Lei estabelece que a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3º e da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes cometidos.

A amplitude do perdão é dada pelo diploma que o concede, o qual define os seus contornos, não podendo deixar de se reconhecer ao legislador, na concretização da política criminal referente à efectivação das penas aplicadas pela prática dos crimes definidos na lei, uma «discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo» (embora não ilimitada).
Perante o conteúdo normativo (na concreta formulação dada pelo legislador), surge a questão da sua interpretação, certo que toda a fonte necessita de interpretação, para que revele a regra que encerra.

A propósito dos problemas de interpretação e consequente aplicação que, ao longo dos tempos, as leis de amnistia e perdão têm levantado, a jurisprudência sempre afirmou e vem afirmando que as normas de tais leis devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos temos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas (cfr., por ex., o Ac. STJ, de 16/03/1977, in BMJ, 265º, pags. 145 e ss., o Ac. STJ, de 21/06/1987, in BMJ, 369º, pags. 381 e ss. e o Ac. STJ, de 29/03/1995, in BMJ, 445º, pags. 146 e ss.).
O «Assento n.º 2/2001», de 25/10/2001 (in DR, IS-A, de 14/11/2001, pags. 7220 e ss.), que versou sobre a interpretação de uma norma da Lei nº 29/99, de 12-05 (concretamente, a amnistia prevista no art. 7º, al. d), da referida Lei), expressa que a natureza excepcional do direito de graça determina que as respectivas normas são insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria) e de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria), sendo também afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impondo-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo», i.e., «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo».

Também o «Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2023 [Fixação de Jurisprudência]», de 15/12/2022 (in DR, 1.ª Série, de 01/02/2023, pags. 22 e ss.), que versou sobre a interpretação de uma norma da Lei nº 9/2020, de 10-04 (lei que estabeleceu um regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19), expressa a natureza excepcional do direito de graça e, perante a aparente ambiguidade da norma objecto do recurso, deu valor decisivo ao elemento teleológico (a ratio legis, pelo menos na sua dimensão teleológica e de fundamento) e também ao elemento histórico (chamando à colação a discussão na generalidade do projecto de Lei apresentado).
Em suma, tudo se joga na interpretação do conteúdo normativo expresso pelo legislador na Lei nº 38-A/2023, de 02-08.

3.3.-Como é sabido, o texto da lei constitui o ponto de partida da interpretação, mas também o seu limite (cfr. art. 9º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
Nos casos em que o elemento literal (o exame literal do texto da norma) se mostra ambíguo, impõe-se o recurso aos demais elementos de interpretação previstos no art. 9º do Código Civil: partindo do teor verbal (elemento literal / gramatical, tendo em conta «o uso corrente da linguagem» e «os modos de expressão técnico-jurídica»), acrescenta-se o elemento lógico-sistemático («a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos»), o elemento histórico («a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica», bem assim «a história da génese do preceito», que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios») e, finalmente, o elemento teleológico («o fim particular da lei ou do preceito em singular») (cfr. Ac. RL, de 23/01/2024; relator: Manuel José Ramos da Fonseca; in www.dgsi.pt, que seguimos de muito perto).
Deixando para mais tarde a análise da literalidade da norma do art. 3º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023, cumpre analisar a literalidade das normas dos arts. 3º, nº 4 e 7º, nº 3, da Lei.
O art. 3º, nº 4, da mesma Lei estabelece que em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
A literalidade do texto desta norma não serve de solução ao problema de interpretação colocado para decisão, visto que a expressão legal («o perdão incide sobre a pena única») apenas quer expressar o modo de aplicação do perdão em caso de cúmulo jurídico, não cuidando da questão de saber se o limite de 8 anos de prisão (referido no nº 1 do mesmo artigo) é aplicável não só às penas parcelares, mas também à pena única em resultado de cúmulo jurídico de várias penas parcelares, ainda que cada uma delas seja de medida inferior a 8 anos.

Cumpre referir, a título de apontamento histórico, ser habitual as leis de clemência estabelecerem que, em caso de cúmulo jurídico, o perdão é aplicado à pena única:
Na Lei nº 17/82, de 02-07, o art. 6º estabelecia que: «Em caso de cúmulo jurídico o perdão incidirá sobre a pena unitária.».
Na Lei nº 16/86, de 11-06, o art. 13º, nº 2, estabelecia que: «O perdão referido no nº 1 (…), em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena unitária (…).».
Na Lei nº 15/94, de 11-05, o art. 8º, nº 4, estabelecia que: «Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (…).».
Na Lei nº 29/99, de 12-05, o art. 1º, nº 4, estabelecia que: «Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (…).».
A Lei nº 3/81, de 13-03, não previa norma para o caso de haver concurso de infracções e inerente cúmulo jurídico, o que provocou divergência jurisprudencial, dando origem ao «Assento n.º 5/83», de 21/10/1983 (in DR, 1.ª Série, de 11/11/1983, pags. 3798 e 3799), com o seguinte teor: “No caso de concurso real de infracções em que, nos termos do artigo 102.º do Código Penal de 1886, tem de aplicar-se ao réu uma pena única, é sobre esta, e não sobre as penas parcelares que o § 2.º do mesmo artigo manda também indicar, que deve incidir o perdão previsto pelo artigo 2.º da Lei nº 3/81, de 13 de Março.”.
O art. 7º, nº 3, da Lei nº 38-A/2023 estabelece que a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3º e da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes cometidos.

A literalidade do texto desta norma também não serve de solução ao problema de interpretação colocado para decisão, visto que a norma, regulando a situação em que coexistem crimes excludentes do perdão e da amnistia com crimes deles não excludentes (como sucede no caso em apreciação: crime de homicídio, punido com pena parcelar de 14 anos e 6 meses de prisão, e crime de detenção de arma proibida, punido com pena de 2 anos de prisão, tendo a pena única sido fixada em 15 anos de prisão), remete para a aplicação do perdão nos termos previstos no art. 3º.

Quer dizer, o preceito visa apenas esclarecer que, estando em causa vários crimes, a exclusão da amnistia e do perdão quanto a um ou alguns deles não prejudica a aplicação da amnistia e do perdão relativamente a algum ou alguns dos outros, verificados que estejam os necessários requisitos, podendo entender-se (e a letra do preceito dá abertura a tal interpretação) que o primeiro desses requisitos é que a pena única seja inferior a 8 anos de prisão (por aplicação do art. 3º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023) (cfr. Pedro José Esteves de Brito,Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude” , Revista Julgar, online, Agosto de 2023, pag. 36).

Cumpre referir, também a título de argumento histórico, o tratamento diferenciado que o legislador tem dado às situações em que coexistem crimes excludentes do perdão e da amnistia com crimes deles não excludentes.

Por exemplo, a Lei nº 9/2020, de 10-04 (que estabeleceu um “Regime excecional de flexibilização da execução das penas e medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19”), no seu art. 2º, nº 6, estabelecia uma “cláusula de contaminação”, determinando não poderem beneficiar do perdão os condenados pela prática dos vários crimes aí referidos, ainda que também tivessem sido condenados pela prática de outros crimes.

Quer dizer, nos casos de condenação em cúmulo jurídico, não havia que aplicar qualquer perdão à pena única quando aí tivesse sido englobada pelo menos uma pena parcelar aplicada pela prática de um crime excludente do perdão (mesmo que também englobasse outras penas parcelares aplicadas pela prática de outros crimes que não determinavam a sua exclusão).

Como já referido, não foi esta a solução da Lei nº 38-A/2023.
Passando agora à interpretação da norma do art. 3º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023, salienta-se, desde já, a essencialidade desta norma para a solução do problema de interpretação colocado para decisão no presente recurso.
O art. 3º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023 estabelece que é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos (a ressalva do disposto no art. 4º não tem relevo para o caso dos autos, significando apenas que a aplicação da amnistia aí prevista prefere à aplicação do perdão).
A chamada à colação do elemento histórico não assume grande relevância, uma vez que a solução da Lei nº 38-A/2023 não é inteiramente coincidente com as leis de clemência antecedentes.
A consideração da medida da pena (de prisão) como critério para a aplicação do perdão é habitual nas leis de clemência.
Contudo, nas anteriores leis de clemência a medida da pena servia igualmente como critério de determinação da medida do perdão (por ex., 1/6 da pena), o que não sucede com a Lei nº 38-A/2023, pois esta não estabelece escalões de medida de perdão em função da dosimetria concreta de pena aplicada, antes fixa um padrão único de 1 ano de perdão.
Passando agora ao elemento literal / gramatical, aceita-se que a literalidade do texto da norma do nº 1 do art. 3º possa suscitar um mínimo de dúvida interpretativa, mas tal dúvida mostra-se dissipada, em nosso entender, quando se atende à expressão «todas».

Quer dizer, o legislador não se limitou a afirmar que é perdoado 1 ano às penas de prisão até 8 anos, antes afirmando, de forma incisiva, que o perdão é aplicado a todas as penas de prisão até 8 anos”, não podendo a referência expressa a “todas as penas” deixar de incluir as penas singulares e as penas únicas de prisão [em caso de cúmulo jurídico] (ambas até 8 anos), sob pena de se fazer uma interpretação restritiva da norma, não consentida no caso das leis de amnistia e perdão, conforme já se assinalou (as normas de tais leis devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos temos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas).

Também o elemento teleológico aponta no sentido de o texto da norma do nº 1 do art. 3º excluir o perdão quando a pena de prisão superior a 8 anos seja uma pena única, em resultado de várias penas parcelares, ainda que alguma dessas penas parcelares seja de medida inferior a 8 anos de prisão.

Como é referido no Ac. RL, de 23/01/2024 (que temos vindo a citar) foi propósito do legislador afastar a aplicação do perdão quer às situações de criminalidade grave, quer às penas de prisão de grande duração, pelo que a única interpretação consentânea com esse espírito é a de que apenas são objecto do perdão de 1 ano de prisão as penas únicas fixadas em medida não superior a 8 anos.

O legislador estabeleceu aqui um outro nível de exclusão, consubstanciado na gravidade da conduta ou na multiplicidade de condutas determinantes de uma pena única de prisão superior ao limite fixado no art. 3º, nº 1, independentemente do tipo de ilícito praticado, não se podendo dizer que se trata de uma opção do legislador politico-criminalmente infundada (cfr. Pedro José Esteves de Brito, Mais algumas notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, Revista Julgar, online, Janeiro de 2024).

Refira-se, por fim, que a jurisprudência dos tribunais superiores, por ora conhecida, vai no sentido acima exposto, por nós sufragado, servindo de exemplo, além do Acórdão já citado, o Ac. STJ, de 21/12/2023 (relator: Vasques Osório), os Acórdãos da RL, de 23/01/2024 (relatora: Sandra Oliveira Pinto), de 23/01/2024 (relatora: Ester Pacheco dos Santos), de 20/02/2024 (relatora: Luísa Maria da Rocha Oliveira Alvoeiro) e de 22/02/2024 (relatora Fernanda Sintra Amaral), da RP, de 10/01/2024 (relatora: Maria dos Prazeres Silva) e de 10/01/2024 (relator: José António Rodrigues da Cunha) e da RG, de 23/01/2024 (relatora: Anabela Varizo Martins), vários deles publicados em www.dgsi.pt.

Uma nota final, em face da conclusão i) da motivação do recurso em análise, para sublinhar que a interpretação e decisão acima alcançadas não representam qualquer afronta ao princípio constitucional da igualdade, pois a opção do legislador apresenta-se como politico-criminalmente fundada e não excede o poder de discricionariedade normativa que lhe é conferido.

Em suma, perante o quantum da pena única de prisão aplicada ao Recorrente (superior a 8 anos) resulta evidente não poder este beneficiar do perdão concedido pela Lei nº 38-A/2023, de 02-08, com consequente improcedência do recurso.

IIIDISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido / recorrente AA, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC (artigo 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III).
Comunique, de imediato, à 1.ª Instância, com cópia.
Notifique.
Certifica-se que foi dado cumprimento ao disposto no art. 94º, nº 2, do CPP.


Lisboa, 21 de Março de 2024


Nuno Matos - (Relator)
Maria João Ferreira Lopes - (1ª Adjunta)
Jorge Manuel da Silva Rosas de Castro - (2º Adjunto)


(acórdão assinado electronicamente)