Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14828/20.1T8SNT.L1-8
Relator: TERESA SANDIÃES
Descritores: EXECUÇÃO
HIPOTECA
PENHORA DE IMÓVEL ARRENDADO
VENDA NA EXECUÇÃO
CADUCIDADE DO ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A venda, em processo executivo, de imóvel arrendado para fim não habitacional, quando o contrato de arrendamento tenha sido celebrado depois da constituição de hipoteca sobre esse imóvel, e antes da penhora, não faz caducar o arrendamento, como decorre do art.º 1057.º do CC, não sendo aplicável o art.º 824.º, n.º 2, do CC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

“MT, LDA.” intentou  ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra FL, LDA., pedindo a condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de €1.101.966,37, acrescida dos juros de mora desde a data de entrega do título de adjudicação do presente imóvel, até à data da entrega do imóvel, o que perfaz a quantia global de €1.129.741,96, a título de indemnização por força do instituto da responsabilidade civil, ou caso assim não se considere, a condenação da  Ré no pagamento de tais quantias ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, a que devem acrescer os juros à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
A R. apresentou contestação concluindo pela improcedência do pedido. Mais requereu a condenação da A. como litigante de má fé.
A A. exerceu o contraditório em relação ao pedido de condenação por litigância de má fé, pugnando pela sua improcedência.
Com dispensa de realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, delimitado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
Após realização da audiência de julgamento foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
“Tudo visto e ponderado, decide este Tribunal julgar a presente ação improcedente, e, em consequência, absolver a Ré do pedido.
Mais se decide julgar improcedente a pretensão da Ré, de condenação da Autora como litigante de má fé.
Custas pela Autora - art.º 527º, do Código de Processo Civil.”
A A. recorre desta decisão, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
“A. A Sentença ora recorrida conclui pela improcedência da ação, o que a Recorrente não pode aceitar, impondo-se uma reapreciação de facto e de direito da sentença proferida
I – DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA
B. Refere o Tribunal “a quo” na factualidade dada como provada, no que ao presente recurso importa, o seguinte:
16.Após a interpelação da Autora, a Ré, em 31.01.2019, optou por proceder junto da Caixa Geral de Depósitos ao depósito de quantia mensal, no valor de €1.800,00, face à recusa manifestada pela Autora em receber tal montante.
31.Para a aquisição do prédio em causa a Autora outorgou o “Contrato de mútuo com hipoteca e fiança” no valor de 2.425.000,00 euros, que se mostra junto aos autos a fls. 157 a 165.
32.No âmbito de tal financiamento imputou a Autora para o pagamento do presente imóvel o valor de 1.560.000,00 euros, a ser pago no prazo de um ano, com vencimento a 31.01.20; prazo de pagamento que veio a ser prorrogado pelo prazo de três anos.
C. No que concerne ao facto 16, da factualidade dada como provada não resulta o valor pago pela Ré a título de renda até à entrega do imóvel.
D. Resulta do facto 21 da petição inicial, documento n.º 14, que a Ré procedeu ao pagamento da quantia global de €16.800,00.
E. Tal informação resulta de documento emitido pela própria Ré, junto pela Autora na petição inicial, não tendo sido impugnado pela Ré.
F. Deve assim o facto número 16 ser aditado no que concerne ao valor pago pela Ré até à entrega do imóvel, passando o mesmo a ter a seguinte redação:
16.Após a interpelação da Autora, a Ré, em 31.01.2019, optou por proceder junto da Caixa Geral de Depósitos ao depósito de quantia mensal, no valor de €1.800,00, face à recusa manifestada pela Autora em receber tal montante, tendo procedido ao pagamento da quantia global de €16.800,00.
G. No que concerne ao facto 31 e 32, resulta da conjugação de tal factualidade que a Autora para a aquisição do prédio em apreço nos autos outorgou um contrato de mútuo com hipoteca e fiança, no valor de €2.425.000,00, tendo imputado o valor de €1.560.000,00 para pagamento do imóvel em apreço nos autos.
H. Mas não decorre de tal factualidade o valor das despesas suportadas pela Autora a esse título e que decorrem forçosamente do contrato.
I. Da conjugação da clausula 2.ª e 6ª do Anexo I do contrato de mútuo e hipoteca bem como da nota de rodapé aposta no termo de autenticação do contrato de mútuo, resulta do contrato de mútuo com hipoteca e fiança – designadamente da fiança no valor de €1.560.000,00 - despesas para a Autora no valor global de €70.284,59 (juros: €45.656,34; imposto de selo: €1.826,25; comissão inicial de gestão: €10.000,00; imposto de selo de verba 17.1.2 da TGIS sobre o montante de €1.560.000,00, devido pelo mútuo autenticado de acordo com o artigo 23.º do Código de Imposto de Selo) e comissão anual de gestão: €5.000,00 acrescida do devido imposto selo.
J. Deverá o facto 31 ter a seguinte redação:
31.Para a aquisição do prédio em causa a Autora outorgou o “Contrato de mútuo com hipoteca e fiança” no valor de 2.425.000,00 euros, que se mostra junto aos autos a fls. 157 a 165., resultando de tal contrato – designadamente da fiança no valor de €1.560.000,00 - despesas para a Autora no valor global de €70.284,59.
DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO NÃO PROVADA
K. Resulta da factualidade não provada o seguinte:
3.O valor de mercado do espaço ocupado pela Ré, a título de arrendamento, à data dos factos, sempre equivaleria a uma renda mensal superior a €25.000,000.
L. Para fundamentar tal facto como não provado, o Tribunal a quo, considerou o seguinte: “Anotou-se o teor do depoimento da testemunha PM, perito avaliador de imóveis que apontou para um valor de arrendamento de 11000,00 deduzidos o valor de cerca 3.400,00 euros (valor da cave, excluída do arrendamento); o que se concatenou com o teor do documento junto aos autos a fls. 505 a 520, elaborado pelo próprio; ao que se juntou a falta de qualquer outro elemento de prova sobre esta matéria.
M. Não se percebe a total de ausência de pronuncia da testemunha MP, consultor imobiliário a trabalhar ligado à X… pelo Tribunal e, que conforme resulta da ata, prestou o seu depoimento no dia 06.09.22.
N. O Tribunal não fez qualquer apreciação ao depoimento da mencionada testemunha, sendo certo que o mesmo relatou a proposta de arrendamento que recebeu para o imóvel dos autos, pelo que não se compreende porque motivo o depoimento de tal testemunha não foi apreciado pelo Tribunal.
O. O Tribunal a quo considerou o facto n.º 3 como não provado, por força da falta de qualquer outro elemento de prova sobre a matéria, para além do depoimento da testemunha PM e do relatório elaborado por este, não referindo o Tribunal que tal testemunha ou documento não lhe merece credibilidade, refere sim, que face à inexistência de mais elementos probatórios, tal facto é dado como não provado.
 P. Salvo devido respeito por opinião diversa, consideramos que a apreciação feita pelo Tribunal à prova em apreço não se mostra adequada, porquanto não deverá ser pelo facto de existir apenas um elemento de prova, que tal facto terá forçosamente de sucumbir.
Q. A testemunha em apreço depôs de forma credível, detalhada, tendo descrito a forma como decorreu a avaliação e principalmente de que forma se alcançou o valor de mercado do espaço ocupado pela Ré, a título de arrendamento, à data dos factos, tendo aliás, detalhado com bastante pormenor todas as formas de calculo e dados constantes do relatório.
R. É ainda de sublinhar que a sociedade comercial que procedeu à Avaliação do Imóvel em causa nos autos, trata-se de uma sociedade comercial registada na CMVM, sendo a testemunha PM seu diretor desde 2008.
S. A aludida testemunha é engenheiro civil, perito avaliador de imóveis inscrito na CMVM e, entre outras funções, tem uma larga experiência na realização ou certificação/validação de relatórios de avaliação no âmbito de crédito hipotecário, fundos de investimento imobiliário, recuperação de crédito, perícias judiciais, tudo conforme resulta dos documentos juntos com o requerimento probatório submetido aos autos no dia 10.05.2010, com referência 21036395 e 21036396.
T. Sempre deveria o depoimento da testemunha PM e, designadamente, o Relatório de Avaliação Imobiliária, ter sido de outra forma valorado pelo Tribunal.
U. Impunha-se que o facto 3 da factualidade dada como não provada fosse retirado, sendo aditado à factualidade dada como provada um novo facto, o número 36, com a seguinte redação:
 36.O valor de mercado do espaço ocupado pela Ré, a título de arrendamento, à data dos factos, sempre equivaleria a uma renda mensal de €11.000,00.
V. Tal facto resulta de forma inequívoca do documento junto aos autos pela Autora e que corresponde ao Relatório de Avaliação Imobiliária submetido aos autos.
W. Impõe-se agora uma apreciação da matéria de direito em referência na sentença proferida.
X. A questão fulcral dos presentes autos consiste na manutenção/caducidade do contrato de arrendamento para fim não habitacional com prazo certo, celebrado posteriormente à constituição da hipoteca em venda executiva.
Y. Nos presentes autos, o Tribunal de Primeira Instância, socorrendo-se do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2021, publicado no Diário da República, 1.ª série de 05 de agosto de 2021, bem como do Acórdão proferido no âmbito do processo 2418/16.8T8FNC.L1.S1 datado de 03.11.2021, Relatora: Maria Olinda Garcia; Acórdão n.º 1069/15.9T8AMT de 03.11.2021, Relatora: Maria Olinda Garcia e Acórdão de 15.02.22, Relatora: Maria Clara Sottomayor, considerou que tal venda não determina a caducidade do contrato de arrendamento, tendo, por conseguinte, considerado legitima a ocupação da Ré.
Z. É este o motivo que leva a Recorrente a interpor o presente recurso, uma vez que, salvo devido respeito, não concorda com a decisão proferida, pugnando a Recorrente pela aplicação aos presentes autos do artigo 824º, nº 2, porquanto consideramos, salvo devido respeito, que o Tribunal socorreu-se erradamente da interpretação feita em tais Acórdãos, sem aliás fundamentar porque motivo os mesmos se aplicam aos presentes autos.
AA. No que concerne ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2021; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 03.11.2021, Relatora: Maria Olinda Garcia, processo n.º 2418/16.8T8FNC.L1.S1 e Acórdão de 15.02.2022, Relatora: Maria Clara Sottomayor, a verdade é que estes não têm correlação fáctica com os presentes autos.
BB. Nos autos estamos perante um contrato para fins não habitacionais, com prazo certo, celebrado no dia 23 de maio de 2024, em que o anterior senhorio – MD - arrendou um imóvel onerado com várias hipotecas (constituídas nos anos de 2008, 2009 e 2011) e em que o credor hipotecário deu à execução no dia 13 de janeiro de 2017 os contratos de mútuo por força do incumprimento dos mesmos.
CC. Trata-se assim, de um litígio que tem por base um contrato de arrendamento para fins comerciais tendo a aquisição ocorrido no âmbito de um processo executivo.
DD. Por outro lado, o citado AUJ n.º 2/2021 trata-se de um processo de insolvência, no âmbito do qual foi discutido um contrato de arrendamento para fins habitacionais, o mesmo sucedendo com os demais Acórdãos citados.
EE. Já no que concerne ao Acórdão de 3 de novembro de 2021, do qual é feito menção na sentença proferida, Relatora: Maria Olinda Garcia, processo nº 1069/15.9T8AMT, salvo devido respeito por opinião diversa, o citado Acórdão não configura um Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, conforme assim se refere na sentença.
FF. Quanto a esta última decisão, merece aliás particular destaque a declaração de voto do Conselheiro António Barateiro Martins, que votou vencido, onde se diz o seguinte: “[e]ntendo que a venda judicial de imóvel hipotecado faz caducar o arrendamento celebrado após o registo da hipoteca, solução esta que, a meu ver, está de acordo com a teleologia do art.º 824.º/2 do C. Civil, cuja ratio é os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres de quaisquer ónus. (…) Em conclusão, a tese da caducidade é a que, a meu ver, dirime com mais justiça os interesses em confronto e a que melhor respeita a teleologia ínsita no art.º 824.º/2 do C. Civil, inciso em cujo espírito está presente a ideia da alienação judicial ser livre de qualquer encargo, inciso cuja ratio, repete-se, é os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres dos encargos que não tenham registo ou constituição temporalmente anterior à garantia executada […]”
GG. É assim visível que o Tribunal “a quo” aplicou diretamente o entendimento seguido nos citados Acórdãos, sem reconhecer que a situação sobre a qual recaiu o AUJ n.º 2/2021 e os demais, é distinta da situação em discussão nos presentes autos.
HH. O que afirma o mencionado AUJ n.º 2/2021 - o contrato de arrendamento para habitação celebrado subsequentemente à hipoteca não caduca - está, salvo devido respeito, em contradição com a jurisprudência até aí dominante que não reconhecia a manutenção do contrato de arrendamento, quando posterior à hipoteca.
II. A se admitir a aplicação de tais decisões aos presentes autos estamos a tratar situações diferentes de formas idênticas, adotando uma solução jurídica, e aplicando normas legais, a factos diferentes.
JJ. Salvo melhor opinião, o entendimento fixado nos Acórdãos supra citados e, designadamente, no Acórdão 2/2021, não poderá ter aplicação aos presentes autos, já que o contrato de arrendamento em apreço tem natureza de arrendamento comercial, sendo tal interpretação apenas aplicável ao arrendamento para fins habitacionais.
KK. Repara-se ainda no que refere Isabel Menéres Campos em “Estudos de Arrendamento Urbano” vol. III, Universidade Católica, obra na qual procedeu ao comentário do AUJ 2/2021: “Nessa dimensão, diversamente do contrato de compra e venda, a venda executiva, como meio coercivo da garantia, assume natureza instrumental, que implica uma diferenciação do alcance a dar à limitação constante do artigo 1057.º. Não temos, pois, dúvidas de que, partindo dos critérios hermenêuticos decorrentes do artigo 9.º, parece-nos que, quer o elemento histórico, quer o elemento racional, quer o elemento sistemático, quer até o elemento teleológico, nos permitem a interpretação que aqui defendemos, isto é, que o arrendamento celebrado posteriormente à hipoteca caduca com a venda coerciva do imóvel quando se trate de exercer os direitos do credor hipotecário. Com efeito, o legislador pretendeu abranger, a nosso ver, no comando do n.º 2 do artigo 824.º, todos os direitos e ónus que pudessem implicar a desvalorização do imóvel, de modo a que o mesmo pudesse ser transmitido em venda judicial da forma mais rentável possível. Além disso, a cognoscibilidade da anterioridade da hipoteca e a sua prevalência face aos demais direitos, sendo oponível até ao terceiro adquirente, conduz-nos à ideia de que, por maioria de razão, deve ser oponível ao titular de um direito pessoal de gozo de constituição posterior. A solução da caducidade do arrendamento é, de resto, a que se coaduna com o disposto no artigo 819.º do Código Civil, o qual determina a ineficácia, em relação à execução, de quaisquer actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados. Finalmente, esta interpretação é compatível com a conjugação do regime da protecção dos direitos reais face à hipoteca com a natureza vinculística do arrendamento, mesmo que de duração limitada.”
LL. A Ilustre Professora refere ainda que “A tese que fez vencimento no Acórdão Uniformizador, assentando sobretudo na ideia de que a norma insolvencial constante do n.º 3 do artigo 109.º permite um regime diverso em relação à venda executiva quanto à caducidade do arrendamento é geradora de instabilidade. O regime das garantias do crédito, pela sua importância, deve ser previsível e estável, dado que o crédito concedido será tanto mais oneroso quanto maior a insegurança jurídica do regime das garantias. Mas, sobretudo importa destacar que, nos contratos de crédito a consumidores, para aquisição de habitação, o Decreto-Lei n.º 74-A/2017 de 23 de Junho prevê, no n.º 5 do seu artigo 25.º que, se houver renegociação do crédito, o contrato de arrendamento caduca com a venda executiva ou dação em cumprimento do imóvel hipotecado fundada em incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, salvo se o mutuante e o consumidor tiverem, com fundamento no arrendamento, acordado na alteração das condições do crédito. Não há, por isso, dúvidas que o legislador, no caso dos créditos à habitação, quis deixar claro que o arrendamento de um imóvel adquirido com recurso a um financiamento deste tipo, sempre caducará em caso de venda executiva promovida para que o mutuante recupere o seu crédito e, por maioria de razão, no caso de venda em processo de insolvência do mutuário. Este diploma veio transpor parcialmente a Diretiva 2014/17/UE, relativa a contratos de crédito aos consumidores para imóveis destinados a habitação.”
MM. Diz ainda a este respeito que, “se o arrendamento para fins habitacionais caduca em caso de venda executiva, como expressamente se dispõe nesta norma, não sendo sequer necessário o exercício interpretativo do n.º 2 do artigo 824.º, por maioria de razão, devem caducar os arrendamentos para fins não habitacionais num processo judicial em que o credor hipotecário pretende exercer os seus direitos na sequência do incumprimento por parte do mutuário. Isto porque, no caso do arrendamento para fins não habitacionais não estão patentes sequer as considerações em torno da necessidade de protecção do arrendatário, que o Supremo acabou por invocar para justificar a sua opção, ancorando-se no valor fundamental do direito à habitação.”
NN. Esta posição é, igualmente, defendida por MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, em “A venda em processo de insolvência e a caducidade do arrendamento – Ac. Do STJ n.º 2/2021, de 5.8.2021, Proc. 8052/11.1TBVNG-BP1-S1”, in Cadernos de Direito Privado, N.º 77, CEJUR, Jan.-Mar 2022, págs. 19 e segs., que considera que o arrendamento caduca com a venda judicial, dizendo que o argumento ou raciocínio por analogia sempre foi um factor de evolução e aperfeiçoamento jurisprudencial e doutrinário do Direito e que o que verdadeiramente importaria ter discutido no Acórdão Uniformizador era se há uma justificação substancial para a aplicação do disposto no artigo 824.º, n.º 2 á caducidade do arrendamento.
OO. Como diz o Ilustre Professor “[u]ma mera resposta conceptual é inconsequente”, não tendo em consideração as profundas repercussões que a decisão pode ter.
PP. Tal posição encontra-se ainda explanada no seu manual, “Manual de Processo Civil, Volume II, João de Castro Mendes, Miguel Teixeira de Sousa, AAFDL Editora 2022, página 944 e 945.
QQ. Posição igualmente defendida por Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, em Código Civil Anotado, volume II, artigos 762.º a 1250.º, 3ª edição revista e actualizada, página 99, anotação n.º 2 do artigo 824.º, “… há que distinguir duas espécies de direitos que incidam sobre os bens vendidos. Os de garantia caducam todos; os direitos de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, ou seja, anterior à mais antiga destas garantias”.
RR. A este respeito refira-se ainda o que a doutrina tem ainda referido acerca da aplicação do artigo 1057.º do Código Civil, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, artigo 824.º anotação IV, página 1211 “… Por isso, a jurisprudência tem aplicado ao arrendamento o artigo 824.º, n.º 2, diretamente ou por analogia: o arrendamento que for anterior à hipoteca que vai ser alvo de execução ou à penhora subsiste, o arrendamento posterior, caduca. Alguma jurisprudência invoca o artigo 1057.º, todavia, este artigo nunca poderia dar ao arrendamento maior oponibilidade do que a dos direitos do arrendamento”.
SS. Igual posição resulta também do Código Civil Comentado, II Das Obrigações em Geral, CIDP, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, artigo 824.º, página 1096 e 1097 “… operam invocando o 1057.º: mas este nunca poderia dar, ao arrendatário , uma oponibilidade maior do que a dos direitos reais de gozo, pelo que esse preceito não pretere direitos registados antes do arrendamento.”.
TT. Da sentença proferida resulta uma referência à doutrina “Os direitos de garantia e os direitos reais, nada têm a ver com os direitos obrigacionais, onde se inclui o arrendamento, não se podendo, sem mais, concluir que aqueles podem abarcar este, «Não sendo direito real, à locação, mesmo na modalidade de arrendamento, não se aplica o disposto no art.º 824.º, n.º 2, CC, pelo que o bem vendido em execução é transmitido sem afectar o direito do locatário.», in Pedro Romano Martinez, in Venda Executiva.”.
UU. Salvo devido respeito, não poderá a Recorrente deixar de esclarecer que tal posição defendida pelo autor (PEDRO ROMANO MARTINEZ) no ano de 1997, na página 334 do supra citado manual, foi entretanto alterado pelo próprio autor na sua obra Da Cessação do Contrato, Pedro Romano Martinez, 3.ª edição 2015, página 302: “Em estudo anterior (“Venda Executiva”, Aspectos do Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, página 334) também se afirmou que não se aplicava o art.º 824.º n.º 2 do CC, porque se entende que o arrendamento não é um direito real, mas, esclarecendo, dir-se-á que, não estando o arrendamento incluído entre os direitos reais indicados no citado preceito – porque não é direito real – dever-se-á aplicar a solução constante do inciso, na medida em que o seu espirito está presente a ideia de alienação livre de qualquer encargo.
VV. Na obra ora indicada, a qual reflete a última posição do autor sobre a presente temática, temos que o mesmo considera que “O contrato de locação também pode caducar por aplicação do disposto no art.º 824.º n.º 2 do CC, pois à venda de coisa locada em processo executivo não se aplica o principio emptio non tollit locatum (art.º 1051.º do CC), pelo que o comprador em venda executiva adquire o bem livre de ónus e encargos , em que se incluem as limitações decorrentes de contratos de arrendamento. Mesmo entendendo que o arrendamento não se qualifica como direito real,a ratio do n.º 2 do art.º 824 do CC é a de os bens vendidos judicialmente serem transmitidos sem encargos, entre os quais se inclui a vinculação decorrente do arrendamento.”
WW. Temos assim que a doutrina a que se faz referência na sentença proferida para fundamentar a decisão de que ora recorremos não corresponde efetivamente à última posição defendida.
XX. Em suma, não colhem, neste caso concreto, as considerações dos mais recentes arestos (que penderam para a caducidade do arrendamento) em torno do direito fundamental à habitação, como se fosse legítimo concluir que é o proprietário que tem de prosseguir a tarefa de ação social e de concretização de uma norma programática constitucionalmente consagrada como é a que prevê o acesso à habitação.
YY. Temos assim que o Tribunal a quo socorreu-se erradamente da interpretação fixada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência.
ZZ. Na medida em que aplicou o entendimento fixado no referido AUJ à situação concreta nos presentes autos, quando não existe uma correlação factual entre a factualidade referida no AUJ e os factos em discussão pelas partes nos presentes autos.
AAA. Acresce que, como é sabido, o AUJ 2/2021 não colheu a unanimidade dos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, quanto à fixação do entendimento nesta matéria, facto que ficou demonstrado pelo processo de votação dos Conselheiros, com quinze votos a favor e catorze votos contra.
BBB. Ainda assim, a verdade é que o entendimento que resulta do AUJ, firmou-se no sentido de que o arrendamento habitacional posterior à hipoteca não caduca.
CCC. Tal Acórdão é proferido contrariando a posição da maioria da jurisprudência sobre a questão o que acarreta riscos sérios e potencialmente graves de aplicação do direito pelos Tribunais em violação do Princípio da certeza e segurança jurídica, bem como potenciais geradores da frustração de expectativas.
DDD. Assim tal decisão veio colocar em crise os princípios da confiança e da estabilidade dos contratos, da boa-fé e do acesso ao direito e tutela efetiva, violação geradora de inconstitucionalidade.
EEE. Veja-se que nos presentes autos, documento n.º 22, submetido a 03.11.20 através de requerimento com a referência 17725056, o Senhor Agente de Execução, por email datado de 05.06.2018, comunicou (ainda que a título não vinculativo) “que o imóvel vai ser desocupado, por terem decidido mudar-se para outras instalações.”.
FFF. Tal facto aliado à corrente maioritária da jurisprudência existente, levou a que a Autora/Recorrente tivesse apresentado a proposta que apresentou por confiar que o bem lhe seria transmitido livre de qualquer direito real de garantia e de gozo.
GGG. Se pensasse que o bem lhe iria ser transmitido onerado com um ónus “acoplado”, muito provavelmente não teria feito a proposta que fez, ou pelo menos tê-la-ia feito por um preço muito inferior.
HHH. Veja-se a este respeito o que resulta do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, a 18.05.2023, em decisão proferida no âmbito do processo 8242/17.3T8VNF-C.G1, e após o citado AUJ: “(…) Recorde-se o que se escreveu supra, sobre em tese ser pensável que os direitos de gozo se mantivessem e que o adquirente do bem tivesse de os respeitar, mas que essa solução acabaria na prática por inviabilizar, na maior parte dos casos, a venda do bem, com prejuízo não apenas para os credores, como também para os devedores que poderiam ver-se obrigados à venda de mais bens para satisfação dos créditos. Este é mais um argumento, de certeza e segurança jurídicas, tão sagrado nos Sistemas Jurídicos de matriz continental (Civil Law Tradition), que nos leva agora a considerar que o imperativo legal emergente do art.º 824º,2 CC não pode deixar de se impor também neste caso. ( nosso sublinhado)
III. Não poderá ainda deixar de ser sublinhado o teor do Acórdão nº 50/2022 do Tribunal Constitucional, o qual decide não julgar inconstitucional a norma do art.º 824º nº2 CC, interpretado no sentido de que o direito de uso e habitação de imóvel hipotecado, que corresponda a casa de morada de família, cujo registo seja posterior ao registo de hipoteca sobre o mesmo imóvel, caduca com a venda executiva.
JJJ. Tudo isto exposto, temos que ao contrato de arrendamento também se deverá aplicar o disposto no art.º 824.º n.º 2 do CC, implicando tal a sua resolução, pois à venda de coisa locada em processo executivo não se aplica o principio emptio non tollit locatum (art.º 1051.º do CC), pelo que o comprador em venda executiva adquire o bem livre de ónus e encargos , em que se incluem as limitações decorrentes de contratos de arrendamento.
KKK. Perfilhando-se o entendimento de Pedro Romano Martinez, no sentido de que: “Mesmo entendendo que o arrendamento não se qualifica como direito real, a ratio do n.º 2 do art.º 824 do CC é a de os bens vendidos judicialmente serem transmitidos sem encargos, entre os quais se inclui a vinculação decorrente do arrendamento.”.
LLL. Mostrando-se caducado o contrato de arrendamento celebrado entre a Ré e os anteriores proprietários temos que a ocupação do imóvel pela Ré desde 14.12.2018 (data da adjudicação do imóvel pela Autora) até 31.07.2019 (data da entrega do imóvel pela Ré à Autora) mostra-se assim ilícita, constituindo violação do direito de propriedade do adquirente, nos termos do artigo 483.º do Código Civil.
MMM. Considerando apenas a data em que à Recorrente foi entregue o título de transmissão - o qual é datado de 14.12.2018 - até à entrega efetiva do imóvel pela Recorrida à Recorrente – a qual ocorreu a 31.07.2019 - decorreram sete meses e dezasseis dias, deverá assim a Recorrida ser condenada a liquidar à Recorrente a quantia de €1.118.766,37, que corresponde à quantia mensal de €148.508,81 durante o período da sua ocupação indevida, a qual ocorreu durante sete meses e dezasseis dias, valor ao qual se terá de deduzir o montante de €16.800,00 liquidado pela Recorrida a título de depósito de rendas conforme supra se referiu. NNN. Deverá ser liquidada a quantia de €1.101.966,37, acrescido de juros desde a data de entrega do título de adjudicação do presente imóvel, o qual é datado de 14.12.2018 até à data da entrega do imóvel a qual ocorreu no dia 31.07.2019, no valor de €27 775,59, pelo que deverá a Recorrida ser condenada a liquidar à Recorrente a quantia global de €1.129 741,96, a que devem acrescer os juros à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
OOO. Caso assim não se considere, a verdade é que cumpre referir que o dever de restituir a coisa ao locador, findo o contrato, resulta do artigo 1038.º, alínea i) do Código Civil, sendo, por isso, uma obrigação a cargo do locatário que decorre do vínculo contratual.
PPP. Não se tendo verificado nos autos tal situação, temos que a ocupação é ilegítima, incorrendo o Recorrido em responsabilidade e é obrigado a indemnizar os danos efetivamente sofridos, se o senhorio os conseguir demonstrar, e não apenas a compensar o que abstratamente a lei prevê no artigo 1045.º.
QQQ. Nessa medida, ainda que se entenda que à Autora/Recorrente não lhe assiste o direito ao recebimento da quantia peticionada nos presentes autos a título de indemnização e que corresponde a €1.101.966,37, acrescida dos juros de mora desde a data de entrega do título de adjudicação do presente imóvel, o qual é datado de 14.12.2018 até à data da entrega do imóvel a qual ocorreu no dia 31.07.2019, que ascendem ao valor de €27.775,59, o que perfaz a quantia global de €1.129.741,96, a título de indemnização por força do instituto da responsabilidade civil, sempre deverá ser-lhe reconhecido o direito à indemnização nos termos e para os efeitos do artigo 1085º do Código Civil, devendo ter-se por referência o valor de mercado do espaço arrendado pela Ré, a título de arrendamento, à data dos factos e que ascende a €11.000,00,
RRR. O que perfaz a quantia de €82.500,00.
SSS. Caso assim não se entenda, sempre terá de se concluir que o valor mensalmente pago pela Ré/Recorrida a partir de 31.01.2019, por depósito junto da Caixa Geral de Depósitos, no montante de €1.800,00, não corresponde ao valor mensal efetivo da renda, dado que a renda efetivamente acordada entre a Ré/Recorrida e os anteriores proprietários ascende ao montante de €3.600,00, valor esse que resulta dos factos 7 e 35 da factualidade provada.
TTT. Com efeito, desde o momento da adjudicação até à entrega do imóvel a Ré/Recorrida deveria ter pago o valor global de €27.000,00, no entanto, apenas pagou €16.800,00 conforme resulta do facto 21 da petição inicial, documento n.º 14.
UUU. Devendo a Recorrida ser condenada a pagar à Recorrente a quantia de €10.200,00.
VVV. Ainda que igualmente assim não se entenda, sempre deverá ser a Recorrida condenada a liquidar à Recorrente as despesas constantes do contrato outorgado e que se cifram no valor global de €70.284,59, por referência à clausula 1.ª e clausula 6.ª do anexo I do contrato de mútuo com hipoteca junto aos autos, designadamente, juros de mora (€45.656,34); imposto de selo (€1.826,25); comissão inicial de gestão (€10.000,00) acrescida do devido imposto de selo; comissão anual de gestão: €5.000,00 acrescida do devido imposto selo e imposto de selo de verba 17.1.2 da TGIS sobre o montante de €1.560.000,00, devido pelo mútuo autenticado de acordo com o artigo 23.º do Código de Imposto de Selo, e que ascendem ao valor de €70.284,59.
WWW. Em face do que fica sobredito, verifica-se assim demonstrada a caducidade do contrato de arrendamento celebrado por força da venda executiva, verificando-se por conseguinte, uma ocupação ilegítima de tal imóvel pela Recorrida, o que pressupõe a obrigação de indemnizar pelos danos causados por essa privação ilegítima do uso do imóvel pela Recorrente,
XXX. O que leva a que a sentença proferida não poderá manter-se,
YYY. Porquanto a mesma violou o disposto 483.º, 824.º n.º 2, 1038.º n.º 1, 1051.º e 1045.º todos do Código Civil, bem como o Acórdão nº 50/2022 e o DL 74A/2017 de 23 de junho, designadamente, o artigo 25.º n.º 5, por tudo quanto foi exposto.
ZZZ. Desta forma e face ao exposto, é entendimento dos Recorrentes que a sentença proferida deverá ser revogada e substituída por outra que determine a caducidade do contrato de arrendamento celebrado com as demais consequências legais, o que se requer que V. Exas. se dignem determinar.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o despacho proferido ora em crise, nos termos constantes das presentes alegações.”

A R. apresentou contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões:
1.ª A alteração da matéria de facto carece de sentido, por um lado, e de interesse, por outro;
2.ª Carece de sentido porque a suscitada alteração de matéria, seria irrelevante face aos demais factos considerados provados e não provados;
3.ª E de interesse, porque é inócuo à boa decisão da causa;
4.ª A matéria de facto considerada não provada não merece qualquer censura;
5.ª Quer porque a recorrente não cumpre o ónus estabelecido no artigo 640 do Código de Processo Civil;
6.ª Quer porque o crédito ou valor atribuído ao depoimento é matéria que só pode ser sindicada pelo Tribunal ad quem em casos residuais, de erro notório na apreciação da prova, que não se encontram em causa;
7.ª Quer porque, a invocada alteração da matéria de facto mais não passa que uma tentativa de alterar a alegação inicial, ao arrepio dos normativos aplicáveis;
8.ª A venda executiva de imóvel, sobre o qual incide contrato de arrendamento válido, celebrado após a constituição de hipoteca, não faz caducar o arrendamento, quer se trate de venda em processo de execução ou de insolvência;
9.ª Não se impõe qualquer diferença no tratamento da questão, quer se trate de venda em processo de insolvência quer em processo de execução, porque a venda segue o procedimento desta última;
10.ª O recurso deve improceder, porque os fundamentos que a recorrente invoca para abalar aqueles fixados no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, são exatamente aqueles que, mediante aquele aresto, ficaram resolvidos, pela não aplicabilidade do disposto no artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, face à natureza obrigacional da relação de locação (independentemente da natureza do imóvel e das características do contrato sobre o qual incide o arrendamento);
11.ª A recorrente aponta a frustração das suas expetativas, face à prolação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2021, como fundamento de inconstitucionalidade daquela decisão;
12.ª O que, se afigura inócuo à boa decisão da causa, uma vez que não é imputado qualquer vício direto à decisão recorrida nesse aspeto;
13.ª Apesar de resultar provado que a recorrente nada pagou, a título de empréstimo, no período da suposta privação ilícita, a recorrente não se coíbe de reforçar o peticionado, tal como se houvesse pago;
14.ª O que, carece de nexo, porque a premissa (pagamento) não existe;
15.ª Ao arrepio dos normativos aplicáveis, a recorrente vem efetuar, em sede recursória, uma verdadeira modificação do pedido.
16.ª Sendo momento impróprio para tanto, deve ser desatendido.
NESTES TERMOS, O recurso deve ser julgado improcedente, por não provado, com as legais consequências.”
*
A decisão recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto:
“1. A Autora é uma sociedade comercial que tem como objeto social a promoção imobiliária; compra e venda de imóveis rústicos e urbanos para loteamento, construção, reconstrução e revenda dos adquiridos para esse fim; arrendamentos; administração, gestão, e alienação de bens, participações sociais, imóveis incluindo o arrendamento; promoção, instalação, gestão e exploração imobiliária de empreendimentos turísticos, hoteleiros, comerciais e de retalho; desenvolvimento de projetos imobiliários, bem como gestão imobiliária e consultoria nas atividades mencionadas
2. A Autora adquiriu a propriedade da fração autónoma, designada pela letra B sito em Lugar da …, concelho de …, da freguesia da … descrita na 2ª conservatória do registo predial de … sob o nº…, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia ….
3. Tal fração foi adquirida pela Autora, por leilão eletrónico, no âmbito do processo judicial executivo n.º …, que correu termos no Juízo de Execução de …, realizado a 05 de julho de 2018, pelo valor de €1.752.350,00.
4. Estes autos tiveram início em 13 de janeiro de 2017, com a interposição do competente requerimento executivo.
5. No âmbito deste processo judicial, foi o imóvel em apreço penhorado a 25 de janeiro de 2017.
6. Sobre tal imóvel incidiam várias hipotecas, tituladas pela …, com datas de registo predial nos anos de 2008, 2009 e 2011.
7. Em 23 de maio de 2014, este imóvel tinha sido objeto de um contrato de arrendamento para fim não habitacional com prazo certo, celebrado entre os anteriores proprietários e a Ré, no âmbito do qual se convencionou o valor de €2.400,00 a título de renda mensal.
8. Em razão da supra referida penhora e do aludido contrato de arrendamento foi a Ré constituída fiel depositária do identificado imóvel.
9. O título de adjudicação referente a tal fração foi entregue à Autora pelo Senhor Agente de Execução a 14.12.2018
10. O imóvel em apreço foi entregue pela Ré à Autora a 31.07.2019.
11. Esse facto levou a que a Autora, desde o momento em que o imóvel em apreço lhe foi adjudicado, tenha feito vários requerimentos junto do processo judicial em apreço, através dos quais comunicou a não entrega do presente imóvel pela Ré, tendo peticionado a colaboração do Senhor Agente de Execução para que este efetivasse tal entrega.
12. Nessa sequência, a 23 de janeiro de 2019, determinou o Tribunal a notificação da Ré nos termos requerido pela Autora.
13. Tendo o Senhor Agente de Execução notificado a Ré nos termos requeridos a 21 de Fevereiro de 2019.
14. Paralelamente, a Autora através da sua mandatária, a 25.01.2019 procedeu à interpelação da Ré para a entrega voluntária do presente imóvel. 
15. Apesar de tais interpelações a Ré optou por não proceder à entrega do imóvel.
16. Após a interpelação da Autora, a Ré, em 31.01.2019, optou por proceder junto da Caixa Geral de Depósitos ao depósito de quantia mensal, no valor de €1.800,00, face à recusa manifestada pela Autora em receber tal montante.
17. Em resposta à interpelação feita pelo Senhor Agente de Execução, optou a Ré, a 13 de março de 2019, por apresentar oposição à execução mediante embargos, sem que para tal tenha prestado caução (os quais correram termos sob o n.º …) e em que a ora Ré invoca a celebração, em 23-5-2014, de contrato de arrendamento sobre o imóvel defendendo que, no caso, não deve prevalecer a tese da caducidade do contrato de arrendamento com a venda do respetivo imóvel em processo executivo .
18. Aos embargos deduzidos no âmbito do processo os quais correram termo sob o n.º…, apresentou a Autora contestação.
19. No processo n.º … foi a Ré considerada parte ilegítima.
20. Verificando-se que a Ré persistia na não entrega do imóvel à aqui Autora, foi determinado pelo Digníssimo Tribunal a 25 de Março de 2019, o seguinte: “autorizando a solicitação do auxílio das autoridades policiais para realização da entrega, inclusive, se necessário, com arrombamento de portas.”
21. A Ré, de tal despacho, teve conhecimento, no entanto, mais uma vez optou por não proceder à entrega do imóvel em apreço e desta vez apresentou em resposta a tal despacho, a 02 de abril de 2019, embargos de terceiro; em que a ora Ré volta a defender que não tem de entregar o imóvel em causa porque o contrato de arrendamento não caducou com a venda executiva, mantendo-se em vigor.
22. Tais embargos foram indeferidos liminarmente.
23. Nessa sequência, a Ré optou por apresentar recurso da decisão; recurso do qual veio posteriormente a desistir após ter procedido à entrega do imóvel.
24. Antes mesmo de novembro de 2018 e também nesse mês, o gerente da ora Autora comunicou ao gerente da Ré que já havia licitado sobre o imóvel; e que pretendia obter a fração livre de pessoas e bens.
25.A Ré comunicou ao agente de execução que pretendia mudar-se para outras instalações e entregar o imóvel em apreço nos autos; e que tinha um contrato de arrendamento em curso.
26.A Ré sabia, pelo menos, após a adjudicação do imóvel à Autora, que esta não pretendia manter o contrato de arrendamento pelo valor de renda do contrato outorgado.
27. Por o imóvel se encontrar ocupado pela Ré, no correspondente período de tempo, a Autora e outras sociedades comerciais que tinham o mesmo gerente da Autora não puderam passar a ter, no imóvel, como o gerente de todas pretendia, as suas respetivas sedes.
28. O imóvel em apreço apresenta 1.336,5400 m² de área, sendo 1.227,0000 m² de área bruta privativa e de área bruta dependente: 977,0000 m² cujo valor patrimonial é de €861.800,02.
29. O imóvel situa-se numa área geográfica de … bastante apelativa, com boa localização, no espaço industrial do concelho de ….
30. O imóvel em apreço foi avaliado pelo Banco …, conforme solicitação de 18-9-2018, pelo valor de €1.800.000,00.
31. Para a aquisição do prédio em causa a Autora outorgou o “Contrato de mútuo com hipoteca e fiança” no valor de 2.425.000,00 euros, que se mostra junto aos autos a fls. 157 a 165.
32. No âmbito de tal financiamento imputou a Autora para o pagamento do presente imóvel o valor de 1.560.000,00 euros, a ser pago no prazo de um ano, com vencimento a 31.01.20; prazo de pagamento que veio a ser prorrogado pelo prazo de três anos.
33. Após a saída da Ré, do imóvel dos autos, este careceu de obras, com vista à preconizada instalação da sede das supra referidas empresas, no imóvel.
34. Pelo menos, no início do ano de 2020, a ora Autora pôde instalar-se no imóvel.
35. Em certo período de tempo não concretamente apurado, por acordo entre a ora Ré e a senhoria, MD, à renda fixada no contrato de arrendamento junto aos autos a fls. 37 a 39, acrescia o valor mensal de 1 200, 00, assim, pago pela ora Ré.”

A decisão recorrida considerou como não provada a seguinte matéria de facto:
“1. O facto de a Autora não ter conseguido oportunamente instalar a sua sede no imóvel em muito prejudicou os seus resultados financeiros, conforme infra se demonstra, dado que toda a sua estrutura ficou em “stand by”, o que originou a que o ano de 2019 fosse o seu pior ano em termos de faturação.

2. A Autora deixou de realizar negócios, de gerar fluxo para cumprir as suas obrigações, dado que não conseguiu ampliar a sua atividade, designadamente, procedendo à elaboração de projetos, facto que acarretou a que o ano de 2019, gerasse o pior resultado dos últimos tempos.
3. O valor de mercado do espaço ocupado pela Ré, a título de arrendamento, à data dos factos, sempre equivaleria a uma renda mensal superior a €25.000,00.”
 *
Importa considerar a seguinte factualidade, com relevo para o conhecimento do objeto do presente recurso, factualidade que decorre do contrato de arrendamento junto com a petição inicial, não impugnado:
A) O contrato de arrendamento mencionado no ponto 7 dos factos provados, com início em 01/08/2014, foi celebrado pelo prazo inicial de 5 anos, sujeito a renovações automáticas e sucessivas por prazos adicionais de um ano, podendo qualquer das partes opor-se à renovação com antecedência de 120 dias em relação ao termo (cfr. cláusula 3ª).
B) Tal contrato não abrange a primeira cave e logradouro situado a poente da estrada que passa pelas traseiras do edifício (cfr. cláusula 2ª).
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e das que forem de conhecimento oficioso (art.ºs 635º e 639º do CPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do CPC).
*
As questões a decidir são as seguintes:
1. Da impugnação da decisão de facto
2. Da caducidade do contrato de arrendamento em virtude da venda executiva e suas consequências
1. Da impugnação da decisão de facto
A apelante afirma impugnar os factos provados 16, 31 e 32 e o facto não provado nº 3.
Entende que do facto nº 16 deve constar o valor pago pela Ré a título de renda até à entrega do imóvel, o qual, conforme alegou no art.º 21º da petição inicial e documento n.º 14, ascende a €16.800,00.
O facto provado nº 16 é do seguinte teor:
“Após a interpelação da Autora, a Ré, em 31.01.2019, optou por proceder junto da Caixa Geral de Depósitos ao depósito de quantia mensal, no valor de €1.800,00, face à recusa manifestada pela Autora em receber tal montante.”
No art.º 15º da contestação a R. impugna que o valor da renda seja de €1.800,00.
Resulta do documento nº 14, 2ª parte, junto com a p.i., emitido pela R. e não impugnado por esta, que no ano de 2019 a R. procedeu à retenção de IRS, no montante de €4.200, sobre a totalidade de “rendimentos profissionais e empresariais” sujeitos a retenção, no valor de €16.800, relativamente à A..
De 31/01/2019 a 31/07/2019, data em que a R. procedeu à entrega do imóvel à A., correspondem sete rendas, que ao valor mensal de €2.400 (cfr. facto provado nº 7), coincide com o total de €16.800 mencionado no referido documento – sendo o valor mensal depositado a que se refere o facto nº 16, o montante da renda, deduzida a quantia a título de retenção de IRS (25%º sobre o valor da renda, cfr. art.º 101º, nº 1, al. e) do CIRS).
Na indemnização peticionada a A. procedeu à dedução do montante global de €16.800, que lhe foi pago pela R., pelo que assume relevância consignar tal valor como provado.  
Assim, deve o facto provado nº 16 ser alterado de modo a contemplar tais elementos, passando a ser do seguinte teor:
“16. Após a interpelação da Autora, a Ré, em 31.01.2019, optou por proceder junto da Caixa Geral de Depósitos ao depósito de quantia mensal, no valor de €1.800,00, deduzido o valor da retenção de IRS, face à recusa manifestada pela Autora em receber tal montante, tendo procedido ao pagamento da quantia global de €16.800,00.”
Defende a apelante que o facto provado nº 31 deve passar a incluir o valor global das despesas  suportadas pela Autora, decorrentes do contrato de mútuo com hipoteca, nos seguintes termos:
“Para a aquisição do prédio em causa a Autora outorgou o “Contrato de mútuo com hipoteca e fiança” no valor de 2.425.000,00 euros, que se mostra junto aos autos a fls. 157 a 165, resultando de tal contrato – designadamente da fiança no valor de €1.560.000,00 - despesas para a Autora no valor global de €70.284,59.”
Sustenta a sua posição no referido contrato e seu anexo, juntos aos autos.
Em sede de petição inicial a ora apelante não alegou as despesas decorrentes do contrato de mútuo, não tendo formulado qualquer pedido atinente a tal factualidade.
A alteração da matéria de facto pretendida é inócua em face do pedido formulado na petição inicial. A A. fundou a indemnização tendo como base de cálculo o valor do financiamento bancário a que recorreu: €1.560.000,00, a pagar no prazo de um ano, o que corresponderia a uma renda mensal no valor de €148.508,81. Valor que entende deve ser considerado pelo período de ocupação ilícita  (que contabiliza em sete meses e dezasseis dias), e deduzido o montante de €16.800,00 liquidado pela Ré a título de depósito de rendas, cifrando-se em €1.101.966,37.
Expresso o cálculo da indemnização verifica-se que as despesas decorrentes da celebração do contrato de financiamento não foram consideradas no cálculo da indemnização peticionada, nem vem indicado qualquer elemento probatório atinente ao seu pagamento.
É certo que, na alegação do recurso, a apelante veio requerer a revogação da sentença e a sua substituição por outra que condene a R. no pagamento de indemnização, nos seguintes termos:
-  da quantia de €1.118.766,37, que corresponde à quantia mensal de €148.508,81 durante o período da sua ocupação indevida, a qual ocorreu durante sete meses e dezasseis dias, valor ao qual se terá de deduzir o montante de €16.800,00 liquidado pela Recorrida a título de depósito de rendas (conclusão MMM) – pedido idêntico ao formulado na petição inicial;
- caso assim não se considere, o dever de restituir a coisa ao locador, findo o contrato, resulta do artigo 1038.º, alínea i) do Código Civil, sendo, por isso, uma obrigação a cargo do locatário que decorre do vínculo contratual, o que não se verificou, incorrendo o Recorrido em responsabilidade e é obrigado a indemnizar os danos efetivamente sofridos, se o senhorio os conseguir demonstrar, e não apenas a compensar o que abstratamente a lei prevê no artigo 1045.º. (conclusão OOO)
- nessa medida, ainda que se entenda que à Autora/Recorrente não lhe assiste o direito ao recebimento da quantia peticionada nos presentes autos a título de indemnização e que corresponde a €1.101.966,37, acrescida dos juros de mora, a título de indemnização por força do instituto da responsabilidade civil, sempre deverá ser-lhe reconhecido o direito à indemnização nos termos e para os efeitos do artigo 1085º do Código Civil, devendo ter-se por referência o valor de mercado do espaço arrendado pela Ré, a título de arrendamento, à data dos factos e que ascende a €11.000,00 (conclusão QQQ);
- Caso assim não se entenda, sempre terá de se concluir que o valor mensalmente pago pela Ré/Recorrida a partir de 31.01.2019, por depósito junto da Caixa Geral de Depósitos, no montante de €1.800,00, não corresponde ao valor mensal efetivo da renda, dado que a renda efetivamente acordada entre a Ré/Recorrida e os anteriores proprietários ascende ao montante de €3.600,00, valor esse que resulta dos factos 7 e 35 da factualidade provada (conclusão SSS)
- Ainda que igualmente assim não se entenda, sempre deverá ser a Recorrida condenada a liquidar à Recorrente as despesas constantes do contrato outorgado e que se cifram no valor global de €70.284,59, por referência à clausula 1.ª e clausula 6.ª do anexo I do contrato de mútuo com hipoteca junto aos autos, designadamente, juros de mora (€45.656,34); imposto de selo (€1.826,25); comissão inicial de gestão (€10.000,00) acrescida do devido imposto de selo; comissão anual de gestão: €5.000,00 acrescida do devido imposto selo e imposto de selo de verba 17.1.2 da TGIS sobre o montante de €1.560.000,00, devido pelo mútuo autenticado de acordo com o artigo 23.º do Código de Imposto de Selo, e que ascendem ao valor de €70.284,59 (conclusão VVV)
O teor destas conclusões traduz-se na dedução de novos pedidos, a título subsidiário.
Todavia, inexistindo acordo das partes – como é o caso - não é admissível a alteração da causa de pedir e do pedido em sede de recurso (art.ºs 264º e 265º do CPC).
É, pois, manifestamente inútil a pretendida alteração ao facto provado nº 31.
Apesar de afirmar impugnar o facto provado nº 32, não pugna por qualquer alteração deste, nada havendo a apreciar quanto a este aspeto.
Por último, defende a apelante que o facto não provado nº 3 deve passar a ser considerado provado, com a seguinte redação:
“36. O valor de mercado do espaço ocupado pela Ré, a título de arrendamento, à data dos factos, sempre equivaleria a uma renda mensal de €11.000,00.”
Neste ponto a fundamentação da sentença é do seguinte teor:
“Quanto ao ponto 3, anotou-se o teor do depoimento da testemunha PM, perito avaliador de imóveis que apontou para um valor de arrendamento de 11.000,00 euros deduzidos do valor de cerca de 3.400,00 euros (valor da cave, excluída do contrato de arrendamento); o que se concatenou com o teor do documento junto aos autos a fls. 505 a 520, elaborado pelo próprio; ao que se juntou a falta de qualquer outro elemento de prova sobre esta matéria.”
Insurge-se a apelante contra a falta de apreciação do depoimento da testemunha MP, consultor imobiliário a trabalhar ligado à …, que relatou a proposta de arrendamento que recebeu para o imóvel dos autos.
Mais entende que a testemunha PM depôs de forma credível, detalhada, tendo descrito a forma como decorreu a avaliação e principalmente de que forma se alcançou o valor de mercado do espaço ocupado pela Ré, a título de arrendamento, à data dos factos, concluindo que deveria o seu depoimento e o relatório de avaliação imobiliária, ter sido de outra forma valorado pelo Tribunal.
A apelante não observou o ónus exigido pelo art.º 640º, nº 2, al. c) do CPC, pois não indicou com exatidão as passagens da gravação dos depoimentos das duas testemunhas em que funda o recurso, nem procedeu à respetiva transcrição, o que implica a rejeição do recurso da impugnação da decisão de facto, neste particular aspeto, ou seja, na apreciação da impugnação não se atende ao depoimento das referidas testemunhas.
“A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (art.ºs 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art.º 640º, nº 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios de prova constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.)
Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda (…)”. [1]
 Na petição inicial foi alegado que o valor de mercado a título de arrendamento à data dos factos equivaleria a uma renda mensal superior a €25.000,00 (cfr. art.º 68º). O valor de €11.000 não tem qualquer correspondência com a alegação, situando-se em menos de metade daquele – e foi o valor alegado que foi objeto do facto nº 3, ora impugnado.
O relatório de avaliação do imóvel (totalidade deste), junto por requerimento de 10/05/2022, conclui a pág. 21: presume-se que o valor de renda no período de Janeiro de 2019 a Julho de 2019 seja de 11.000€ mensais.” Não se vislumbra que tal valor apenas respeite à parte do imóvel arrendado, uma vez que no contrato de arrendamento está excluída a cave e logradouro situado a poente da estrada que passa pelas traseiras do edifício (cfr. Clausula 2ª do contrato, junto com a p.i.), cuja área é de 977 m2, conforme relatório. Acresce que, que na determinação do respetivo valor foi atendido, além do mais, o estado de conservação, tendo a visita ao imóvel com vista à elaboração da avaliação ocorrido em 18/03/2022, acrescendo que não foi apresentada licença de utilização.
Com efeito, a pág. 8 do relatório consta: “Não foi apresentada Licença de utilização. Assume-se que a informação contida no referido documento não altere em nada as condições do imóvel descritas na presente avaliação. Estado de conservação: Segundo informação dada pelo proprietário aquando da visita, o imóvel foi alvo de obras de reabilitação que terminaram em 2022. Encontrando-se em excelente estado de conservação.”
Atento o exposto, sem qualquer outro suporte probatório, o relatório de avaliação não é suficiente para sustentar o valor da renda alegado no recurso, nem dele, isoladamente considerado, é possível concluir, com segurança, por qualquer valor, pelo que deve o facto nº 3 manter-se como não provado.
Pelo exposto, procede parcialmente a impugnação da decisão de facto, com alteração do teor do facto provado nº 16, como sobredito.
2. Da caducidade do contrato de arrendamento em virtude da venda executiva e suas consequências
A apelante pugna pela revogação e substituição da sentença recorrida por decisão que por outra que determine a caducidade do contrato de arrendamento celebrado, com as demais consequências legais. Sufraga o entendimento de que é aplicável o artigo 824º, nº 2 do CC, tendo caducado o contrato de arrendamento celebrado com a R. por efeito da venda do imóvel na ação executiva, imóvel sobre o qual pendiam hipotecas registadas antes da celebração daquele contrato.
A sentença recorrida concluiu pela não caducidade, invocando o AUJ nº 2/2021, bem como dois outros acórdãos do STJ, ambos proferidos em 03/11/2021, nos processos nº 2418/16.8T8FNC.L1.S1 e nº 1069/15.9T8AMT que, adianta-se já, ao invés do ali afirmado, não constituem uniformização de jurisprudência.
A A. adquiriu o imóvel acima identificado, por leilão eletrónico, no âmbito do processo judicial executivo n.º…, realizado a 05/07/2018, cujo título de adjudicação foi entregue à Autora pelo Senhor Agente de Execução a 14.12.2018.
No âmbito deste processo judicial, foi o imóvel em apreço penhorado a 25/01/2017.
Sobre tal imóvel incidiam várias hipotecas, tituladas pela …, com datas de registo predial nos anos de 2008, 2009 e 2011.
Em 23/05/2014, este imóvel tinha sido objeto de um contrato de arrendamento para fim não habitacional pelo prazo de 5 anos, com início em 01/08/2014, celebrado entre os anteriores proprietários e a Ré, no âmbito do qual se convencionou o valor de €2.400,00 a título de renda mensal.
O imóvel foi entregue pela Ré à Autora a 31/07/2019.
A A. pretende ser indemnizada pela ocupação do imóvel desde 14/12/2018 até 31/07/2019, por entender que tal ocupação é ilícita por via da caducidade do contrato de arrendamento por efeito da venda executiva, nos termos do disposto no art.º 824º, nº 2 do CC.
Dispõe o art.º 824º do CC:
“1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens.”
Em torno do disposto no art.º 824º, nº 2 do CC e quanto à questão de o direito ao arrendamento se incluir nos direitos de gozo, gerou-se controvérsia na doutrina e jurisprudência, descortinando-se duas correntes: uma que defende a não aplicação do preceito à locação e concretamente ao contrato de arrendamento, sustentando a não caducidade do mesmo, designadamente face ao teor do art.º 1057º do CC; outra que pugna pela aplicabilidade do preceito, por considerar o contrato de arrendamento como um ónus (para alguns revestindo o arrendamento a natureza de direito real de gozo) a merecer tratamento idêntico aos direitos reais de gozo, caducando o contrato com a venda executiva, quando celebrado depois da constituição da hipoteca.
Esta controvérsia foi sintetizada por Rui Pinto [2], nos seguintes termos:
“Uma posição – MENEZES CORDEIRO, ROMANO MARTINEZ, AMÃNCIO FERREIRA – vem pugnar pela manutenção do arrendamento “aplicando-se a regra do art.º 1057º à locação quando registada ou constituída antes da penhora”, já que  “o nº 2 do (…) art.º 824º não previu a caducidade do arrendamento porque o art.º 1057º estabeleceu a regra da sua transmissão”, não havendo “assim, lacuna legal que permita a sua aplicação analógica ao arrendamento” (STJ 19-01-2004/03A4098 (AFONSO DE MELO). Seria, então, um direito pessoal de gozo, mas com um regime próprio, ao qual não seria aplicável o artigo 824º, nº 2 CC, pelo que não caducaria mesmo que existisse hipoteca anterior.
Uma segunda posição, defende a caducidade – OLIVEIRA ASCENSÃO, TEIXEIRA DE SOUSA, e REMÉDIO MARQUES – da locação, por inclusão no artigo 824º, nº 2 segunda parte CC, eventualmente por analogia.”
No acórdão de uniformização de jurisprudência nº 2/2021, publicado no Diário da República nº 151/2021, (Série I de 05.08.2021), invocado na sentença recorrida, foi uniformizada jurisprudência nos seguintes termos:
“A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, nº 3, do CIRE, conjugado com o artigo 1057º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no nº 2 do artigo 824.º do Código Civil.”
Insurge-se a apelante quanto à aplicação do AUJ, bem como dos acórdãos do STJ datados de 03/11/2021, processo n.º 2418/16.8T8FNC.L1.S1 e de 15.02.2022, processo nº 718/11.2TBALQ-B.L1.S1 [3],  por entender que não têm correlação fáctica com os presentes autos, afirmando que o AUJ respeita a venda em processo de insolvência e a um contrato de arrendamento para fins habitacionais, o mesmo sucedendo com os demais acórdãos citados, sendo que nos presentes autos o contrato foi celebrado para fins não habitacionais e a venda ocorreu em processo executivo. E relativamente ao acórdão de 03/11/2021, processo nº 1069/15.9T8AMT [4], do qual é feito menção na sentença proferida, sublinha que merece destaque a declaração de voto que o integra. Conclui que o AUJ nº 2/2021 apenas se aplica a contratos de arrendamento habitacionais.
Da fundamentação do AUJ consta:
“Esta referência ao disposto no artigo 109º, nº3 do CIRE, não aponta directamente para uma resolução jurídica diversa do conflito nos Acórdãos em confronto, já que o nó górdio da problemática discutida em ambos se centrou na (in)aplicabilidade do preceituado no artigo 824º, nº2 do CCivil aos contratos de arrendamento celebrados em data posterior à constituição da hipoteca sobre os respectivos imóveis que tenham sido objecto de venda no âmbito de um processo insolvencial dos seus locadores, sendo que o referido normativo, no seu nº1, refere-se especificamente à venda em execução.
Contudo, atentemos no artigo 1º do CIRE, onde se estipula que «O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.».
Este procedimento é universal e concursal: i) é um processo universal, uma vez que todos os bens do devedor podem ser apreendidos para futura liquidação, de harmonia com o disposto no artigo 46º, nºs1 e 2 do CIRE, normativo este que define o âmbito e a função da massa insolvente; ii) concursal, pois o seu objectivo é a obtenção da liquidação do património do devedor, por todos os seus credores, os quais são chamados a intervir no processo, seja qual for a natureza do respectivo crédito, e caso venha a ser verificada a insuficiência do património a excutir, serão repartidas de modo proporcional pelos mesmos as respectivas perdas (principio da par conditio creditorum).
Nesta perspectiva claramente executória do procedimento insolvencial, embora não exclusivamente executória, comportando antes uma natureza mista, porquanto se inicia com uma fase declarativa da qual se parte para uma outra com vista à transmissão do património e pagamento aos credores, parecem não restar dúvidas que o regime legal da venda executiva previsto no Código de Processo Civil é aplicável àquela alienação patrimonial, em incidente de liquidação da massa, designadamente, o da venda de bens, para o qual nos remete especificamente o artigo 164º, nº1 do CIRE e em termos genéricos, subsidiariamente o artigo 17º, nº1 do mesmo diploma (…)
O aporema daqui reside em saber se a venda de um imóvel hipotecado e arrendado, por contrato de arrendamento urbano para habitação posterior ao registo da hipoteca, realizada no âmbito de liquidação efectuada em processo de insolvência do locador, provoca a caducidade do arrendamento, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824º do CCivil. (…)
A fim de se poder enveredar pela subsunção da caducidade do contrato de arrendamento em sede de venda ocorrida na liquidação insolvencial que aqui nos ocupa, nos termos esgrimidos pelo Acórdão fundamento, tornar-se-ia mister, fazer a equiparação da relação locatícia existente, na perspectiva do locatário, a um direito real, porquanto aquela norma se refere tão só à extinção de direitos reais e, não também, de todos os direitos, reais e/ou obrigacionais, que incidam sobre a coisa transmitida.
Começamos por dizer que o contrato de arrendamento, na sua estrutura, é um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, do qual decorre para o locador a obrigação de proporcionar ao locatário o gozo de um imóvel, temporariamente, mediante uma determinada retribuição, estando o seu enquadramento legal perfeitamente definido no artigo 1022º do CCivil, não se tratando, pois, de um direito real de gozo, encontrando-se expressamente afastado do Livro III – Direito das Coisas - sendo certo que neste específico domínio estamos adstritos ao princípio da tipicidade (artigo 1306º do CCivil), o qual afasta, à partida, qualquer possibilidade de analogia.
Essa tipicidade concreta mostra-se abrangida pela norma do artigo 824º, nº2 do CCivil, a qual é clara, precisa e concisa, no que concerne aos direitos que caducam em sede de venda executiva, pois estes são apenas os reais e não também os obrigacionais, caso do arrendamento. (…)
Nem se diga ex adverso, que se trata de uma argumentação sem qualquer expressão, uma vez que a enunciação legal embora nunca assuma um carácter taxativo, mas antes meramente exemplificativo, no caso concreto, a apontada omissão, só se poderá ter como propositada, face ao preceituado no artigo 1057º: se o arrendamento se mantém independentemente da transmissão do direito, é óbvio que essa transmissão não o poderá fazer caducar e, daí a impossibilidade manifesta de se poder afastar a aplicação do disposto no artigo 1051º, o qual não prevê como causa de caducidade a venda em processo executivo do imóvel arrendado, nem tão pouco na liquidação insolvencial, que aqui tratamos, entre outros os Ac STJ de 7 de Dezembro de 1995, proc. nº 087516 e de 19 de Janeiro de 2004, proc. nº 03A4098, in www.dgsi.pt; de 20 de Setembro de 2005, CJ STJ, Ano XIII, Tomo III, 29 e de 27 de Março de 2007, CJ STJ, Ano XV, Tomo I, 146. (…)
De outra banda, há que convir, que as alterações legislativas operadas em sede de arrendamento, vieram acentuar o carácter transitório do instituto, bem como, face ao aumento das rendas, tornaram-no um instrumento jurídico altamente rentável para os proprietários, não se podendo continuar a defender que o arrendamento implique uma desvalorização do bem, onerando-o economicamente, nem tão pouco que frustre e/ou diminua a posição do credor reclamante. (…)
Há que ter igualmente em atenção que a circunstância de o imóvel, em venda, poder estar hipotecado, não inibe o proprietário de o arrendar, nem de o transmitir a terceiro com lucro, como deflui inequivocamente do disposto no artigo 695º do CCivil, uma vez que hoje em dia a subsistência do direito do arrendatário depende da subsistência de um contrato, que o senhorio pode extinguir por sua vontade unilateral, por via de oposição à renovação, denúncia e/ou resolução, não procedendo as posições que reclamam a ideia de que o contrato de arrendamento «[n]a medida em que sujeita o bem arrendado a uma situação fora da disponibilidade do proprietário devido ao seu carácter vinculístico, traduz-se num verdadeiro ónus e, como tal, deve estar sujeito à extinção por força da venda executiva. O arrendamento de que o senhorio não possa libertar-se a breve prazo é um ónus, não podendo sobrepor-se à hipoteca, porquanto origina a degradação do valor dado em garantia», in M. Isabel H. Menéres Campos, Da Hipoteca – Caracterização, Constituição e Efeitos, 242. (….)
Estando o regime da transmissibilidade do arrendamento perfeitamente enquadrado no preceituado no artigo 1057º do CCivil, para onde nos remete, além do mais, o disposto no artigo 109º, nº3 do CIRE, dúvidas não subsistem de que a tais normativos é estranho o regime prevenido no artigo 824º, nº2 do CCivil, pelo que, inexiste qualquer lacuna carecida de integração analógica.” (sublinhados nossos).
Verifica-se, assim, que embora a situação tratada no AUJ seja a da caducidade de um arrendamento habitacional por efeito de venda em processo de insolvência, a respetiva fundamentação é aplicável a qualquer tipo de arrendamento e à venda judicial, seja insolvencial ou executiva – ainda que tenha sido reforçado pela existência da norma especial do art.º 119º do CIRE –, pois o cerne da sua fundamentação prende-se com a interpretação do art.º 824º, nº 2 do CC.
Neste acórdão nenhum fundamento foi aduzido no sentido de merecer o arrendatário habitacional maior proteção que os demais.
Nos dois acórdãos do STJ proferidos em 03/11/2021, processo nº 2418/16.8T8FNC.L1.S1 e processo nº 1069/15.9T8AMT-P.P1.S1, ambos relatados por Maria Olinda Garcia, decidiu-se que a venda, em processo executivo, de imóvel arrendado para habitação (processo 2418/16) e imóvel arrendado para fim não habitacional (processo nº 1069/15), quando o contrato de arrendamento tenha sido celebrado depois da constituição de hipoteca sobre esse imóvel, não faz caducar o arrendamento, como decorre do art.º 1057.º do CC, não sendo aplicável o art.º 824.º, n.º 2, do CC..
Sufragamos a posição do mencionado AUJ, afigurando-se cristalina a fundamentação do acórdão proferido no processo nº 1069/15.9T8AMT-P.P1.S1, em relação à sua abrangência aos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, que passamos a transcrever:
“A jurisprudência sustentada no acórdão recorrido foi, entretanto, contrariada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2021, publicado no Diário da República nº 151/2021, (Série I de 05.08.2021). (…)
Embora a factualidade subjacente ao processo no qual foi proferido aquele AUJ não seja integralmente equiparável à factualidade subjacente à dos presentes autos (dado que naquele estava em causa um arrendamento para habitação e neste está em causa um arrendamento para fim não habitacional, concretamente para fim industrial), o modo como o art.º 824º. nº 2 do CC foi interpretado nesse caso é plenamente aplicável ao caso concreto.
Efetivamente, em ambos os casos está em equação a questão central de saber se um contrato de arrendamento, celebrado depois de o imóvel ter sido hipotecado (mas antes de ter sido penhorado ou apreendido para a massa insolvente), deve caducar com a venda judicial, por aplicação do art.º 824º, nº 2 do CC, considerando-se incluído na categoria dos “direitos reais” ou dos ónus a que essa norma se refere.
No referido AUJ uniformizou-se jurisprudência no sentido da não aplicação do art.º 824º, nº 2 do CC ao contrato de arrendamento para habitação. Porém, as razões essenciais aí apontadas são plenamente válidas quando se trata de apreciar a subsistência de um arrendamento para fim não habitacional, na medida em que tais razões não assentam na circunstância específica da finalidade habitacional do contrato, mas sim na equação estrutural do confronto entre a figura locativa e os efeitos da alienação do imóvel locado.
Literalmente, o arrendamento não se encontra previsto no art.º 824º nº 2 do CC, entre os direitos que não se transmitem com a venda executiva. Por tal razão, ao longo de algumas décadas, doutrina e jurisprudência dividiram-se quanto à questão de saber se a intenção do legislador foi a de incluir o arrendamento nessa previsão normativa, quando se refere a direitos reais, ou se deveria entender-se que existe uma lacuna legal, e que, ainda que se entenda que o direito do arrendatário não é um direito real, sempre a aplicação do art.º 824º, nº 2 seria defensável por uma razão de equiparação teleológica com a solução prevista para os direitos reais (de gozo).
Do ponto de vista da interpretação sistemática, não se pode afirmar que a não inclusão expressa do arrendamento no art.º 824º, nº 2 do CC constitua uma lacuna legal, pois o art.º 1057º deste Código soluciona a questão, ao determinar que a transmissão do direito com base no qual o arrendamento foi celebrado tem como consequência a sucessão na posição do locador, sem estabelecer qualquer restrição quanto ao modo, voluntário ou forçado, de transmissão do direito. Trata-se de normas que, tendo sido consagradas, em simultâneo, pelo mesmo legislador, no Código Civil de 1966 (independentemente da sua prévia evolução legislativa em diplomas diversos), não sofreram qualquer alteração até ao presente. O legislador estabeleceu, assim, claramente, para o direito do locatário uma norma especial (a emptio non tollit locatum), que constitui um desvio temporal (correspondente à duração do contrato de locação) ao princípio da prevalência dos direitos reais. E deve notar-se que o art.º 1057º é uma norma imperativa, que não admite, por isso, convenção em contrário.
Acresce que, quando o legislador alterou o art.º 819º (através do DL nº 38/2003), nele passando a incluir o arrendamento posterior à penhora, entre os atos inoponíveis à execução, podia ter alterado o art.º 824º, nº 2, caso tivesse tido o propósito de fazer caducar o arrendamento anterior à penhora, mas posterior à hipoteca. (…)
Deve ainda notar-se que o nível de “oneração” que a subsistência do direito do arrendatário representa (do ponto de vista do interesse do terceiro adquirente do imóvel) não é, em regra, equiparável à oneração que pode decorrer de um direito real de gozo, como o usufruto ou o direito real de uso e habitação, pois estes direitos podem ser constituídos a título vitalício e ter natureza gratuita. O direito do arrendatário nunca tem, obviamente, estas características.
Não existem, portanto, argumentos de natureza literal ou sistemática que permitam incluir o arrendamento no âmbito do art.º 824º, nº 2.
Do ponto de vista do alcance teleológico da interpretação do art.º 824º, nº 2 do CC, a solução que mereceu acolhimento do referido AUJ é também a mais justificável, não apenas quando está em causa um arrendamento para habitação (como era o caso daquele AUJ), mas também quando se trata de arrendamentos para fins não habitacionais, mormente de arrendamentos de locais onde se encontram instalados estabelecimentos comerciais, como acontece no caso concreto. Efetivamente, a estabilidade das atividades económicas, desenvolvidas através do estabelecimento comercial, tem merecido particular tutela legislativa, como revela o disposto no art.º 1112º do CC, que permite o trespasse do estabelecimento (bem como do local onde se desenvolve a atividade do profissional liberal) por ato inter vivos sem necessidade do consentimento do locador. Esta preocupação de estabilidade é também revelada pela solução consagrada no art.º 1113º, ao estabelecer a regra da não caducidade destes arrendamentos por morte do arrendatário.
Sustentar a caducidade do contrato de arrendamento, em consequência da venda executiva, ou defender a manutenção do contrato de arrendamento até ao final do prazo convencionado ou renovado ou até que o novo locador possa denunciar o contrato (dependendo da respetiva modalidade temporal), implica harmonizar os interesses em jogo com os propósitos legislativos que se colhem tanto numa interpretação intra-sitemática como extra-sitemática. (…)
… caso se verificasse a caducidade do contrato de arrendamento, por aplicação do art.º 824º, nº 2, o arrendatário (independentemente da finalidade do contrato) teria a obrigação de imediatamente restituir o imóvel, como decorreria dos artigos 1038º, alínea i) e 1081º, nº 1 do CC. Acresce que, não se encontrando esta hipótese de caducidade prevista no art.º 1051º, não lhe seria aplicável a moratória prevista no art.º 1053º do CC. A obrigação de restituir o imóvel seria, portanto, imediatamente exigível. Não sendo tal obrigação cumprida, e existindo interpelação para a restituição, o ex-arrendatário torna-se-ia responsável pelo pagamento de uma indemnização correspondente ao dobro da renda que pagava, como determina o art.º 1045º, nº 2. A severidade desta solução, tratando-se de local onde se encontra instalado um estabelecimento comercial (com dezenas de trabalhadores, como no caso concreto) seria teleologicamente incompreensível no quadro de uma legislação locatícia que, com maiores ou menores restrições da liberdade contratual das partes, nunca deixou de ser integrada por múltiplas normas de natureza imperativa, tuteladoras da estabilidade do gozo do local arrendado e da previsibilidade da duração do contrato, como os supra referidos artigos 1112º e 1113º e as normas que estabelecem prazos de pré-aviso para o exercício dos direitos extintivos (art.º 1110º e artigos 1097º e 1101º por remissão).” (sublinhados nossos)
O STJ proferiu acórdão em 03/11/2021, processo nº 311/12.2TBRDD-B.E1.S2 [5], que versou sobre a caducidade de um contrato de arrendamento rural por efeito de venda executiva, referindo-se ao mencionado AUJ, nos seguintes termos:
Afigura-se-nos que a tese acolhida neste AUJ tem aqui inteiro cabimento e aplicação, apesar de existirem elementos que, aparentemente, diferenciam o caso destes autos.
Desde logo, o facto de estar ali em causa uma venda em processo de insolvência, a que é aplicável o disposto no art.º 109º, nº 3, do CIRE e aqui uma venda executiva.
Note-se, porém, como se salientou no referido AUJ, que à alienação em insolvência é igualmente aplicável o regime da venda executiva, afirmando-se, por outro lado, que a referência ao disposto no art.º 109º, nº 3, não aponta directamente para uma resolução jurídica diversa do conflito nos Acórdãos em confronto, já que o nó górdio da problemática discutida em ambos se centrou na (in)aplicabilidade do preceituado no artigo 824.º, n.º 2 do CCivil aos contratos de arrendamento celebrados em data posterior à constituição da hipoteca sobre os respectivos imóveis que tenham sido objecto de venda.
De facto, aquela norma do CIRE limita-se a garantir a manutenção dos direitos reconhecidos ao locatário pela lei civil (cf. art.ºs 1057º e 1091º) e, no nosso caso, quanto à manutenção da posição contratual do locatário, também pelo art.º 20º, nº 1, do RAR.
Por outro lado, está em causa nestes autos um contrato de arrendamento rural, mas esta natureza não interfere, por si só, na nossa questão: o arrendamento rural é uma locação de prédio rústico (art.º 2º, nº 1, do RAR), constituindo, pois, na sua estrutura, um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, como decorre do disposto no art.º 1022º do CC.
Importa, porém, notar que, na regulamentação específica deste contrato existe norma expressa sobre a questão da transmissibilidade e da caducidade.
Com efeito, conforme dispõe o art.º 20º, nº 1, do RAR, o arrendamento não caduca por morte do senhorio nem pela transmissão do prédio.
Esta norma, estabelecendo para a transmissão da posição contratual regra idêntica à prevista no art.º 1057º do CC (consagrando o princípio emptio non tollit locatum), afasta também as dúvidas que se suscitavam, quanto ao arrendamento urbano, sobre o carácter taxativo ou enunciativo dos casos de caducidade previstos no art.º 1051º do CC.
Prevê-se ali, expressamente, que a transmissão do prédio não provoca a caducidade do contrato.
Assim, no fundo, a questão a decidir nestes autos coloca-se em termos idênticos àqueles que eram postos em relação ao art.º 1057º do CC: se, na venda executiva, o regime dessa norma – no nosso caso, o regime do art.º 20º, nº 1, do RAR – é preterido pelo disposto no art.º 824º, nº 2, do CC.
Ora, a este respeito, impõem-se aqui as razões que constam da fundamentação do aludido AUJ e que acima se reproduziram, que levaram a afastar a subsunção do caso na previsão do art.º 824, nº 2, por neste se contemplar apenas direitos de garantia e direitos reais e não o arrendamento e inexistir lacuna carecida de integração analógica ou razão para a interpretação extensiva dessa norma.”
E em 15/02/2022 o Supremo proferiu acórdão [6], com o seguinte sumário: “A venda, em processo executivo, de imóvel arrendado para habitação, quando o contrato de arrendamento tenha sido celebrado depois da constituição de hipoteca sobre esse imóvel, não faz caducar o arrendamento, como decorre do art.º 1057.º do CC, não sendo aplicável o art.º 824.º, n.º 2, do CC.”
Em suma, é o próprio STJ que, em diversas decisões proferidas depois do AUJ nº 2/2021 (cujo acórdão foi proferido em 05/07/2021), considera o mesmo aplicável a contrato de arrendamento para habitação, para fim não habitacional, contrato de arrendamento rural, todos eles em venda executiva.
O elemento sistemático, a que a apelante alude em concreto, por referência ao art.º 819º do CC, aponta, a nosso ver, no sentido explanado nos mencionados acórdãos do STJ.
A sua redação originária era do seguinte teor: “sem prejuízo das regras do registo, são ineficazes em relação ao exequente os atos de disposição ou oneração dos bens penhorados.”
Este preceito foi alterado pelo DL nº 38/2003, de 08/03, de molde a contemplar a inoponibilidade do arrendamento de bens penhorados em relação à execução, a par de atos de disposição ou oneração. Se o legislador entendesse que o arrendamento de bem hipotecado caducava com a venda em execução teria procedido também à alteração do art.º 824º, nº 2 do CC em conformidade, sobretudo tendo em consideração a já longa controvérsia sobre a sua interpretação – o que não sucedeu, circunstância que reforça o entendimento que este último preceito não abrange a locação e o arrendamento em particular.
Pelos fundamentos expostos, que subscrevemos, sendo aplicável aos presentes autos a jurisprudência uniformizada pelo AUJ nº 2/2021, não se vislumbrando razões/fundamentos para dele nos afastarmos, limitando-se a apelante a discordar do seu teor, tecendo a argumentação que se opunha à posição que fez vencimento e que nele foi objeto de discussão, conclui-se pela não caducidade do contrato de arrendamento de que a R./apelada é arrendatária, por não lhe ser aplicável o art.º 824º, nº 2 do CC, não se vislumbrando em que medida tal AUJ viola os princípios da confiança e da estabilidade dos contratos, da boa-fé e do acesso ao direito e tutela efetiva.
O acórdão 50/2022 do Tribunal Constitucional, citado pela apelante, que versa sobre a aplicação do art.º 824º, nº 2 do CC ao direito de uso e habitação de imóvel que constitua casa de morada de família, tem por objeto um direito real, situação absolutamente distinta daquela que é objeto do presente recurso.
A apelante esgrime, ainda, como argumento para a tese que defende (tendo, aliás, junto parecer neste sentido), que o n.º 5 do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017 de 23 de Junho prevê, nos contratos de crédito a consumidores, para aquisição de habitação, que, se houver renegociação do crédito, o contrato de arrendamento caduca com a venda executiva ou dação em cumprimento do imóvel hipotecado fundada em incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, salvo se o mutuante e o consumidor tiverem, com fundamento no arrendamento, acordado na alteração das condições do crédito, o que, no seu entendimento, significa que,  por maioria de razão, devem caducar os arrendamentos para fins não habitacionais num processo judicial em que o credor hipotecário pretende exercer os seus direitos na sequência do incumprimento por parte do mutuário.
O diploma invocado consagra o regime dos contratos de crédito relativos a imóveis e procede à transposição parcial da Diretiva 2014/17/UE, relativa a contratos de crédito aos consumidores para imóveis destinados a habitação.
Afigura-se-nos seguro que a referida norma não permite a construção jurídica defendida pela apelante, porquanto integra um regime específico, não se verificando os pressupostos da sua aplicabilidade ao caso dos presentes autos.
Radicando a indemnização peticionada nos danos decorrentes da ocupação ilícita do imóvel pela R., em virtude da extinção do contrato por caducidade operada pela venda executiva, e não se verificando tal pressuposto, tendo a R. pago as rendas até à entrega do locado à A., impõe-se a sua absolvição.
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da apelante.

Lisboa, 7 de março de 2024
Teresa Sandiães
Carla Matos
Cristina Lourenço      
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, pág. 168-169.
[2] A Ação Executiva, AAFDL Editora, 2018, pág. 905-906
[3] Todos acessíveis em www.dgsi.pt
[4] Disponível em www.dgsi.pt
[5] Disponível em www.dgsi.pt
[6] Processo nº 718/11.2TBALQ-B.L1.S1, mesma base de dados