Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | VAZ GOMES | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS RESOLUÇÃO CONTRATO DE ARRENDAMENTO PERÍCIA IMPERTINÊNCIA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/07/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | Sumário da responsabilidade do relator: I- Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que o integram. Na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objeto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada (MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, pp. 94/5. Os tribunais administrativos têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas nos termos do art. 212°/3, da CRPortuguesa e art. 1° do ETAF, cingindo-se tal competência ao julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais II- Considerando a identidade das partes e os termos da pretensão dos Autores compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão, é manifesto que se trata de matéria da competência dos tribunais comuns e em particular do tribunal recorrido, posto que se trata de aferir se os fundamentos invocados se enquadram ou não nos fundamentos da resolução do contrato de arrendamento previstos na lei, independentemente de saber se o fundamento invocado procede ou não. III- As perícias, como todas as demais provas, não servem nos processos que não seja para provar factos - tanto que estão todas a eles associadas, pelo que só será de considerar impertinente a prova pericial que aponte à demonstração de factos que, de uma maneira ou de outra, não constem da controvérsia do processo, pois seriam pura e simplesmente inúteis para dirimir tal controvérsia e, portanto, não úteis à boa decisão da causa. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes na 2.ª secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa I – RELATÓRIO APELANTES/RÉUS: PP - Atividades Hoteleiras, Lda e outros co-réus “AA” e “BB” * APELADO/AUTOR: “CC” E OUTROS AUTORES * Com os sinais dos autos. Valor da acção 141.466,33 € (fixado na decisão recorrida) * I. Inconformada com a decisão de 5/12/2023 (saneador), com o seguinte teor “... Arguiram os réus a incompetência, em razão da matéria, deste Tribunal. Em exercício do contraditório os autores pugnaram pela improcedência desta excepção. Apreciando, diremos decorrer do alegado na petição inicial que os autores invocam as deficientes condições de segurança inerentes ao funcionamento do estabelecimento instalado nas fracções como fundamento de resolução do contrato de arrendamento, sendo manifesta a competência dos Tribunais comuns para tramitar a presente acção... V – Meios probatórios Dos autores (fls. 26) 1. Admite-se a prova testemunhal arrolada. 2. Não sendo impertinente nem dilatória a perícia requerida, notifique-se a parte contrária nos termos e para os efeitos previstos no art.º 476º/1 do nCPC.”, dela apelou a Ré, em cujas alegações concluem suma: 1. as medidas e as localizações das portas do rés-do-chão e cave onde está instalado o estabelecimento comercial dos RR. e o material de construção do imóvel, em madeira, pertencem ao edificado e, por conseguinte, apenas dizem respeito, em exclusividade, aos AA., seus proprietários. 2. a concepção arquitectónica e técnica da cave também pertence ao edificado, apenas dizendo respeito, igualmente e em exclusividade, aos AA., seus proprietários. 3. não obstante, deram de arrendamento, em 1972, este mesmo rés-do-chão e cave para que nele fosse instalado e funcionasse este mesmo estabelecimento comercial que ora pertence aos RR. 4. e nunca, senão agora, no âmbito da presente acção, perante o Tribunal a quo, imputaram aos RR. qualquer desrespeito por normas técnicas contra incêndio, o que de resto fizeram em vagas alegações, meramente conclusivas. 5. quando é certo que, na sua qualidade de proprietários, poderiam ter suscitado tal questão muito antes e junto das entidades para tanto competentes, a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil ou a Câmara Municipal de Lisboa. 6. tudo se explicando pelo facto não escondido, antes assumido e confessado, de pretenderem vender o imóvel onde está instalado o estabelecimento dos RR. em conjunto com um outro imóvel contíguo, da sua propriedade, situado na Rua de (…), em Lisboa. 7. o Tribunal a quo apenas é materialmente competente para julgar causas e desde que estas não sejam legalmente atribuídas a tribunais de outra ordem jurisdicional, não sendo pois competente para aferir se o cumprimento de normas técnicas contra incêndio está ou não assegurado, porque, para tanto, é exclusivamente competente a Autoridade Nacional de Protecção Civil ou a Câmara Municipal de Lisboa consoante a classificação da categoria de risco. 8. ao julgar-se competente para o efeito, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº 220/2008, de 12 de Novembro, os arts. 40º e 117º da LOFTJ e os arts. 202º, 119º, 235º e 236º da Constituição da República 9. efectivamente, o Decreto-Lei nº 220/2008, de 12 de Novembro, reservou também para a ANEPC ou para a CML a competência exclusiva para, no exercício da função administrativa, que evidentemente não cabe aos Tribunais, inspeccionar, fiscalizar e sancionar o não cumprimento das normas técnicas contra incêndio e bem assim a competência exclusiva para desencadear as consequências pelo não cumprimento dessas normas. 10. justamente por isso não lhe conferiu atribuições para a realização de perícias, confinando, por outro lado, e sobretudo, as consequências pelo incumprimento daquelas normas à aplicação de coimas e sanções acessórias em processo contra-ordenacional com recurso para os Tribunais Criminais. 11. e entre essas coimas e sanções acessórias prevê-se apenas a interdição do uso de fracções autónomas, ou de partes dos edifícios, pelo prazo máximo de dois anos, não se prevendo o despedimento, o despejo do infractor, ainda que seja inquilino de outrem. 12. razão pela qual o disposto no art. 1083º, nº 2, do CC, única norma atributiva de competência material ao Tribunal a quo, é inaplicável ao caso sub judice, e razão também pelo qual o Tribunal o violou. 13. de facto, se esta norma fosse aplicável, cair-se-ia no inaceitável contra-senso de o infractor de normas técnicas contra incêndio, se fosse um inquilino, poder ser interditado do uso da fracção locada pelo prazo máximo de dois anos e, simultaneamente, dela ser definitivamente despejado, o que não faz sentido algum. 14. mas o legislador não quis semelhante absurdo, pretendendo apenas, perante a transgressão daquelas normas técnicas, sancionar o infractor pela prática de um ilícito económico, não considerando o caso como de violação de uma relação contratual locatícia, sendo somente à violação desta relação que o art. 1083º, nº 2, se reporta e aplica. 15. e, enfim, quanto à requerida e deferida perícia, se é facto que o Tribunal a quo não é competente para conhecer do cumprimento ou incumprimento de normas técnicas contra incêndio, tal perícia, além de legalmente impossível por não constituir atribuição da ANEPC, nem da CML, é consequentemente inútil, a menos que se pretendesse com os seus eventuais resultados, em inadmissível violação do princípio dispositivo, colmatar a falta de alegação de factos essenciais concretos susceptíveis de subsunção no art. 1083º, nº 2. 16. neste aspecto, o Tribunal a quo violou não só o disposto no art. 467º, nº 1, do CPC, mas também, e sobretudo, o disposto no art. 24º do Decreto-Lei nº 220/2008, de 12 de Novembro, na medida em que tal perícia equivaleria, para todos os efeitos, incluindo os contra-ordenacionais, a uma fiscalização que não lhe cabe determinar. 17. termos em que se requer que V. Exas., revogando o douto despacho saneador na medida em que considerou o Tribunal a quo competente em razão da matéria e bem assim o douto despacho que deferiu a requerida perícia, absolvam os RR. da instância quanto ao pedido correspondentemente formulado pelos AA. I.2. Em contra-alegações, concluem os Autores em suma: a) Os RR. sabem perfeitamente que, (i) os Autores deduziram oposição à renovação dos contratos de arrendamento em causa nos presentes autos; (ii) o falecido RR. “AA” recebeu a oposição à renovação — chegou mesmo a falar com os Autores sobre a sua saída do R/C e CV e do Primeiro andar — mas, de repente, após alegada reunião com o seu Advogado, resolveu não sair (até hoje); os RR. sabem perfeitamente que não têm o direito de permanecer no estabelecimento (porque não existe contrato de arrendamento desde 31 de agosto de 2018). Os RR. sabem perfeitamente que o alegado na PI é verdade, e que o R/C e CV NÃO tem quaisquer condições de segurança, ou de salubridade, para o funcionamento de qualquer estabelecimento comercial, e sabem que estão a por os seus clientes claramente em perigo, sabem perfeitamente que os Autores querem vender o prédio, e não perdem uma oportunidade para tentar obter algum benefício com qualquer potencial venda; inclusive, tentam negociar uma indemnização (à qual sabem perfeitamente não ter direito) com os potenciais compradores — compradores que acabam por perder o interesse no prédio assim que têm conhecimento (i) da permanência dos RR. no R/C e CV, e no Primeiro Andar e (ii) da existência da presente ação de despejo, sabem perfeitamente que se estivessem numa situação normal de arrendamento, a esta altura estariam a pagar uma renda várias vezes mais elevada do que o montante que estão a depositar — nos termos do disposto no artigo 14.º n.º 3 do NRAU, sempre fora de prazo, e sem a penalização prevista na lei — porque dada a zona privilegiada de Lisboa em que está localizado o prédio, e dado o valor atual de mercado das rendas na cidade de Lisboa; se o R/C e CV e o Primeiro Andar estivessem arrendados no dia de hoje, o valor de mercado da renda seria no valor de vários milhares de euros.[Conclusões I a VII] b) ao contrário do alegado na alegação n.º (10) dos RR., são os RR. quem está a instrumentalizar o presente processo e os Tribunais para conseguir um objetivo ilegítimo: obter (até mesmo de potenciais compradores) uma indemnização à qual os RR. sabem não ter direito — chamando-se a atenção para a gravação da audiência prévia; o Tribunal é manifestamente competente para conhecer todos os pedidos formulados pelos Autores, designadamente: (i) o despejo dos RR. do R/C e CV e Primeiro Andar, com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento, por oposição à renovação; e (ii) o despejo dos RR. do R/C e CV e Primeiro Andar, com fundamento no artigo 1083.º n.º 2 do CC — o incumprimento das normas de segurança, agravado pelo facto do prédio se encontrar vazio (à exceção do R/C e CV e do Primeiro Andar ocupado pelos RR.), constitui incumprimento que pela sua gravidade e consequências tornam inexigível aos Autores manter o arrendamento. Os RR. não põem em dúvida a competência dos Juízos Centrais Cíveis para conhecer o despejo com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento (artigo 117.º n.º 1 al. a) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto); mas não dizem qual seria (no entendimento dos RR.) o Tribunal competente para conhecer com o pedido de despejo com fundamento no artigo 1083.º n.º 2 do CC. É também obvio, que para além das consequências tipificadas pelos RR. nas suas alegações, o comprovado incumprimento das regras de segurança no estabelecimento deverá constituir fundamento de despejo (nos termos do disposto no artigo 1083.º n.º 2 do CC) dado que esse incumprimento, agravado pelo facto de o prédio se encontrar vazio (à exceção do R/C e CV e Primeiro Andar ocupado pelos RR.), tornam inexigível aos Autores manter o arrendamento! Desde logo porque a sua propriedade fica em risco! Caso contrário, estaríamos a admitir que a lei permitiria que o inquilino pudesse colocar a propriedade dos Senhorios em risco, e ainda por cima sem qualquer consequência! O que não se concebe, dado o direito de propriedade é um direito fundamental, e o artigo 1083.º n.º 2 do Código Civil é uma norma aberta, permitindo que outras situações (que não apenas as tipificadas nas alíneas da norma) determinem o despejo do inquilino, por tornarem inexigível aos Senhorios manter o arrendamento (como é o caso da situação em causa nos autos).[Conclusões IX a XIV] Termina pedindo a improcedência do recurso e a confirmação do decidido. I.3. Nada obsta ao conhecimento do recurso. I.4 Questões a resolver: a) Saber se o art. 1083º, nº 2, do CC, única norma atributiva de competência material ao Tribunal a quo, é inaplicável ao caso sub judice, e razão também pelo qual o Tribunal o violou, devendo concluir-se que o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa é materialmente incompetente para conhecer da acção devendo os RR. Ser absolvidos da instância quanto ao pedido correspondentemente formulado pelos AA. b) Saber se ocorre na decisão recorrida erro de interpretação e de aplicação das disposições conjugadas dos art.ºs 467º, nº 1, do CPC, mas também, e sobretudo, o disposto no art. 24º do Decreto-Lei nº 220/2008, de 12 de Novembro, na medida em que tal perícia equivaleria, para todos os efeitos, incluindo os contra-ordenacionais, a uma fiscalização que não lhe cabe determinar. II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO II.1. Para além do teor da decisão recorrida acima transcrita interessam o seguinte documentalmente comprovados. III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO III.1. Conforme resulta do disposto nos art.ºs 608, n.º 2, 635, n.º 4, 639, n.º 3, do CPC[1] são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso. É esse também o entendimento uniforme do nosso mais alto Tribunal (cfr. por todos o Acórdão do S.T.J. de 07/01/1993 in BMJ n.º 423, pág. 539. III.2. Não havendo questões de conhecimento oficioso são as conclusões de recurso que delimitam o seu objecto tal como enunciadas em I. III.3. Saber se o art. 1083º, nº 2, do CC, única norma atributiva de competência material ao Tribunal a quo, é inaplicável ao caso sub judice, e razão também pelo qual o Tribunal o violou. III.3.2. Indiscutível que é função da relação jurídica tal como é configurada pelo Autor que se afere a competência material do Tribunal. Trata-se de uma acção que visa a título principal a declaração de caducidade dos contratos de arrendamento dos autos e a desocupação dos espaços arrendados pelos réus ou em alternativa a resolução dos mesmos com o fundamento na violação pelos réus das normas de segurança relativas à exploração do estabelecimento comercial que exploram nos espaços em causa e no entendimento que os Autores defendem que tal constitui fundamento para a resolução dos contratos em causa, o que os réus contestam. III.3.3. A competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”- MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 91 e acórdãos do Tribunal de Conflitos de 4-7-2006, proc. 11/2006, de 26.9.96 (Ap. D.R., p. 59), 27.2.02, procº. n° 371/02, 9.3.04, proc.° n° 4/03, 23.9.04, proc.° n° 5/04, Acs. do STA de 12-01-88, proc.° n.° 24.880, in Ap. D.R., p. 106 e do STJ de 6-06-78, in BMJ, 278, 122. No mesmo sentido ver ainda o Ac. do STJ de 14-5-2009, proc. 09S0232, sublinhando, todavia, que o tribunal, apesar de atender apenas “aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada (causa de pedir e pedidos) não está vinculado às qualificações jurídicas do autor”. III.3.4. Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que o integram. Na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objeto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada (MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, pp. 94/5. Os tribunais administrativos têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas nos termos do art. 212°/3, da CRPortuguesa e art. 1° do ETAF, cingindo-se tal competência ao julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais[2].Assim sendo, os tribunais administrativos e fiscais serão os competentes para o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais. Esta qualificação transporta, como o entende a doutrina, duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Deste modo, podemos entender por relações jurídico-administrativas as (a) que se estabelecem entre duas pessoas colectivas públicas ou entre dois órgãos administrativos, desde que não haja nas mesmas indícios claros da sua pertinência ao direito privado (b) em que um dos sujeitos, pelo menos, actua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido (c) em que o sujeito público ou privado actua no cumprimento de deveres administrativos, de autoridade pública, impostos por motivos de interesse público. Será, pois, à luz do conceito de relação administrativa que as alíneas do art. 4.º do ETAF devem ser lidas e interpretadas, posto que, essencial para que a competência seja deferida aos tribunais administrativos é que o litígio se insira no âmbito de uma relação dessa natureza, o mesmo é dizer numa relação onde a administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público. III.3.5. Considerando a identidade das partes e os termos da pretensão dos Autores compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão, é manifesto que se trata de matéria da competência dos tribunais comuns e em particular do tribunal recorrido, posto que se trata de aferir se os fundamentos invocados se enquadram ou não nos fundamentos da resolução do contrato de arrendamento previstos na lei, independentemente de saber se o fundamento invocado procede ou não. De resto os réus, tão-pouco, dizem que tal questão se integra na competência dos tribunais administrativos e fiscais, como poderia eventualmente inferir-se do alegado, e não o dizem porque no caso em apreço não se está a dirimir um litígio emergente de relação jurídica administrativa e fiscal. Improcede pois, nesse ponto, a apelação. III.4. Saber se ocorre na decisão recorrida erro de interpretação e de aplicação das disposições conjugadas dos art.ºs 467º, nº 1, do CPC, mas também, e sobretudo, o disposto no art. 24º do Decreto-Lei nº 220/2008, de 12 de Novembro, na medida em que tal perícia equivaleria, para todos os efeitos, incluindo os contra-ordenacionais, a uma fiscalização que não lhe cabe determinar. III.4.1. Os recorrentes suportam-se no art art.º 467/1, mas a verdade é que se não descortina em que medida é que a ordem de notificação dos réus para se pronunciar sobre o conteúdo do disposto no art.º 467/1 possa constituir violação do seu conteúdo. Aí diz-se que a perícia requerida por qualquer das partes é requisitada a estabelecimento laboratório ou serviço oficial apropriado ou quando tal não seja possível ou conveniente realizada por um único perito nomeado pelo juiz entre pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa. A decisão recorrida suporta-se no art.º 476/1 e não no 467/1. De resto, o que os recorrentes questionam é justamente a pertinência da perícia. Nos termos do art.º 388 Código Civil, “a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”. Assim, segundo Adriano Vaz Serra, a perícia (antigamente denominada por arbitramentos) não necessariamente averiguará factos que tenham deixado vestígios, que demande inspeção ou exame ocular ou, ainda, que sirva para determinar o valor de bens ou direitos. A perícia é simplesmente realizada por supor possuírem os peritos conhecimentos especiais que o juiz não possui.[3] O direito à prova constitucionalmente reconhecido (art. 20.º da CRP) faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados tanto para a prova dos factos principais da causa, como, também, para a prova dos factos instrumentais ou mesmo acessórios. O exposto não significa que todas as diligências requeridas devam ser deferidas. Apenas o deverão ser desde que legalmente admissíveis, pertinentes e não tenham cariz dilatório. As perícias, como todas as demais provas, não servem nos processos que não seja para provar factos - tanto que estão todas a eles associadas. Pelo que se terá sempre de considerar impertinente a prova pericial que aponte à demonstração de factos que, de uma maneira ou de outra, não constem da controvérsia do processo, pois seriam pura e simplesmente inúteis para dirimir tal controvérsia e, portanto, não úteis à boa decisão da causa (Ac. RG. de 8.1.2013: Proc. 4042/08.0TRBC1.-A.G1.dgsi.Net). Os réus, entre o mais, dizem que o estabelecimento é, tal como os seus congéneres da cidade de Lisboa, fiscalizado amiúde e de surpresa pela Câmara Municipal, pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, pela Polícia Municipal, pela PSP e pela Autoridade Nacional de Protecção Civil, nunca lhe foi feito levantado qualquer auto de notícia por infracção penal ou contra-ordenacional, a porta de entrada do estabelecimento mede exactamente 1 metro e 38 centímetros de largura, é dotada, do lado de dentro, da chamada fechadura anti-pânico, que permite desencadear a imediata abertura da porta para o exterior em qualquer caso de emergência, seja um incêndio, uma inundação ou uma intoxicação do ar, há ainda uma outra porta, também ela dotada de fechadura anti-pânico, que abre para o nº 38 de polícia e daí para a via pública, existem, na cave, portas corta-fogo, extintores, detectores de incêndio, central de incêndio, detectores de fumo e extractores de fumo, o estabelecimento está ainda dotado de lâmpadas de emergência para a hipótese de faltar a energia eléctrica. Existe, pois, controvérsia em torno das condições de segurança do estabelecimento razão pela qual se deve concluir que a diligência não é impertinente. Improcede também neste ponto, a apelação. IV- DECISÃO. Tudo visto acordam os juízes em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida. Regime da Responsabilidade por Custas: as custas são da responsabilidade dos apelantes que decaem e porque decaem (art.º 527 1 e 2) Lxa., d.s. 07-03-2024 Vaz Gomes José Manuel Monteiro Laurinda Gemas. _______________________________________________________ [1] Na redacção que foi dada ao Código do Processo Civil pela Lei 41/2013 de 26/6, entrado em vigor a 1/9/2013, atento o disposto no art.º 6, n.ºs 1 e 4 da referida Lei, na medida em que a acção é de 2019, sendo a decisão recorrida de 2023; ao Código referido, na redacção dada pela referida Lei 41/2013, pertencerão as disposições legais que vierem a ser mencionadas sem indicação de origem. [2] Nos termos do estatuído no artigo 212º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 1º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais o fator atributivo da competência aos tribunais administrativos radica na existência de uma relação jurídica administrativa, que pressupõe sempre a intervenção da Administração Pública investida no seu poder de autoridade (jus imperium), isto é, o exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público – Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2021-07-06, Relatora: MICAELA SOUSA, http://www.dgsi.pt/jtrl. [3] 3 SERRA, Adriano Paes da Silva Vaz. Provas: direito probatório material. In: Boletim do Ministério da Justiça, nº 110, novembro, 1961, p. 154 |