Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3840/21.3T8LSB.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: CONTAS BANCÁRIAS PLURAIS
TITULARIDADE
CONTAS SOLIDÁRIAS
REGIME JURÍDICO
PRESUNÇÃO DE COMPARTICIPAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-A exceção de enriquecimento sem causa não constitui questão de conhecimento oficioso, razão pela qual, não tendo sido invocada nos articulados, sendo apenas trazida ao processo nas alegações de recurso, não pode o Tribunal da Relação dela conhecer.

II-A questão da titularidade das chamadas contas bancárias plurais não se confunde com a questão do direito aos fundos depositados.

III-A primeira questão prende-se com as relações externas, ou seja, entre os titulares do depósito e o banco depositário, ao passo que a segunda diz respeito às relações internas, ou seja, as que respeitam aos depositantes entre si.

IV-As contas solidárias obedecem ao regime jurídico das obrigações solidárias (512.º, n.º 1 do C.C.), pelo que, sendo o contrato de depósito bancário omisso quanto à determinação do direito às quantias depositadas, no domínio das relações internas, aquele que invocar o direito à totalidade dos montantes depositados em tem de ilidir a presunção de comparticipação em partes iguais (516.º, n.º 1 C.C.).

V-Logrando este ilidir aquela presunção, e provando-se que o outro titular se apropriou de quantias depositadas, fazendo-o sem autorização e contra a vontade do mesmo, persistindo em tal atitude depois de devidamente interpelado, fica obrigado a “restituir” a quantia de que se apropriou (art. 798º do CC), acrescida de juros de mora.


Decisão Texto Parcial:Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1.Relatório


A intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra B, formulando os seguintes pedidos:
  • Que seja declarado que a Autora é a única proprietária do dinheiro e dos títulos na conta bancária solidária aberta no ano de 2011 no Suíço UBS, conta número 0240/001482220, e nessa conformidade, o valor no total de €569.365,00 transferido por esse Banco, respectivamente em 30 de abril e em 30 de junho de 2020 em cumprimento das instruções do Réu a essa instituição bancária, como titular dessa identificada conta e com poderes para as ordenar, era propriedade da Autora;
  • Que, nessa conformidade seja o Réu condenado no reconhecimento deste direito de propriedade da Autora;
  • Que o Réu seja assim, condenado a restituir à Autora a quantia de € 569.365,00 de que ilicitamente beneficiou, pela apropriação desse dinheiro que não lhe pertencia, traduzida na prática de um ato ilícito que o constituiu na obrigação de restituição/indemnização;
  • Que o Réu seja condenado a pagar à Autora juros sobre aquela quantia de € 569.365,00 à taxa legal de 4% ano, vencidos que computa em € 14.226,33 à data da instauração da presente acção e contados desde 30 de junho de 2020, e dos juros vincendos até efectivo e integral pagamento;
  • Que o Réu seja condenado a ressarcir a Autora da quantia de € 15.000,00 a título de danos morais;
  • Que o Réu seja ainda condenado a ressarcir a Autora pelos dividendos que esta deixou de receber com a diminuição do saldo da identificada conta bancária solidária titulada pela Autora e Réu no valor de € 569,365,00 desde 30 de junho de 2020, a liquidar em execução de sentença;
  • Que o Réu seja condenado a pagar à Autora uma quantia não inferior a €10.000,00 (dez mil euros) relativa a honorários do advogado a que teve que recorrer para a defesa dos seus direitos e legítimos interesses, e às despesas a suportar pela Autora com a presente demanda;
  • Que o Réu seja condenado a pagar as custas do processo e condigna procuradoria;
  • Por último, que o Réu seja condenado ainda no pagamento à Autora e ao Estado, em partes iguais, a quantia de €150.00 (cento e cinquenta euros) a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações que lhe vierem a ser impostas pela sentença a proferir nos presentes autos.
  • Subsidiariamente, e para o caso de não procederem os pedidos anteriores, o que apenas se previne, por mera cautela de patrocínio, sem se conceder, que o Réu seja em qualquer caso, condenado a repor a quantia de € 569.365,00 em benefício da Autora por ter havido enriquecimento sem causa à custa desta, acrescido de juros vencidos e vincendos e de dividendos sobre a quantia em causa, contados de desde 30 de junho de 2020 até integral pagamento.”
Para tanto alegou, em síntese, que a dado momento foi titular de uma conta bancária juntamente com o réu, mas que o dinheiro ali depositado era exclusivamente seu, sendo o réu contitular da referida conta apenas para a poder movimentar, de acordo com as suas instruções (dela autora), e que, aproveitando-se da sua qualidade de contitular da conta, sem sua autorização e contra a sua vontade, o réu procedeu ao levantamento de quantias monetárias, que depositou noutras contas de que era titular e às quais a autora não tinha acesso.

Citado o réu, o mesmo contestou, impugnando substancialmente o alegado na petição inicial, e pugnando pela improcedência da ação.

Realizou-se audiência prévia, no decurso da qual se procedeu à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova, após o que teve lugar a audiência final. Finda esta veio a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, o tribunal decide julgar a presente acção parcialmente procedente por parcialmente provada e, consequentemente, decide:
a)-Condenar o R. a reconhecer que a A. é a única proprietária da quantia de €569.365,00;
b)-Condenar o R. a restituir à A. a quantia referida em a);
c)-Condenar o R. a pagar à A. os juros de mora contados sobre a quantia referida em a), à taxa legal de 4% contados sobre a quantia de € 408.930,00 (quatrocentos e oito mil euros e novecentos e trinta euros), desde 30.4.2020 e sobre a quantia de €160.435,00 (cento e sessenta mil, quatrocentos e trinta e cinco euros) desde 30.6.2020 até integral e efectivo pagamento;
d)-Absolver o R. do mais que lhe era pedido.
*

Custas por ambas as partes na proporção do decaimento.”

Inconformado, o réu interpôs o presente recurso de apelação, cujos fundamentos resumiu nas seguintes conclusões:[1]
AAo contrário de quanto se refere na douta sentença ora em crise, não é possível detectar nas declarações de parte da A., ora Apelada, qualquer lógica, nem reiteração de quanto vem alegado no d. Petitório, nem também demonstração de que a mesma está no pleno uso das suas faculdades intelectuais
BRevisitando os mais de trinta minutos por que perduraram as suas declarações de parte, e recordando as afirmações da Recorrida no sentido de já não está tão lúcida como era e que foi afectada de maleitas que lhe afectam a memória, será legitimo questionar a capacidade da A. para entender, quer a propositura da presente acção, quer o seu alcance e consequências.
CA apreciação errada que o Tribunal fez das mencionadas declarações de parte da A., enviesou todo o julgamento da prova testemunhal, em razão do que as respostas dadas à matéria de facto provada indicadas sob os números 1, 2, 6, 8 e 11 e sob o n° 5 dos factos não provados merece sindicância e deve ser alterada como, nos termos do disposto no art. 640°, n° 1, do Cód. Proc. Civil, a seguir se consigna:
D–Ponto 1 dos factos provados: deve ser suprimido, passando a constar como Facto não provado com a seguinte redacção: "7. Não provado que em Dezembro de 2007, a Autora natural da freguesia de Nossa Senhora da Conceição, recebeu USD2.350.000 proveniente da alienação de três imóveis sitos em Angola."
E–Fundamenta-se a sindicância do ponto 1 dos factos provados, para além de violação de lei positiva nos ordenamentos jurídicos angolano e português, no facto de a própria A. ter declarado não ter assistido à celebração do negócio (cfr., 3'40'' a 3' 56''25' e 15 a 29' 28'') já que, "como eu estava no hospital porque tinha feito uma operação ao fémur, eu não pude comparecer" e, tendo dito que tudo foi feito pelo marido e pelo R., em momento algum das suas declarações - nem sequer no articulado inicial - referiu e comprovou que teria concedido poderes a qualquer um deles para celebrar o negócio, que não poderia ser feito senão por ela, e, bem assim, de os depoimentos das demais testemunhas consubstanciarem prova indirecta, já nenhuma delas, de forma totalmente afirmativa, disse que assistiu à ultimação do negócio e ao pagamento do preço (cfr., por todos, gravação relativa à testemunha César ..... 9' 41''). Acresce, ainda, a contradição acerca do adquirente dos bens, já que, em sede de declarações departe a A. disse ter sido um Dr. VA..... 'qualquer coisa' e o doc. n° 4 junto com a PI indicar ser ROC - Riverstone Oaks Corporation, Limitada (cfr.,   1'   56''    a 2'     09''   e        25' 0''         a    25'     23''), contradição que, por si só, sempre tornaria incerta a celebração do negócio jurídico invocado.
FPonto 2 dos factos provados: Por força de o ponto 1 passar a ser julgado como facto não provado, e atenta a passagem, entre outras, de 2' 12'' a 2' 28'' da gravação do depoimento da A., deverá passar a ter a seguinte redacção "2.Os imóveis indicados no art. 1° da petição inicial, integravam o acervo hereditário deixado por óbito dos pais da A. e lhe foram adjudicados por partilha entre os demais herdeiros interessados"
G–Ponto 6 dos factos provados: Deverá passar, tendo em atenção a incerteza do negócio jurídico invocado na PI, e as declarações da testemunha César ……, filho da A., audíveis na passagem da respectiva gravação entre 01:04:50h. e 01:05.52h., a ter a seguinte redacção: "6. Em Dezembro de 2007 foi efectuado um depósito de montante Euro € 1.300.000,00 (um milhão e trezentos mil de euro), contrapartida de USD 2.350.000,00 na conta titulada exclusivamente pelo marido da A. existente no Banco UBS na Suíça, com o n° 0230-762.776"
H–Ponto 8 dos factos provados: Atentas as declarações da testemunha Cesar ….. (cfr. 64' 50'' a 65' 52'') cotejadas com o invocado Doc. n° 10, deverá passar a ter a seguinte redacção: "8. Em 15.12.2011, foi pelo marido da Autora transferido dessa sua conta em 6 identificada o montante de € 1.316.000,00 (um milhão trezentos e dezasseis mil euro) para a referida conta bancária solidária aberta nesse ano de 2011 na suíça no Banco UBS, conta n° 0240/001482220; cfr., doc. n° 10)
I–Ponto 11 dos factos provados: Deverá passar a ter a seguinte redacção: "11. A Autora não terá querido que o seu filho João ….. passasse a ser titular de metade do valor do saldo da conta n° 02../0.......0, aberta no Banco UBS".
J–Fundamenta-se a sindicância deste ponto 11 dos factos provados, na circunstância de, tendo a A. reiterado que o R. não era titular da conta (cfr., 7' 20'' a 7' 44'' e 11' 05'' a 13' 07 da gravação respectiva), não ser possível apreender, incluindo pelas Instâncias, quais poderiam ter sido as pretensões a as intenções da A. à época da abertura da conta.
K–Ponto 5 dos factos não provados: Deverá ser suprimido, passando a constar do elenco dos Factos Provados com a seguinte redacção: "18. O seu filho, aqui Réu, tudo o que nessa conta bancária fazia e decidia, em vida do seu pai, até ao agudizar do seu estado de saúde, dava sempre conhecimento à sua mãe e também a seu pai"
L–Funda-se tal pretensão, para lá do facto de se tratar de afirmação feita na PI e especificamente aceite na Contestação, nos testemunhos de César ….. (cfr., 71' 33'' a 73' 32), César ….. (cfr., 30' 00'' a 30' 36''), Inês ….. (cfr., 12' 20'' a 12 25''), Gustavo .…. (cfr., 41' 10'' a 42' 47'') e Alexandra ..... (cfr., 7' 29'' a 8' 01'' e 9' 45'' a 10' 39'').
M–Dando como provado que "1. Em Dezembro de 2007, a Autora natural da freguesia de Nossa Senhora da Conceição, recebeu USD2.350.000 proveniente da alienação de três imóveis sitos em Angola; Cfr Docs. n° 1,2,3 e 4", a douta sentença recorrida incorre em erro de julgamento da matéria de facto e da aplicação do Direito aplicável.
N–Com efeito, o Contrato Promessa de Compra e Venda, o aditamento ao Contrato Promessa de Compra e Venda, a Procuração e a Declaração cujas cópias consubstanciam os docs. n°s 1 a 4 juntos com a PI, não têm aptidão para consubstanciar um negócio de compra e venda de bem imóvel e conduzir a concomitante transferência de propriedade.
O–Quer na legislação portuguesa, quer também no ordenamento jurídico angolano, a compra e venda de bens imóveis está sujeito a forma legalmente prescrita, escritura pública ou documento partícula autenticado, em Portugal, escritura pública, em Angola, como decorre dos arts. 875° dos Códigos Civis vigentes em ambos os países.
P–Por tal razão, a compra e venda de bens imóveis não pode ser provada por prova testemunhal.
Q–Tratando-se, pois, de uma formalidade ad substantiam, a falta de observância da forma legal torna a invocada compra e venda, caso tivesse ocorrido, em negócio nulo e inexistente.
R–Independentemente da questão da inobservância da forma legal, a matéria de facto carreada aos autos sempre tornaria tal negócio incerto, já que o comprador expressamente nomeado pela A., em sede de declarações de parte, é distinto do que surge indicado como adquirente nos docs. n°s 3 e 4 juntos com a PI e enquanto no doc. n° 1 se refere a promessa recíproca de compra e venda de três prédios, no aditamento é apenas referido um terreno Não podendo ser julgada provada a compra e venda invocada no art. 1° da PI.
S–Acresce que, sendo à época a. casada sob o regime de separação de bens, qualquer negócio relativo a bem imóvel próprio, para além de ter de observar a forma legalmente exigível, teria de ser celebrado por ela ou por procurador com poderes bastantes para o acto que, de harmonia com a prova nos autos seria apenas a ROC - Riverstone Oaks Corporation, Limitada, e não o seu marido e filho, aqui R., como a. pretendeu fazer crer nas suas declarações de parte.
T–Não se provando a compra e venda de bens próprios de bens imóveis próprios da A., ao contrário do que consta, entre outros, do ponto 1 dos Factos Provados, que naturalmente conduziria a que próprio fosse o produto dessa venda, falece a causa de pedir invocada pela A., e deverá falecer a presente acção, que se fundamenta numa qualificação jurídica de factos erradamente julgados como provados.
U–Errado é, também, a decisão de considerar que o R. transferiu da conta de que a. era 1- Titular o montante de € 160.435,00, que seria o montante correspondente à conversão em euro dos US $180,000.00, e o condena a restituir um valor global que incorpora aqueles € 160.435,00, acrescido de juros.
V–Por força do disposto no art. 558°, n° 1, do Cód. Civil, em caso de obrigação em moeda com curso legal apenas no estrangeiro, o pagamento em moeda com curso legal no País é feito ao câmbio do dia do cumprimento e não ao câmbio de uma qualquer data anterior.
W–Tendo o R. alegado que "o pedido de restituição de € 569.365,00 importou uma operação aritmética de conversão de dólares norte americanos em euro, sendo certo que a. nem sequer especifica qual a taxa de câmbio que aplicou para fazer tal conversão", a decisão na Mmª Juiz a quo é demonstrativa de que a mesma não apreciou matéria que devia apreciar.
X–A douta sentença ora em crise faz erradas apreciação, selecção e aplicação do direito aplicável às regras dos depósitos solidários, incorrendo em contradição entre a fundamentação que invoca e a decisão de mérito que prolata.
Y–Atento que o regime das contas solidárias resulta das aberturas de contas (cfr., Ac. Rel. Coimbra, de 04.07.2011; proc. n° 1233/09TBAVR.C.1; in www.dgsi.pt), e não tendo, no momento da abertura da conta n° 02../0.......0 sido fixado qualquer regime que permita ilidir a presunção legal consagrada nos arts. 512° e ss do Cód. Civil, a mera alegação de que os fundos existentes nessa conta eram propriedade da A.
Z–Dizendo-se na própria sentença (cfr., terceiro e quarto parágrafos de fls. 19) que "os titulares de conta bancária solidária têm o direito exigir do banco a restituição integral do depósito", já que "a solidariedade activa numa conta bancária confere a qualquer dos contitulares uma ampla liberdade, permitindo- lhe fazer o que entender com os valores/títulos depositados pelo que, ao abrirem a conta nessas condições, aceitam tacitamente uma ilimitada liberdade recíproca na disposição de tais valores", não incumbia ao R. a prova de que as transferências da conta controvertida eram em função do propósito da outra co-titular.
AA–Decidindo-se como se decidiu na douta sentença, esta está em oposição com os fundamentos de direito invocados, em razão do que, também quanto a esta parte, padece da nulidade prevista na citada al. c) do norma e diploma legais supre mencionados
BB–A obrigação de restituição da quantia indicada na douta sentença, acrescida de juros, sem qualquer redução decorrente das regras fiscais aplicáveis, conduz a uma situação de enriquecimento sem causa da A. à custa do empobrecimento do R, hipótese que o Direito abjura e, por consequência, não pode resultar de imposição judicial, que seria um lamentável error in judicandum.
CC–Na verdade, desde a data das transferências e até à presente data, os rendimentos resultantes dos montantes transferidos não terão sido objecto de qualquer declaração fiscal por parte da A., que sobre eles não suportou qualquer encargo fiscal.
DD–Ao invés, e no seguimento do comportamento fiscal que a A. reconhece na própria PI, o R. logo em 2020 declarou os rendimentos desses montantes e pagou os impostos que lhe foram colectados.
EEA obrigação de restituição da quantia constante da douta sentença, acrescida de juros à taxa de 4%, sem qualquer compensação decorrente das regras fiscais aplicáveis, conduz, pois, ao enriquecimento sem causa da A. à custa do empobrecimento do R,
FF–A douta sentença recorrida incorre em erro de julgamento da matéria de facto carreada aos autos, seja por documentos, seja por declarações de partes e por testemunhas, e em matéria de Direito, designadamente por errada aplicação, designadamente, do disposto nos arts. 512° e ss, 558°, e 875°, todos do Cód. Civil, para além de desconsiderar o disposto no art. 875° do Cód. Civil vigente no lugar onde se situam os bens imóveis controvertidos
GG–Assim mesmo, a mesma padece das nulidades previstas nas alíneas c) e d) do n° 1 do art. 615° do Cód. Proc. Civil.
Culminou as suas conclusões nos seguintes termos:
“(…) deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, revogar-se a douta Sentença recorrida, substituindo-se a mesma por outra que, julgando a acção improcedente, por não provada, absolva a R. do pedido (…)”

A apelada apresentou contra-alegações, que sumariou nas seguintes conclusões:
1.–Nesta instância recursória o recorrente procura perverter uma verdade absolutamente cristalina, continuando também nesta instância a evidenciar uma postura de total desapego pela verdade, absolutamente lamentável timbre de uma litigância judicial puramente oportunista, dilatória e não séria, reflexo da conduta desonesta, desleal e totalmente desrespeitosa que mantêm para com a Autora, aqui recorrida, sua mãe - falsus in unum, falsus in omnibus -.
2.–No que respeita ao objecto do litígio mostra-se incontornavelmente provado nos autos, no que respeita à propriedade da quantia transferida no montante de € 569.365,00, verdadeiro thema decidendum dos presentes autos, pela posição do Réu, aqui recorrente manifestada em sede da sua contestação deduzida que esse montante era propriedade da Autora, aqui recorrida, sem qualquer necessidade de reapreciação de prova, designadamente da prova gravada que nesta instância foi requerida. 
3.–Com efeito, quanto à posição da Autora, aqui recorrida, sobre o facto de quem é a propriedade do dinheiro transferido, afirmando esta ser sua, o Réu não adoptou posição definida sobre essa propriedade, não tomou posição clara frontal e concludente não dizendo ser sua, apenas colocou em dúvida ser propriedade da Autora. 
4.–Ora, a colocação dessa dúvida pelo Réu não pode considerar-se de forma alguma verdadeira impugnação desse facto, pois sendo facto pessoal que se trata, o que o Réu, aqui recorrente, disse em sede de contestação vale como confissão sobre a propriedade do dinheiro transferido, facto relevante e determinante para a decisão ora colocada em crise.
5.–In casu, a propriedade do dinheiro assume natureza de facto pessoal e tendo o Réu se limitado a colocar em causa ser a Autora a proprietária do dinheiro transferido da identificada conta solidária para uma subconta pessoal exclusivamente sua, não dizendo e afirmando que esse dinheiro era seu, acarreta uma confissão sobre a propriedade do dinheiro transferido ser da Autora, aqui recorrida e de mais ninguém.
6.– Assim, quaisquer que venham a ser as superiores decisões de Vexas. no que respeita à demais matéria factual exarada na sentença recorrida, mostra-se definitivamente adquirido que a propriedade do dinheiro transferido da conta solidária do Banco UBS pelo Réu, aqui recorrente, para uma subconta pessoal sua existente nesse mesmo Banco, era da Autora, aqui recorrida.
Sem embargo do exposto, 
Quanto à matéria de facto provada e não provada; 
7.–Sendo consabido que na reapreciação da matéria de facto impõe-se à Relação, enquanto instância de recurso também quanto aos factos, observar o disposto no artº 662.º do CPC, pelo que não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicadas pelo recorrente e/ou pela recorrida, avalia livremente todas as provas carreadas para os autos, valorando-as e ponderando-as com recurso às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos conhecimentos das pessoas e das coisas, no sentido de formar a sua própria convicção, da análise que Vexas farão dos meios probatórios existentes nos autos não se evidenciará ter existido uma deficiente valoração da prova por parte da Meritíssima Juiz “ a quo“, não podendo a prova testemunhal e documental ser posta em causa, ou seja valorada nos termos em que o recorrente pretende para fazer valer a sua posição.
8.–Vexas não deixarão de julgar que a sentença recorrida atendeu, como era natural, ao conjunto da prova produzida por Recorrente e Recorrida, que valorizou de acordo com sua prudente convicção, em obediência aos princípios da imediação e da prova livre, tendo tido o cuidado de fundamentar de forma expressa os motivos (de racionalidade interna) pelos quais firmou a sua convicção em determinado sentido em detrimento de outro, valorando criticamente a prova produzida e enfatizando com toda a clareza os elementos probatórios integrantes dos autos que, para além da prova declaratória e testemunhal, contribuíam através da prova documental para a sua convicção.
9.–No entendimento da recorrida não se pode, da concatenação da prova testemunhal produzida e supra realçada com a prova documental trazida aos autos pela Autora, e igualmente supra destacada, em cada ponto factos provados, nesta instância impugnados, concretamente pontos nº 1, 2, 6, 8 e 11, e facto não provado nº 5, que aqui se dá por reproduzido na integra o que para cada ponto em concreto supra se carreou e alegou e para o qual se remete, concretamente páginas 5 a 57 do presente articulado, retirar nada do seu conteúdo que impeça a convicção que a sentença recorrida explicitou e que fundamentou os factos provados na mesma identificados e que Vexas não deixarão de ter por correcta e adequada ao caso, e assim relativamente à pretendida alteração da matéria de facto, deve o presente recurso ser nesse segmento aqui em análise julgada improcedente, nada havendo a alterar.
10.–Devendo manter-se a factualidade dada como provado e não provada pela Meritíssima Juiz “a quo”, não se verificando nos termos pugnados pelo recorrente nenhum erro de julgamento na decisão dessa matéria de facto não existindo, in casu, nenhuma ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
11.–Não existindo qualquer erro na apreciação das provas, sendo por isso de manter inalterada a factualidade respeitante à propriedade do dinheiro, e demais factualidade provada e não provada o conhecimento do presente recurso relativamente a isso encontra-se prejudicada, uma vez que o recorrente na motivação e nas conclusões do recurso não prescinde da alteração da factualidade em resultado da impugnação para concluir e requerer neste instância pela sua absolvição do pedido em que foi 67 condenado, devendo, na conformidade ser igualmente julgado inteiramente improcedente nesta instância recursória o seu pedido de absolvição do pedido em que foi condenado.
12.–Sem prejuízo, por mero dever de zelo, realçou-se supra também factualidade instrumental adicional produzida nos presentes autos ainda que omissa da sentença recorrida, mas que não deixa de reforçar o acerto da decisão proferida.
13.–A factualidade concernente à adesão ao processo RERT em 2013 para  regularização da tributação dos rendimentos auferidos nas duas contas bancárias existentes no Banco Suíço UBS, a conta das aqui partes litigantes identificada no objecto do litigio dos presentes autos e a conta do falecido marido onde o dinheiro transferido pelo Réu inicialmente entrou, tendo dado origem à apresentação de declarações rectificativas à Autoridade Tributária que foram apenas efectuadas nas declarações da recorrida e seu falecido marido respectivamente e relativamente a cada um dos seus patrimónios, nunca tendo o Réu, aqui recorrente, declarado às finanças a parte dos rendimentos decorrente do facto de ser cotitular da conta nestes autos em causa, o que originou ter sido interpelado pela Administração fiscal para  o efeito, tendo passado a partir de então a declarar 50% dos rendimentos obtidos nessa conta em contitularidade com sua mãe, mas solicitando a esta anualmente o reembolso desses encargos e que a Autora recorrida, lhe satisfez anualmente, tendo sido junto várias documentação para prova desta factualidade através do requerimento referência nº 39787033 enviado aos autos em 8 de setembro de 2021.
14.–Pelo documento nº 4 junto com o identificado requerimento referência, no seu artº 14 desse seu articulado aqui junto, o Réu, aqui recorrente, não deixou de realçar o que já tinha por email referido à Autoridade Tributária, vide doc nº 1 junto com esse requerimento também, ser a Autora, a aqui recorrida; a primeira titular da conta objecto do litigio dos autos e usufrutuária exclusiva do respectivo rendimento dos valores nela depositados e existentes, sendo factualidade provada ainda que instrumental, mas concretizadora de quem era a proprietária do dinheiro existente nessa conta ser a Autora, aqui 68 recorrida e mais ninguém e que reforça o acerto da decisão recorrida e que Vexas não deixarão também de valorar.
15.–Bem como a prova testemunhal supra indicada quanto a esta factualidade realçada e transcrita a flhs 53 a 56 do presente articulado.
  • Quanto às nulidades invocadas;
16.–No caso em apreço, as nulidades imputadas à decisão recorrida são as referidas nas alíneas c) e d) do nº 1 do artº 615 do CPC.
17.–Diz a alínea c) que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão e a alínea d) diz que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (o invocado nesta instância), ou quando conheça de questões de não podia tomar conhecimento.
18.–quanto à nulidade invocada – aliena d) da identificada disposição legal - omissão de pronúncia - invoca o recorrente para o efeito, o artº 558 nº 1 do Código Civil que dispõe que em caso de obrigação contratual em moeda com curso legal apenas no estrangeiro, esse pagamento com curso legal é feito ao câmbio do dia de cumprimento e não ao câmbio de uma qualquer data anterior.
19.–Disposição que não é aplicável ao caso sub judice porquanto não se estar perante qualquer obrigação pactuada em moeda estrangeira (as chamadas obrigações valutárias, obrigações cujo cumprimento se estipula em moeda estrangeira), mas sim perante uma condenação judicial na conformidade do peticionado pela recorrida na condenação do recorrente em restituir à Autora a quantia de € 569.365,00 de que ilicitamente beneficiou pela apropriação desse seu dinheiro que não lhe pertencia.
20.–Pedido formulado que não foi decorrente de uma qualquer relação contratual estabelecida entre recorrida e recorrente, mas decorrente de acto ilícito deste que o constitui na obrigação de restituir tal quantia, acrescida de juros à taxa legal de 4% ao ano, contados sobre € 408.930,00 (desde 30 de abril 69 de 2020, data da 1ª–transferência efectuada pelo Banco) e sobre a quantia de € 160.435.00 (desde 30 de junho de 2020, data da 2º transferência) até integral e efectivo pagamento.
21.–O Banco UBS quando efectuou em 30 de junho de 2020 a 2º transferência do valor de USD 180.000, 00, logo converteu em Euros esse valor, tendo sido junto aos autos cópia do extracto bancário da conta identificada no objecto do litígio referente ao período entre 30.06.2020 a 31.12.2020, do qual consta o débito nessa conta solidária dos valores em euros transferidos para uma subconta pessoal do recorrente, em 30 de abril € 408.930 e em 30 de junho € 160.435,00, conforme Doc nº 13 junto com a petição inicial.
22.–Ora, a Autora, aqui recorrida, peticionou o total da quantia em Euros transferida para uma subconta pessoal do Reu, aqui recorrente, e que foi debitada nessa conta no total de € 569.365,00, tendo a sentença na conformidade do peticionado condenado o Réu a restituir a mesma acrescida de juros de mora.
23.–A decisão recorrida não omitiu qualquer pronúncia relativamente ao que lhe foi peticionado pela Autora, aqui recorrida, foi decisão lavrada na conformidade da configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a sua causa de pedir e pedido. não enfermando dessa nulidade a decisão recorrida.
24.–Quanto à nulidade do artº. 615º, nº. 1, al. c) do CPC (fundamentos em oposição com a decisão) invocada pelo recorrente, é consabido que se verifica quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão.
25.–Trata-se, pois, de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso. Porém, esta nulidade não abrange o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença com o direito substantivo.
26.–Assim, e por outras palavras, só ocorrerá essa causa de nulidade quando a construção da sentença é viciosa, isto é, quando «os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto» (cfr. Prof. Alb. dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 141”).
27.–Ou melhor, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma conclusão oposta à que logicamente deveria ter extraído.
28.–Ora, percorrendo a sentença em apreço, afigura-se à Autora, aqui recorrida, que todas aquelas suas premissas e dados factuais e jurídicos em que assentou, bem como o discurso lógico-discursivo e decisório correspondente, se encontram clara e inequivocamente enunciados e externos.
29.–Não existem nem contradição nem ilogicidade alguma. A decisão, depois de analisar, indagar e juridicamente balizar o “thema decidendum”, extraiu em conformidade o seu juízo jurídico-subsuntivo.
30.–Na elaboração do correspondente silogismo judiciário, não se deteta, pois, qualquer oposição ou contradição.
31.–Saber se a decisão final está ou não em conformidade com as regras do direito aplicáveis aos factos dados como provados, a ponto da solução final dever ser outra que não aquela que foi tomada, nada tem a ver com o aludido vício de nulidade.
32.–Por outro lado, a sentença mostra-se, a nosso ver, clara e cristalina - ao contrário, e salvo sempre o devido respeito, com as alegações/conclusões de recurso -, no que concerne à sua compreensão (quer em termos da sua fundamentação de facto e de direito, quer em termos da sua decisão final).
33.–É, pois, no entendimento da Autora, aqui recorrida, patente que a sentença não enferma, assim, do invocado vício de nulidade, pelo que nessa parte se pugna também pela improcedência do presente recurso.
34.–É indigno e imoral para além de ser destruído de qualquer fundamento de facto e de direito, vir o recorrente invocar que a sua condenação na restituição do capital e juros à recorrida, conduz ao enriquecimento desta à custa do empobrecimento daquele.
35.–Quem enriqueceu foi o Réu, aqui recorrente à custa do empobrecimento da Autora, dado que tem auferido os rendimentos sobre o capital que desviou para conta pessoal sua que não era seu, como se logrou provar no âmbito dos presentes autos.
36.–E se sobre esses rendimentos – ilicitamente obtidos o recorrente pagou impostos, foi porque deles beneficiou, nada retirando o prejuízo que causou à sua mãe, que se viu desapossada, não só do valor do seu capital, como dos juros e/ou outros rendimentos que por via desse capital poderia ter auferido, tudo a impor a aplicação da devida taxa moratória de 4%, como é de Lei e de Direito.
37.Em suma, julgou a sentença recorrida em obediência à justiça e à lei, e em estrita conformidade com o que impunha o artigo 512º do CC, não violando a decisão recorrida os artºs 558ºe 875ªdesse mesmo Código, nem o nº 5 do artº 607 º do CPC, 
Rematou as suas conclusões pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença apelada.

Recebido o recurso neste Tribunal da Relação, e nada obstando ao conhecimento do seu mérito, foram colhidos os vistos.

2.–Questões a decidir

Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[2]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[3].
Da análise das conclusões de recurso do apelante, verificamos que nelas o mesmo suscitou as seguintes questões:
- Das nulidades da sentença – conclusões U-, AA- e GG-;
- Da impugnação da decisão sobre matéria de facto – conclusões A- a S-;
- Do invocado direito à “restituição” da quantia de € 569.365,00 – conclusões T- a Z, e GG-;
- Da exceção de enriquecimento sem causa – conclusões BB- a EE-.
Sucede, contudo, que a questão do enriquecimento sem causa da autora à custa do réu não foi por este invocada na contestação.
Com efeito, estabelece o art.  573º do nº 1 do CPC que “toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado”, acrescentando o nº 3 do mesmo preceito que “Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes, e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente”.
O preceito citado consagra o princípio da concentração da defesa, do qual decorre que o demandado deve deduzir na contestação ou oposição todos os meios de defesa que tenha ao seu alcance, sob pena de preclusão dos mesmos.

Não obstante, a lei processual consagra quatro exceções a esse princípio:
-os incidentes que devem ser deduzidos em separado;
-os meios de defesa supervenientes, ou seja, os fundados em factos que se verifiquem depois de esgotado o prazo para contestar ou deduzir oposição (superveniência objetiva), ou de que o demandado só tenha conhecimento depois de esgotado esse prazo (superveniência subjetiva);
-os meios de defesa que a lei expressamente admita após tal momento;
-os meios de defesa de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente.

Como decorrência deste princípio, a doutrina e a jurisprudência têm sublinhado que os recursos não servem para apreciar questões (de direito ou de facto) novas, mas apenas reapreciar questões já debatidas.
Nessa medida, bem aponta ABRANTES GERALDES[4], “A natureza do recurso como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Segundo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos um modelo de reponderação que vis o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”

Por seu turno sustenta FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA[5]: “No nosso sistema processual (no que concerne à apelação e à revista) predomina o «esquema do recurso de reponderação: o objeto do recurso é a decisão impugnada, encontrando-se à partida, vedada a produção de efeitos jurídicos “ex-novo”. Através do recurso, o que se visa é a impugnação de uma decisão já ex ante proferida, que não o julgamento de uma qualquer questão nova.”

RUI PINTO[6] sintetiza os efeitos práticos do sistema de reponderação nos seguintes termos: “não se admitem nem novos factos, nem novos fundamentos de ação ou de defesa, nem novas provas. A estes recursos dá-se a qualificação de recursos de reponderação: a decisão impugnada é reavaliada no quadro do seu próprio objeto e em razão dos seus vícios específicos, pelo que o objeto do pedido é na parte da revogação a própria decisão e na substituição a matéria que fora objeto da decisão revogada, tal e qual fora conhecida pelo tribunal a quo.”

Este entendimento foi amplamente acolhido pela jurisprudência. Como se refere no ac. STJ de 07-07-2016 (Gonçalves Rocha), p.156/12.0TTCSC.L1.S1, “Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação”. – No mesmo sentido, cfr. RC 14-01-2014 (Mª Inês Moura), p. 154/12.3TBMGR.C1, e RP 16-10-2017 (Miguel Baldaia de Morais), p. 379/16.2T8PVZ.P1.

Mas precisamente porque a lei processual admite a invocação de exceções de conhecimento oficioso após a contestação, a jurisprudência tem sublinhado que essas questões podem ser suscitadas apenas em sede de recurso – neste sentido cfr. ac. STJ 17-11-2016 (Ana Luísa Geraldes), p. 861/13.3TTVIS.C1.S2.

Não obstante, a exceção de enriquecimento sem causa não é de conhecimento oficioso, carecendo de alegação pela parte a quem aproveita, a qual deve ter lugar nos articulados. Nessa medida, sendo invocada apenas em sede de recurso, não deve ser apreciada pelo Tribunal da Relação – neste sentido cfr. acs. RP 21-03-2013 (Carlos Querido), p. 57/07.3TBSBR.P1; RL 24-02-2015 (Maria do Rosário Barbosa), p. 6952/05.7TCLRS.L1-1, RE 30-04-2015 (Conceição Ferreira), p. 35/08.5TBPSR.E1; bem como os seguintes acórdãos do STJ: STJ 23-05-1985 (Luís Garcia), p. 072389; STJ 22-06-2004 (Ferreira Girão); p. 05B175; e STJ 17-06-2010, p. 5339/07.1TVLSB.L1.S1[7].

3.–Fundamentação

3.1.-Os factos

3.1.1.Factos provados

O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1.–Em dezembro de 2007, a Autora natural da freguesia de Nossa Senhora da Conceição, recebeu USD 2.350.000 proveniente da alienação de três imóveis sitos em Angola; Cfr Docs. nº 1, 2, 3 e 4 
2.–Os imóveis referidos em 1. faziam parte do acervo hereditário deixado por óbito de seus pais e que lhe foram adjudicados por partilha entre os demais herdeiros interessados;
3.–Em dezembro de 2007, a. era casada, em segundas núpcias, com João ….., falecido em 19 de agosto de 2020, no regime de separação de bens. Cfr. Docs. nº 5 e 6 
4.–A Autora do casamento em segundas núpcias, teve dois filhos, o Réu, e Maria ….., já falecida e, que à data da sua morte era divorciada, tendo deixado como seu único herdeiro universal seu filho único de nome Gustavo ….., neto da Autora;        
5.–A Autora à data da celebração do seu segundo casamento, tinha um filho nascido das suas primeiras núpcias de nome César ….. que tem por sua vez 3 filhos -César Pinto ….., Inês Pinto ….. e Jordana …..- seus netos;
6.–O dinheiro recebido pela alienação dos três bens imóveis identificados no ponto nº1, foi depositado em dezembro de 2007, numa conta do seu marido existente no Banco UBS na Suíça, com o nº0230-762.776, na qual era sua procuradora; Cfr. Doc. nº 7 (fls.27 e ss.)
7.–Em junho de 2011, o Réu na conformidade da vontade da aqui Autora, de seu pai, falecido marido da aqui Autora, seu irmão uterino César, e sobrinhos César Pinto ….., Gustavo ….., Inês e Jordana ….. impulsionou junto do mesmo Banco UBS na Suíça, o processo documental tendente a:
- Que a conta bancária identificada em 6 fosse transformada numa conta solidária com dois titulares, seu pai e sua mãe, aqui Autora, sendo o Réu, seu 2º procurador e 1º procurador seu primo e neto dos dois titulares da conta, o referido Gustavo ….., podendo os dois procuradores em conjunto movimentar essa conta e os titulares da mesma, cada um por si, também a podendo movimentar;
- Que fosse aberta uma nova conta bancária solidária nesse Banco Suíço, a conta número 0240/001482220, cuja 1ª titular fosse a aqui Autora e o segundo titular da mesma o aqui Réu, com dois procuradores constituídos, os sobrinhos César Paiva ….., e Gustavo ..…, ambos com poderes de em conjunto poderem movimentar essa conta e os titulares da mesma, cada um de per si, a poderem movimentar, com vista a para aí transferir o património pessoal da Autora decorrente da venda dos 3 imóveis referidos no ponto 1;
- E ainda que fosse aberta uma nova conta bancária conjunta nesse mesmo Banco Suíço com dois titulares, o neto da aqui Autora Gustavo ….. e o seu filho, aqui Réu, podendo cada um deles movimentar essa conta bancária para a qual a Autora iria efetuar uma transferência de determinado valor na altura ainda não definido; Cfr. Docs. nº 8 e 9 (fls.32 v. e ss.)
8.–Em 15.12.2011, foi pelo marido da Autora transferido dessa sua conta em 6 identificada, o valor proveniente da alienação dos 3 imóveis referidos em 1, que se encontrava repartido a essa data em dólares e em euros, o montante de € 1.316.000,00 (um milhão trezentos e dezasseis mil euros) para a referida conta bancária solidária aberta nesse ano de 2011 na Suíça no Banco UBS, conta número 0240/001482220; Cfr. Doc. nº 10
9.–A Autora pretendia conta solidárias, porque na altura já tinha 85 anos de idade, querendo que seu filho João ….., aqui Réu, nela fosse titular nas condições supra identificadas, e em quem confiava totalmente, não só no plano pessoal, mas atendendo também ele ser um gestor e economista experiente, com apetência e capacidade para ajudar sua mãe na rentabilização do seu dinheiro, com manifestas vantagens para todos;
10.–Assim o fez, para que, enquanto viva, pudesse usufruir de dividendos resultantes de opções de aquisição de produtos financeiros e de investimentos decididos pelo seu filho em relação ao seu dinheiro em função da sua formação e domínio dessas matérias e também em benefício dos seus herdeiros;
11.–Autora ao ter pretendido que seu filho João ..…, aqui Réu, fosse contitular da conta bancária identificada não teve qualquer intenção que o mesmo passasse a ser proprietário de metade desse valor, não querendo dispor gratuitamente do seu dinheiro em seu benefício exclusivo;
12.–Em 20/04/2020 o R. através de carta por si assinada, solicitou ao gestor do Banco UBS na Suíça que por débito da conta solidária nº0240/001482220 na qualidade de contitular da mesma, procedesse à transferência do crédito em conta no valor de € 500.000,00 (quinhentos e sessenta mil euros) sem autorização ou conhecimento da Autora, para uma sua conta pessoal nesse mesmo banco que identificou com IBAN CH 87 0... ...9 ...4 ...0 Y; Cfr.Doc. nº 12 
13.–Solicitando, ainda, que o montante a transferir da conta em contitularidade com sua mãe, aqui Autora, ficasse afeto a uma “subconta B” da sua conta bancária individual; Cfr. doc. nº 12 
14.–O Banco UBS na sequência do pedido de transferência do Réu, realizou as seguintes operações bancárias, para as quais a A. não emitiu autorização nem lhe foi dado conhecimento:
-Em 30/04/2020 do crédito existente a essa data na conta nº02../0.......0, transferiu em títulos o valor de € 408.930,00 (quatrocentos e oito mil euros e novecentos e trinta euros),
-Em 30/06/2020 transferiu o valor de USD 180.000,00 que convertendo em euros totalizou a quantia de € 160.435,00, do crédito existente a essa data nessa mesma conta; Cfr. Doc. nº 13 a fls.39. 
15.–O valor total debitado do crédito da conta nº 02../0.......0 foi de € 569.365,00 (quinhentos e sessenta e nove mil trezentos e sessenta e cinco euros) e que foi transferido para contas individuais do Réu por instruções suas; Cfr. Doc. nº 12 
16.–Em 19/11/2020 foi o Réu, citado por Agente de Execução no âmbito da notificação judicial avulsa impulsionada e requerida pela aqui Autora contra o Réu; Cfr. Docs. nº 14 e 15
17.–A atuação do R., ao proceder às transferências referidas em 15, sem a sua autorização, provocaram e provocam tristeza à A..

3.1.2.–Factos não provados

O Tribunal a quoconsiderou não provados os seguintes factos:
1.–Nos últimos dois anos com o agudizar do estado de saúde do seu marido, vindo a falecer em agosto do ano transato, o Réu, alterou o comportamento prestado à Autora sua mãe, tratando-a sem qualquer consideração e respeito, ignorando-a totalmente, fingindo e atuando como ela tivesse deixado de existir e de viver em sua casa; 
2.–O Réu, bem como pelo seu neto Gustavo ....., levaram documentação sua e do seu marido, retirada do escritório de sua casa;
3.–Entre documentação retirada pelo aqui Réu do interior de sua casa, desapareceu a pasta referente aos extratos dos últimos anos da conta solidária da Autora em contitularidade com o Réu, criando dificuldades à Autora de obter informação documentada sobre a movimentação e aplicação do seu dinheiro nessa conta;
4.–Desde o sucedido que nunca mais conseguiu dormir uma noite seguida, vive sobressaltada e muito assustada e com uma insegurança elevada, tendo entrado em grande depressão.
5.–O seu filho, aqui Réu, tudo o que nessa conta bancária fazia e decidia, em vida do seu pai, até ao agudizar do seu estado de saúde, dava sempre conhecimento à sua mãe e também a seu pai; 
6.–As transferências referidas nos pontos 12 a 14 da matéria de facto provada, foram determinadas em benefício da A. e demais herdeiros.

3.2.–Os factos e o direito

3.2.1.–Das nulidades da sentença

Em jeito de introito à análise das nulidades invocadas, justifica-se plenamente citar ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[8]:
2.–É verdadeiramente impressionante a frequência com que sede de recurso são invocadas nulidades da sentença ou de Acórdão denotando o número significativo de situações em que o verdadeiro interesse da parte não é propriamente o de obter uma correta Apreciação do mérito da causa, mas de anular a toda a força a sentença com que foi confrontada.
3.–É claro que certas decisões poderão estar invadidas de nulidades, mas ainda assim seria bom que se interiorizasse que atende o disposto no art. 655º nº 1, que regula os poderes da relação no âmbito do recurso de apelação, a sua verificação não determina necessariamente a remessa dos autos ao tribunal primeira instância, antes implica a substituição imediata por parte da Relação, a não ser que alguma questão tenha sido considerada prejudicada e haja necessidade recolher outros elementos. Mesmo quando as nulidades respeitam a acórdãos da relação a intervenção do Supremo também se faz em regra em regime de substituição a não ser nas situações excluídas no nº 1 do art. 684º.
4.–Acresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida, ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta algum argumento dos muitos florescem nas alegações de recurso.
5.–Porventura esta tendência encontrar a sua raiz num modelo processual em que curso do prazo para interposição de recurso apenas iniciava depois de serem apreciados pelo tribunal a quo eventuais nulidades decisórias que eram autonomamente arguidas.  Porém há muito que foi ultrapassado esse quadro normativo, de modo que o prazo para interposição de recurso e apresentação de alegações apontada partir da notificação da sentença (art 638º nº 1) sem que haja a possibilidade de a parte dilatar (artificialmente) o exercício desse direito através da dedução de incidente de arguição de nulidade ou de reforma da sentença, questões que, quando surjam devem ser necessariamente integradas nas alegações de recurso, como claramente escreve nº 4. Seguro é que os resultados que se observam através da leitura dos acórdãos são reveladores da generalizada falta de consistência das nulidades que são frequentemente arguidos tendo como Reflexo justificada sua Apreciação sumária que na maior parte das vezes é inteiramente merecida.”
Como bem apontam os citados autores, é realmente impressionante a circunstância de a grande maioria das arguições de nulidade da sentença se revelarem flagrantemente improcedentes e, mais do que isso, grosseiramente fundamentadas, demonstrando as mais das vezes profundo desconhecimento do que há décadas vem sendo explicado na doutrina e na jurisprudência acerca do correto âmbito de aplicação das normas que cominam a nulidade da sentença, sem que se denote, da parte dos recorrentes, qualquer esforço argumentativo no sentido de convencer o Tribunal de recurso das razões pelas quais arguem o apontado vício ao arrepio dos entendimentos dominantes na matéria.
Infelizmente, como veremos, o caso que nos ocupa constitui apenas mais um exemplo dessa postura.

3.2.1.1.–Da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. c) do CPC – conclusões AA- e EE-
Dispõe o art. 615º, nº 1, al. c) do CPC que a sentença é nula “quando os fundamentos estejam em contradição com a decisão, ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

Como ensinava ALBERTO DOS REIS[9], a sentença ou acórdão serão obscuros quando neles se contenha “algum passo cujo sentido seja ininteligível” ou cujo sentido exato não se logre alcançar. Já a ambiguidade ocorre quando “alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”.
Por seu turno, sustenta MANUEL TOMÉ SOARES GOMES[10]:
“segundo o artigo 607º, nº 3, parte final, o juiz na sentença deverá concluir pela decisão final, o que se reconduz, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação discursiva entre:
  • A base da facti species, simples ou complexa, plasmada no quadro normativo aplicável – a dita premissa maior;
  • A factualidade dada como provada – a dita premissa menor; e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro normativo.
Entre tais premissas e conclusão deve existir, portanto, um nexo lógico que permita, no limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa relação de exclusão lógica. Na verdade, sobre dois termos excludentes nem tão pouco é possível formular um juízo de mérito ou de demérito; já não assim quando se trate de uma relação de mera inconcludência, sobre a qual é possível formular um juízo de demérito.
Ora, a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera inconcludência estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da acção.”

Finalmente, dizem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[11]:
9.–A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.
10.–A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.”
No caso vertente, considera o apelante que a sentença enferma desta nulidade, fundamentando tal entendimento nos seguintes termos[12]:
 “9.–É afirmado na douta sentença recorrida (cfr., penúltimo parágrafo de fls. 21) que "da factualidade provada, havemos de concluir que manifestou a vontade do R. ficar co- titular para que este quando assim se justificasse agisse no interesse da A. e, agindo no interesse da A., agiria no interesse de todos os herdeiros, dada a avançada idade da a A".
Uma vez que a asserção relativa à co-titularidade deriva, segundo a Mma. Julgadora da factualidade provada, deveria, então, ter concluído que a A. não manifestou sequer a vontade de que o filho fosse titular da conta.
Uma vez que uma manifestação de vontade de um qualquer declarante não pode ser provada por testemunhos indirectos nem por introdução a perguntas de mandatário, a factualidade provada só pode assentar nas declarações de parte da A., designadamente no seguinte:
Mma Juíz: "Mas então como é que o senhor seu filho pode fazer essa tal transferência que a senhora vem aqui alegar que o seu filho fez?
A.: "Fez, nunca percebi como"
Mma Juíz: "Minha senhora, se o seu filho não era titular da conta não lhe podia mexer"
A.: "Era tudo através do Pai, o Pai; o Pai é que estava desse lado a [incompreensível]
Mma Juíz: "Mas o Pai era titular dessa conta?"
A.: "Não"
Mma Juíz. "E o seu filho?"
A.: "Também não!"
Mma Juíz.: "Então como é que o seu filho fez a transferência"
A.: "Isso gostava eu de saber".
Destas e de outras declarações da própria A. não é legítimo concluir como é feito na douta sentença recorrida, razão pela qual, muito embora (sejam especificados os fundamentos de facto e de direito da decisão, a verdade é os fundamentos invocados estão errados, pelo que errados estão, quer o fundamento de Direito que sobre eles se fez recair, quer a decisão prolatada.
Se nada foi especificado nas condições de abertura de conta e a A, afirma repetidamente que o R. não era titular da conta controvertida e que ela não quis que o fosse, a decisão de julgar que a A. quis que o R. fosse titular da conta com objectivo determinado está em oposição com os fundamentos para que e remete, do que resulta que, nessa parte, a decisão padece da nulidade prevista na al. c) do n° 1, do art. 615° do Cód. Proc. Civil.
10.–Afirma-se, outrossim, na douta sentença recorrida (cfr., segundo parágrafo de fls. 22) que "incumbia ao R. provar que levantou o dinheiro, em função do propósito da outra co- titular o que não logrou fazer".
Visto que na própria sentença se refere (cfr., terceiro e quarto parágrafos de fls. 19) que "os titulares de conta bancária solidária têm o direito exigir do banco a restituição integral do depósito" , já que "a solidariedade activa numa conta bancária confere a qualquer dos contitulares uma ampla liberdade, permitindo-lhe fazer o que entender com os valores/títulos depositados pelo que, ao abrirem a conta nessas condições, aceitam tacitamente uma ilimitada liberdade recíproca na disposição de tais valores", a sentença incorre em erro de julgamento, seja quanto aos factos, seja quanto ao Direito aplicável.
Se a faculdade de qualquer dos titulares pode ser exercida por si só, não incumbia ao R. a prova de que as transferências da conta controvertida eram em função do propósito da outra co-titular e decidindo-se como se decidiu, a douta sentença está em oposição com os fundamentos de direito invocados, em razão do que, também quanto a esta parte, padece da nulidade prevista na citada al. c) do norma e diploma legais supre mencionados”
Da leitura do citado trecho resulta, de forma flagrante que aquilo que a argumentação ali vertida não configura qualquer nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão, relevando apenas no âmbito da impugnação da decisão sobre matéria de facto e da discussão do mérito da causa.
Com efeito, e no que respeita ao supratranscrito ponto 9., parece-nos evidente que a contradição a que alude a al. c) do nº 1 do art. 615º é a que se verifica entre os fundamentos da sentença e o dispositivo, e não entre as afirmações da autora no depoimento que prestou, e o dispositivo. E também é evidente que os fundamentos relevantes são os vertidos na sentença recorrida, e não aqueles que no entender do apelante ali deveriam constar.
Já no que se refere à argumentação vertida no ponto 10., há que salientar que não se descortina na sentença apelada qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, na medida em que o Tribunal a quo considerou que:
a)-O dinheiro depositado na conta bancária nº 02../0.......0 pertencia exclusivamente à autora, o que significa que resultou elidida a presunção de contitularidade decorrente do facto de se tratar de uma conta solidária;
b)-Uma vez que o dinheiro depositado na conta pertencia exclusivamente à autora, o réu apenas o poderia movimentar no interesse desta, e nunca contra a sua vontade;
c)-O réu, agindo sem conhecimento nem autorização da autora, retirou dessa conta a quantia global de € 569.365,00;
Termos em que se conclui que a sentença apelada não padece da apontada nulidade.
Tudo isto, obviamente, sem prejuízo da oportuna apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto e da reapreciação do mérito da causa.

3.2.1.3.– Da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d) do CPC – Conclusões U- e EE-

Nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Esta nulidade configura, no fundo, uma violação do disposto no artigo 608º, nº 2, do mesmo Código, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Neste contexto, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Conforme já ensinava ALBERTO DOS REIS[13], “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.” Ou seja, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado.

Dito de outro modo: esta nulidade só ocorre quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções e não quando apenas se verifica a mera omissão da ponderação das “razões” ou dos “argumentos” invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas. Com efeito, as questões a decidir não são os argumentos utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Do supra exposto flui que não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam para sustentar a procedência ou improcedência da ação. Nas palavras precisas de MANUEL TOMÉ SOARES GOMES[14] “(…) já não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido, portanto numa questão de mérito.”

Pode, pois, concluir-se que não há omissão de pronúncia quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada, competindo ao tribunal decidir questões e não razões ou argumentos aduzidos pelas partes. O juiz não tem que analisar todos os argumentos invocados pelas partes, embora se ache vinculado a apreciar todas as questões que devem ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente.

Assim, incumbe ao juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente deve conhecer, mas não tem que se pronunciar sobre os pedidos e questões cujo conhecimento esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outros/as (art. 608º, nº 2, do CPC).

O conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui. Por isso, não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra. 

No que tange ao excesso de pronúncia (segunda parte da alínea d) do nº 1 do art. 615º), o mesmo ocorre quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado, sendo estas questões os pontos de facto ou de direito relativos à causa de pedir e ao pedido, que centram o objeto do litígio. Conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2012  (João Bernardo), p. 469/11.8TJPRT.P1.S1[15] à luz do princípio do dispositivo, há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada. Contudo, quando o tribunal, para decidir as questões suscitadas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia suscetível de integrar nulidade.

A discordância da parte relativamente à subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou à decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença.

Como se afere das considerações supra expostas, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que a omissão ou excesso de pronúncia enquanto causas de nulidade da sentença têm por objeto questões a decidir na sentença, e não propriamente factos ou argumentos jurídicos.

Neste sentido, sublinhou o ac. RL 23-04-2015 (Ondina Alves), p. 185/14.9TBRGR.L1-2, que «questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem.
Apreciar e rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência ou a improcedência da ação, bem como a circunstância de lhes fazer, ou não, referência, não determina a nulidade da sentença por excesso ou omissão de pronúncia. (…)
Situação diversa da nulidade da sentença é a de saber se houve erro de julgamento, pois como se refere no Ac. do STJ de 21.05.2009 (Pº 692-A/2001.S1), (…) se a questão é abordada, mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou fáctica, há erro de julgamento, não “error in procedendo”». 

Em sentido semelhante, decidiu, entre outros, e por mais recente, o ac. RC 23-02-2016 (Carvalho Martins), p. 2316/12.4TBPBL.L1, no qual se sublinhou que “só há omissão de pronúncia com vício de limite previsto na al. d) do nº1 do art. 668º do CPC (615º NCPC), quando o Tribunal incumpre quanto aos seus poderes e deveres de cognição o disposto no nº2 do art. 660º do mesmo diploma (608º NCPC)”.
Também o ac. RG 16-11-2017 (José Flores), p. 833/15.3T8BGC.G1, apontou em sentido idêntico, referindo que “não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam tendo em vista obter a (im)procedência da ação.“
Não obstante, mais recentemente, esta mesma questão foi apreciada de modo algo diverso no ac. RL 29-05-2018 (Luís Filipe Pires de Sousa), p. 19516/17.3YIPRT.L1-7. Neste aresto, apreciava-se uma situação em que na sentença se considerou provado determinado facto não alegado pelas partes, e que o Tribunal recorrido qualificou como complementar ou acessório (art. 5º, nº 2, al. b) do CPC), sem que no decurso da audiência tenha informado as partes da possibilidade de considerar tal facto na sentença, e sem que tenha concedido aos litigantes a possibilidade de produzir prova.

Com efeito, no mencionado acórdão expôs–se o seguinte:
“da ata da audiência de julgamento não resulta que o Mmº. Juiz a quo tenha anunciado às partes a pretensão de ampliar a matéria de facto e, muito menos, que lhes tenha facultado a produção de prova, sendo certo que este Tribunal da Relação não tem acesso à gravação da audiência porque não ocorreu.
Nesta medida, não tendo sido observado o formalismo garantístico da alínea b) do nº2 do artigo 5º, a subsequente decisão do tribunal a quo de considerar tais factos na sentença consubstancia uma nulidade por excesso de pronúncia porquanto o tribunal conheceu de questões de que não podia, nessas circunstâncias, tomar conhecimento (Artigo 615º, nº1, alínea d), do Código de Processo Civil)”. Em sentido semelhante se havia igualmente pronunciado o ac. RP 30-04-2015 (Aristides Rodrigues de Almeida), p. 5800/13.9TBMTS.P1.
Quanto a nós, cremos que a nulidade decorrente de omissão ou excesso de pronúncia não tem por objeto factos, mas apenas as questões de direito que constituem a causa de pedir da ação ou da reconvenção, ou integram a defesa por exceção.
Se a sentença recorrida não se pronuncia sobre factos controvertidos com interesse para a decisão da causa, que por tal razão não são considerados na decisão sobre matéria de facto (e como tal considerados provados, ou não provados), tal omissão releva no âmbito da impugnação da decisão sobre matéria de facto, mas não configura nulidade da sentença.

No caso vertente o apelante sustentou que a sentença recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia, argumentando para tanto que[16]:
«7.– A douta sentença recorrida dá como provado que
14.–O Banco UBS na sequência do pedido de transferência do Réu (...) em 30/06/2020 transferiu o valor de USD 180.000,00 que convertendo em euros totalizou a quantia de € 160.435,00 do crédito existente a essa data nessa mesma conta; Cfr. Doc. n°
13, a fls.39".
Ora, Ilustres Senhores Desembargadores, tal decisão quanto à matéria de facto evidencia a nulidade prevista na al. d) do n° 1 do art. 615° do Cód. Proc. Civil, já que a Mma Juíz deixou de pronunciar-se relativamente a matéria sobre que devia fazê-lo e faz errada aplicação do Direito, já que desaplicou o disposto no n° 1 do art. 558° do Cód. Civil.
Na verdade, no art. 26° da d. PI, a Recorrida alega que, em 30 de Junho de 2020, o Banco UBS transferiu o montante de US $180,000.00 que convertido em Euro corresponderia a € 160.435,00.
Porém, no art° 202° da Contestação oferecida, o ora recorrente alegou que "o pedido de restituição de € 569.365,00 importou uma operação aritmética de conversão de dólares norte americanos em euro, sendo certo que a A. nem sequer especifica qual a taxa de câmbio que aplicou para fazer tal conversão".
Sendo certo que qualquer taxa de câmbio de conversão de dólares norte-americanos em Euro em vigor desde 20 de Junho de 2020 até ao presente seria insusceptível de fazer equivaler um valor exacto de dólares - *,00 - num valor exacto de Euro - *,00 -, o valor indicado no Doc. n° 13 não pode deixar de ser havido como meramente indicativo.
Ao condenar na restituição de € 569.365,00 e sem referir o local dessa restituição (atento que, conforme plasmado nos autos, a A. é titular de contas em USD quer na Suíça, quer em instituições bancárias em Portugal), o Tribunal deixou de pronunciar-se quanto ao lugar do cumprimento, quer quanto ao câmbio da conversão de USD em Euro e não aplica lei constituta, que, em caso de obrigação em moeda com curso legal apenas no estrangeiro, consagra que o pagamento em moeda com curso legal no País é feito ao câmbio do dia do cumprimento e não ao câmbio de uma qualquer data anterior.
Por essa razão, e nessa parte, como assinalado, a douta sentença recorrida padece da nulidade prevista na al. d) do n° 1 do Cód. Proc. Civil.»
Apreciando, diremos que, mais uma vez, não assiste razão ao apelante.
Com efeito, as questões sujeitas à apreciação do Tribunal a quo residiam em determinar se o dinheiro depositado na conta nº 0240/001482220 do banco UBS pertencia exclusivamente à autora, e se esta tem direito à restituição da quantia de € 569.365,00 que o réu retirou dessa conta bancária.
E sobre tais questões o Tribunal a quo pronunciou-se inquestionavelmente.
Aferir da correção do decidido, nomeadamente à luz do argumento invocado pelo apelante, é questão que se prende com o mérito do recurso, não configurando qualquer nulidade da sentença recorrida.
Termos em que se conclui que a sentença recorrida não padece de nulidade por omissão de pronúncia.

3.2.2.– Da impugnação da decisão sobre matéria de facto – Ponto II da motivação do recurso, e conclusões A- a S-

3.2.2.1.–Considerações gerais

Dispõe o art. 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Por seu turno estatui o art. 640º n.º 1 do mesmo código que quando seja impugnada a decisão sobre matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O n.º 2 do mesmo preceito concretiza que, sempre que o recorrente se baseie no teor de depoimentos prestados, incumbe-lhe, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. A observância desse ónus pressupõe a indicação do início e fim das passagens dos depoimentos tidas por relevantes, podendo o recorrente, se assim o entender, proceder à transcrição dessas passagens. Tal indicação não tem necessariamente que constar das conclusões, mas deve constar da motivação do recurso. No sentido exposto cfr., entre muitos outros, os acs. RC de 17-12-2017 (Isaías Pádua), proc. 320/15.0T8MGR.C1; e STJ 06-12-2016 (Garcia Calejo), p. 437/11.0TBBGC.G1.S1.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
Sumariando os ónus impostos pelo citado preceito, ensina ABRANTES GERALDES[17]:
“(…) podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a)-Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso, e síntese nas conclusões;
b)-Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c)-Relativamente aos pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d)-(…)
e)-O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente;
f)-(…).”

3.2.2.2.–O caso dos autos
No caso em apreço, considera este Tribunal que o apelante observou os ónus probatórios acima enunciados.
Resta apreciar o mérito da impugnação da decisão sobre matéria de facto, que tem por exclusivo objeto os pontos 1, 2, 6, 8, e 11 do elenco de factos não provados, bem como o ponto 5 do elenco de factos não provados, e ainda o aditamento de um novo ponto ao elenco de factos provados.

3.2.2.2.1.– Pontos 1., 2., e 6. dos factos provados – Conclusões D-, E-, e F-

Os pontos 1., 2., e 6. dos factos provados têm a seguinte redação:
1.–Em dezembro de 2007, a Autora natural da freguesia de Nossa Senhora da Conceição, recebeu USD 2.350.000 proveniente da alienação de três imóveis sitos em Angola; Cfr Docs. nº 1, 2, 3 e 4.
2.–Os imóveis referidos em 1. faziam parte do acervo hereditário deixado por óbito de seus pais e que lhe foram adjudicados por partilha entre os demais herdeiros interessados.
6.–O dinheiro recebido pela alienação dos três bens imóveis identificados no ponto nº1, foi depositado em Dezembro de 2007, numa conta do seu marido existente no Banco UBS na Suíça, com o nº0230-762.776, na qual era sua procuradora; Cfr. Doc. nº 7 (fls.27 e ss.)
Da leitura do trecho da sentença que contém a motivação a decisão sobre matéria de facto resulta que a convicção do Tribunal a quo relativamente a estes factos resultou dos seguintes meios de prova:
- Depoimentos das testemunhas César …., César Paiva .…., Inês Cardoso,  Jordana ..…, Gustavo .…., e Paula …..[18];
- Declarações de parte prestadas pela autora;
- Documentos nºs 1 a 4, e 7, juntos com a petição inicial
- Documentos de fls. 33, 34, 38 e 138 ss.
Acerca dos depoimentos prestados pelas referidas testemunhas, registou o Tribunal a quo, quanto a estes pontos de facto, as seguintes observações:
“(…)
César ….., filho da A. e de outro pai, esclareceu que sempre tratou o falecido marido da A. e pai do R. como pai. Referiu que a mãe herdou bens em Angola e foram esses os bens que a mãe vendeu por volta do ano de 2007 em Portugal, por parte do avô materno. O seu depoimento foi relevante para a prova dos pontos 1 e 2. O seu depoimento foi corroborado pelas testemunhas César (seu filho) e Inês. A este propósito a testemunha ainda referiu que juntamente com o seu irmão e seus pais chegou a ter reuniões com o comprador dos imóveis.
Confirmou que o valor proveniente da venda dos imóveis foi depositado numa conta na Suíça titulada pelo falecido marido mas posteriormente a mãe abriu uma conta por si titulada onde procedeu ao depósito dessa quantia. Nessa conta figuravam como titulares a A. e o R. e procuradores o seu filho e o seu sobrinho.
(…) Este depoimento foi assim, igualmente relevante para os pontos 6 a 8 da matéria de facto provada.
(…)
César Paiva ….., filho da anterior testemunha e neto da A. e sobrinho do R., declarou ter residido com os avós e com o seu tio. Esclareceu que a avó tinha património de família em Angola, tendo referido que o avô materno deixou imóveis em Angola tendo a sua avó herdado. Referiu que a sua avó, em 2007, foi contactada para vender os imóveis e esclareceu que a venda foi discutida em reunião de família.
Esclareceu que o valor da venda ascendia a cerca de dois milhões, trezentos e cinquenta mil dólares. O seu depoimento contribuiu também para a prova dos pontos 1 e 2, e veio a ser corroborado nesta matéria especifica, pelos seus primos Gustavo e Inês. 
Esclareceu que a avó sentiu necessidade de abrir uma nova conta, encerrando aquela da Suíça, porque tinha a expectativa que o gestor de conta lhe prestasse informações sobre a gestão da mesma o que não acontecia. A A. queria saber o saldo da conta e os gastos e foi tendo cada vez menos informação. 
Disse que a titularidade dessa nova conta (A. e R.) e demais intervenientes (dois netos) foi decisão tomada em família. Relativamente ao gestor de conta da Suíça, referiu que falava muito com o seu avô e que o seu interlocutor era o R.. Referiu que foi o R. quem deu indicação ao Banco para que o dinheiro proveniente da venda dos imóveis fosse transferido da conta em que o pai do R. era titular, para a conta em que a A. passou a ser titular com o seu filho O depoimento da testemunha foi consentâneo com o documento constante de fls.33 e 34. 
(…)
Foi ouvida Inês ……, neta da A. e quem desde 2018, lhe presta auxílio, designadamente, procedendo a contas e pagamentos, quem consigo vai às compras, quem verifica as cartas recebidas, tarefas que já fazia no tempo do seu avô. Esta testemunha referiu que a partir do momento em que se decidiu vender os terrenos que o negócio era falado. Referiu que era o R. quem participava mais activamente nas negociações de venda dado que a A. não tinha muitos conhecimentos de negócios. Referiu que a avó estava sempre a dizer ter recebido dois milhões e trezentos mil euros da venda dos terrenos. Confirmou a versão dada na petição inicial, ou seja, a venda dos imóveis em Angola, o depósito em conta na Suíça da titularidade do falecido marido e depois a transferência para uma conta titulada por si e pelo R., sendo seus dois netos procuradores o que aconteceu em 2011. (…)
Foi também ouvida a testemunha Jordana ….., neta da A. e sobrinha do R. que referiu que desde muito jovem ouviu falar que a avó tinha património em Angola. A avó depois da venda declarava que tinha recebido dois milhões e trezentos mil euros. Esta testemunha foi informada das transferências feitas pelo tio pela própria A. que lhe contou e se mostrou muito indignada, também ajudando a formar a convicção da prova dos pontos 1 e 2.
Gustavo ….., também neto da A. e sobrinho do R. que demonstrou ter conhecimento das contas da Suíça. Confirmou que foram transferidos fundos da conta do seu avô para a conta titulada pela A. e pelo R..
(…)
Esta testemunha é filho da falecida irmã do R.. Referiu que em vida dos avós, já a A. o acusava de ter-lhe tirado dinheiro. Referiu que com esta situação, as reuniões de família acabaram.
Esta testemunha explicou que o tio procedeu às transferências em causa nos autos para preservar o património porque entendia (a testemunha também) que a avó estaria a privilegiar alguns dos netos/filhos em detrimento do próprio R. e da testemunha. Referiu-se, designadamente, à prima Inês. Neste ponto do depoimento o tribunal concluíu que esta testemunha e o R. estava num campo e que a restante família que depôs como testemunha, estava num campo oposto. Ficaram claras as discordâncias e desavenças. 
Esta testemunha referiu – aliás de acordo com o que já havia sido dito pelas testemunhas anteriormente ouvidas - que o dinheiro depositado na conta em causa nos autos era da A., produto da venda dos imóveis.
(…)
Ouvida a esposa do R. e do que resultou com interesse para a causa, esclareceu que dada a profissão do R. tinha o papel de analisar e traduzir informação técnica aos pais, aconselhá-los, tendo com eles reuniões periódicas para analisar as contas. Não esteve presente em qualquer dessas reuniões, apenas sabendo a respeito o que o R. lhe contava. Confirmou que havia reuniões com o gestor de conta do Banco Suíço. 
(…)
Explicou as transferências para a conta titulada pelo R. dizendo que o R. verificou que a conta estava a desvalorizar –perder rentabilidade- e como estava incompatibilizado com a mãe falou com o pai (entretanto falecido) que concordou que transferisse o dinheiro para uma conta da sua titularidade. 
Refere que havia movimentos avultados nas contas geridas pela Inês o que lhes causava desconfiança. Daqui se conclui que o R. por não ter confiança na sobrinha Inês ..... pretendeu afinal, acautelar o dinheiro da mãe, não fosse “desaparecer”. Na verdade, apesar da testemunha afirmar que o R. nunca se comportou como se o dinheiro transferido fosse dele, o certo é que, conhecendo o desejo da mãe que voltasse a pôr o dinheiro na sua conta, o mesmo não o fez.”

O autor discorda do entendimento manifestado pelo Tribunal a quo, considerando que:
- O ponto 1. “deve ser suprimido, passando a constar como não provado (…)”;
- A redação do ponto 2. deve ser alterada, ali passando a constar que “Os imóveis indicados no art. 1º da petição inicial integravam o acervo hereditário deixado por óbito dos pais da A. e lhe foram adjudicados por partilha entre os demais herdeiros interessados”;
- A redação do ponto 6. deve ser alterada, ali passando a constar que “Em Dezembro de 2007 foi efectuado um depósito de montante Euro 1.300.000,00 (um milhão e trezentos mil de euro), contrapartida de USD 2.350.000,00 na conta titulada exclusivamente pelo marido da A. existente no Banco UBS, conta nº 02../0.......0; cfr. doc. nº 10)”.

Para tanto argumentou nos seguintes termos:
«(…), percorrendo as declarações da A. não é possível detectar nelas qualquer lógica, nem reiteração de quanto consta da petição inicial, nem também demonstração de que a A. está no pleno uso das faculdades intelectuais.
1.1.-Com efeito, logo aos 1' 56'' da gravação das suas declarações, consta que a A. declarou
"vendi ao Sr. Dr. Vasco ….. 'qualquer coisa', vendi parte desse terreno que foi tudo herança dos meus Pais"
E, mais adiante (cfr., 25' 10''), volta a repetir que "o Dr. Vasco ….. foi o comprador"
Tais declarações não reiteram, antes contradizem, quanto consta da PI, designadamente quanto se alcança do doc. n° 4 com ela junto e tido como integrado no art. 1° do mesmo articulado, no qual é dito que a A.
"(...) declara aceitar vender a ROC - Riverstone Oaks Corporation, Limitada, com sede em Luanda, na Rua ..... ....., n° ...-1, AA....., contribuinte fiscal n° 5........., os seus imóveis sitos no A..... M....., L_____, nas mesmas condições acordadas com o Dr. VA....., conforme Aditamento ao Contrato Promessa de Compra e Venda assinado a 29 de Agosto de 2007" (sublinhado nosso).

1.2.– Acresce que, no art. 7° da PI a A. alega que
"O dinheiro da requerente recebido pela venda dos três bens imóveis em 1° identificados (...) foi por sua vontade depositada inicialmente em Dezembro de 2007, numa conta do seu marido" (realce no original),
Mas, designadamente aos 3'33'', a A, depois de referir que à época da putativa venda estava internada por ter sido operada ao fémur, referiu que o filho João ….. "resolveu depositar" (cfr.; 4' 46'') o dinheiro na conta do Pai e ao longo das sua declarações sempre foi dizendo que não sabia de nada, que o R. (cfr., 20' 53'') actuou "sempre com conhecimento do Pai, incitado pelo Pai".
A este propósito, aliás, sublinhe-se que a A. invocou uma operação ao fémur na época da alegada compra e venda, mas mais adiante - cfr., 25' 47'' - quando perguntada se se recordava quando teria sido efectuada essa cirurgia, respondeu "eu era bastante nova, 36 anos".
E convidada a esclarecer se teria sido há 36 anos, a A. precisou (cfr., 25' 54'') que "tinha 36 anos (...) estive um mês internada".
Ora, Senhores Desembargadores, pretextar que não pode acompanhar a conclusão de um negócio em 2007 porque, por virtude de uma operação ao fémur realizada quase 50 anos antes se encontrava hospitalizada poderá significar tudo menos pleno uso das suas faculdades.
A própria Recorrida, como resulta de 15' 37'', precisou mesmo que "tenho 95 anos, já não estou tão lúcida como era, evidentemente, e ultimamente tenho estado adoentada de modo que perdi um bocadinho a memória, a coisa [ininteligível] me esqueci"

1.3.– E, no art. 10° da PI, é alegado que
"A autora quis, assim, proceder a abertura de uma conta bancária sujeita ao regime de solidariedade nesse identificado Banco estrangeiro, cujos titulares passaram a ser além dela, o seu filho João ....., aqui réu"
Insolitamente, designadamente para quem está no pleno uso das suas faculdades, logo aos 7' 11'' das suas declarações, depois de o seu mandatário especificar que se estava a referir à conta de que a A. e o filho João ..... eram titulares, a A. respondeu
"eu lembro-me de transferir, mas não me lembro de o meu filho João ..... ser titular"
E, como decorre de 11' 05'' da gravação, afirma mesmo
"Não me lembro de ele ser titular, pelo menos com autorização minha, não!".
Esta última afirmação levou mesmo a Mma. Juíz a perguntar-lhe "a conta era só titulada por si?"
Ao que a Recorrida respondeu peremptoriamente (11' 12''): "Era!"
Esta resposta motivou uma um diálogo entre a Recorrida e a Mma Juíz (cfr., 12' 31'' a 13' 07''):
Mma Juíz: "Mas a Senhora também disse que, a dado momento, a Senhora abriu uma conta nova onde pôs esse dinheiro, onde transferiu desse dinheiro que estava na tal conta da Suíça que era do seu marido, e pôs numa conta sua"
A.: "Não cheguei a fazer isso!"
Mma Juíz: "Então?"
A.: "A conta ficou sempre como estava e ele movimentava-a sempre que queria"
Mma Juíz: "Ele quem?"
A.: "O meu filho com o conhecimento do Pai; ele e o Pai combinavam as coisas e eu não sabia de nada"
E, como resulta do minuto 22' 20'', convidada esclarecer se a titularidade da conta era conjunta com o R., reiterou que "quando abri lá conta, ele não era titular"
E já no final das suas declarações (cfr., 34' 14'' a 35' 33'') é possível escutar o seguinte diálogo:
Mma Juíz: "Mas o seu filho não estava também na sua conta e podia gerir a sua conta?"
A.: "Não!"
Mma Juíz: "Mas então como é que o senhor seu filho pode fazer essa tal transferência que a senhora vem aqui alegar que o seu filho fez?
A.: "Fez, nunca percebi como"
Mma Juíz: "Minha senhora, se o seu filho não era titular da conta não lhe podia mexer"
A.: "era tudo através do Pai, o Pai; o Pai é que estava desse lado a [incompreensível]
Mma Juíz: "Mas o Pai era titular dessa conta?"
A.: "Não"
Mma Juíz. "E o seu filho?"
A.: "Também não!"
Mma Juíz.: "Então como é que o seu filho fez a transferência"
A.: "Isso gostava eu de saber"
Basta este conjunto de diálogos entre a Mma Juíz a quo e a ora Recorrida para não permitir a conclusão do tribunal (cfr., pág. 11, parágrafo 4°, da douta sentença), de que
"Os depoimentos foram praticamente unânimes pois não foi posto em causa que o R. ficou titular da conta (...)"

Foi reiteradamente posto em causa pela A.
1.4.–Já quanto à questão de saber por quem a teria avisado dos movimentos de conta ordenados pelo R. em 2020, a A. afirmou:
"Já não sei quem foi, não me lembro quem foi, porque além disso eu tenho outro filho, pessoas amigas..."
E perante uma insistência, acrescentou (cfr., 17' 16'' a 18' 05''):
"Eu acho que recebi de lá, recebi documentos de lá e foi através de um documento (...) fui eu que descobri, que acabei por saber (...) até porque a quantia era fácil de decorar, 580 mil"
Ora, Ilustres Senhores Desembargadores, a resposta da A. contradiz os fundamentos da douta sentença ora em crise, já que, no ponto 13. dos Factos Provados se remete expressamente para o Doc. n° 13, no qual aquele montante não é indicado e os montantes das transferências surgem separado.
1.5.–A determinado momento das declarações de parte da A., e quando se procurava esclarecimento, foi a própria Mma Juíz a quo que, interrompendo, interveio (cfr., 29'28'') dizendo "Oh Sr. Dr. Não podemos exigir mais".
E, mais adiante, antes de se entrar no depoimento de parte requerido (cfr., 33' 35''), a Mma. Juíz colocou mais uma questão à Recorrida:
"Srª D. Judith, a senhora colocou esta acção contra o seu filho, porquê?"
Pergunta à qual a Recorrida respondeu:
"Porque ele me tem feito muito mal".

1.6.–Perante os diálogos que a Mma. Juíz travou com a Recorrida, designadamente o transcrito de 34' 14'' a 35' 33'', a mesma perguntou ao signatário (cfr., 35' 34''):" Sr. Dr. Ainda precisa do depoimento de parte?
Ao que foi respondido (cfr., 35' 38''): "Atendendo ao pedido de V. Exa, não".
1.7.–De quanto antecede, Excelentíssimos Senhores Desembargadores, resulta evidente que a Recorrida, no momento em que prestou as suas declarações, não reiterou, antes contradisse, o alegado em sede de petitório, desmentiu os fundamentos do pedido ao afirmar, do princípio ao fim das suas declarações, que o R. nunca foi titular da conta, e o seu depoimento chegou a ter momentos de profunda falta de lógica, seja quando tem um lapso de mais de 40 anos, ao justificar o não acompanhamento do negócio em 2007, quando já tinha cerca de oitenta anos, com a operação ao fémur, ocorrida quando a A. tinha apenas, como afirmou, 36 anos de idade, ou ao insistir ad nauseam que o Recorrente nunca tinha sido titular da conta 02../0........0, mas mesmo assim tinha ordenado movimentos sobre a mesma incitado pelo Pai.
Revisitando os mais de trinta minutos por que perduraram as suas declarações de parte, e recordando as afirmações da Recorrida de que já não está tão lúcida como era e as maleitas de que padece lhe afectam a memória, será legitimo questionar a capacidade da A. para entender, quer a propositura da presente acção, quer o seu alcance e consequências.
2.–Na mesma douta sentença ora em crise (cfr., pág. 10, último parágrafo), é referido que a testemunha César ….. é filho da testemunha César ..... e Neto ..... A. e teria declarado "ter residido com os avós e com o seu tio."
A questão poderia ser de mero pormenor, mas a verdade é que a convivência de anos, atenta a tenra idade da testemunha, não lhe terá permito um conhecimento muito profundo da idiossincrasia de um e outro.
Como quer que seja, a testemunha não referiu em momento algum ter conhecimento concreto da celebração de uma compra e venda de bens imóveis em Angola, tendo-se limitado a um 'ouvir dizer que sim'.
Ora, Ilustres Senhores Desembargadores, para além da circunstância de uma compra e venda de imóveis não poder ser provada por testemunho, o depoimento desta testemunha seria sempre indirecto e, ao contrário de quanto consta da douta sentença recorrida, não poderia motivar a prova dos pontos 1 e 2 dos Factos Provados.
3.–Relativamente ao depoimento gravado da testemunha César ....., filho do primeiro casamento da A. é possível ouvir que, relativamente aos factos dos pontos 1 e 2 dos Factos Provados, o mesmo, perguntado se acompanhou o processo, respondeu (cfr., 9' 41'')  
"Não acompanhei na totalidade; quem acompanhou com frequência foi o meu irmão; mas acompanhei, fui a duas ou três reuniões com o comprador"

E acrescentou:
"Mas fui a umas reuniões com o comprador (...), fui com o meu irmão, com o meu Pai e com a minha Mãe".
Mas, e não obstante não poder provar-se por testemunhas qualquer negócio que esteja sujeito a forma legal não observada, em momento algum a testemunha César ..... afirmou peremptoriamente ter assistido à celebração do negócio.
De outro modo, não se teria limitado a dizer que tinha ido com o irmão, com o Pai e com a Mãe a umas reuniões, teria afirmado taxativamente, assisti à consumação do negócio e vi a entrega do cheque.
Mas não disse tal!
Tal como em relação ao seu filho, César ….., o depoimento de César ..... não poderia relevar para prova dos pontos 1 e 2 dos Factos Provados, ao contrário do referido no primeiro parágrafo de fls. 10 da douta sentença de 1- instância.
Como quer que seja, ao minuto 44' 29'' do depoimento gravado da testemunha César ….., após sucessivas consultas a um 'auxiliar de memória' de que o mesmo se foi socorrendo para responder a todas as perguntas que lhe iam sendo feitas, e perante uma resposta ilógica pelo facto de a resposta não ter sido possível pelo recurso a tal auxiliar, segundo a qual a A. teria tido conhecimento das transferências ordenadas pelo R. em 2018, a Mma Juíz perguntou mesmo:
"Oh Sr. Dr., esse documento de que o Sr. Dr. se está a socorrer foi feito por si ou foi feito [ininteligível]?
Tanto bastaria, Excelentíssimos Senhores Desembargadores, para que o testemunho de César ..... não pudesse ser tão ponderoso quanto à motivação da matéria de facto e, por consequência, quanto à decisão de mérito produzida.»
Vejamos então.
Como se afere da argumentação expendida pelo apelante, o mesmo aceita que a autora herdou três imóveis sitos em Angola, embora considere que a prova produzida não permite considerar provado que os mesmos foram vendidos, e que a quantia depositada nos termos descritos no ponto 6 do elenco de factos provados proviesse da alienação dos mesmos imóveis.
Argumenta para tanto o apelante que a prova da venda de imóveis só pode fazer-se por escritura pública, por ser esta a forma prescrita quer no Direito Angolano, quer no Direito Português.
Afigura-se cristalino que a compra-e-venda de imóveis só pode celebrar-se mediante escritura pública ou por documento particular ou autenticado (art. 875º do CC), e que se tal forma for inobservada, o contrato de compra e venda será nulo (art. 220º do CC).
Assim, estando a compra e venda de imóveis sujeita àquela forma especial, a prova da sua ocorrência não pode fazer-se por outro meio de prova ou documento que não seja de valor probatório superior (art. 364º, nº 1 do CC).
Contudo, a jurisprudência dos Tribunais superiores tem afirmado, sobretudo a propósito da prova de factos sujeitos a registo civil, que sempre que os factos que se pretendam demonstrar não façam parte do thema decidendum, isto é, quando os efeitos jurídicos que as partes pretendem obter da causa sejam alheios àqueles factos, então a sua demonstração no contexto da causa pode fazer-se por qualquer meio de prova, incluindo a prova testemunhal.
Neste sentido cfr., entre outros, os acs. STJ, RL 12-12-1996 (Dinis Nunes), p.  0015021; STJ 12-01-2006 (Oliveira Barros), p. 05B3427; RL 15-03-2007 (Jorge Leal), p. 10342/06-2; RG 05-07-2007 (Antero Veiga), p. 1092/07-2; RC 20-01-2009 (Gonçalves Ferreira), p. 5924/06.9TVLSB.C1.

Por identidade de razão haverá também que admitir, que sempre que tal não faça parte do thema decidendum, a prova de factos relacionados com a alienação de imóveis poderá fazer-se por meio de documento com valor probatório inferior ao da correspondente forma legal aplicável.

No caso vertente, verificamos que na presente ação não pretende qualquer das partes exercer qualquer direito relativamente aos imóveis sitos em Angola que a autora alegou ter alienado, mas tão só demonstrar que o dinheiro depositado na conta bancária nº 02..-7.. -.7.. e posteriormente transferido para a conta nº 02../0.......0 (ambas da UBS) lhe pertencia exclusivamente, por provir da celebração de negócios de alienação do mencionado património.

Note-se que relativamente a esta questão, não manifesta o apelante qualquer dúvida de que os mencionados imóveis pertenciam exclusivamente à apelada, antes reconheceu expressamente que assim era, por terem tais imóveis sido herdados pela mesma[19].
Nesta conformidade, consideramos que a prova dos factos em apreço não deve considerar-se tarifada.
Mas mesmo que assim se não entendesse, a verdade é que sempre se poderia considerar, como alternativa, que se considerasse provado que a autora recebeu o montante mencionado no ponto 1. dos factos provados em consequência da celebração de negócios relativos aos mesmos imóveis, ou seja, sem concretizar em que consistiam tais negócios, e independentemente da sua validade.
Ora, ouvido o registo de todos os depoimentos prestados na audiência final, bem como o depoimento prestado pela autora, e analisados os documentos acima referidos, resulta inequívoco que as testemunhas mencionadas na motivação acima transcrita depuseram no sentido exposto, pelo que dúvidas não podem subsistir em como a quantia mencionada no ponto 1. dos factos provados resultou da alienação dos três imóveis em apreço.
Aliás, como bem salientou o Tribunal a quo isso mesmo resultou também não só do depoimento da testemunha Paula ….., mulher do apelante, cujo teor revelou como é natural, maior simpatia pela posição por este sustentada no processo, mas também do depoimento prestado pela testemunha Gustavo ….., sobrinho do apelante, e filho de uma irmã sua já falecida (portanto pessoa mais distanciada relativamente aos interesses do irmão do apelante). Estas circunstâncias conferem, a nosso ver, especial credibilidade a estes dois depoimentos no tocante a factos que não são favoráveis apelante.
Podemos, pois, afirmar que a totalidade das testemunhas inquiridas que declarou ter tomado conhecimento dos factos em questão declarou que o dinheiro referido no ponto 1. dos factos provados proveio da alienação dos três imóveis que a apelada tinha em Angola, e que eram da sua exclusiva propriedade, por ter sido herdados de seus pais.

São disso ilustrativos os seguintes trechos, transcritos pelo réu nas suas contra-alegações[20]:
(…)
  • Depoimento da neta Inês ….. (20210908140936_20146107_2871030.wma - 08.09.2021 - m 00:53:23 a m 00.54:10-):
(…)
  • Declarações de parte da Autora,
(…)
Donde, se conclui pela improcedência da impugnação da decisão sobre matéria de facto no tocante aos pontos 1, 2, e 6 dos factos provados.

3.2.2.2.2.– Ponto 8. dos factos provados – Conclusão H-
(…)
Termos em que, sem necessidade de outras considerações, se conclui pela improcedência da impugnação da decisão sobre matéria de facto também quanto a este ponto 8..
3.2.2.2.3.– Ponto 11. dos factos provados – Conclusões G- e H-
(…)
Daí que improceda a pretendida alteração da redação deste ponto 11. do elenco de factos provados, que se deverá manter nos seus precisos termos.
3.2.2.2.4.– Ponto 5. dos factos não provados – Conclusões K e L
(…)
Termos que nesta parte, não se conhece da pretendida impugnação da decisão sobre matéria de facto.

3.2.2.2.2.–Síntese conclusiva
Em face do supra exposto, a decisão sobre matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo deve manter-se, nos seus precisos termos, nada havendo a alterar, seja no elenco de factos provados, seja no relativo aos factos não provados.

3.2.3.– Do depósito bancário
Da factualidade apurada flui com evidência que o litígio dos presentes autos gira em torno da movimentação da conta bancária nº 02../0.......0 do banco suíço UBS, de qual eram contitulares a autora, ora apelada, e o réu, ora apelante.
A abertura e movimentação de uma conta bancária pressupõem a prévia outorga e vigência de um contrato de depósito bancário.
Tendo o referido contrato sido celebrado com um banco suíço, coloca-se em primeiro lugar a questão da determinação da lei aplicável, de acordo com as regras do Direito Internacional Privado.
No caso vertente, nenhuma das partes se pronunciou acerca da determinação da lei aplicável ao contrato de depósito bancário em questão. Não obstante, verifica-se que na petição inicial a autora e ora apelada delimitou a causa de pedir em torno de argumentos jurídicos de Direito português[21], tendo o réu e ora apelante rebatido tal argumentação igualmente com argumentos jurídicos de Direito nacional[22].
Ora, estabelece o art. 41º, nº 1 do CC que as obrigações provenientes de negócio jurídico se regem pela lei que os respetivos sujeitos tenham escolhido, acrescentando o art. 42º, nº 1 do mesmo código que na falta de determinação da lei competente se atende, no caso dos contratos, à lei da residência habitual comum entre as partes. Finalmente estatui o nº 2 do art. 42º do CC que na falta de residência habitual comum e no tocante aos negócios onerosos se aplica a lei do lugar da celebração.
No caso vertente, a factualidade provada é omissa no que respeita a factos que permitam aferir a que condições gerais e especiais ficou sujeito o contrato de depósito bancário relativo às contas bancárias mencionadas no elenco de factos provados, e se aquando da sua celebração as partes pretenderam submetê-lo a alguma lei em especial. Por outro lado, também tal como se desconhece em que lugar tal(is) contrato(s) foi(oram) celebrado(s). Nessa medida, entendemos ser de atender ao acordo tácito manifestado pelas partes nos articulados, no sentido de submeter a análise do mérito da causa ao Direito português.

Vejamos então.

Dispõe o art. 407º do Código Comercial que os depósitos feitos em bancos “reger-se-ão pelos respetivos estatutos em tudo quanto não se achar prevenido neste capítulo e mais disposições legais aplicáveis”.
Como é sabido, a natureza jurídica do depósito bancário tem sido debatida, sustentando alguns que se trata de um depósito irregular, outros de um contrato de mútuo, e outros ainda de um contrato atípico.
Em qualquer das modalidades, o contrato de depósito bancário rege-se, em primeiro lugar, pelas cláusulas estipuladas pelos contratantes, relevando também o regime previsto no DL nº 430/91, de 02-11, alterado pelo DL nº 88/2008, de 29-05.
Não obstante, tem-se generalizado o entendimento de que o depósito à ordem é de qualificar como depósito irregular, por ter por objeto coisas fungíveis (art. 1.205º do CC), e se achar subjacente à sua outorga a ideia de disponibilidade do respetivo montante a todo o tempo (art. 1º, nº 2 do DL 430/91), ao passo que no depósito a prazo essa disponibilidade se acha fortemente limitada, na maior parte das vezes por cláusulas que impedem ou penalizam a movimentação da quantia depositada antes do decurso do prazo convencionado (art. 1º, nºs 4 e 5 do mesmo diploma).
De qualquer modo, haverá que notar que por força da outorga deste contrato o depositário não se obriga a restituir, a final a mesma coisa que recebeu em depósito, mas tão-só coisa idêntica em quantidade e qualidade, ou seja, idêntico montante da mesma moeda, acrescida da retribuição ajustada (habitualmente sob a forma de juros).
Acresce que mesmo no caso do depósito à ordem, sendo este um contrato de depósito irregular que é, por força do disposto no art. 1206º do CC, fica sujeito “na medida do possível” às regras do contrato de mútuo. Neste sentido cfr., entre muitos outros, JOSÉ MARIA PIRES[23], MENEZES CORDEIRO[24], PEDRO PAIS DE VASCONCELOS / PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS[25], e CARLOS LACERDA BARATA[26].

3.2.4.Das contas bancárias solidárias e do direito às quantias nela depositadas
Sendo o contrato de depósito bancário um tipo contratual dinâmico, na medida em que a sua execução se prolonga no tempo, materializando-se em diversas operações a crédito e a débito, generalizou-se o conceito de “conta bancária”,

Na ótica de MENEZES CORDEIRO, a abertura de conta bancária consubstancia um negócio bancário nuclear, na medida em que a conta regista os movimentos decorrentes das relações contratuais entre o banco e o cliente, convocando por vezes registos provenientes de vários contratos bancários. De qualquer modo, como refere o mesmo autor, é frequente classificar as contas bancárias como individuais ou coletivas, e, dentro desta última categoria, distinguir os seguintes subtipos:


- conta-solidária: qualquer dos titulares pode movimentar sozinho livremente a conta; o banqueiro exonera-se, no limite, entregando a totalidade do depósito a um único dos titulares;
- conta-conjunta: só pode ser movimentada por todos os st titulares, em simultâneo;
- conta-mista: alguns dos titulares só podem movimentar a conta em conjunto com outros.”[27]

Esta classificação tem merecido acolhimento na jurisprudência.
Não obstante, no que respeita às contas solidárias, de acordo com o entendimento dominante, a solidariedade da conta apenas releva no domínio das relações externas, ou seja, no domínio das relações entre os titulares e o banco. Já no domínio das relações internas, ou seja, as que respeitam aos contitulares, tem-se entendido que da titularidade solidária da conta não decorre necessariamente a definição acerca da “propriedade” das quantias depositadas, ou melhor, a definição do direito sobre os montantes depositados.

Neste sentido cfr. acs.:
-RL 12-02-2015 (Mª de Deus Correia), p. 189/11.3TBFUN.L1-6;
- RC 03/05-2016 (Barateiro Martins), p. 328/15.5T8CNT.C1;
- RG 07-04-2016 (Helena Melo), p. 1171/09.6TBPTL-A.G1;
- RP 28-11-2017 (Mª Cecília Agante), p. 236/14.7T8PRT.P2;
- RE 30-01-2020 (Mário Coelho), p. 3954/18.7T8STB.E1;
- RP 09-02-2021 (Anabela Dias da Silva), p. 4534/19.5T8VNG.P1;
- STJ 26-10-2004 (Alves Velho), p. 04A3101;
-STJ 15-03-2012 (Mª dos Prazeres Pizarro Beleza), p. 492/07TBTNV.C2.S1;
- STJ 04-06-2013 (Alves Velho), p. 226/11TVLSB.L1.S1;
- STJ 15-11-2017 (António Piçarra), p. 879/14.9T8SSB.E1.S1.

Com efeito, e como é sabido, o regime da solidariedade ativa pressupõe que cada credor tem o direito de exigir do devedor a prestação integral sem que este possa eximir-se ao cumprimento de tal obrigação alegando que a prestação devida não pertence por inteiro ao credor interpelante – vd. art. 512º do CC.
Por outro lado, decorre do estatuído no art. 516º do CC que nas relações entre si se presume que os credores solidários comparticipam em partes iguais no crédito.
Idêntica presunção se acha consagrada no art. 780º, nº 5 do CPC o qual, a propósito da penhora de saldos bancários de contas bancárias plurais em execução movida contra um dos contitulares estabelece que “o bloqueio incide sobre a quota-parte do executado na conta comum, presumindo-se que as quotas são iguais”.
Não obstante, os referidos preceitos consagram uma presunção elidível. Com efeito estabelece o art. 516º do CC que essa presunção pode ser elidida mediante a demonstração de que “a relação jurídica entre eles” (os credores solidários) “existente” revele que “são diferentes as suas partes ou que só um deles deve (…) obter o benefício do crédito”.
A esta luz, haverá que considerar que o simples facto de o titular único de uma conta de depósito bancário conferir a um terceiro a qualidade de contitular solidário da mesma conta não configura, só por si, uma liberalidade, não se impondo a conclusão de que tal ato constitui uma doação de metade do montante depositado.
Tudo dependerá, pois, das circunstâncias do caso, podendo o titular primitivo demonstrar intenção diferente, v.g. a vontade de agilizar a movimentação da mesma conta, o que aliás sucede frequentemente com pessoas mais idosas que conferem a familiares próximos e geralmente mais jovens o referido acesso às suas contas bancárias, a fim de estes os auxiliarem no acesso, gestão, e movimentação das mesmas, mas sempre no interesse do primeiro.
O mesmo princípio se aplica mutatis mutandis, à constituição ex origine de uma conta bancária solidária, ou a qualquer depósito de fundos nela efetuado.

Neste sentido cfr. acs.:
-RL 12-03-2015 (Teresa Prazeres Pais), p. 1077/12.1TVLSB.L1-8;
- RL 14-01-2016 (Teresa Pardal), p. 1486/09.3YXLSB.L1-6;
-RE 30-01-2020 (Emília Ramos Costa), p. 1818/17.0T8STB.E1;
-STJ 25-06-2015 (Gregório silva Jesus), p. 26118/10.3T2SNT.L1.S1;
- STJ 06-10-2005 (Pereira da Silva), p. 04B2753.

Naturalmente que, demonstrado o animus donandi, se poderá concluir no sentido oposto – vd. ac. STJ 16-06-2016 (Tomé Gomes), p. 865/13.6TBDL.L1.S1.

3.2.5.–Das quantias depositadas na conta titulada por autora e réu, e do invocado direito à restituição dos montantes dela retirados por este último
No caso vertente, apurou-se que em 2007, na sequência da celebração de negócios relativos a terrenos que havia herdado de seus pais, a autora veio a receber a quantia de USD 2.350.000,00[28].
Uma vez que a autora era casada em regime de separação total de bens, tais bens não integraram o património comum do casal, e por conseguinte também se mostraram arredados do acervo hereditário emergente do óbito do seu marido, que teve lugar em 19-08-2020[29] (cfr. art. 1735º do CC).
Apesar de a mencionada quantia de USD 2.350.000,00 pertencer unicamente à autora, foi a mesma inicialmente depositada numa conta titulada pelo seu falecido marido[30]. Posteriormente, e por vontade da autora, uma parte desta quantia, a saber, USD 1.316.000,00 transitou depois para uma outra conta solidária, de que eram titulares a autora e o réu, com dois outros procuradores constituídos[31].
Sobre o contexto que rodeou a constituição desta conta solidária, e as razões pela qual a autora decidiu que o réu deveria ser titular da mesma, apuraram-se os seguintes factos[32]:
- A Autora pretendia conta solidária, porque na altura já tinha 85 anos de idade, querendo que seu filho João ....., aqui Réu, nela fosse titular nas condições supra identificadas, e em quem confiava totalmente, não só no plano pessoal, mas atendendo também ele ser um gestor e economista experiente, com apetência e capacidade para ajudar sua mãe na rentabilização do seu dinheiro, com manifestas vantagens para todos;
- Assim o fez, para que, enquanto viva, pudesse usufruir de dividendos resultantes de opções de aquisição de produtos financeiros e de investimentos decididos pelo seu filho em relação ao seu dinheiro em função da sua formação e domínio dessas matérias e também em benefício dos seus herdeiros;
- A Autora ao ter pretendido que seu filho João ....., aqui Réu, fosse contitular da conta bancária identificada não teve qualquer intenção que o mesmo passasse a ser proprietário de metade desse valor, não querendo dispor gratuitamente do seu dinheiro em seu benefício exclusivo
Chamando à colação as considerações acima expostas verifica-se que ao abrir a referida conta solidária juntamente com o seu filho nunca foi intenção da autora doar--lhe metade ou outra qualquer parte dos fundos nela depositados, mas apenas beneficiar da sua assistência e colaboração na movimentação e gestão da mesma. Com efeito, daqueles factos resulta à saciedade que a autora pretendia beneficiar exclusivamente dos mencionados fundos e dos rendimentos por eles gerados, enquanto fosse viva.
Nesta conformidade é de ter por inequivocamente elidida a presunção de contitularidade do direito às quantias depositadas nesta conta bancárias, devendo antes concluir-se que a autora era a única titular de tal direito.
Sucede, porém, que o réu deu ordem ao banco depositário para transferir desta conta para contas de que era exclusivo titular a quantia de € 560.000,00; o que o banco depositário cumpriu, mediante operações que determinaram que a conta da autora fosse debitada em € 569.365,00, montante que foi transferido para contas individuais de que ele, réu, era o único titular[33].
Mais se provou que o réu assim o fez sem o conhecimento e contra a vontade da autora, e que mesmo depois de instado a devolver a quantia retirada se recusou a fazê-lo[34].
Coloca-se, por isso, a questão de saber se assiste à autora o direito a exigir essa restituição.
Analisada a petição inicial, verificamos que o autor invocou três diferentes fundamentos para o direito à restituição: A responsabilidade civil extracontratual, prevista no art. 483º do CC (art. 59º da petição inicial); a responsabilidade contratual, consagrada no art. 798º do CC (art. 60º da petição inicial), e o enriquecimento sem causa, previsto nos arts. 473º e segs. do CC (art. 65º a 75º da petição inicial).
Pela nossa parte, cremos que a fonte da referida obrigação de restituição é o instituto da responsabilidade contratual.

Sobre esta matéria diz VÍTOR COIMBRA TORRES[35]:
“Existindo solidariedade activa será, pois, pela mecânica desta que, em princípio, se regularão as relações entre os contitulares.
Ora, um dos traços da solidariedade activa, e que é o decisivo para a resolução do problema, é a existência de um «mandato recíproco); entre os credores, como diz o Dr. CG....., ou de um «vínculo de mútua representação», como lhe chama o Prof. PC..... . «O vínculo de mútua representação — escreve este professor — explica os fenómenos que se desenvolvem dentro do regime da solidariedade, e que têm como fundamento o facto de cada credor agir em representação de todos os outros».
Quer dizer: é condição «sine qua non» da abertura da conta conjunta a aceitação tácita desse mandato recíproco: cada contitular age em representação dos outros embora também por si próprio. Entre todos os contitulares deve existir, portanto, aquele mínimo de confiança indispensável para que possa existir solidariedade activa voluntária; cada um deles sabe que o seu direito de crédito está pendente de uma condição potestativa, mas aceita esta contingência em virtude da confiança que existe entre todos; se esta desaparecer qualquer deles pode tornar-se único proprietário da quantia total em depósito pela presteza de primeiro ocupante.
Conta conjunta significa, pois, confiança, mas, sobretudo, confiança recíproca e exclusiva. Ora bem: é precisamente pelo facto de a confiança estar na base da conta conjunta que existe solidariedade e, portanto, o mandato recíproco ou vínculo de mútua representação com todas as consequências que daí possam resultar.”

Não obstante, esta conceção não é pacífica na doutrina. Com efeito, como bem se refere no já citado ac. RP 28-11-2017 (Mª Cecília Agante), p. 236/14.7T8PRT.P2:
“A solidariedade ativa numa conta bancária confere a qualquer dos contitulares uma ampla liberdade de atuação, permitindo-lhe fazer o que entender com os valores/títulos depositados, pelo que, ao abrirem uma conta nessas condições, aceitam tacitamente uma ilimitada liberdade recíproca na disposição de tais valores. Por isso, se diz que essa solidariedade pressupõe um mandato recíproco entre os credores, «um vínculo de mútua representação», que tem como fundamento o facto de cada credor agir em representação dos demais concredores, o que supõe uma relação de recíproca confiança. É nesse clima de confiança e lealdade que os contitulares conferem uns aos outros um amplo mandato recíproco e exclusivo para movimentação da conta, mas o mandato tem um objeto definido que não pode ser usado senão para esse efeito.
Este enquadramento doutrinário não colhe consenso, porque autores há que reputam a obrigação solidária caracterizada pela unidade da prestação, não só sob o ponto de vista objetivo como subjetivo. Outros há que defendem que a cada credor (ou devedor) compete uma parte da prestação, mas há uma relação acessória entre os vários concredores (ou condevedores) que explica a possibilidade da prestação ser exigida integralmente por qualquer deles. Relação acessória que a maioria da doutrina configura como «uma mútua representação», embora haja quem nela veja uma relação de mandato, de fiança, de sociedade, de gestão de negócios.”
Seja como for, parece-nos claro que as obrigações decorrentes desta relação de recíproca confiança entre os contitulares de contas solidárias têm como fonte indiscutível o contrato de depósito bancário e as convenções estabelecidas entre os contitulares da conta estabelecidas quanto à titularidade do direito aos fundos depositados e às regras que devem nortear a sua movimentação.
Nessa medida, o ressarcimento dos danos decorrentes da violação de tais regras e deveres a que os contitulares das contas solidárias se acham vinculados deve ser enquadrado à luz da responsabilidade contratual.
Estabelece o art. 798º do CC que “aquele que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.
Encontra-se pacificamente assente na doutrina e a jurisprudência que a responsabilidade civil contratual e extracontratual dependem da verificação dos mesmos pressupostos (facto ilícito, culpa, dano, e nexo de causalidade e adequação entre o facto ilícito e culposo e o dano), distinguindo-se em função da natureza do facto ilícito e de alguns traços de regime.

Mais concretamente, a verificação da responsabilidade contratual depende da verificação dos seguintes pressupostos:
- A inobservância de uma obrigação emergente de contrato;
- A culpa (que se presume – vd. art. 799º);
- O dano;
- O nexo de causalidade e adequação entre o incumprimento e o dano (vd. art. 563º do CC).

Neste sentido cfr., entre muitos outros, os acs.:
- RP 08-02-2021 (Eugénia Cunha), p. 274/17.8T8AVR.P1;
- STJ 14-03-1996 (Joaquim de Matos), p. 96B610;
- STJ 30-04-2019 (Fernando Samões), p. 592/17.5T8LSB.L1.S1;
- STJ 26-11-2019 (Mª Clara Sottomayor), p. 2288/08.0TBPTM.E1.S1;
Note-se que o primeiro pressuposto acima enunciado pode resultar seja da inobservância de uma estipulação contratual expressa, seja da violação de deveres acessórios, v.g. os fundados na Boa-Fé (art. 762º do CC).

Neste sentido cfr., por todos, MENEZES CORDEIRO[36], bem como (entre muitos outros) os acs.:
- STJ 25-06-2009 (Mário Pereira), p. 08S4117;
- STJ 07-12-2010 (Silva Salazar), p. 984/07.8TVLSB.P1.S1;
- STJ 24-04-2013 (Pereira da Silva), p. 984/07.8TVLSB.P2.S1;
- STJ 13-10-2016 (Mª da Graça Trigo), p. 967/14.1TBACB.C1.S1;
- STJ 07-02-2017 (Hélder Roque), p. 4444/03.8TBVIS.C1.S1;
- RC 09-11-2004 (Alexandrina Ferreira), p. 2278/04;
- RC 26-04-2022 (João Moreira Carmo), p. 2634/16.2T8LRA.C1;

No caso vertente, resulta da factualidade provada que ao movimentar a conta bancária em apreço, o réu violou os já mencionados deveres contratuais de movimentar a conta bancária apenas no interesse e de acordo com a vontade da autora.
Essa conduta do réu, que é ilícita, porque violadora dos mencionados deveres contratuais, e se presume culposa (sendo certo que o réu não elidiu tal presunção), provocou um dano na esfera jurídica da autora, na medida em que em consequência do comportamento do réu a autora se viu privada da avultada quantia de € 569.0365,00.

Não podendo subsistir dúvidas acerca da verificação de um nexo de causalidade direta e da adequação entre aquele facto ilícito e culposo, e o dano sofrido pela autora, resta concluir que se acham reunidos todos os pressupostos da responsabilidade contratual, pelo que o réu se acha constituído na obrigação de indemnizar a autora pelos danos decorrentes da sua conduta.

Nos termos do disposto no art. 562º do CC, a indemnização deve possibilitar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse verificado o facto danoso.
No caso vertente, tal indemnização deve consistir no pagamento pelo réu à autora de quantia igual à que ilicitamente retirou da conta bancária dos autos.
A este propósito argumentou o réu e ora apelante que na eventualidade de a presente ação ser julgada procedente, a sua obrigação de restituir deveria forçosamente ser considerada parcialmente uma obrigação de moeda estrangeira, na medida em que uma parte da apontada quantia de € 569.365,00 resultou de uma operação de conversão de quantias em dólares norte-americanos para euros, razão pela qual, em seu entender, quando muito haveria que atender “ao câmbio do dia do cumprimento, e não ao câmbio de uma data qualquer”[37].

Vejamos então.

Estabelece o art. 558º, nº 1 do CC que “a estipulação do cumprimento em moeda com curso legal apenas no estrangeiro não impede o devedor de pagar em moeda com curso legal no País, segundo o câmbio do dia do cumprimento e do lugar para este estabelecido, salvo se essa faculdade houver sido afastada pelos interessados.” Esta convenção em contrário ocorre quando as partes tenham ajustado o pagamento numa moeda específica, nos termos previstos no art. 553º do CC.

No caso vertente, uma vez que a obrigação em causa é uma obrigação de indemnizar, é manifesto que as partes nada estipularam quanto a esta matéria.

Essa obrigação de indemnizar visa, como já referimos, a restituição pelo réu da quantia de que ilicitamente se apropriou.

Ora, como claramente decorre da redação do ponto 15. dos factos provados, a quantia global transferida para contas do réu foi de € 569.365,00. Ou seja: tratou-se de uma quantia em euros, e não em dólares norte-americanos.

Com efeito, em face da redação deste ponto de facto, que o réu e ora apelante não impugnou, não pode concluir-se ter o mesmo recebido qualquer quantia em dólares norte-americanos, mas antes que o montante que ilícita e culposamente fez debitar da conta bancária dos autos lhe foi entregue em euros.

Nesta medida, a obrigação de restituição que consubstancia a indemnização a atribuir à autora não é uma obrigação de moeda estrangeira, e muito menos de moeda específica.

O que significa que não há que proceder a quaisquer operações de conversão de dólares para euros.

Resta apenas concluir, como fez a sentença apelada que sobre as quantias parcelares que integravam a quantia global de € 569.365,00 acima referida incidem juros de mora, contados à taxa legal, desde as datas em que foram retiradas da conta bancária em apreço, até integral pagamento – arts. 804º a 806º, 559º, todos do CC, e Portaria n.º 291/2003, de 08-04.

Nesta conformidade, conclui-se pela total improcedência da presente apelação.

3.2.6.–Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
No caso vertente, atenta a total improcedência do presente recurso, deverá o apelante suportar as inerentes custas.

4.–Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando integralmente a sentença apelada.
Custas pelo apelante.


Lisboa, 21 de junho de 2022 [38]


Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa



[1]O requerimento de motivação do recurso apresentado pelo apelante contém um manifesto lapso de numeração das conclusões. Porque tal se revela útil para a apreciação do recurso, e nada prejudica as partes, tomámos a liberdade de corrigir tal lapso, a fim de evitar que perdurassem várias conclusões identificadas pela mesma letra.
[2]Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[3]Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[4]Ob. cit., p. 119.
[5]“Direito Processual Civil”, Vol. II, 2.ª Ed., Almedina, 2019, p. 468.
[6]“O Recurso Civil. Uma Teoria Geral”, AAFDL, 2017, p. 69.
[7]Este, ao que sabemos, inédito, embora documentado nos sumários publicados pelo STJ.
[8]“Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, pp. 736-737.
[9]“Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 151.
[10]“Da sentença cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 39, disponível em  http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[11]“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2018, 737-738.
[12]Conclusões AA e GG, e ponto II 9. da motivação de recurso.
[13]“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, Coimbra 3ª Ed., p. 143.
[14]“Da Sentença Cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 370, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[15]Todos os arestos invocados no presente acórdão se encontram publicados em http://www.dgsi.pt e/ou e https://jurisprudencia.csm.org.pt/. A versão digital do presente acórdão contém hiperligações para todos os arestos nele citados que se mostrem publicados em páginas internet de livre acesso.
[16]Ponto II 7. da motivação do recurso, e conclusão EE.
[17]“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pp. 165-166.
[18]A qual, na motivação da decisão sobre matéria do facto o Tribunal a quo se reporta como “a esposa do R.”, sem referir o seu nome. 
[19]Como resulta claramente da redação que propõe para o ponto 2. dos factos provados.
[20] A fidedignidade de tal transcrição não foi questionada pelo apelante. E tendo este Tribunal procedido à audição integral dos registos dos depoimentos prestados, também não detetou qualquer discrepância.
[21]Vd. arts. 59º a 75º da petição inicial.
[22]Vd. art. 188º a 208º, da contestação.
[23]“Direito Bancário”, II vol, 2ª ed., Rei dos Livros, pp. 169-171.
[24]“Manual de Direito Bancário”, 2ª ed., Almedina, 2001, pp. 520 ss.
[25]“Direito Comercial”, vol. I, 2ª ed., Almedina, 2021, p. 287.
[26]“Estudos em homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles”, 2º vol., Almedina, 2002, pp. 7-66.
[27]“Direito Bancário”, 2ª ed., 2001, pp. 502-506.
[28]Pontos 1 e 2 dos factos provados.
[29]Vd. ponto 3. dos factos provados.
[30]Ponto 6. dos factos provados
[31]Ponto 7. e 8. dos factos provados.
[32]Pontos 9. a 11. dos factos provados.
[33]Pontos 12. a 14. dos factos provados.
[34]Pontos 12. a 16. dos factos provados.
[35]“Pode um dos contitulares de uma conta conjunta outorgar procuração em favor de terceiro pela qual confira a este poderes para livre movimentação da mesma conta?”, ROA, pp. 181-191, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7B522ffd92-b472-46c8-99c8-635612300404%7D.pdf,
[36]“Tratado de Direito Civil”, IX, 3ª ed., Almedina 2017, pp. 222-224, em especial p. 223.
[37]Conclusões S- a U-.
[38]Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.



Decisão Texto Integral: