Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
354/18.2T8LRS-A.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
INCUMPRIMENTO CONTRATUAL
VENCIMENTO ANTECIPADO
EMBARGOS DE EXECUTADO
INDEFERIMENTO LIMINAR
EXTEMPORANEIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Num contrato de mútuo reembolsável em prestações em que foi convencionado que a declaração de vencimento antecipado resultante do incumprimento do mutuário deveria ser-lhe comunicada pelo mutuante por carta registada com aviso de recepção, não pode verificar-se o vencimento antecipado de todas as prestações se a credora não procedeu à comunicação convencionada.
2. Nem poderá considerar-se feita tal comunicação com a citação numa execução sumária, ocorrida depois de efectuada a penhora.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.
Por apenso à execução sumária em que é exequente AL… STC, SA (que, na pendência da acção, substituiu o primitivo exequente NB…, SA, mediante incidente de habilitação de cessionário) e são executados J… e F…, para pagamento de quantia certa de 88 510,01 euros, sendo 79 999,35 euros de prestações não pagas e o restante de juros e de despesas, provenientes de dois contratos de mútuo apresentados como títulos executivos, veio o executado F…, após penhora de bem imóvel seguida de citação, deduzir embargos à execução, invocando a alteração anormal das circunstâncias e alegando, em síntese, que o montante da quantia exequenda não é o correcto, pois a exequente não levou em conta pagamentos efetuados pelos executados e veio reclamar a totalidade da dívida, quando deveria reclamar apenas o saldo devedor actualizado.   
Concluiu pedindo a procedência dos embargos.  
A exequente contestou opondo-se à excepção de alteração anormal das circunstâncias e confirmando os valores reclamados na execução.
Concluiu pedindo a improcedência dos embargos.
Foram saneados os autos e procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença, que julgou improcedente a excepção de alteração anormal das circunstâncias e julgou parcialmente procedentes os embargos, determinando a prossecução da execução com a redução da quantia exequenda ao montante correspondente à soma das prestações que se encontravam vencidas à data da sua instauração, acrescidas dos respectivos juros e despesas. 
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Inconformada, a embargada interpôs recurso formulando as seguintes conclusões:
A. O Tribunal a quo considerou que, para que a totalidade da obrigação seja exigível perante o devedor, o credor tem que proceder à sua interpelação, dele reclamando a totalidade da dívida, não existindo nos autos prova daquela interpelação extrajudicial.
B. A Recorrente não se conforma com a douta sentença recorrida por entender que a mesma faz errada interpretação das regras relativas ao vencimento antecipado da obrigação.
C. Por escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca e procuração outorgada em 23/07/2008 e escritura de mútuo com hipoteca e procuração outorgada em 23/07/2008 os executados J… e F… confessaram-se devedores ao B…, S.A. das quantias de € 75.000,00 (contrato n.º 1087120259), e € 11.240,00 (contrato n.º 1087120260) que desse Banco recebeu a título de empréstimo.
D. Nos referidos contratos os executados obrigaram-se a reembolsar o Banco mutuante do capital e respetivos juros.
E. Ora, dos contratos/documentos complementares resulta que o não cumprimento pelos mutuários de qualquer das obrigações contratadas confere ao mutuante o direito de considerar imediatamente vencido tudo o que for devido, com a consequente exigibilidade de todas as obrigações ou responsabilidades ainda não vencidas.
F. Tendo o tribunal a quo qualificado tais clausulas como como cláusulas resolutivas expressas e partindo desta qualificação considerou que o exequente não fez prova de ter procedido, previamente, à instauração da execução, à interpelação admonitória prevista no artigo 808º, n.º 1, do Cód. Civil, nem, ainda, à resolução dos contratos em apreço, razão porque, em seu ver, a obrigação exequenda não é (certa) e exigível.
G. Salvo melhor opinião, tais cláusulas não fazem qualquer alusão à resolução do contrato e às condições em que ao mesmo poderia ser posto termo pelo banco/exequente, mas antes se reportam às condições bastantes para que o banco/exequente considerasse imediata e antecipadamente vencidas todas as obrigações que emergiam dos contratos em apreço para os executados e, em particular, as prestações que só posteriormente, em condições normais de cumprimento dos ajuizados contratos, se venceriam.
H. Tais cláusulas acima referidas consagram os eventos que, sendo imputáveis aos devedores/executados, conduzem à perda do benefício do prazo, conferido em favor dos mesmos e, nesse contexto, consentem ao banco/credor considerar imediatamente vencidas todas as prestações que só no futuro se venceriam, isto é, todas as prestações mensais atinentes ao reembolso dos valores financiados e respectivos juros e que, em condições normais de cumprimento pontual do contrato, só se venceriam no decurso de cada um dos 528 meses previstos para a conclusão de tal reembolso por parte dos devedores/executados.
I. Pelo que, nos termos do disposto do art. 781.º do CC, “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.”
J. Porquanto, a instauração de uma ação judicial para exigir dos executados as responsabilidades assumidas, não pode deixar de ser entendida como a vontade da autora em interpelar para cumprimento imediato de todas as prestações.
K. E porque através da citação, ainda que pós penhora, foi dada aos réus a oportunidade de os mesmos organizarem e apresentarem a sua defesa, não se vislumbra que um tal entendimento constitua violação do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, da segurança jurídica, da proteção da confiança dos cidadãos e da igualdade, previstos nos artigos 2.º, 13.º e 20.º, da Constituição Portuguesa da República.
L. Importa, então, concluir que estão verificados os requisitos de exigibilidade da quantia exequenda tal como pretendido pela Exequente/recorrente.
M. Posto que, no quadro normativo aplicável à situação, a citação dos Executados permitiu efetivamente suprir a necessidade de manifestação e comunicação a estes da vontade de resolver os contratos por parte da Exequente, ainda que unu actu com a instauração da execução.
N. Pelo que a Douta sentença proferida pelo Tribunal a quo não fez uma correta interpretação e adequada aplicação do Direito, designadamente das citadas disposições legais, devendo, por isso, concluir-se no sentido da interpelação para cumprimento de todas as obrigações.
Termos em que deverá ser revogada a decisão recorrida, com todas as consequências legais.
Só assim se decidindo, será CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A questão a decidir é a de saber qual o valor da quantia exequenda e se esta abrange ou não a prestações vincendas à data da cessação de pagamentos dos contratos.
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FACTOS.
A sentença recorrida julgou provados os seguintes factos provados e não provados:
Provados.
A. Por escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca e procuração outorgada em 23/07/2008 e escritura de mútuo com hipoteca e procuração outorgada em 23/07/2008 os executados J… e F… confessaram-se devedores ao B…, S.A. das quantias de € 75.000,00 (contrato n.º …59), e € 11.240,00 (contrato n.º …60) que desse Banco recebeu a título de empréstimo.
B. Nos referidos contratos os executados obrigaram-se a reembolsar o Banco mutuante do capital e respetivos juros.
C. Para garantia do pagamento de tal quantia mutuada e seus juros, os executados declararam que constituíam hipotecas a favor do Banco sobre o imóvel naquelas escrituras identificado.
D. Sendo essas hipotecas constituídas com toda a plenitude legal, abrangendo quaisquer obras ou benfeitorias ou que no futuro fossem realizadas no prédio, e garantindo também, além do capital e dos juros, as despesas judiciais e extrajudiciais inerentes à ação ou à execução, necessárias a eventual cobrança judicial.
E. Os executados cessaram o pagamento das prestações de reembolso dos empréstimos referidos em 15/06/2014, quanto ao contrato n.º …59, e em 15/07/2015, quanto ao contrato n.º…60.
F. Nos termos da cláusula nona, ponto 1, do Documento Complementar anexo às escrituras, o não cumprimento pelos mutuários de qualquer das obrigações contratadas confere ao mutuante o direito de considerar imediatamente vencido tudo o que for devido, com a consequente exigibilidade de todas as obrigações ou responsabilidades ainda não vencidas.
G. E, nos termos do ponto 3 da mesma cláusula nona, a declaração de vencimento antecipado e consequente resolução será comunicada através de carta registada com aviso de receção.
H. No momento em que a ação foi intentada, no contrato n.º …59 encontrava-se em dívida o montante de € 69.767,08 em termos de capital e, €10.232,27, respeitante contrato n.º …60.
I. O embargante F… foi detido em 04/06/2015, à ordem dos autos que correrem seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal Juízo Central Criminal de Setúbal - Juiz 4, Processo nº 763/14.6GFSTB.
J. Tendo sido condenado, definitivamente, em 20/09/2017, por acórdão do STJ, em 7 anos de prisão.
Não provados.
1. Os empréstimos em causa venceram-se antecipadamente e na íntegra.
2. O embargante efetuou pagamentos não considerados pelo exequente.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
A exequente apelante deu à execução, como títulos executivos, dois contratos de mútuo celebrados com os executados, em que estes se confessaram devedores da quantia mutuada, que se obrigaram a reembolsar em prestações.   
Tendo havido cessação de pagamentos em ambos os contratos, o embargante, na petição de embargos, impugna o valor da quantia exequenda, alegando, por um lado, que não foram tidos em conta pagamentos efectuados pelos mutuários e, por outro lado, que só são devidos os valores vencidos à data da propositura da execução e não os valores vincendos, como reclama a exequente.
Quanto aos pagamentos efectuados pelos mutuários, não se provou que houvesse pagamentos não considerados pelo exequente (ponto 2 dos factos não provados).
Resta saber se a quantia exequenda abrange ou não as prestações vincendas à data da cessação do pagamento, ou seja, se houve vencimento antecipado de tais prestações.
Para os contratos de mútuo reembolsáveis em várias prestações, como os dois contratos dos autos, rege o artigo 781º do CPC, segundo o qual “se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”.
Como tem sido pacificamente entendido, a aplicação do artigo 781º não é automática, constituindo apenas um direito que o credor poderá querer exercer ou não. Por outro lado, caso pretenda exercer este direito, está o credor obrigado a comunicar essa intenção ao devedor.
Mas não sendo esta norma de natureza imperativa, é permitido às partes, ao abrigo da liberdade contratual prevista no artigo 405º nº1 do CC, convencionarem que a falta de pagamento das prestações pode determinar automaticamente o vencimento antecipado de todas as prestações, assim como podem convencionar a dispensa da obrigação de comunicação ao mutuário.
No caso dos autos, provou-se, nos pontos F e G, a existência de convenção das partes no sentido de que o não cumprimento pelos mutuários de qualquer das obrigações contratadas conferia ao mutuante o direito de considerar imediatamente vencido tudo o que fosse devido, com a consequente exigibilidade de todas as obrigações ou responsabilidades ainda não vencidas.
Convencionou-se ainda que a declaração de vencimento antecipado e a consequente resolução seria comunicada através de carta registada com aviso de recepção.
Desta convenção retira-se que foi conferido ao mutuante o direito de considerar vencidas antecipadamente todas as prestações no caso de incumprimento de qualquer uma delas – direito que já decorre do artigo 781º do CC – tendo sido fixada ao mutuário a obrigação de comunicação dessa decisão por carta registada com aviso de recepção.   
Não se mostra, todavia, provado (nem alegado), que foram enviadas aos mutuários cartas registadas com aviso de recepção a comunicar a declaração de vencimento antecipado, nem que lhes tivesse sido comunicada tal declaração por qualquer outro meio, sendo certo que cabia à exequente o ónus de o alegar e provar (artigo 342º do CC).
Alega a apelante que sempre haveria de entender que a citação na presente execução opera como uma interpelação, permitindo o vencimento antecipado de todas as prestações.
A lei prevê efectivamente que a interpelação possa ser extra judicial ou judicial (artigo 805º nº1 do CC).
Contudo, havendo convenção expressa de necessidade de interpelação extra judicial (no caso mediante carta registada com aviso de recepção) e estando as partes vinculadas ao cumprimento pontual dos contratos nos termos do artigo 406º nº1, do CC, a interpelação convencionada não poderá ser omitida e substituída pela interpelação judicial consubstanciada na citação para a execução.
Mas mesmo que se entendesse que a citação para a execução dispensaria a convencionada interpelação contratual, tal não poderia suceder numa execução sumária, como é o caso dos autos.
Com efeito, tem sido pacífico na jurisprudência o entendimento de que, nas execuções ordinárias, a citação pode operar como interpelação judicial, dependendo das circunstâncias do caso concreto e ao abrigo do artigo 610 nº2 b) do CPC (aplicável às execuções por via do artigo 551º nº1), o qual estabelece  que “quando a inexigibilidade derive da falta de interpelação ou do facto de não ter sido pedido o pagamento no domicílio do devedor, a dívida considera-se vencida desde a citação”.   
Já no caso das execuções sumárias, em que a citação só ocorre após a penhora, como é o caso dos autos, surgem divergências de entendimentos quanto ao valor da citação como interpelação judicial.
Assim, tem sido entendido que razões de simplificação e economia processual, sem que ocorra prejuízo para o executado, justificam que nas execuções sumárias se atribua à citação posterior à penhora o efeito de interpelação judicial (neste sentido, entre outros, ac. RL 27/4/23, p. 442/18, RL 10/3/22 , p. 3541/19, RP 27/6/22, p. 1335/19, em www.dgsi.pt).
Em sentido contrário, tem sido entendido que, nos termos do artigo 550º nº2 c) do CPC, aplicando-se o processo sumário às execuções com título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida e garantida por hipoteca ou penhor, o vencimento da obrigação tem de ser prévio à execução, anterior à penhora, não podendo a obrigação vencer-se com uma citação que é posterior a diligências executivas (neste sentido, entre outros, ac. RL 21/5/20, p. 781/14, STJ 12/7/2018, p. 10180/15, STJ 11/7/2019, p. 6496/165/9/23, p. 3541/19, que revogou o  acima citado acórdão de 10/3/22, todos em www.djsi.pt).         
Acompanha-se o segundo destes dois entendimentos, no sentido de que a citação não pode operar como interpelação em execuções sumárias.
Ao fundamento de que tal está legalmente vedado pelo artigo 550 nº2 alínea c) do CPC, acresce que, em termos gerais e na falta de convenção, decorre da lei que o mutuário deve ter conhecimento da intenção do mutuante em considerar verificado o vencimento antecipado, o que forçosamente deve ocorrer antes de serem promovidas diligências executivas.
Esse conhecimento por parte do mutuário existirá se houver uma convenção que fixe o vencimento antecipado automático e que dispense a sua comunicação, caso em que o mutuário saberá desde o início que, se incumprir qualquer das prestações, o mutuante exigirá a totalidade das prestações.
Porém, se não houver cláusula que dispense ao mutuante da comunicação ao mutuário do exercício do direito ao vencimento antecipado, este só terá conhecimento da intenção do mutuante se tal lhe for comunicado, não sendo aceitável que tal comunicação ocorra depois de serem promovidas diligências executivas como é o caso da penhora.
Conclui-se, portanto, no caso dos autos, que a exequente não cumpriu a cláusula que a obrigava à interpelação extrajudicial no caso de vencimento antecipado de todas as prestações, assim como não se poderá considerar como interpelação a citação na presente execução, pelo que não há vencimento antecipado e improcedem as alegações de recurso.
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DECISÃO.
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.     
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Custas pela apelante.
2024-03-21
Maria Teresa Pardal
Octávia Viegas
Nuno Lopes Ribeiro