Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
574/16.4T8ALM.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: LEILÃO
VALOR DO BEM
NULIDADES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Os dois primeiros fundamentos de anulação da venda executiva, constantes do art. 838/1 do CPC, visam a tutela do comprador e por isso estão na sua exclusiva disponibilidade.
II- Na venda em leilão electrónico não podem ser aceites ofertas de valor inferior ao valor base da licitação de cada bem a vender, isto é, a 85% do valor base do bem (arts. 837/2, 817/3 e 816/2 do CPC ou art. 23/2 da Portaria 282/2013, de 29/08, aplicável por força do art. 837/1 do CPC), sendo nula, por isso, tal aceitação (art. 195/1 do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

1- A 15/01/2016, o E-SA, veio requerer uma execução contra uma sociedade, duas senhoras e o marido de uma destas, B, indicando como bem a penhorar o imóvel hipotecado (com o consentimento deste) para garantia da obrigação exequenda (de 156.526,48€), qual seja, o prédio urbano, com a denominação de lote 22, situado em C, com a área total de 504,43m2, sendo de área coberta 279,65m2, composto de rés-do-chão e 1º andar para habitação, garagem e logradouro, da freguesia e município de M, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 0000, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 1111, lá registada a aquisição, em comum e sem determinação de parte ou de direito, a favor daquelas duas senhoras, pela apresentação 1/27/09/2002. Na inscrição da autorização do loteamento constava que era autorizada em cada um dos lotes a construção de moradias uni ou bifamiliares.
2- A 26/04/2016 foi penhorado aquele imóvel, com a seguinte descrição: prédio urbano, descrito sob o n.º 1111, junto da Conservatória do Registo Predial de M, freguesia de M, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 0000, denominado de lote 22 e sito em C, composto de rés-do-chão e 1º andar para habitação, garagem e logradouro – cfr. certidão predial […]. O valor atribuído [de 150.000€] ao bem penhorado equivale ao valor patrimonial, determinado pela avaliação mais recente, constante da respectiva caderneta predial.
3- Foi enviada carta para citação do executado depois da penhora, vindo o a/r assinado em 02/05/2016 (por terceira pessoa, dizendo-se que terá sido, depois, remetida carta ao executado nos termos do art. 233 do CPC).
4- Por carta elaborada a 05/12/2016, foi notificada a advogada do executado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 812 do CPC, isto é, para indicar qual a modalidade da venda pretendida, bem como qual o valor base a atribuir aos bens que serão objecto da venda (isto é, os constantes do auto de penhora datado de 26/04/2016 que já lhe tinha sido notificado).
5- A 08/02/2017, a advogada do executado foi notificada, nos termos e para os efeitos do art. 812 do CPC, da decisão da venda. Com a notificação ia um documento anexo em que se fazia menção à decisão de venda do bem por leilão electrónico (arts. 811/-g e 837 do CPC) e onde se dizia que: seriam aceites propostas iguais ou superiores a 85% do valor base que foi fixado em 286.160€; o exequente tinha requerido que a venda tivesse lugar pelo valor de mercado (ora fixado), constante do relatório de avaliação que juntou; se anexava o relatório de avaliação. Neste relatório consta, para além do mais, que: a avaliação foi feita a 19/12/2016; o imóvel era uma moradia construída, mais um logradouro; a identificação do prédio era feita como no auto de penhora; o ano de construção era de 1995; a área de habitação era de 240m2, mais 10 m2 de arrecadação mais 30 m2 de estacionamento; 8 fotografias; a descrição da habitação era esta: 3 quartos com roupeiro, 2 vestíbulos, 1 sala, 1 cozinha, 1 despensa, 3 quartos de banho, 1 quintal. Diz-se ainda: sob ‘prospecção mercado:’ morT3, usd, M, 243000€, 130m2; morT3, usd, M, 238000€, 150m2; morT3, usd, M, 230000€, 200m2; Terr, M, 46000€, 300m2; Terr, M, 71000€, 650m2.
6- A 06/05/2017, a advogada do executado foi notificada do número do leilão, da data do terminus do leilão (21/06/2017, às 10h) e o local onde ele podia ser acedido, bem como que o bem a vender era o dito prédio, identificado como no auto de penhora.
7- A 21/06/2017, a advogada do executado é notificada do resultado do leilão, dizendo que foi apresentada proposta superior ao valor mínimo para venda do bem penhorado, pelo que, nada sendo requerido no prazo máximo de 10 dias, serão tomados os necessários passos com vista à adjudicação do mesmo ao proponente (pelo valor oferecido – v. anexo). No anexo consta, entre o mais: resultado: inferior ao mínimo (este era de 243.236€); valor da melhor proposta: 171.840,65€, que tinha sido feita por um representante do exequente.
8- A 30/06/2017, o executado veio, “ao abrigo do artigo 838 do CPC, requerer a anulação da venda, com base nos seguintes factos e fundamentos:
1- O prédio à venda é composto de duas moradias geminadas e contíguas, as quais contudo, têm perfeita autonomia, apesar de não existir constituição de propriedade horizontal, nem actualização detalhada em sede de descrição predial na conservatória.
2- As moradias anexadas e que fazem parte do conjunto, são as casas de morada de família respectivamente de D [uma das senhoras executadas] e do ora requerente.
3- São moradias independentes, cada uma delas composta por dois pisos, tendo no rés-do-chão com duas assoalhadas, cozinha, casa de banho, vestíbulo e despensa e garagem e sendo o primeiro andar composto de 3 assoalhadas, casa de banho e varanda.
4- Acresce que cada moradia tem logradouro, existindo piscina no logradouro de uma delas.
5- Assim sendo, mau grado a existência de um só lote para construção onde as mesmas se encontram implantadas, estamos perante duas construções distintas, com autonomia e independência, conforme se infere pela observação das fotos que se juntam, bem como da planta.
6- Cada moradia era habitada com autonomia e não existe acesso entre elas.
7- Cada moradia comporta as suas próprias instalações de água e luz.
8- São dois fogos distintos.
9- Ora acontece que na descrição apresentada em sede de leilão, o imóvel surge como sendo apenas uma moradia, quer na descrição da mesma, quer inclusive nas fotos apresentadas.
10- O que induz em erro potenciais compradores, desvirtua o seu real valor e consequentemente não apresenta um valor considerado pertinente e ajustado, quer à dimensão, quer à utilidade do prédio.
11- Assim e para agravar, confirma-se que o valor base de licitação não foi respeitado, o qual poderia eventualmente ser bastante superior face às características do imóvel. O valor base era de 243.236€, o valor licitado foi de 171.840,65€.
12- Deste modo, a venda foi efectuada pelo valor manifestamente inferior e não teve em consideração as características do imóvel, o qual como já se referiu abrange duas moradias distintas que não foram apresentadas como tal.
13- Há assim um erro identificativo do imóvel, prejudicando os executados, pois a venda poderia ser realizada por valor manifestamente superior.
14- Ora sabe-se que é suficiente para a procedência do pedido de anulação da venda o reconhecimento de ter havido erro sobre a identidade da coisa transmitida ou sobre as suas qualidades, por verificação de falta de conformidade - divergência - entre as características constatadas fisicamente, com as anunciadas para efeitos de leilão.
15- Foi realizada a venda executiva do bem imóvel, sem que estivessem explanadas e bem divulgadas as suas reais condições estruturais, físicas e inclusive matriciais.
16- Ora este circunstancialismo conduz à anulação da venda, nos termos do artigo 838 do CPC.
17- Consequentemente deve a venda do prédio ser inviabilizada.
18- Por outro lado, uma consequência jurídico-processual da decisão sobre a determinação do valor base dos bens é a de que, uma vez fixado, este valor só pode ser reduzido quando a lei o permita ou quando haja autorização judicial.
19- Os casos em que a lei permite a venda por preço inferior ao valor base são a venda mediante propostas em carta fechada (cf. art. 816/2 do CPC e a adjudicação ao exequente ou a qualquer credor reclamante que tenha garantia real sobre os bens penhorados (cf. art. 799/3 do CPC).
20- Também se exceptua o caso do acordo entre o executado e os credores previsto no art. 832/, als. a e b, do CPC, respeitante à venda por negociação particular.
21- Isto significa que, nas demais situações da venda, os bens penhorados só podem ser vendidos por preço igual ou superior ao valor base fixado na decisão sobre a venda (art. 812 do CPC), excepto se existir acordo de todos os interessados ou quando a redução do preço for autorizada por decisão judicial.
22- O valor base da licitação pode corresponder a 85% do valor base dos bens, por aplicação analógica do art. 816/2 do CPC, mas em caso algum podem ser aceites propostas de valor inferior a esse valor mínimo.
23- Quando a mais alta oferta de licitação seja inferior a 85% do valor base fixado essa proposta só pode ser aproveitada no âmbito da venda por negociação particular e nos termos do regime aplicável a esta modalidade de venda.
24- Assim sendo estamos na presença de nulidades (erro na identificação e descrição do bem para efeitos de venda e violação do principio do valor base) que implicam a anulação dos actos de venda do imóvel penhorado ou de todos os actos posteriores à decisão de fixação do valor base dos bens. (artigo 195 e seguintes do CPC).
Nestes termos, requer-se a procedência da presente reclamação com as inerentes consequências.
Junta: planta do imóvel [é uma planta de um r/c, 1º andar e telhados geminados, cada r/c com uma cozinha, uma sala de estar e de jantar e um w/c, e cada 1º andar com três quartos, um w/c e um vestíbulo – parenteses deste acórdão] e 4 fotos [mas só constam 3 – parenteses deste ac.]
9- O exequente respondeu que:
1. O executado requer, entre outra, a anulação da venda, com fundamento na existência de erro sobre a identidade da coisa transmitida, cfr. requerimento a que ora se responde.
2. Ora, o executado foi notificado, em 05/12/2016, na pessoa da sua ilustre mandatária, para se pronunciar sobre a modalidade e preço de venda, nos termos e para o efeito do artigo 812 do CPC.
3. Nada disse.
4. Desta feita, por decisão do Sr. Agente de Execução de 08/02/2017, foi determinada a venda do imóvel penhorado, na modalidade de leilão electrónico e pelo valor base de 286.160€.
5. Por sua vez, notificado da decisão de venda, com a mesma data de 08/02/2017, o executado, mais uma vez, nada disse.
6. Nesse seguimento, o Sr. AE diligenciou pela marcação da venda.
7. Vem agora o executado, ao abrigo do disposto no art. 838 do CPC, requer a anulação da venda.
8. Não lhe assiste, desde logo, legitimidade.
9. Com o efeito, a legitimidade para requerer a anulação da venda por "erro sobre a coisa transmitida" é do comprador e não do executado.
10. Devendo, improcede, improceder a requerida nulidade.
11. Além disso, sempre seria manifestamente intempestiva, por referência ao disposto no art. 199 do CPC.
12. Com efeito, desde pelo menos 08/02/2017, que o executado tem conhecimento da descrição do imóvel em venda.
10- A 13/10/2017 foi proferido o seguinte despacho:
O executado vem requerer a anulação da venda por leilão electrónico nos termos do art. 838/1 do CPC e com os fundamentos do seu requerimento - refª: 26243689 de 30/06/2017.
O exequente foi notificado e pronunciou-se pelo indeferimento do requerido nos termos do seu requerimento - refª: 26363763.
Cumpre decidir.
Preceitua o art. 838/1 do CPC que: "Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906 do CC".
Cumpre realçar que o executado foi notificado em 05/12/2016 para se pronunciar sobre a modalidade e preço da venda do imóvel penhorado e nada disse.
Foi também notificado da decisão do agente de execução que fixou a modalidade da venda e o valor base em 08/02/2017 e novamente nada disse.
A anulação da venda prevista no art. 838 do CPC é uma faculdade que assiste ao comprador do bem, e não ao executado, como bem decorre da letra da lei, não sendo portanto aplicável ao caso presente.
Por outro lado, o executado, tendo sido devidamente notificado de todos os actos processuais optou por não exercer o seu direito de resposta e/ou oposição, e vem agora com este requerimento, desprovido de qualquer fundamento legal e após terem expirado todos os prazos, pretender obstar à venda e protelar o andamento da execução, o que é legalmente inadmissível e além disso reprovável, chegando a sua atitude a tocar as raias da litigância de má fé.
Pelo exposto se indefere ao requerido.
Custas do incidente pelo executado, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (art. 7 e Tabela II do RCP).
Notifique e informe o AE.
11- A 16/11/2017, o executado vem recorrer deste despacho – para que seja revogado -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões úteis:
2- A decisão [recorrida] não é uma decisão justa, coerente e equitativa, essencialmente porque nem sequer é uma decisão mas tão-somente uma omissão sobre a matéria alegada.
3- O executado entende que existe erro sobre o objecto da venda uma vez que há falta de conformidade – divergência - entre as características físicas do prédio com as anunciadas para efeitos de leilão.
4- Tal desconformidade deverá originar a correcção do registo do prédio no registo predial, ficando adjudicado ao exequente uma só uma moradia, ou
5- Ser anulada a venda electrónica e consequentemente ser corrigido o valor base da venda do prédio, onde se contemple a existência de duas moradias independentes, sendo o anúncio também corrigido, para elucidar eventuais interessados.
6- A jurisprudência, em situações semelhantes, vai no sentido da anulabilidade da venda quando existem nulidades, tais como o erro-vício sobre o bem, e quando não são respeitados todos os requisitos previstos na lei quanto às várias modalidades de venda do bem penhorado. Veja-se a título exemplificativo, os acórdãos do TRP de 12/11/2008, processo nº 6206/2008; do TRC de 16/05/2017, proc. 957/12.9TBMGR-A.C1; e do TRL de 24/09/2015, processo nº 1951/12.5TBVNG.P1 [este acórdão corrigiu as várias insuficiências e incorrecções na identificação dos acórdãos invocados pelo executado].
7- O despacho viola os artigos 799/3, 812, 816/2, 832, als. a e b e 838 todos do CPC.
8- O executado pugna pela anulação da decisão proferida pelo tribunal a quo sendo a mesma revogada, e em consequência o despacho reformulado, concluindo-se pela nulidade prevista no art. 195/1 do CPC, ficando, em consequência, sem efeito a venda efectuada.
12- O exequente contra-alegou no sentido da improcedência do recurso, pelas razões que já constam da sua resposta à arguição de nulidade.
13- O recurso só foi admitido a 24/05/2018 e só chegou a este TRL a 07/12/2018
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Questões que importa decidir: se se verifica a nulidade da decisão recorrida e se a venda deve ser anulada.
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Os factos são os que constam dos pontos 1 a 7 do relatório deste acórdão.
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Da nulidade
O executado no seu requerimento de 30/06/2017 pretendia a anulação da venda [não se tratou de uma venda, mas para já a questão não interessa] com dois fundamentos diferentes: um, o da existência de erro na coisa vendida, pois que teria sido anunciada como uma só moradia, quando seriam duas (art. 838/1 do CPC); outro, o da existência de nulidade na venda, que, para além do que antecede, teria sido feita por um valor inferior ao valor mínimo sem o acordo de todos os interessados (nesta parte cita vários normas legais, entre elas os artigos 195 e segs do CPC).
A decisão recorrida, na esteira da resposta do exequente, considera improcedente a pretensão porque, por um lado, a anulação da venda, pelo fundamento do art. 838/1 do CPC só pode ser pedida pelo comprador, não pelo executado; e, por outro, porque seria intempestiva e não teria fundamento legal.
Assim, bem ou mal não interessa agora, a decisão recorrida pronunciou-se sobre a pretendida anulação, com base nos dois fundamentos invocados, pelo que não se verifica a nulidade apontada (que seria, na lógica da arguição, a do art. 615/1-d, 1.ª parte, do CPC, aplicável por força do art. 613/3 do CPC).
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Da anulação da “venda” com fundamento no art. 838/1 do CPC
Nesta parte, não há dúvida de que o despacho recorrido está certo.
A legitimidade para arguir o erro sobre a coisa transmitida, por desconformidade com a coisa anunciada, compete ao comprador e ao não executado. Ou seja, e como diz Lebre de Freitas (A acção executiva, 7.ª edição, Gestlegal, 2017, págs. 397-398), os dois primeiros fundamentos de anulação da venda executiva, constantes do art. 838/1 do CPC, visam a tutela do comprador e por isso estão na sua exclusiva disponibilidade.
O executado responde que o direito da anulação também é facultado ao executado nos termos gerais do direito, conforme acórdão do TRP de 12/11/2008, do proc. 6206/2008, já referido acima. Mas o acórdão não diz nada disso: a referência que o executado tira de tal acórdão consta das alegações do recurso do comprador e não da fundamentação do acórdão.
O que se pode dizer é que, para além do caso especial previsto no art. 838/1 do CPC, existem ainda os casos gerais de anulação de actos processuais decorrentes, por força do 839/1-c, do art. 195/1 e 2, ambos do CPC: no n.º 1 quando se anula o próprio acto da venda, e no n.º 2 quando se anulam actos anteriores que vão arrastar a nulidade da venda como acto posterior (neste sentido, Lebre de Freitas, A acção executiva, citada, pág. 402; já assim, Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. 2.º, Coimbra Editora, págs. 468 a 476, referindo-se ao CPC de 1939, apesar de nele não haver previsão igual à do art. 839/1-c do CPC actual)
Mas daqui não decorre, evidentemente, que, atribuindo a lei apenas ao comprador o direito de anulação por desconformidade entre o vendido e o anunciado, tal direito também assista ao executado “nos termos gerais de direito.”
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Da anulação da “venda” com fundamento no conteúdo do anúncio: art. 195/2 do CPC, aplicável por força do art. 839/1-c do CPC
Se a desconformidade entre a coisa transmitida e a coisa anunciada só pode ser invocada pelo comprador, ela não pode ser um dos motivos de anulação do acto da venda ao abrigo do art. 195/1 do CPC.
De qualquer modo, para que as criticas não fiquem no ar, veja-se melhor:
Antes de mais, o executado não juntou o anúncio da venda (e como se trata de um leilão electrónico encerrado há mais de um ano e meio, este tribunal não tem acesso ao conteúdo do anúncio). E quando o executado fala do anúncio baseia-se no que foi comunicado à sua advogada por carta do AE de 08/02/2017 (facto 5). Ora, a decisão da venda e o relatório de avaliação anexo, que constam dessa comunicação, não são o anúncio do leilão electrónico.
Ou seja, apesar do que é alegado pelo executado, sem preocupações de provar o que afirma, não se pode dizer que o que foi vendido não tenha sido precisamente o que foi penhorado e aparentemente anunciado, isto é, o prédio urbano, descrito sob o número 1111, junto da Conservatória do Registo Predial de M, freguesia de M, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 0000, denominado de lote 22 e sito em C, composto de rés-do-chão e 1º andar para habitação, garagem e logradouro.
É notório, entretanto, que o avaliador e o AE, e se calhar até o exequente e talvez mesmo o tribunal recorrido, parecem pensar que o prédio urbano em causa é só uma habitação, ou melhor, um só T3, com 3 quartos, uma cozinha e uma sala, etc., quando, por outro lado, é notório [pela descrição predial do loteamento, pelas fotografias do relatório de avaliação e pelas juntas pelo executado e ainda pela planta junta (nada disto tendo sido impugnado pelo exequente), bem como pela área de habitação que consta do registo] que o prédio vendido é uma moradia bifamiliar, por isso com duas habitações, ou seja, 2 T3, cada um com 3 quartos, uma cozinha, uma sala e 2 w/c, etc.
Mas, de novo, como não se sabe o que foi de facto anunciado, não se pode dizer que o anúncio esteja em desconformidade com o que foi penhorado.
De qualquer modo, imaginando-se que o anúncio, para além de fazer referência à área do prédio, de 240m2 de habitação, ainda fazia referência ao facto de se tratar de um T3, apenas com 1 cozinha, 1 sala, 1 vestíbulo, 3 quartos e 3 w/c, tudo como constava do relatório de avaliação, diga-se que, por um lado, não é certo que tal fosse especialmente relevante, pois o que principalmente conta para um potencial comprador é a área total de construção habitacional e não a forma como ela se divide. Dito de outro modo: a situação não assumia os foros de escândalo pretendido pelo executado; o anúncio não diria estar a vender um T3 normal, quando afinal eram dois, mas sim a vender um T3 com o dobro do tamanho normal, ou seja, na prática, dois T3.
E, por outro lado, desde a carta de 06/05/2017, o executado, pela pessoa da sua advogada, sabia que era possível que o bem fosse assim descrito no anúncio, pelo que, se achava que tal era relevante, devia, pelo menos, ter ido confirmar, no local do anúncio, como é que o bem aparecia anunciado e, tendo razões para isso, reclamava então.
Seja como for, e independentemente de tudo isto, pelo menos desde 09/05/2017 que o executado, representado por advogada, podia ter conhecimento do conteúdo do anúncio e querendo reclamar alguma irregularidade do mesmo, susceptível de prejudicar a venda, tinha, desde aquela data, o prazo de 10 dias para reclamar (ars. 195/1, 199/1 e 149/1, todos do CPC).
Só tendo vindo levantar a questão do conteúdo do anúncio em 30/06/2017, como facto constitutivo da potencial anulação da venda, estava há muito fora do prazo para o fazer.
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Da anulação da “venda” com fundamento na nulidade do respectivo acto: art. 195/1 do CPC, aplicável por força do art. 839/1-c do CPC
Aqui, já é patente que o executado tem razão e que só por lapso o despacho recorrido, seguindo o exequente, decidiu o contrário.
Isto porque o art. 837/2 do CPC diz que as vendas referidas neste artigo, ou seja, as vendas em leilão electrónico são publicitadas, com as devidas adaptações, nos termos dos nºs 2 a 4 do art. 817 do CPC, ou seja, entre o mais fazendo constar o valor a anunciar para a venda, apurado nos termos do nº 2 do art. 816, ou seja, igual a 85% do valor base dos bens.
Assim, o valor a anunciar, ou seja, o valor mínimo da venda, era de 85% de 286.160€, ou seja, 243.236€ (o que também resulta do art. 2/1-q do Despacho 12624/2015, de 09/11: Valor mínimo» o valor, inclusive, a partir do qual o bem pode ser vendido que corresponde, nos termos do n.º 2 do artigo 816.º do CPC, a 85% do valor base)
Assim sendo, não podiam, evidentemente, ser aceites propostas de valor inferior ao valor mínimo.
Aliás, é isto que diz expressamente o nº 2 do art. 23 da Portaria 282/2013, de 29/08: só podem ser aceites ofertas de valor igual ou superior ao valor base da licitação [a norma quer-se referir ao valor a anunciar para venda, ou seja, a 85% do valor base, isto é, o valor mínimo] de cada bem a vender e, de entre estas, é escolhida a proposta cuja oferta corresponda ao maior dos valores de qualquer das ofertas anteriormente inseridas no sistema para essa venda. Portaria que é a prevista no art. 837/1 do CPC: Excepto nos casos referidos nos artigos 830 e 831, a venda de bens imóveis e de bens móveis penhorados é feita preferencialmente em leilão electrónico, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
Terá o AE tentado aplicar a norma do art. 821/3 do CPC?
Diz esta norma: Não são aceites as propostas de valor inferior ao previsto no n.º 2 do artigo 816.º, salvo se o exequente, o executado e todos os credores com garantia real sobre os bens a vender acordarem na sua aceitação.
Mas, 1.º, tal norma diz respeito à venda mediante propostas em carta fechada e por isso não é aplicável ao caso; pois que, 2.º, existe norma expressa – a referida acima – que não faz a ressalva sublinhada. 3.º Nunca bastaria o facto de o executado nada requerer para que o AE se sentisse autorizado a tomar os necessários passos com vista à adjudicação do mesmo ao exequente, pois que o silêncio do executado só poderia valer como declaração negocial favorável à aceitação daquela proposta se esse valor lhe fosse atribuído por lei (que não existe, antes pelo contrário) por uso ou convenção (que não se invocaram): art. 218 do CC. Como diz Luís Carvalho Fernandes, “não cabe nesta modalidade de valor declarativo ao silêncio, a estipulação unilateral de uma das partes que atribua valor declarativo ao silêncio da outra, dentro de certo prazo” (nota 4 ao art. 218 do CC, Comentário ao CC, parte geral, UCP/FD, 2014, págs. 492-493).
A impossibilidade de aceitação daquela proposta para efeitos da adjudicação resulta também destas normas do Despacho 12624/2015, já citado acima: art. 2/3: A plataforma www.e-leiloes.pt inibe licitação inferior ao valor de abertura [50% do valor base]. A licitação superior ao valor de abertura mas inferior ao valor mínimo [85% do valor base] é, para todos os efeitos, considerada licitação condicional. Art. 2/2 [definições]: A licitação condicional a que se reporta a alínea i não é considerada em termos imediatos para efeitos de adjudicação, mas pode ser posteriormente aproveitada no processo de execução como se se tratasse de uma proposta de compra de um bem em venda por negociação particular. Art. 2/1-i: «Licitação condicional» a licitação de valor inferior a 85% do valor base do bem ou lote de bens a vender e igual ou superior a 50% do respectivo valor base. Art. 7/8: Sempre que a licitação seja inferior ao valor mínimo, a plataforma alerta o utente de que se trata de uma licitação condicional [sobre este despacho, veja-se o texto de J. H. Delgado de Carvalho, As relações entre a venda em leilão eletrónico e as restantes modalidades de venda em https://www.oa.pt/upl/%7Ba08b49da-027f-450e-b606-f41f20fa48a9%7D.pdf, consultado em 03/02/2019].
E, no entanto, a proposta de 171.840,65€ foi aceite com a surpreendente invocação de que a proposta era superior ao valor mínimo para venda do bem penhorado, apesar de também se dizer (contraditoriamente), na mesma comunicação – facto 7 – que ela era inferior ao mínimo.
Em suma, a proposta não podia ser aceite e tendo-o sido é nulo o respectivo acto (já que prejudica, evidentemente, os fins da execução) e o subsequente acto da notificação feita pelo AE em 21/06/2017, bem como todos os posteriores que dele dependam absolutamente (art. 195/2 do CPC – vejam-se vários exemplos disto em Alberto dos Reis, obras e páginas citadas).
Ou seja, embora a aceitação da proposta não signifique ainda uma venda, que só terminaria com a adjudicação, ela mesmo assim deve ser anulada, como aceitação ilegal de uma proposta inaceitável, não como venda (o que aliás foi entendido pelo tribunal recorrido quando diz que o executado pretendia obstar à venda – no sentido de que não há ainda venda, veja-se Lebre de Freitas, A acção executiva, citada, pág. 383, nota 6-C, e anotação 3 ao art. 894 do CPC na redacção anterior à reforma de 2008, no CPC anotado, vol. 3.º, Coimbra Editora, 2003, pág. 582). Trata-se apenas de uma alteração da qualificação jurídica do acto arguido de nulo, permitido pelo art. 5/3 do CPC.
E quanto a este acto, o executado estava em tempo de pedir a sua anulação, visto que ele ocorreu a 21/06/2017 e a arguição de nulidade ocorreu a 30/06/2017.
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso do executado, revogando-se o despacho recorrido e, em sua substituição, decide-se agora julgar procedente a arguição de nulidade daquilo que aqui se considera ser a aceitação da proposta, documentada na notificação de 21/06/2017, feita pelo AE ao executado, anulando-se a mesma e todos os actos subsequentes dela absolutamente dependentes.
Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelo exequente (que foi quem decaiu no recurso).
Lisboa, 21/02/2019
Pedro Martins
Laurinda Gemas
Gabriela Cunha Rodrigues