Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2703/23.2T8FNC.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES
JUÍZO LOCAL CÍVEL
AÇÕES DE RECONHECIMENTO JUDICIAL
UNIÃO DE FACTO
AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: RESOLVIDO
Sumário: É o juízo local cível – e não o juízo de família e menores - o tribunal competente, para, em razão da matéria, apreciar e decidir das ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, para aquisição de nacionalidade portuguesa, a que se referem o artigo 3.º, n.º 3, da lei n.º 37/81, de 3 de outubro e o artigo 14.º, n.ºs. 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo DL n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Os autores “A” e “B”, intentaram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, requerendo que a ação seja julgada procedente, com a consequente declaração de que os autores vivem em união de facto há mais de três anos, para efeitos de atribuição da nacionalidade portuguesa, nos termos e para os efeitos conjugados no disposto da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, da Lei nº 37/81, de 3 de outubro e do Decreto-Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro.
Os autores atribuíram à causa o valor de € 30.000,01.
O Ministério Publico deduziu contestação, suscitando, nomeadamente, exceção dilatória de incompetência absoluta.
Por decisão proferida em 11-09-2023 pelo Juízo Local Cível do Funchal- Juiz “X”, declarou-se este juízo materialmente incompetente, por considerar que a competência pertence aos Juízos de Família e Menores da Comarca do Funchal, indeferindo liminarmente a petição inicial, de acordo com a interpretação feita aos artigos 96.º, alínea a), e 97.º, n.º 1 e 2, 99.º, n.º 1, do CPC, e 122.º, n.º 1, al. g), da LOSJ (aprovada pela Lei nº 62/2013 de 26 de agosto).
Tendo os autores formulado requerimento nesse sentido, ao abrigo do disposto no n.º 2, do artigo 99.º, do CPC, foi determinada a remessa do processo, após trânsito da decisão proferida, ao Juízo de Família e Menores do Funchal.
(…)
Por seu turno, por decisão de 18-12-2023, o Juízo de Família e Menores do Funchal – Juiz “Y”, julgou-se incompetente em razão da matéria e suscitou o presente conflito negativo.
O Ministério Público foi devidamente notificado.
*
Vejamos:
Resulta apurado nos autos, que os autores intentaram uma ação declarativa sob a forma de processo ordinário no Juízo Local Cível do Funchal.
Com tal ação pretendem os mesmos que seja declarado que vivem em união de facto há vários anos, para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa relativamente ao autor “B”.
Sucede que o Juízo Local Cível do Funchal – Juiz “X” e o Juízo de Família e Menores do Funchal – Juiz “Y”, se eximem, mutuamente, de competência material para o efeito, pelo que, nos termos do conflito negativo suscitado, a que alude o n.º. 2 do artigo 109.º do CPC, cumpre dirimir.
Dispõe o n.º 1 do artigo 60.º do CPC que, a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária (essencialmente, a LOSJ, lei de organização do sistema judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto e o ROFTJ, que regulamenta aquela, estabelecendo o regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais, aprovado pelo D.L. n.º 49/2014, de 27 de março) e pelas disposições deste código.
Por seu turno, da conjugação dos artigos 79.º e 81.º da LOSJ., resulta que os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca e que, estes, se desdobram em juízos, a criar por decreto-lei, que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade.
Os juízos designam-se pela competência e pelo nome do município em que estão instalados (artigo 81.º, n.º 2, da LOSJ).
Entre os tribunais de competência especializada, dispõe-se, no que ora interessa, no n.º 3 do artigo 81.º da LOSJ, o seguinte:
“(…)
3 - Podem ser criados os seguintes juízos de competência especializada:
a) Central cível;
b) Local cível;
(…)
g) Família e menores; (…)”.
De acordo com o disposto no artigo 117.º, n.º 1, da LOSJ, compete aos juízos centrais cíveis:
“a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50.000,00;
b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50.000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei”.
Os juízos locais cíveis, por seu turno, nos termos do n.º 1 do artigo 130.º da LOSJ, têm uma competência residual, ou seja:
“Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respectiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada”.
Por seu turno, os juízos de família e menores, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, têm competência para preparar e julgar:
“a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
c) Acções de separação de pessoas e bens e de divórcio;
d) Acções de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;
e) Acções intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966;
f) Acções e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;
g) Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família”.
E, nos termos do n.º 2 do artigo 122.º da LOSJ é conferida ainda competência aos juízos de família e menores relativamente às “competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.
Conforme referem Paulo Pinto de Albuquerque e Rita Lynce de Faria (cfr., Jorge Miranda e Rui Medeiros; Constituição Portuguesa Anotada; Vol. III, Universidade Católica Editora, 2.ª ed., 2020, p. 115), “ao contrário dos juízos de competência genérica, os juízos de competência especializada e os tribunais de competência territorial alargada conhecem de matérias determinadas, possuindo os juízos de competência especializada cível de competência residual. Os juízos cíveis, os tribunais do comércio, os tribunais criminais, os tribunais de instrução criminal, os tribunais de família e menores, os tribunais de trabalho, os tribunais de execução de penas e os tribunais marítimos são tribunais especializados”.
E é neste contexto que os tribunais em conflito divergem sobre a competência para a apreciação e decisão do presente processo, ou seja, sobre qual o tribunal competente para apreciar da pretensão de reconhecimento judicial da situação de união de facto, tendo em vista a aquisição da nacionalidade portuguesa.
Importa, assim, convocar as normas que, a este respeito, se reportam ao regime de aquisição da nacionalidade, por decorrência da comprovação de uma situação de união de facto dos respetivos requerentes.
A nacionalidade constitui um vínculo jurídico-político que expressa uma ligação entre um determinado indivíduo e uma dada nação.
“Na lógica do Estado-nação, em que o aparelho estadual concretiza a aspiração da nação ao exercício do poder político soberano, a nacionalidade resultará numa ligação exclusiva com um determinado Estado em concreto, a qual fundamentará, por exemplo, a atribuição de um determinado conjunto de direitos e deveres de cidadania” (assim, Paulo Manuel Costa; “Oposição à aquisição da nacionalidade: A inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional”, in Contencioso da Nacionalidade, 2.ª ed., CEJ, 2017, p. 45, disponível em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_Nacionalidade_2ed.pdf).
Para além da previsão dos casos de nacionalidade originária, a lei enuncia diversos modos de aquisição derivada da nacionalidade, dando prevalência, consoante as situações, aos critérios usualmente considerados nesta matéria e a que subjazem as opções legislativas: “ius sanguinis” (que atende aos laços de descendência comum existentes entre os membros da nação) ou “ius solii” (que valoriza a relação estabelecida entre o individuo e o território – nascimento, residência, etc.).
Neste âmbito, o artigo 3.º da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3 de outubro) estabelece os termos da aquisição da nacionalidade em caso de casamento ou de união de facto, prevendo, quanto à primeira situação, que, “o estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio” (n.º 1); e, quanto à segunda situação, que, “o estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível (n.º 3).
Verifica-se uma diferença, assumida pela lei, no que respeita à aquisição da nacionalidade portuguesa, com origem no casamento ou na união de facto: no casamento basta que a declaração de vontade do cônjuge estrangeiro casado com português há mais de três anos; na união de facto, para além da declaração de vontade nesse sentido e da vivência, à data da declaração, em situação de união de facto há mais de três anos com nacional português, é também necessário que tal situação seja comprovada por “ação de reconhecimento…a interpor no tribunal cível”.
O Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado em anexo ao DL n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro, alterado pelo DL n.º 43/2013, de 1 de abril, pelo DL n.º 30-A/2015, de 27 de fevereiro e pelo DL n.º 71/2017, de 21 de junho) estabelece, por seu turno, que a aquisição da nacionalidade portuguesa pode ter como fundamento a declaração de vontade do interessado, a adoção plena ou a naturalização e só produz efeitos a partir da data do registo (cfr. artigo 12.º).
E no artigo 14.º do mesmo Regulamento enunciam-se os termos de aquisição da nacionalidade no caso de casamento ou união de facto mediante declaração de vontade, nos termos seguintes:
“1 - O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português, se, na constância do matrimónio, quiser adquirir a nacionalidade, deve declará-lo.
2 - O estrangeiro que coabite com nacional português em condições análogas às dos cônjuges há mais de três anos, se quiser adquirir a nacionalidade deve igualmente declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto.
3 - A declaração prevista no n.º 1 é instruída com certidão do assento de casamento e com certidão do assento de nascimento do cônjuge português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º.
4 - No caso previsto no n.º 2, a declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do nacional português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto.
5 - A declaração prevista na parte final do número anterior pode ser reduzida a auto perante funcionário de um dos serviços com competência para a recepção do pedido ou constar de documento assinado pelo membro da união de facto que seja nacional português, contendo a indicação do número, data e entidade emitente do respectivo bilhete de identidade”.
Os tribunais têm-se defrontado, por diversas vezes, sobre a questão em apreço no presente recurso, decidindo-a com alguma dissonância.
Assim, uma orientação conflui no sentido da atribuição de competência material aos juízos de família e menores, para a ação de reconhecimento de união de facto tendo em vista a aquisição de nacionalidade. Encontram-se neste campo, entre outras, as seguintes decisões (elencadas por ordem cronológica decrescente):
- STJ de 16-11-2023 (Pº 546/22.0T8VLG.P1.S1, rel. MARIA CLARA SOTTOMAYOR);
- TRL de 06-12-2022 (Pº 1163/22.0T8FNC.L1-7, rel. EDGAR TABORDA LOPES);
- TRL de 11-10-2022 (Pº 18030/21.7T8LSB.L1-7, rel. MICAELA DA SILVA SOUSA);
- TRL de 11-01-2022 (Pº 18030/21.7T8LSB.L1-7, rel. MICAELA DA SILVA SOUSA);
- TRP de 28-10-2021 (Pº 5202/21.3T8PRT.P1, sendo Rel. JOÃO PROENÇA);
- TRE de 09-09-2021 (Pº 2394/20.2T8PTM-A.E1, rel. SEQUINHO DOS SANTOS);
- TRP de 26-04-2021 (Pº 12397/20.1T8PRT.P1, rel. MENDES COELHO);
- TRL de 15-12-2020 (Pº 379/20.8T8MFR.L1-7, rel. MICAELA SOUSA);
- Decisão sumária do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-07-2020 (Pº 160/20.4T8FIG.C1, Des. VÍTOR AMARAL);
- TRL de 30-06-2020 (Pº 23445/19.8T8LSB.L1-7, rel. JOSÉ CAPACETE);
- TRC de 23-06-2020 (Pº 610/20.0T8CBR-B.C1, rel. FONTE RAMOS);
- TRC de 31-03-2020 (Pº 136/20.1T8CBR.C1, rel. LUÍS CRAVO);
- TRC de 08-10-2019 (Pº 2998/19.6T8CBR.C1, rel. LUÍS CRAVO); e
- TRL de 11-12-2018 (Pº 590/18.1T8CSC.L1-6, rel. ANTÓNIO SANTOS).
A argumentação expendida nestas decisões tem convocado a seguinte linha de considerações:
1.ª O legislador utilizou o conceito de “estado civil” na sua aceção mais restrita, considerando o seu significado na linguagem corrente, apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, introduzindo o artigo 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ, de carácter mais genérico e abrangente, no sentido de abranger toda e qualquer ação que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida;
2.ª Os Tribunais de Família, desde o momento inicial da sua criação - pela Lei n.º 4/70, de 29 de abril – e regulamentação - pelo DL n.º 8/72, de 7 de janeiro - sempre se mostraram vocacionados para o conhecimento de ações que versem o ramo do Direito Civil do Direito da Família, sendo tradição a de lhes atribuir a competência para a preparação de julgamento em que há lugar à aplicação de normas de direito da família;
3.ª A realidade jurídica portuguesa revela que, presentemente, a união de facto integra o Direito da Família;
4.ª Ao se reportar ao “estado civil das pessoas e família” (cfr. artigo 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ), o legislador terá pretendido abranger, em toda a sua amplitude e nuances, o contexto da vida familiar, não se restringido aos laços decorrentes do casamento, mas abrangendo todos os tipos de relacionamentos que podem caber no conceito de família, em conformidade, aliás, com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por referência ao artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
5.ª A natureza familiar da união de facto não se altera em função da finalidade com que o seu reconhecimento judicial seja pedido, estando em discussão uma matéria relativa ao estado civil e à família, pelo que a competência material para preparar e julgar a ação caberá necessariamente a um juízo de família e menores, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ;
6.ª A alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ abrangerá todas as ações que se reportam às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto, de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar;
7.ª A Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal própria para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais, circunstância que deve levar o intérprete a concluir que, ao mencionar o “tribunal cível” (no artigo 3.º, n.º 3) como competente para preparar e decidir as ações de reconhecimento da união de facto nos termos por ela exigidos, não pretende regular aquela matéria; e
8.ª Não faria sentido o legislador atribuir a juízos de natureza diversa a competência material para preparar e julgar ações de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto propostas consoante tivessem por finalidade adquirir a nacionalidade portuguesa ou outra qualquer finalidade, sendo certo que estas últimas sempre cairiam no âmbito de aplicação do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ.
Em sentido contrário a esta jurisprudência, reconhecendo competência aos juízos especializados cíveis, decidiram, em particular, os seguintes acórdãos (elencados por ordem cronológica decrescente):
- TRL de 29-09-2022 (Pº 1832/21.1T8CSC.L1-6, rel. ANTÓNIO SANTOS);
- TRL de 07-07-2022 (Pº 258/22.4T8FNC.L1-2, rel. INÊS MOURA);
- TRL de 23-06-2022 (Pº 2380/21.5T8VFX.L1-6, rel. ANABELA CALAFATE);
- TRL de 29-04-2022 (Pº 26016/21.5T8LSB.L1-2, rel. INÊS MOURA);
- TRP de 22-03-2022 (Pº 34/22.4T8PRD.P1, rel. RODRIGUES PIRES);
- TRL de 16-12-2021 (Pº 787/20.4T8MTJ.L1-2, rel. ORLANDO NASCIMENTO);
- TRL de 16-12-2021 (Pº 2142/20.1T8LSB.L1-2, rel. CARLOS CASTELO BRANCO);
- STJ de 17-06-2021 (Pº 286/20.4T8VCD.P1.S1, rel. JOÃO CURA MARIANO);
- TRL de 23-10-2014 (Pº 5187/10.1TCLRS.L1-8, rel. MARIA AMÉLIA AMEIXOEIRA);
- TRL de 27-10-2022 (Pº 14919/21.1T8LSB.L1-2, rel. NELSON BORGES CARNEIRO); e
- TRL de 25-10-2018 (Pº 25835/17.1T8LSB.L1-6, rel. ADEODATO BROTAS).
No mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-06-2021 concluiu-se que, “face à atribuição específica de competência constante do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, os tribunais de família e menores não são competentes para julgar as ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa”.
Na fundamentação deste acórdão desenvolveu-se, nomeadamente, a seguinte argumentação que entendemos ser de subscrever:
“(…) A Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, que introduziu alterações à Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, conhecida pela Lei da Nacionalidade, aditando um n.º 3 ao artigo 3.º, passou a permitir, que o estrangeiro que viva em união de facto há mais de três anos com nacional português, possa adquirir a nacionalidade portuguesa, mediante declaração, desde que essa situação esteja reconhecida em ação própria.
Este mesmo preceito dispõe que tal ação de reconhecimento da situação de união de facto com uma duração superior a três anos deve ser interposta no tribunal cível.
Por sua vez, o artigo 14.º, nos respetivos nos 2 e 4, do Decreto-Lei nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro que veio regulamentar a Lei da Nacionalidade, após as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, dispõe que o estrangeiro que coabite com nacional português em condições análogas às dos cônjuges há mais de três anos, se quiser adquirir a nacionalidade deve igualmente declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto, sendo que nesse caso a declaração deve ser instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do nacional português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto.
Alguns acórdãos dos Tribunais das Relações de Coimbra e de Lisboa (…), têm vindo a decidir que a competência para julgar estas ações pertence aos tribunais de competência especializada de família e menores, considerando que esse tipo de ações se enquadra na competência especializada atribuída na referida alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ, aos tribunais de família e menores, por se tratarem de ação relativas ao estado civil das pessoas, uma vez que esta designação se reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto.
Estes arestos não têm, porém, valorizado a menção de atribuição de competência específica aos tribunais cíveis para decidir estas ações que consta do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, sendo certo que nada impede o legislador de atribuir competência específica para o julgamento de determinadas ações, contrariando as regras gerais de competência dos diferentes tribunais judiciais especializados constantes da LOSJ.
Como já acima se referiu, a previsão destas ações e a atribuição de competência aos tribunais cíveis para as julgar foi da responsabilidade da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, que introduziu alterações à Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, conhecida pela Lei da Nacionalidade.
A redação daquela Lei Orgânica teve na sua origem um texto de substituição elaborado na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, para onde, após a sua aprovação em Plenário, haviam baixado a Proposta de Lei n.º 32/X e os Projetos de Lei n.º 18/X, 31/X, 40/X, 170X, 173/X e 32/X, que propunham alterações à Lei da Nacionalidade, o qual foi aprovado, primeiro nessa Comissão, e posteriormente em Plenário.
Relativamente à parte final da redação do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, onde se determinou o tribunal competente para o julgamento destas ações, a mesma reproduziu o texto do Projeto de Lei n.º40/X, da autoria do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, o qual atribuía essa competência ao tribunal cível (…).
Na época em que foi aprovada a Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, estava em vigor a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro.
Na altura, o artigo 64.º, n.º 1, da LOFTJ, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março, determinava que podiam existir tribunais de 1.ª instância de competência especializada e de competência específica, esclarecendo o n.º 2, do mesmo artigo, que os tribunais de competência especializada conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável, enquanto os tribunais de competência específica conhecem de matérias determinadas pela espécie de ação ou pela forma de processo aplicável.
Por sua vez o artigo 65.º do mesmo diploma dispunha:
1 – Os tribunais judiciais podem desdobrar-se em juízos:
2 – Nos tribunais de comarca os juízos podem ser de competência genérica, especializada ou específica.
3 – Os tribunais de comarca podem ainda desdobrar-se em varas, com competência específica, quando o volume e a complexidade do serviço o justifiquem.
Aos juízos de competência genérica era atribuída competência para preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro tribunal (artigo 77.º, n.º 1, a), da LOFTJ, na redação da Lei n.º 42/2005, de 29 de agosto), e entre os tribunais de competência especializada contavam-se os tribunais de família (artigo 78.º, b), da LOFTJ), que tinham a competência atribuída nos artigos 81.º e 82.º da LOFTJ, a qual não incluía as ações do tipo das referidas pelo artigo 3.º, n.º 3, da Lei na Nacionalidade.
Podiam ser criados juízos de competência especializada cível (artigo 93.º da LOFTJ), aos quais competia a preparação e julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais (artigo 94.º da LOFTJ, na redação da Lei n.º 38/2003, de 8 de março).
Podiam ainda ser criados varas cíveis, juízos cíveis e juízos de pequena instância cível de competência específica (artigo 96.º, a) e c), da LOFTJ), competindo às primeiras preparar e julgar as ações declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal coletivo (artigo 97.º, n.º 1, a), da LOFTJ, na redação da Lei n.º 42/2005, de 29 de agosto), aos juízos cíveis preparar e julgar os processos de natureza cível que não sejam da competência das varas cíveis e dos juízos de pequena instância cível (artigo 99.º da LOFTJ), e aos juízos de pequena instância cível preparar e julgar as causas cíveis a que corresponda a forma de processo sumaríssimo e as causas cíveis não previstas no Código de Processo Civil a que corresponda processo especial e cuja decisão não seja suscetível de recurso ordinário (artigo 101.º da LOFTJ).
Era esta a estrutura e o regime dos tribunais judiciais, quando o legislador, pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, previu a necessidade do reconhecimento da situação de união de facto como pressuposto da aquisição da nacionalidade portuguesa por pessoa estrangeira e atribuiu a competência para esse reconhecimento ao tribunal cível.
A mesma Lei alterou o artigo 26.º da Lei da Nacionalidade, passando a constar que ao contencioso da nacionalidade são aplicáveis, nos termos gerais o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e demais legislação complementar, onde dantes se dizia que a apreciação dos recursos a que se refere o artigo anterior (recursos relativos à atribuição, aquisição ou perda de nacionalidade portuguesa) era da competência do Tribunal da Relação de Lisboa.
O legislador quando previu a possibilidade de a união de facto com cidadão nacional ser fator de aquisição da nacionalidade portuguesa, optou por definir a competência para o reconhecimento dessas situações de união de facto, atribuindo-a aos tribunais cíveis.
Com essa definição não se pretendeu efetuar uma atribuição diferente daquela que na altura resultava da aplicação das regras gerais da LOFTJ, uma vez que, não existindo a atribuição aos tribunais de família e menores da competência que hoje consta da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ, a competência para o julgamento daquelas ações sempre competiria a um tribunal cível (podia ser uma vara cível, um juízo cível e, onde não existissem estes tribunais de competência específica, os juízos de competência genérica).
O legislador com a indicação específica de qual o tribunal competente para decidir este tipo de ações, sem que essa atribuição de competência constituísse uma exceção à atribuição que resultava da aplicação das regras gerais de distribuição de competência, em razão da matéria, pelos diferentes tribunais judiciais, terá procurado afastar a possibilidade de se entender que a competência pertencia aos tribunais administrativos, face à atribuição do contencioso da nacionalidade a estes tribunais em resultado da alteração da solução do artigo 26.º da Lei na Nacionalidade, pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril. Poderia tê-lo feito, dizendo que a competência pertencia aos tribunais judiciais, deixando que as aplicações das regras gerais de distribuição de competências nesta ordem jurisdicional definissem o tribunal competente em razão da matéria. No entanto, optou por ser mais específico e, de entre os diferentes tribunais judiciais, definiu que seriam os tribunais cíveis os competentes, o que, como já vimos, se encontrava de acordo com a aplicação das regras gerais da LOFTJ, não constituindo esta definição uma exceção a essas regras.
No entanto, com a aprovação da LOSJ, pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, a qual passou a definir as normas de enquadramento e organização do sistema judiciário português, na nova distribuição de competências dos tribunais judiciais, a competência para julgar este tipo de ações passou a ser dos tribunais de família e menores, devido ao aditamento da nova competência constante da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ - as ações relativas ao estado civil das pessoas e família.
Contudo, mantendo-se na Lei da Nacionalidade a atribuição de competência específica, constante do artigo 3.º, n.º 3 – o estrangeiro que à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível – e sendo esta norma, uma norma especial, ela não foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu na distribuição de competências pela lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário.
Assim sendo, o disposto no referido artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas.
Ora, dispondo este preceito, especificamente, que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), da LOSJ, e considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral (…)”.
De facto, a alteração introduzida na lei da nacionalidade, em 2006, tomou posição específica sobre a questão da competência para as aludidas ações para reconhecimento da situação de união de facto tendo em vista a aquisição da nacionalidade, tratando-as especifica e autonomamente, em sede da mencionada alteração introduzida em tal diploma normativo e atribuindo a respetiva competência ao “tribunal cível”.
Tal previsão legal não foi revogada pela LOSJ que, em termos de competência material, não atribui expressamente competência aos juízos de família e menores para a apreciação e julgamento das ações da natureza da dos presentes autos.
Esta evidência é prévia e distinta da hermenêutica que se faça incidir sobre o conceito de “estado civil” consignado na alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, pelo que, só fará sentido incluir no âmbito deste preceito as situações que não encontrem específica previsão legal atributiva de competência material, o que, como se viu, não é o caso, atenta a previsão especial contida na parte final do n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade.
Em face disto, afiguram-se inócuas para a resolução da questão em apreço as considerações 1.ª a 6.ª acima enunciadas, não se encontrando algum obstáculo de natureza constitucional, face ao disposto no artigo 36.º, n.º 1, da CRP, relativamente à opção do legislador na atribuição de competência efetuada.
E, de igual modo, mostra-se insubsistente a argumentação expendida sob a consideração 7.ª supra enunciada, dado que, na realidade, o elemento histórico de interpretação permite concluir que o legislador pretendeu regular expressamente a questão da competência e, podendo fazê-lo de outro modo (sendo que um dos projetos de lei de 2006 se referia apenas a “tribunal competente”), seguiu a expressão mais específica de “tribunal cível”, tomando posição sobre a atribuição de competência material relativamente às ações em apreço.
Finalmente, não colhe também a consideração 8.ª acima referenciada, pois, na realidade, atenta a especifica finalidade das presentes ações – destinadas a impor um reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista ao escopo de atribuição da nacionalidade portuguesa – encontra-se plenamente justificada a opção normativa seguida pelo legislador.
Na altura da aprovação do regime resultante da lei da nacionalidade, não constava na LOSJ a alínea g) do nº. 1 do seu art 122º, relativa à competência dos tribunais de família.
Porém, com a aprovação da LOSJ, pela Lei nº. 62/2013, de 26 de agosto, aditou-se à competência dos tribunais de família e menores, a alínea g) atinente às ações relativas ao estado civil das pessoas e família.
Contudo, o artigo 3.º, n.º. 3 da lei da nacionalidade manteve a sua redação, ou seja, continuou a consagrar que a ação a interpor o deveria ser no tribunal cível.
Do confronto entre o artigo 3.º, n.º. 3, da lei da nacionalidade, com a al. g) do nº. 1 do artigo 122.º da LOSJ., prevalecerá aquela, que constitui disposição especial atributiva de competência (cfr., neste sentido, o já citado Acórdão do TRL de 29-09-2022).
Ou seja: Os tribunais de família e menores não são os competentes para julgar as ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade, atento o disposto no artigo 3.º, n.º. 3 da lei da nacionalidade.
Assim, conclui-se: É o juízo local cível – e não o juízo de família e menores - o tribunal competente, para, em razão da matéria, apreciar e decidir das ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, para aquisição de nacionalidade portuguesa, a que se referem o artigo 3.º, n.º 3, da lei n.º 37/81, de 3 de outubro e o artigo 14.º, n.ºs. 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo DL n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro).
Nos termos expostos, julga-se o presente conflito, atribuindo a competência para dirimir o litígio, ao Juízo Local Cível do Funchal – Juiz “X”.
Notifique, nos termos do disposto no n.º. 3 do artigo 113.º do CPC.
Sem custas.
Baixem os autos.

Lisboa, 05-03-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente com poderes delegados).