Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
231/09.8TTALM.L1-4
Relator: FERREIRA MARQUES
Descritores: RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
CONTRA-ORDENAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1. A responsabilidade solidária do contratante pelo pagamento da coima aplicada ao subcontratante, não pressupõe a prática de qualquer ilícito contra-ordenacional pelo contratante, nem pressupõe a responsabilidade deste pela prática do ilícito contra-ordenacional imputado ao subcontratante, com base na culpa deste ou com base em culpa presumida.
2. Para que o contratante seja responsabilizado solidariamente pelo pagamento da coima aplicada ao subcontratante, basta que fique demonstrado nos autos que o subcontratante executou toda ou parte do contrato nas instalações do contratante ou sob responsabilidade deste e que no decurso dessa execução aquele tenha violado disposições a que corresponda uma infracção muito grave.
3. Verificando-se estes requisitos, o contratante só não responderá solidariamente pelo pagamento da referida coima se demonstrar que tanto na altura da celebração do contrato de subempreitada, como no decurso da sua execução, agiu com a diligência devida.
4. Sendo o contratante, o dono e o responsável da obra e sendo o contrato de subempreitada executado nas suas instalações e sob a sua responsabilidade, o mesmo está obrigado a exigir ao subcontratante tanto na data da celebração do contrato de subempreitada, como no decurso da sua execução, o cumprimento das normas legais aplicáveis àqueles trabalhos, designadamente, as normas de segurança, higiene e saúde no trabalho, bem como daquelas que obrigam a transferir para uma seguradora a responsabilidade civil pelos danos emergentes de acidente de trabalho. E se detectar a violação de alguma dessas normas, deve impedir a continuação dos trabalhos, enquanto o seu cumprimento não estiver assegurado.
5. Se não proceder desta forma, deve ser considerado solidariamente responsável pelo pagamento da coima aplicada ao subcontratante pela prática de alguma dessas infracções.
(sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO

A..., Lda, com sede na Rua ..., impugnou judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições do Trabalho [ACT], que a considerou, enquanto entidade contratante, solidariamente responsável pelo pagamento da coima no valor de 100 UC (nove mil e seiscentos euros) aplicada ao arguido (subcontratante) B..., pela prática de duas contra-ordenações, previstas e punidas pelo art. 37º, n.º 1 da Lei 100/97, de 23/9, 26º da Lei 118/99, de 11/8, 620º, n.º 4, alínea a) e 625º do Código do Trabalho, na versão da Lei 99/2003, de 27/08, e 18º e 19º do DL 433/82, de 27/10.

O Tribunal do Trabalho de Almada [TTA] julgou improcedente o recurso e manteve a decisão da ACT.

Inconformada, a recorrente interpôs recurso dessa decisão, no qual formulou as seguintes conclusões:
(...)
Terminou pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que declare a inconstitucionalidade do art. 617º, n.º 2 do Código do Trabalho, por violação do princípio da culpa, e que a absolva do pagamento da referida coima.

O Digno Magistrado do MºPº, na sua contra-alegação, pugnou pelo não provimento do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.

O recurso foi admitido na forma, com o efeito e no regime de subida devidos.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

A questão fulcral que se suscita neste recurso consiste em saber se os arts. 617º, n.º 2 do CT de 2003 e 551º, n.º 4 do CT de 2009 violam os princípios da culpa e da presunção de inocência consagrados no direito contra-ordenacional laboral e, na afirmativa, se tais preceitos enfermam de inconstitucionalidade.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia 22 de Março de 2007, pelas 11h 30m, o inspector autuante J... efectuou uma visita inspectiva, ao local de trabalho de B..., sito na obra da Rua...;
2. Na altura, o mesmo mantinha ao seu serviço, sob suas ordens, direcção e fiscalização, os seguintes trabalhadores:
- JP..., com a categoria profissional de pedreiro, admitido em 20/3/2007;
- OR..., com a categoria de pedreiro, admitido em 22/03/2007;
3. Na data referida em 1 da visita inspectiva, B... não tinha transferido a sua responsabilidade civil no que respeita a danos emergentes de acidente de trabalho, relativamente aos seus trabalhadores referidos em 2;
4. B... foi notificado em 22/03/2007 e posteriormente para apresentar apólice de contrato de seguro de acidentes de trabalho no que respeita aos trabalhadores, referidos em 2, e em nenhuma das datas a apresentou;
5. Do mesmo modo, e nas mesmas datas, B... foi notificado para apresentar o último recibo pago relativamente a contrato de seguro de acidentes de trabalho no que se refere aos dois trabalhadores, e do mesmo modo em nenhuma das datas o apresentou;
6. B... tinha um volume de negócios inferior a 500.000 euros.
7. B...sabia, na sua qualidade de empregador, que tinha de efectuar seguro de responsabilidade civil por danos emergentes de acidentes de trabalho relativamente aos dois trabalhadores ao seu serviço;
8. Não o fazendo, agiu livre, deliberada e conscientemente;
9. Conhecia da ilicitude da sua conduta e que esta era punida por lei;
10. No dia 6/12/2006, a recorrente e B... celebraram entre si um contrato denominado de empreitada, mediante o qual, nomeadamente, a primeira adjudicou ao segundo, em regime de empreitada, a execução de trabalho de tijolo, reboco e ladrilho da obra, sita na Rua..., tudo nos termos que constam do documento de fls. 6 a 8 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

A recorrente sustenta na sua alegação de recurso que os arts. 617º, n.º 2 do CT de 2003 e 551º, n.º 4 do CT de 2009 violam os princípios da culpa e da presunção de inocência consagrados no direito contra-ordenacional laboral e que tais preceitos enfermam de inconstitucionalidade, por infringirem o disposto nos arts. 30º, n.º 3 e 32º, n.º 2 e 10 da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos se lhe assiste razão.
No dia 6/12/2006, a recorrente A..., empresa proprietária e responsável pela execução da obra sita na Rua..., celebrou com B... um contrato de empreitada, através do qual lhe adjudicou a execução de trabalhos de tijolo, reboco e ladrilho da referida obra.
Na execução desses trabalhos, o referido empresário em nome individual tinha ao seu serviço, sob as suas ordens, direcção e fiscalização, dois trabalhadores, com a categoria de pedreiro, mas não tinha transferida a sua responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho, em relação a esses trabalhadores, para uma seguradora.
Devido a essa omissão, a ACT instaurou um processo contra-ordenacional contra o subcontratante B... e condenou-o na coima única de 100 UC, pela prática de duas contra-ordenações, p.p. pelos arts. 37º da Lei n.º 100/97, de 13/09, 26º da Lei n.º 118/99, de 12/8, 620º, n.º 4, al. a) e 625º do Código do Trabalho, 18º e 19º do DL 433/82, de 27/10, tendo considerado a ora recorrente - dona da obra e responsável pela sua execução – solidariamente responsável pelo pagamento da referida coima, nos termos do art. 617º, n.º 2 do CT, por não ter demonstrado que agiu com a diligência devida.
É contra este segmento da decisão, que a considerou solidariamente responsável pelo pagamento da coima aplicada ao subcontratante B..., que a entidade contratante, ora recorrente, se insurgiu, interpondo recurso, primeiro para o TTA, que manteve a decisão da ACT, e agora para esta Relação.
No recurso que interpôs, a recorrente alega que o princípio da culpa está consagrado no direito contra-ordenacional laboral e que a culpa e a responsabilidade contra-ordenacional do subcontratante não se transmitem ao contratante, uma vez que são pessoais e intransmissíveis (art. 30º, n.º 3 do Constituição).
Alega ainda que o art. 617º, n.º 2 do CT de 2003 e o art. 551º, n.º 4 do CT de 2009, ao estipularem que o contratante é responsável solidariamente pelo pagamento da coima aplicada ao subcontratante que execute toda ou parte da obra nas instalações daquele ou sob a responsabilidade do mesmo, pela violação de disposições a que corresponda uma infracção muito grave, salvo se demonstrar que agiu com a diligência devida, impõe ao contratante arguido um verdadeiro ónus de alegação e prova da respectiva inocência, instituindo, assim, um tipo de ilícito (da responsabilidade solidária) baseado na presunção da culpabilidade do arguido que é incompatível com o disposto no art. 32º, n.º 1 da Constituição que estabelece que todo o arguido se presume inocente até trânsito em julgado da sentença de condenação.
Pretende, assim, a recorrente que o n.º 2 do art. 617º, n.º 2 do CT de 2003 e o n.º 4 do art. 551º, n.º 4 do CT de 2009 sejam considerados inconstitucionais, por violarem os princípios da culpa e da presunção de inocência, consagrados nos arts. 30º, n.º 4 e 32º n.ºs 2 e 10 da Constituição da República Portuguesa, 8º, n.º 1, 9º, n.º 1, 16º, n.º 2, 18º, n.º 1, 32º e 41º do DL 433/82, de 27/10 e 11º, 13º, 29º e 71º, n.º 1 do CP, e que a decisão do TTA que a considerou solidariamente responsável pelo pagamento da coima aplicada ao arguido B... seja revogada.
A recorrente tem a razão quando afirma que a culpa é pessoal, que a responsabilidade penal é pessoal e intransmissível e que o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, mas já não lhe assiste razão quando sustenta que os arts. 617º, n.º 2 do CT de 2003 e 551º, n.º 4 do CT de 2009 prevêem um novo tipo de ilícito onde a culpa do arguido se presume e que a decisão recorrida a condenou pela prática desse ilícito, com base nessa culpa presumida.
A argumentação da recorrente, nesta parte, assenta em pressupostos errados, uma vez que os arts. 617º, n.º 2 do CT de 2003 e 551º, n.º 4 do CT de 2009 não prevêem um novo tipo de ilícito contra-ordenacional, nem a decisão recorrida a considerou arguida ou a condenou pela prática de qualquer contra-ordenação, nem tão pouco a responsabilizou pela prática da contra-ordenação cometida pelo arguido, com base na culpa deste ou com base em culpa presumida.
Não estando previsto nos arts. 617º, n.º 2 do CT de 2003 e 551º, n.º 4 do CT de 2009 a prática de qualquer ilícito contra-ordenacional pelo contratante, não faz qualquer sentido, sustentar, como sustenta a recorrente, que aqueles preceitos legais enfermam de inconstitucionalidade por violarem os princípios da culpa e da presunção de inocência consagrados nos nos arts. 8º, n.º 1, 9º, n.º 1, 16º, n.º 2, 18º, n.º 1, 32º e 41º do DL 433/82, de 27/10, 11º, 13º, 29º e 71º, n.º 1 do CP e 30º, n.º 4 e 32º n.ºs 2 e 10 da Constituição da República Portuguesa.
A responsabilidade solidária pelo pagamento da coima aplicada ao subcontratante, não pressupõe a prática de qualquer ilícito contra-ordenacional pelo contratante, nem pressupõe a responsabilidade deste pela prática do ilícito contra-ordenacional imputado ao subcontratante, com base na culpa deste ou com base em culpa presumida. Para que o contratante seja responsabilizado solidariamente pelo pagamento da coima aplicada ao subcontratante, nos termos do art. 617º, n.º 2 do CT de 2003 e 551º, n.º 4 do CT de 2009, basta que fique demonstrado nos autos que o subcontratante executou toda ou parte do contrato nas instalações do contratante ou sob responsabilidade deste e que no decurso dessa execução aquele tenha violado disposições a que corresponda uma infracção muito grave.
Verificando-se estes requisitos, o contratante só não responderá solidariamente pelo pagamento da referida coima se demonstrar que tanto na altura da celebração do contrato de subempreitada, como no decurso da sua execução, agiu com a diligência devida, ou seja, exigiu ao subcontratante tanto na data da celebração do contrato de subempreitada, como no decurso da sua execução, o cumprimento das normas legais aplicáveis àqueles trabalhos.
Sendo a contratante, ora recorrente, a dona e a responsável da obra e tendo o contrato de subempreitada sido executado nas suas instalações e sob a sua responsabilidade, a mesma estava obrigada a exigir ao subcontratante tanto na data da celebração do contrato de subempreitada, como no decurso da sua execução, o cumprimento das normas legais aplicáveis àqueles trabalhos, designadamente, as normas de segurança, higiene e saúde no trabalho, bem como daquelas que obrigam as entidades empregadoras a transferir para uma seguradora a responsabilidade civil pelos danos emergentes de acidente de trabalho. E se, no decurso desses trabalhos, detectasse a violação de alguma dessas normas, nomeadamente a que o subcontratante violou devia impedir a sua continuação, enquanto o seu cumprimento não estivesse assegurado.
Só se a contratante, ora recorrente, tivesse procedido desta forma, se podia considerar que tinha agido com a diligência devida e considerar desonerada daquele encargo.
Como a recorrente não demonstrou que agiu com a diligência devida, no decurso da execução dos trabalhos que adjudicou ao subcontratante B..., a Mma juíza a quo tinha de considerá-la solidariamente responsável pelo pagamento da coima aplicada ao subcontratante.
A decisão recorrida não merece, assim, qualquer reparo.

IV. DECISÃO

Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Lisboa, 3 de Novembro de 2010

Ferreira Marques
Maria João Romba
Decisão Texto Integral: