Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18051/21.0T8LSB-A.L1-2
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: AGENTE DE EXECUÇÃO
CITAÇÃO
BOA-FÉ
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.O disposto no art.º 10.º, do Código do Procedimento Administrativo é aplicável ao ato do agente de execução que procede a citação exarando no instrumento que entrega ao citando que ao prazo de 30 dias contestar acresce uma dilação de 5 dias, diretamente, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 5, do Código do Procedimento Administrativo, e ex vi do disposto nos n.ºs 1 e 2, do art.º 10.º, do C. Civil, atentas, entre outras, as normas consagradas nos art.ºs 2.º, 16.º, n.º 2, 20.º, n.º 2, 22.º e 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e nos art.ºs 2.º, 7.º e 9.º-A. do C. P. Civil, que estabelecem a garantia de acesso aos tribunais os princípios da cooperação e da utilização de linguagem simples e clara nos atos dos tribunais.

2.Aliás, a situação dos autos é ainda enquadrável, na perspectiva da nulidade da citação, na previsão do n.º 3, do art.º 191.º, do C. P. Civil, o qual determina que se for “…indicado para a defesa prazo superior ao que a lei concede, deve a defesa ser admitida dentro do prazo indicado …”.

3.A contestação apresenta no 1.º dia útil subsequente ao término do prazo de 30 dia acrescido da dilação de 5 dias, nos termos da al. a), do n.º 5, do art.º 139.º, do C. P. Civil deve, pois, ser admitida, e a ação prosseguir em conformidade.

SUMÁRIO (do relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.


1.RELATÓRIO.


Na ação declarativa de condenação, proposta por Sofia … contra Ana … e outros, tendo esta apresentado contestação, foi proferido despacho ordenado o seu desentranhamento com fundamento, em que “A Ré foi citada para contestar em 11/04/2022, na sua pessoa. Tratando-se de férias judiciais, o prazo iniciou-se em 19 de Abril. O prazo para apresentação da Contestação é de 30 dias, nos termos do artigo 569.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, pelo que terminou em 18 de Maio. Nos termos do artigo 139.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, podia a Contestação ser, ainda, apresentada até 23 de Maio (segunda-feira), mediante o pagamento de multa. A contestação foi apresentada em 24 de Maio de 2022, pelo que a mesma é extemporânea”.

Inconformada com essa decisão, a R dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação e a admissão da contestação, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
1A autora instaurou contra a ré acção declarativa de condenação, com processo comum, pedindo que se decrete a resolução do contrato de arrendamento, no qual a recorrente é arrendatária.
2O Senhor Agente de Execução procedeu à citação da ré, por contacto pessoal, em 11/04/2022, ou seja, em férias judiciais, documento junto aos autos, com o seguinte teor:
"Objecto e Fundamento da Citação
Nos termos do disposto no art. 231° do Código de Processo Civil (CPC), fica V. Exa. citado para no prazo de 30 dias contestar, querendo, a acção acima identificada, devendo oferecer com a contestação as respectivas provas.
Ao prazo de defesa acresce uma dilação de 5 dias. (Sublinhado não nosso).
A citação considera-se efectuada no dia da assinatura da certidão da citação.
O prazo é continuo suspendendo-se, no entanto, nas férias judiciais.
Terminando o prazo em dia que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte."
3A citação pessoal da ré foi efectuada em férias judiciais, 11/04/2022, iniciando-se a contagem do seu prazo de 30 dias, acrescido do da dilação de 5 dias, no dia 19/04/2022, primeiro dia de prazo após férias judiciais.
4A contestação da ré foi apresentada em juízo, via CITIUS, no dia 24 de Maio de 2022, ou seja findo o prazo e encontrando-se no primeiro dia com multa de acordo com o artigo n.° 139°, n.° 5, alínea a), do qual se socorreu.
5–Ao que com a junção da sua contestação a ré fez prova do pagamento da multa, DUC. 702 880 081 879 407, conforme está obrigada.
6–A Senhora Juiz a quo, por sentença assinada em 9/06/2022 e notificada à ré via ClTlUS, em 14/06/2022, ordenou o desentranhamento da contestação da ré, por extemporânea, considerando que o prazo de defesa teve a sua preclusão em 23 de Maio de 2022.
7–Desta sentença a ré atravessou requerimento, chamando á atenção de "erro" na contagem do prazo, face à citação pessoal que lhe foi entregue, e apresentando documento comprovativo dessa sua citação, o qual passou a constar dos autos.
8–Este seu requerimento foi indeferido com fundamento no artigo n.° 613°, números 1° e 3° do Código de Processo Civil, o que obrigou à interposição do presente recurso.
9–À parte não cabe decidir, nem discernir, bastando para isso dizer que não tem de conhecer exactamente a Lei, se o prazo que lhe foi concedido para deduzir a sua defesa é ou não legalmente admissível.
10–Até porque erros ou omissões dos actos praticados pela secretaria, encontrando-se aqui o Senhor Agente de Execução em funções equivalentes, não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes, Cfr. n.° 3 do artigo n.° 157° do Código de Processo Civil.
11–Pelo que a recorrente/ré praticou o acto, apresentação da sua contestação, dentro do prazo, de acordo com o que lhe foi informado pelo Senhor Agente de Execução e tendo igualmente em consideração que demonstrou ter feito o pagamento da multa relativa ao primeiro dia, conforme o artigo 139°, n.º 5, alínea o) do Código de processo Civil.
Termos em que deve o presente recurso ser provido, por provado, ordenando-se que se altere a sentença proferida, de desentranhamento da contestação da ré, seja substituída por outra em que a contestação da ré seja admitida, prosseguindo assim os autos até final.

2.–FUNDAMENTAÇÃO.

A)–OS FACTOS.
A matéria de facto a considerar é a acima descrita, sendo certo que a questão submetida a decisão deste tribunal se configura, essencialmente, como uma questão de direito.


B)–O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pela apelante consiste, tão só, em saber se a contestação da apelante foi apresentada em prazo por lhe ter sido indicada no ato de citação a dilação de cinco dias, como pretende a apelante, ou se a mesma, tendo sido apresentada em 24 de Maio de 2022 quando o prazo de trinta dias para contestar terminou a 18 de Maio de 2022, é extemporânea, como decidiu o tribunal a quo.
Como é pacifico nos autos e o relatório antecedente demonstra o prazo legal para apresentação da contestação pela apelada era/seria de 30 dias.
Não obstante, expende a apelante, como aliás o fez já perante o tribunal recorrido, que foi induzida em erro pela citação que lhe foi feita, na qual constava sob a epígrafe Objecto e Fundamento da Citação”, para além do prazo de 30 dias, a dilação de 5 dias.
Analisado o instrumento de citação que lhe foi entregue e que além da identificação do processo contém o próprio nome e residência da apelante, constatamos que o mesmo, sob epígrafe referida, depois da expressão Nos termos do disposto no art. 231.º do Código de Processo Civil (CPC), fica V. Exa. citado para, no prazo de 30 dias contestar, querendo, a acção acima identificada…”, contém a expressão Ao prazo de defesa acresce uma dilação de 5 dias”.
Não obstante as vicissitudes e a hesitação evidenciadas nos autos, o certo é que este instrumento de citação não foi posto em causa, nem em si mesmo, nem na entidade que o gerou e que foi o auxiliar da justiça, agente de execução, encarregado da citação, pelo que, não lhe tendo sido imputada falsidade, tal documento não pode deixar de ser considerado como verdadeiro.
E assim, tendo sido o auxiliar da justiça com a entrega do documento em causa concedido à apelante um prazo de contestação de 30 dias, mas a iniciar-se decorrida a dilação de 5 dias, a questão que urgia decidir nos autos e que agora integra o cerne da apelação consiste em sabermos se o prazo processualmente relevante é o prazo que decorria da lei de processo ou o prazo que foi indicado à apelante no ato de citação.
Numa primeira abordagem da questão, que se nos afigura subjacente às vicissitudes processuais da mesma questão em 1ª instância, poderíamos ser levados a concluir, a partir da presunção de conhecimento da lei, mesmo processual, que se pode extrair do disposto no art.º 6.º, do C. Civil relativo à ignorância ou má interpretação da lei - A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas – que sendo de 30 dias o prazo legal para contestar é esse e não outro que releva para a prática do ato.
Esta perspetiva de abordagem - que já contrariava importantes institutos jurídicos, como sejam os consagrados no art.º 236.º, do C. Civil relativamente ao sentido normal da declaração, nos art.ºs 247.º a 254.º, do C. Civil, relativos à figura do erro na declaração e nos art.ºs 227.º, 334.º do C. Civil, relativos ao instituto da boa-fé e no art.º 542.º, do C. P. Civil, relativo ao instituto da má-fé processual, na perspetiva, quer da violação do principio da cooperação, consagrado na al. c), do n.º 2, quer na perspetiva da violação da proibição de venire contra factum proprium, consagrada na als. a) e d), do n.º 2 – é agora expressamente afastada pelo disposto no art.º 10.º do Código do Procedimento Administrativo aprovado pelo Dec. Lei n.º 4/2015, de 07 de Janeiro.

Dispõe o n.º 1 do art.º 10.º, do Código do Procedimento Administrativo que:
 “1–No exercício da atividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa-fé
e dispõe o n.º 2 do mesmo preceito que:
 “2No cumprimento do disposto no número anterior, devem ponderar-se os valores fundamentais do Direito relevantes em face das situações consideradas, e, em especial, a confiança suscitada na contraparte pela atuação em causa e o objetivo a alcançar com a atuação empreendida.

Estes normativos são diretamente aplicáveis ao ato do agente de execução, ente privado a quem foi cometido o exercício de poderes públicos, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 5, do Código do Procedimento Administrativo, e sempre lhe serão também aplicáveis ex vi do disposto nos n.ºs 1 e 2, do art.º 10.º, do C. Civil, atentas, entre outras, as normas consagradas nos art.ºs 2.º, 16.º, n.º 2, 20.º, n.º 2, 22.º e 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e nos art.ºs 2.º, 7.º e 9.º-A. do C. P. Civil, que estabelecem a garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e de acesso aos tribunais e os princípios da cooperação e da utilização de linguagem simples e clara nos atos dos tribunais[1]

Aliás, a situação dos autos é ainda enquadrável, na perspectiva da nulidade da citação, na previsão do n.º 3, do art.º 191.º, do C. P. Civil, o qual determina que se for “…indicado para a defesa prazo superior ao que a lei concede, deve a defesa ser admitida dentro do prazo indicado …”.

Não podemos, pois, deixar de concluir que o prazo para a apelante contestar é de 30 dias, decorrida a dilação de 5 dias, terminando, pois, a 23 de maio, sem prejuízo do disposto no n.º 5, do art.º 139.º, do C. P. Civil.

Procede, pois, esta questão única da apelação e com ela a própria apelação, devendo revogar-se a decisão recorrida, admitir-se a contestação apresentada e ordenar-se o prosseguimento dos autos. 


C)–SUMÁRIO
1.–O disposto no art.º 10.º, do Código do Procedimento Administrativo é aplicável ao ato do agente de execução que procede a citação exarando no instrumento que entrega ao citando que ao prazo de 30 dias contestar acresce uma dilação de 5 dias, diretamente, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 5, do Código do Procedimento Administrativo, e ex vi do disposto nos n.ºs 1 e 2, do art.º 10.º, do C. Civil, atentas, entre outras, as normas consagradas nos art.ºs 2.º, 16.º, n.º 2, 20.º, n.º 2, 22.º e 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e nos art.ºs 2.º, 7.º e 9.º-A. do C. P. Civil, que estabelecem a garantia de acesso aos tribunais os princípios da cooperação e da utilização de linguagem simples e clara nos atos dos tribunais.
2.–Aliás, a situação dos autos é ainda enquadrável, na perspectiva da nulidade da citação, na previsão do n.º 3, do art.º 191.º, do C. P. Civil, o qual determina que se for “…indicado para a defesa prazo superior ao que a lei concede, deve a defesa ser admitida dentro do prazo indicado …”.
3.–A contestação apresenta no 1.º dia útil subsequente ao término do prazo de 30 dia acrescido da dilação de 5 dias, nos termos da al. a), do n.º 5, do art.º 139.º, do C. P. Civil deve, pois, ser admitida, e a ação prosseguir em conformidade.

 

3.–DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando o despacho recorrido, determinado a admissão da contestação apresentada e o prosseguimento da ação.
Custas pela parte vencida a final.


Lisboa, 07-03-2024


(Orlando Santos Nascimento)
(Pedro Martin Martins)
(Rute Sobral)



[1]Cfr., entre outros, Prof. J. A. Reis, Comentário ao C. P. Civil, 2.º Vol., pág. 439,o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 719/04, de 21/12/2004, P.º 608/03, 2ª Secção, acessível in www.tribunalconstitucional.pt os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27/11/1974, 5/11/19890, 10/07/1990, 27/09/2000, publicados in dgsi.pt, o acórdão desta Relação de Lisboa de 25/05/2985, publicado in BTE, n.ºs 7, 8, 9 de 1987, pág. 1258 e o acórdão da Relação de Évora, de
4/03/1999, BMJ, n.º 485, pág. 496.