Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2301/21.5T9LSB.L1-9
Relator: JORGE ROSAS DE CASTRO
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
INJÚRIA AGRAVADA
DIREITO À HONRA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
ADVOGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator)
1. A rejeição da acusação, no contexto do despacho previsto pelo art.º 311º, nºs 1, 2, alínea a) e 3, alínea d) do Código de Processo Penal, apenas pode ter lugar se for inequívoco e incontroverso que os factos ali descritos não constituem crime.
2. Não é esse o caso quando da acusação pelo crime de injúria agravada, previsto pelos arts. 181º nº 1, 182º e 184º, com referência à alínea l) do nº 2 do art.º 132º, todos do Código Penal, consta (i) que a Arguida dirigiu ao ofendido as seguintes palavras: «És advogado, cada advogado, cada ladrão, os advogados são todos ladrões, vocês advogados são todos uns ladrões, até a minha advogada está farta de me roubar»; (ii) que tinha perfeita consciência de que o ofendido é advogado e que se encontrava no local no exercício das respetivas funções; (iii) que, ao utilizar tais expressões, cujo teor depreciativo não ignorava, quis ofendê-lo na sua honra e consideração devidas enquanto advogado, o que conseguiu; (iv) e que atuou de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
3. O direito à honra, tutelado pelas normas incriminadoras em causa, é um direito fundamental protegido desde logo pela nossa Constituição (CRP), no seu art.º 26º, nº 1, bem assim como pelo art.º 17º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e pelo art.º 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), neste caso enquanto dimensão da reserva da vida privada, aí se incluindo a reputação profissional.
4. O direito à honra não tem, é certo, um perfil absoluto, na medida em que há outros direitos, potencialmente com a mesma dignidade, com que tem que conviver e em face dos quais, em função das especificidades de cada caso, poderá ter em alguma medida que ceder, como é o caso da liberdade de expressão, protegida pelo art.º 37º da CRP, pelo art.º 19º do PIDCP e pelo art.º 10º da CEDH.
5. A liberdade de expressão é um dos fundamentos essenciais de qualquer sociedade democrática, marcada pelas ideias de pluralismo, tolerância e espírito de abertura, sendo particularmente alargada a sua proteção quando do que se trata é do desempenho de quem observa, acompanha e vigia a coisa pública ou participa em algum debate de interesse alargado.
6. O direito à honra e a liberdade de expressão, pelas suas próprias naturezas, têm uma especial vocação para se confrontarem na dinâmica geral da vida em sociedade, não podendo dizer-se logo em abstrato que um deles deva necessariamente ter prevalência sobre o outro.
7. As palavras que se imputa à Arguida ter dirigido ao ofendido não têm associado qualquer substrato de facto e não se integram em qualquer debate de posições atendível num ambiente plural e tolerante de ideias, mais não sendo que um puro juízo de valor desnecessariamente ofensivo, nessa medida não participando aparentemente da razão de ser da proteção especial de que a liberdade de expressão goza.
8. Não pode em suma dizer-se que seja inequívoco e incontroverso, logo em face do texto da acusação, que a Arguida, ao ter dito o que disse e naquele contexto, tenha atuado no exercício legítimo da liberdade de expressão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
1 – RELATÓRIO
Pelo Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 1) foi proferido despacho com os seguintes segmentos decisórios:
- «por amnistia, julgo extinto, o procedimento criminal deduzido nos presentes autos contra o arguido AA (art.º 127º nº 1 do C.Penal)» e
- «rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público contra BB (art.º 181º nº 1, 182º e 184º, com referência à al. l) do nº 2 do art.º 132º todos do Código Penal e 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. d) do Código de Processo Penal)».
Inconformada com o segmento da decisão proferida quanto à arguida BB, interpõe a Assistente Ordem dos Advogados o presente recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«1. O presente recurso jurisdicional vem interposto da decisão proferida pelo tribunal a quo, através da qual se decidiu rejeitar a Acusação Pública, por manifestamente infundada.
2. Para o efeito, considerou-se no aresto recorrido que as (sic).
3. Ora, salvo o devido respeito, não se pode a ora Recorrente conformar com tal decisão, uma vez que, salvo melhor entendimento,
4. No caso dos autos, o despacho acusatório apresenta-se completo e regular, reunindo em si todos os pressupostos de natureza formal e substancial sustentadores da sua intrínseca validade, de harmonia com o disposto no artigo 283º, nº 3, do CPP.
5. Não obstante terem sido previamente advertidos pelo Ofendido, no sentido de que deveriam cessar a sua conduta, sob pena de participação criminal, AA voltou a dizer: “És um advogado, és um chulo!”
6. Instantes depois, a arguida, BB vociferou alto e em bom som, a seguinte expressão: “És advogado, cada advogado, cada ladrão, os advogados são todos ladrões, vocês advogados são todos uns ladrões, até a minha advogada está farta de me roubar”.
7. Ora, dúvidas não restam de que os arguidos (a arguida na parte em apreço) tinham perfeita consciência de que o Ofendido era Advogado e que se encontrava naquele local no exercício das respetivas funções.
8. Mostrando-se cabalmente verificada a presença do elemento subjetivo do dolo, composto pelos elementos cognitivo e volitivo. Residindo o primeiro na representação pelo agente de todos os elementos que integram o tipo objetivo do crime e a consciência de que esse facto é ilícito e punível; e o segundo, na vontade pelo agente da realização do facto ilícito.
9. A alínea d) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório. Daqui decorre que o Tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.
10. No caso de se apresentar controversa a atipicidade dos factos narrados na acusação, esta não pode ser taxada de manifestamente infundada e fulminada com a rejeição liminar, nos termos do artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea d), do CPP, devendo os autos prosseguir para julgamento, onde a questão, segundo as várias perspetivas que se perfilem e sob a égide do contraditório, será então discutida e debatida.
11. O mesmo será dizer que, apenas e só quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação, não puderem, de todo, constituir crime, é que será legítimo o Tribunal poder declarar a acusação como manifestamente infundada ao ponto de a rejeitar liminarmente.
12. Se a questão focada na acusação for, no mínimo, juridicamente controversa, o juiz no despacho proferido a coberto do artigo 311º do CPP, não pode considerar manifestamente improcedente, quer seja a acusação pública, quer seja a acusação particular, pois, na verdade, só em sede de julgamento deve ser ponderado o entendimento a seguir, não podendo definitivamente ser rejeitada a acusação por manifestamente infundada.
13. Devendo, pois, o julgador eximir-se à antecipação da decisão de mérito, na medida em que só após a realização do julgamento é que deve ser ponderado qual o entendimento a seguir.
14. Além do mais, e sem conceder, é ponto assente que a descrição fáctica vertida na acusação pública preenche todos os elementos típicos do crime de injúria cuja prática à arguida nela foi imputada.
15. O despacho recorrido, ao rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada, enferma de uma interpretação errónea dos elementos típicos, objetivos e subjetivos, do crime de injúria, violando o disposto nos artigos 181º do CP, e o próprio artigo 311º, nº 3, alínea d), e 283º, nº 3, alínea b), ambos do CPP.
16. Destarte, ao contrário do juízo alvitrado na decisão recorrida, o despacho de acusação contém todos os elementos de facto necessários ao preenchimento do tipo legal de crime cuja prática nela vem imputada à arguida.
17. Por um lado, porque, como vem referido no libelo acusatório, a arguida agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas palavras e atuação eram adequadas a ofender a honra e a consideração pessoal e profissional do Ofendido, enquanto Advogado.
18. E, por outro lado, porque a interpretação da referida alínea d), do nº 3 do artigo 311º do CPP, que não é, nem podia ser tão clara como as que contemplam os demais fundamentos de rejeição da acusação por manifesta falta de fundamento, não pode, na sua interpretação ir além do que a estrutura dos princípios processuais admite.
Pelo exposto, deve o presente recurso jurisdicional ser considerado procedente, por provado, com as devidas consequências legais, devendo o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que, a inexistirem outros fundamentos para a rejeição da acusação, proceda ao respectivo recebimento, só assim se fazendo a sã e almejada Justiça!»
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência; formula as seguintes conclusões (transcrição):
1ª O presente recurso vem interposto pela assistente do despacho de 5/09/23 que rejeitou a acusação deduzida contra BB por manifestamente infundada nos termos do artigo 311º, n.º 2 alínea a) e n.º 3 alínea d) do Código de Processo Penal.
2ª Tendo em conta o âmbito do recurso fixado pelas conclusões apresentadas, a recorrente pugna pela violação daquelas normas legais e dos artigos 181º, n.º 1 do Cód. Penal conjugado com os artigos 26º, n.º 1 e 37º, n.º 1 da CRP.
3ª Desde logo, constata-se que, no que respeita à atuação de BB, estão em causa apenas os factos objetivos descritos nos artigos 5º e 9º e os factos subjetivos dos artigos 10º a 12º da acusação.
4ª Com efeito, quanto aos restantes factos da acusação, relativos à atuação do arguido AA e fora do âmbito do presente recurso, foi aplicada a amnistia prevista no artigo 4º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, uma vez que está em causa ilícito praticado até 19/06/23 por pessoa entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos.
5ª Relativamente à configuração da atuação da arguida BB como crime de injúria, a honra é concebida como o direito que cada cidadão tem de reclamar o respeito dos outros e a não receber deles juízos ou imputações vilipendiosos e degradantes ou, mais subjetivamente, equivale à representação psicológica que cada um tem de si próprio, ao apreço ou autoestima, a qual poderá corresponder, ou não, à consideração ou à reputação social de que goza.
6ª Na situação dos autos, verifica-se o confronto de dois direitos com consagração constitucional e hierarquicamente equiparados: por um lado, o direito ao bom nome e à reputação (artigo 26º) e, por outro, a liberdade de expressão (artigo 37º), pelo que a respetiva compressão terá de ser efetuada mediante um juízo de proporcionalidade (artigo 18º da CRP).
7ª Tudo ponderado, resulta que a liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa. As figuras públicas, quer pela sua exposição, quer pela discutibilidade das ideias que professam, quer ainda pelo controle a que devem ser sujeitos, seja pela comunicação social, seja pelo cidadão comum devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, devendo ser, concomitantemente, admissível maior grau de intensidade destas (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 4-11-2020, processo n.º 2294/17.3T9VFR.P1, disponível em dgsi.pt).
8ª Na situação dos autos, constata-se que a arguida dirige uma única palavra à pessoa do ofendido, já que as restantes são dirigidas a uma categoria de pessoas.
9ª Deste modo, a restrição operada ao direito à reputação do ofendido, revela-se adequada e proporcional, respeitadora dos princípios da necessidade, adequação e proibição do excesso consagrados no artigo 18º, n.º 2 da CRP.
10ª Nestes termos, afigura-se que, ao ponderar todos estes elementos, a Mmª Juiz atuou no respeito de todos os critérios constitucionais e legais explanados.
Nestes termos, Vossas Excelências, melhor decidindo, farão a costumada Justiça.»
Nenhuma outra resposta foi apresentada (nomeadamente pela Arguida visada pelo Recurso).
Chegados os autos a esta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto lavrou douto parecer, pugnando pela procedência do recurso, alegando, em síntese, que as palavras em apreço não encontram guarida na liberdade de expressão.
Cumprido o disposto no art.º 417º/2 do Código de Processo Penal, a Assistente veio manifestar concordância com o teor do referido parecer, reiterando a sua pretensão pela procedência do recurso.
Os autos foram aos vistos e realizou-se a conferência.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Questões a tratar
É pacífico, a partir do preceituado pelo n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal (CPP), que são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo do dever de apreciar as questões de conhecimento oficioso.
A esta luz, a problemática a apreciar é, em síntese, a de saber se a acusação deduzida nos autos contra a BB é ou não manifestamente infundada e se, por isso, deve ser rejeitada, no contexto do art.º 311º, nºs 2, alínea a) e 3, alínea d) do Código de Processo Penal.
Para tanto importará ponderar se é ou não acertado o juízo formulado pelo Tribunal a quo quando sustenta que os factos descritos na acusação pública não constituem o crime de injúria (agravada) imputado à Arguida, em virtude de esta ter atuado no exercício da liberdade de expressão.
2.2 A decisão recorrida
Tem o seguinte teor a decisão recorrida (transcrição da parte relevante):
«(…)
Pelo Ministério Público foi deduzida acusação contra BB, imputando-lhe a prática de um crime de injúria p. e p. pelos arts. 181º nº1, 182º e 184º, com referência à al. l) do nº2 do art.º 132º todos do C. Penal.
Analisando.
Dispõe o art.º 311º do Código de Processo Penal:
1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a. De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b. De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do nº1 do artigo 284º e do nº4 do artigo 285º, respectivamente.
3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a. Quando não contenha a identificação do arguido;
b. Quando não contenha a narração dos factos;
c. Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d. Se os factos não constituírem crime.
Prescreve o art.º 181º nº1 do Código Penal que quem injuriar outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias.
À arguida são imputados, designadamente, os seguintes factos:
Entretanto enquanto os presentes conversavam e constatando que existia uma exaltação dos ânimos, o ofendido chamou novamente a Polícia de Segurança Pública ao local, momento em que a arguida se lhe dirigiu, dizendo “És advogado, cada advogado, cada ladrão, os advogados são todos ladrões, vocês advogados são todos uns ladrões, até a minha advogada está farta de me roubar”.
O art.º 26° nº1 da Constituição da República Portuguesa consagra o direito ao bom nome e reputação entre os vários direitos de personalidade, que representa um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação), cujo conteúdo é constituído basicamente pela pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros, ou seja, a pretensão de não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade, independentemente do reconhecimento real ou merecido de que uma pessoa goza ou deve gozar (vd Augusto Silva Dias, ob. e loc. cít.) - citado por Ac do TRE de 23-01-2018 relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador António João Latas in www.dgsi.pt).
O artigo 37º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe "Liberdade de expressão e informação", dispõe nos seguintes ternos:
1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.
3. As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.
4. A todas as pessoas, singulares ou colectivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos".
A liberdade de expressão e opinião está igualmente consagrada no artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948 (publicada no DR. I série, de 9 de Março de 1978), no artigo 19º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, assinado em Nova York em 7 de Outubro de 1977 (aprovado, para ratificação, pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho) e no artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada para ratificação pela Lei n° 65/78, de 13 de Outubro (em vigor na ordem jurídica portuguesa desde 09 de Novembro de 1978, data do depósito do instrumento de ratificação junto do Secretário-Geral do Conselho da Europa).
Mas o direito de expressão não pode ser encarado como um direito absoluto, que prevalece em qualquer circunstância, podendo por vezes sofrer restrições que se justificam pela necessidade de se conjugar ou compatibilizar com outros direitos ou bens com expressão no texto constitucional. Segundo os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 81/84 (publicado no Diário da República, II Série, n." 26, de 31 de Janeiro de 1985, p. 1025) e n." 384/03 (in www.tribunalconstitucional.pt). "a liberdade de expressão (...) não é um direito absoluto nem ilimitado" e, não obstante o artigo 37°, n. ° 2, da Constituição proibir toda a forma de censura, "é lícito reprimir os abusos da liberdade de expressão".
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem pressupõe a tutela do direito à honra no n.º 2 do seu artigo 10.º, ao estabelecer os limites da liberdade de expressão e informação. Estabelece esta norma que: "O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades. condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e da prevenção do crime. A protecção da saúde e da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e imparcialidade do Poder Judicial".
Difamar e injuriar mais não é basicamente que imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, entendida aquela como o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um, e esta última como sendo o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, bom-nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública (Ac. do TRL de 6-2-96, CJ, I, 156, citado in Ac. do TRG de 25-10-2004 relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Nazaré saraiva, consultado in www.dgsi.pt).
A honra é entendida no ordenamento jurídico-penal português, como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.
Como refere Faria Costa, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo I, para aferir se as palavras proferidas são ou não ofensivas da honra e consideração de uma pessoa, há que atender ao contexto situacional, pese embora, existam palavras cujo sentido primeiro e último seja tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração e que exprimem e carregam consigo um indesmentível desvalor, objectivamente ofensivo.
O bem jurídico protegido com a incriminação é a honra (que respeita mais a um juízo de si sobre si) e a consideração (que se reporta prevalentemente ao juízo dos outros sobre alguém) de uma pessoa.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo, traduz-se na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal acto é proibido por lei.
Quanto ao elemento objectivo, há duas modalidades do comportamento que integram, a igual título, o tipo: o comportamento do agente pode traduzir-se na imputação de um facto ou na formulação de um juízo.
Se é certo que o nosso Código Penal adopta uma concepção normativo-pessoal de honra em que esta é vista como bem jurídico complexo que abrange quer o valor interior ou subjectivo de cada indivíduo, quer a sua reputação ou consideração exterior, não se discute igualmente o carácter fragmentário ou de última ratio do direito penal, sendo ainda verdade para o nosso ordenamento jurídico-penal que nos arts 180º e 181º do C. Penal tutela a dignidade e o bom nome do visado e não a sua especial susceptibilidade e melindre (Ac. do TRE de 23-01-2018 relato pelo Exmo. Sr Desembargador António João Latas, in
Assim, impõe-se levar devidamente em conta logo ao nível do preenchimento do tipo de ilícito que o direito penal tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito, e que nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético, ou que envergonha e perturba ou humilha, cabe na previsão das normas dos arts 180º e 181º - sublinhado nosso (Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37).
E isto porque a conduta pode ser reprovável em termos éticos, profissionais ou outros, mas não o ser em termos penais.
Existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos. É o que decorre do art.º 37.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, quando preceitua que «todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem descriminações.». (Ac do TRP de 26-3-2014, relatado pela Exma. Sra. Eduarda Lobo, consultado in www.dgsi.pt).
Como se decidiu no Ac. do TRC de 02-03-2005, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Oliveira Mendes, in www.dgsi.pt. "devem-se considerar atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista ou desportista, etc., nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.
E no Ac do STJ de 07-03-2007 relatado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Oliveira Mendes, in www.dsgi.pt. decidiu-se que no conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático, o que justifica a assunção de uma nova perspectiva na resolução do conflito. Neste contexto, temos vindo a defender, na esteira da orientação assumida por Costa Andrade, deverem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.
Costa Andrade in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora - 1996, considera que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da "verdade" das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva.
E Costa Andrade defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto, esclarecendo, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignando expressamente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.
Parte da jurisprudência dos nossos Tribunais superiores vem sufragando tal orientação, sendo que, de acordo com a mesma, entendemos que o direito de expressão, na sua vertente de direito de opinião e de crítica, quando se exerça e recaia nas concretas áreas atrás referidas e com o conteúdo e âmbito mencionados, caso redunde em ofensa à honra, se pode e deve ter por atípico, desde que o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor aos quais subjaz o exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar.
Como tal, o preenchimento dos tipos legais de difamação e injúria apenas se verifica quando as palavras devam considerar-se lesivas da honra ou consideração do visado, nas circunstâncias concretas em que foram proferidas, ou seja, as palavras referidas ou dirigidas a outra pessoa só serão típicas se, sendo depreciativas, puder concluir-se que nas circunstâncias concretas em que foram dirigidas ao visado as mesmas violaram o direito de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros, ou seja a pretensão de não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade (AC TRE de 23-01-2018 supra citado).
Ainda neste aresto se conclui que o art.º 180º do C. Penal (e de igual forma o art.181º do C.Penal) deve ser interpretado de modo a que o direito à liberdade de expressão consagrado genericamente no art.º 37º da CRP não seja subvalorizado e sacrificado mesmo quando a conduta potencialmente lesiva apenas pode violar a honra do visado em pequena medida ou de modo insignificante, nomeadamente quando do contexto respectivo sobressai o exercício do direito de crítica objectiva apontado ao desempenho funcional, profissional, (sublinhado nosso) como se verifica no caso presente, tal como não pode ser lido como permitindo o sacrifício do direito à honra em nome da liberdade de expressão, por mais desproporcional e lesiva que se apresente a violação daquela.
Tendo em conta os considerandos de ordem geral supra enunciados, no caso sub judicie, a declaração imputada à arguida tem de ser entendida como tendo sido proferida no exercício da crítica objectiva, sendo que o chamado direito de crítica objectiva não se descarateriza pela verificação de pequenos desvios ou transgressões que se enquadrem no exercício da liberdade de expressão.
De facto, o teor da expressão em causa inculca a ideia de que se criticou um comportamento, mas não expressamente a pessoa do ofendido. Mas ainda que se possa considerar que se trata de uma crítica directamente dirigida à actuação do ofendido (o que se não concebe), é patente que a mesma se situa na área dos seus comportamentos estritamente profissionais/funcionais e não atinge o núcleo da dignidade pessoal do queixoso.
E isto porque importa ter em conta as circunstâncias concretas em que foram escritas ou proferidas as palavras susceptíveis de preencher os elementos objectivos do tipo legal de difamação e/ou injúria.
A liberdade de expressão apenas deve ser restringida nas situações em que os direitos de personalidade, máxime o direito ao bom nome e reputação (art.º 26º CRP) sejam verdadeiramente postos em causa e de forma significativa.
O que não se verifica no caso concreto, na medida em que as afirmações/declarações alegadamente proferidas pela arguida devem entender-se apenas como apreciações subjectivas desta sobre as capacidades profissionais e a actuação dos advogados em geral.
Importa ter em conta que a conduta pode ser reprovável em termos éticos, profissionais ou outros, mas não o ser em termos penais. Existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos (Ac. do TRC de 03-05-2010 relatado pelo Exmo. Sr Desembargador Orlando Gonçalves, consultado in www.dgsi.pt).
Importa, assim, concluir que a expressão alegadamente proferida pela ora arguida, face à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, não tem relevância jurídico-penal.
Como se decidiu no Ac do TRP de 19-04-2017 proferido no proc. 16391/15.6T9PRT.P1, in www.dgsi.pt, Os crimes de difamação e injúria supõem a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos, atuações, obras, prestações ou realizações. Estes juízos, que são cobertos pela liberdade de expressão e crítica, não configuram elemento constitutivo de algum desses dois tipos de crime.
Pelo exposto, por manifestamente infundada, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público contra BB (art.181º nº1, 182º e 184º, com referência à al. l) do nº 2 do art.º 132º todos do Código Penal e 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. d) do Código de Processo Penal).
Não são devidas custas.
(…)»
*
2.3 Conhecendo do mérito do recurso
A problemática a apreciar é a de saber, como vimos atrás, se a acusação deduzida nos autos é ou não manifestamente infundada e se, por isso, deve ser rejeitada, no contexto do art.º 311º, nºs 2, alínea a) e 3, alínea d) do Código de Processo Penal.
Para tanto importará ponderar se é ou não acertado o juízo formulado pelo Tribunal a quo quando sustenta que os factos descritos na acusação não constituem o crime de injúria (agravada) imputado à Arguida.
*
Vejamos.
Antes de mais, cumpre notar que o despacho recorrido foi proferido ao abrigo do art.º 311º, nºs 2, alínea a) e 3, alínea d), do Código de Processo Penal.
Trata-se do momento em que o juiz do julgamento recebe os autos, procede ao seu saneamento e pode rejeitar a acusação quando, entre o mais, olhando apenas aos factos naquela descritos, entende que os mesmos não configuram a existência de crime.
Note-se que nesse seu juízo não pode o juiz considerar outros elementos do inquérito – é em face do texto da acusação e só dele que o juízo em causa poderá ser formulado (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada Universidade Católica Editora (2011), pg. 816).
Questão que se põe, em sede de despacho a proferir no quadro do art.º 311º do Código de Processo Penal, é a de saber se pode o juiz rejeitar a acusação por considerar que os factos não constituem crime, independentemente do caráter controverso ou incontroverso das questões jurídicas subjacentes.
Para uma corrente, essa rejeição pode ter lugar independentemente do caráter controverso ou incontroverso da posição adotada (António Latas, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo IV, Almedina (2022), pg. 58) – segundo este entendimento, pode o juiz rejeitar a acusação desde que considere que os factos narrados não constituem crime, mesmo que o ponto seja discutível.
Para outra corrente, a rejeição da acusação apenas pode ter lugar se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime (cfr. Acs. da RC de 27/09/2023, da RL de 11-05-2021, da RP de 21/10/2015, da RC de 12/07/2011 e da RP de 13/07/2011, relatados por Isabel Valongo, Jorge Gonçalves, Elsa Paixão, Mouraz Lopes e Luís Teixeira, respetivamente).
É neste segundo sentido que nos inclinamos.
Com efeito, o modelo processual penal vigente no nosso país assenta na «máxima acusatoriedade (…), temperada com o princípio da investigação judicial» (cfr. art.º 32º, nº 5 da CRP e art.º 2º, nº 2, ponto 4, da Lei nº 43/86 de 26 de Setembro) e um dos seus traços estruturais é a distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e competência para deduzir a acusação e fixar o objeto do processo, e a entidade a quem cabe o julgamento, em audiência pública e contraditória, dos factos descritos nessa acusação (cfr. Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, Constituição Portuguesa Anotada (org. Jorge Miranda e Rui Medeiros), tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora (2010), pg. 729 e Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1ª edição (1974), reimpressão, pgs. 136-137).
Assim é que a lógica subjacente à construção do sistema impõe que só em casos excecionais se poderá admitir que o juiz «rejeite» a acusação, desviando-a do julgamento a que à partida estaria destinada.
E é em congruência com essa lógica que, para o que aqui releva, o legislador admite a rejeição da acusação, sim, mas apenas se a mesma for «manifestamente infundada» (art.º 311º, nºs 2, alínea a), e 3 do Código de Processo Penal), como foi em congruência com essa mesma lógica que a Lei nº 59/98, de 25/08 reformulou o preceito em causa, detalhando de forma taxativa os casos que cabiam naquele conceito.
O advérbio de modo usado no nº 3 da norma («manifestamente») e o modelo estruturalmente acusatório que preside ao Código de Processo Penal, levam-nos pois a concluir ter sido propósito do legislador limitar a ação do juiz ao nível do despacho do art.º 311º do Código de Processo Penal, conferindo-lhe o poder de rejeitar a acusação apenas se for «manifesto», ou seja, claro, ostensivo, inequívoco, que os factos narrados na acusação não constituem crime. Se houver alguma controvérsia, devem os autos ser encaminhados para a audiência, só a final cabendo ao tribunal pronunciar-se sobre a matéria, depois de esgrimidos todos os argumentos em audiência pública e contraditória.
Dito isto, como se verá, não pode de forma alguma dizer-se que seja claro, ostensivo ou inequívoco que os factos narrados na acusação não constituem crime; tanto assim é que, tal como se encontram tais factos narrados, entendemos mesmo que esses factos integram todos os requisitos objetivos e subjetivos da incriminação, devendo pois os autos seguir para a audiência de julgamento.
Recordemos a matéria de facto descrita na acusação pública (transcrição):
«1º
O ofendido DD é advogado, inscrito na Ordem dos Advogados e portador da cédula profissional n.º ….

No âmbito da respectiva actividade profissional, no dia ... de ... de 2021, pelas 14 horas e 15 minutos, o ofendido acompanhou EE, seu constituinte, à ..., uma vez que o referido EE pretendia visitar a sua irmã, FF.

Juntamente com aqueles, encontravam-se GG, mulher de EE e HH, que havia sido nomeada acompanhante provisória da referida FF.

Uma vez que, em momento anterior, se teriam levantado obstáculos a que visita semelhante se concretizasse por parte da arguida BB, que invocava ser tutora de FF, foi solicitada a comparência da Polícia de Segurança Pública no local, após cuja intervenção veio a ser facultada tal visita ao referido EE.

Pelas 16 horas e 45 dias do referido dia e já depois da referida visita, chegaram ao local os arguidos BB e AA, acercando-se do grupo.

O ofendido identificou-se então na respectiva qualidade de advogado, tendo transmitido que havia uma decisão proferida no âmbito de processo de maior acompanhado, nos termos da qual e além do mais HH havia sido nomeada acompanhante provisória de FF.

De imediato, AA dirigiu-se a DD dizendo-lhe “tu és advogado, eu logo vi, tu és um chulo!”

O ofendido solicitou então ao arguido que cessasse a sua conduta, dizendo-lhe que iria apresentar a correspondente participação criminal, ao que CC voltou a dizer “És um advogado, és um chulo!”

Entretanto, enquanto os presentes conversavam e constatando que existia uma exaltação dos ânimos, o ofendido chamou novamente a Polícia de Segurança Pública ao local, momento em que a arguida se lhe dirigiu, dizendo “És advogado, cada advogado, cada ladrão, os advogados são todos ladrões, vocês advogados são todos uns ladrões, até a minha advogada está farta de me roubar”.
10º
BB e AA tinham perfeita consciência de que o ofendido é advogado e que se encontrava naquele local no exercício das respectivas funções.
11º
Quiseram, ao utilizarem as expressões acima narradas, cujo teor depreciativo não ignoravam, ofendê-lo na sua honra e consideração devidas enquanto advogado, o que conseguiu.
12º
Actuou cada um dos arguidos de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as respectivas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.»
Adentro esta matéria de facto, retenhamos em particular:
- que a Arguida dirigiu ao ofendido as seguintes palavras: «És advogado, cada advogado, cada ladrão, os advogados são todos ladrões, vocês advogados são todos uns ladrões, até a minha advogada está farta de me roubar».
- que a Arguida tinha perfeita consciência de que o ofendido é advogado e que se encontrava naquele local no exercício das respetivas funções;
- que a Arguida, ao utilizar tais expressões, cujo teor depreciativo não ignorava, quis ofendê-lo na sua honra e consideração devidas enquanto advogado, o que conseguiu;
- que atuou a Arguida de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Ora, o crime de injúria está previsto, na sua versão base, no art.º 181º do Código Penal, que nos diz no seu nº 1 que é cometido por «quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração (…)»; e se se tratar da imputação de factos, determina o nº 2 da norma que se aplique o preceituado, entre o mais, no nº 2 do art.º 180º do Código Penal, que nos diz o seguinte:
«A conduta não é punível quando: a) a imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento para, em boa fé, a reputar verdadeira».
No caso concreto, a Arguida não é acusada de imputar ao ofendido qualquer facto concreto que fosse passível de discussão e prova; aquilo de que se acha acusada é de ter formulado um juízo desvalioso sobre a personalidade daquele enquanto profissional: «És advogado (…), os advogados são todos ladrões».
Ora, as palavras proferidas pela Arguida têm um pendor claramente ofensivo da honra do ofendido e da consideração a este devida, à luz dos padrões sociais vigentes, no sentido em que lhe é imputada (a par, aliás, de todos os advogados) uma forma de agir desonesta e de desrespeito pela propriedade alheia; foram ditas com consciência e intenção de ofender; e, à luz dos factos disponíveis, que são neste momento, como dissemos, apenas os descritos na acusação deduzida, mostram-se desgarrados de qualquer substrato fáctico ou de alguma ligação a um eventual debate de ideias próprio de uma sociedade plural.
À partida, a atuação da Arguida preenche em suma os requisitos objetivos e subjetivos da incriminação em referência (e na versão agravada para que aponta a conjugação dos arts. 184º e 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal), não nos parecendo pois que o tribunal a quo tivesse diante de si um manancial fáctico que lhe permitisse retirar a conclusão de que a atuação da Arguida fora criminalmente atípica – do que se tratou no caso concreto, à luz dos factos imputados, foi de um puro insulto, em relação ao qual não se vê facilmente como possa a sua autora ser objeto de tutela no contexto da liberdade de expressão.
De resto, estamos em crer, como bem sublinha o Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, que a decisão recorrida cita, ela própria, jurisprudência e doutrina da qual resulta, no caso concreto, diretamente ou a contrario sensu, justamente a solução contrária à que o Tribunal a quo preconiza.
Referimo-nos em particular às seguintes passagens:
- no contexto da citação do Ac. da RC de 02-03-2005, quando se lê «devem-se considerar atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista ou desportista, etc., nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica» - ora, que «crítica objetiva» se diz ter a Arguida feito ao desempenho profissional do ofendido? Que outra coisa fez ela senão atingir o ofendido com dizeres puramente conclusivos, genéricos e adjetivados, apodando-o de «ladrão», ou seja, dizendo-lhe que era uma pessoa profundamente desonesta no exercício da sua profissão?
- no contexto da citação do Ac. do STJ de 07-03-2007 lê-se na decisão recorrida que naquele aresto se escreveu que «tem-se vindo a defender, na esteira da orientação assumida por Costa Andrade, deverem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.» - de novo, que «crítica objetiva» se diz ter a Arguida feito ao desempenho profissional do ofendido? Que outra coisa se lhe imputa senão o ter atingido o ofendido com dizeres puramente conclusivos, genéricos e adjetivados nos termos já referenciados?
- no contexto de uma invocação global da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, lê-se na decisão recorrida algo como isto: «parte da jurisprudência (…) vem sufragando tal orientação, sendo que, de acordo com a mesma, entendemos que o direito de expressão, na sua vertente de direito de opinião e de crítica, quando se exerça e recaia nas concretas áreas atrás referidas e com o conteúdo e âmbito mencionados, caso redunde em ofensa à honra, se pode e deve ter por atípico, desde que o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor aos quais subjaz o exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar» – ora, que outra coisa se imputa à Arguida senão que dirigiu ao ofendido uma crítica caluniosa, desgarrada de qualquer substrato fáctico, englobando o ofendido num grupo todo ele categorizado como pessoas desonestas? Que outra intenção se diz ter a Arguida tido, senão a de ofender?
Por outro lado, faz a decisão recorrida assentar a solução a que chega numa leitura generosa da liberdade de expressão, que tem como prevalecente face ao direito à honra, invocando para o efeito a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), embora não cite expressamente qualquer acórdão deste.
Não nos parece que seja inteiramente acertada essa invocação.
Vejamos as coisas com um pouco mais de detalhe.
O direito à honra, tutelado pela norma incriminadora em causa, é um direito fundamental protegido desde logo pela nossa Constituição (CRP), no seu art.º 26º/1, e é tutelado ainda e entre o mais pelo art.º 17º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e pelo art.º 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), neste caso enquanto dimensão da reserva da vida privada (a este propósito, vide os Acs. do TEDH Axel Springer AG v. Germany (GC), nº 39954/08, § 83, 07.02.2012; e Chauvy and Others v. France, nº 64915/01, § 70, 29.06.2004) – todos os acórdãos do TEDH que citamos estão disponíveis in https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22documentcollectionid2%22:[%22GRANDCHAMBER%22,%22CHAMBER%22,%22DECISIONS%22]}). E o domínio específico da reputação profissional deve considerar-se aí também protegida (cfr. Acs. do TEDH Kanellopoulou v. Greece, nº 28504/05, de 11/10/2007, § 38; Tănăsoaica v. Romania, nº 3490/03, de 19/09/2012, § 31; e Belpietro v. Italy, nº 43612/10, de 24/09/2013, § 45).
É bem sabido que o direito à honra não tem um perfil absoluto, na medida em que há outros direitos, potencialmente com a mesma dignidade, com que tem que conviver e em face dos quais, em função das especificidades de cada caso, poderá ter em alguma medida que ceder; pense-se decerto na clássica liberdade de expressão, protegida pelo art.º 37º da CRP, pelo art.º 19º do PIDCP e pelo art.º 10º da CEDH – fosse a tutela da honra algo de absoluto e a comunicação social, por exemplo, não poderia desempenhar a sua função de «cão de guarda» da democracia, posto que nunca poderia publicar notícias desagradáveis para os visados, por mais verdadeiros que fossem os factos relatados e por maior interesse público que houvesse na sua divulgação (entre tantos outros, vide os Acs. do TEDH The Sunday Times v. the United Kinddom (nº 2), § 50, 26.11.1991 e Bédat v. Switzerland, nº 56925/08, § 51, 29.03.2016).
A liberdade de expressão reveste-se com efeito de uma importância nuclear numa sociedade democrática, traduzindo-se, em geral, no direito de exprimir e divulgar opiniões, ideias e informações, sem qualquer interferência, nomeadamente por via de perseguição criminal, aqui se incluindo não só opiniões, ideias e informações recebidas de forma favorável ou tidas por inofensivas, mas também as que ofendam, choquem ou perturbem uma parte da população (Ac. do TEDH Handyside v. the United Kingdom, nº 5493/72, de 7/12/1976, § 48).
Ora, o direito à honra e a liberdade de expressão, pelas suas próprias naturezas, têm uma especial vocação para se confrontarem na dinâmica geral da vida em sociedade, não podendo dizer-se logo em abstrato, isto é, no plano jurídico-conceptual, que um deles deva necessariamente ter prevalência sobre o outro.
No campo da CEDH, veja-se que o art.º 10º, consagrando no seu nº 1 a liberdade de expressão, não deixa de estatuir, no seu nº 2, que o exercício desta liberdade, «porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a (…) a proteção da honra ou dos direitos de outrem (…)»; e que o art.º 8º, consagrando no seu nº 1 o direito ao respeito pela vida privada e familiar, englobando o direito à honra, prevê no seu nº 2, também, que «não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.»
E aqui importa esclarecer que, numa situação como a presente, a responsabilidade do Estado à luz da CEDH tanto pode, em abstrato, decorrer de uma eventual violação da liberdade de expressão por via de uma condenação criminal da Arguida por ter exprimido uma opinião, como de uma eventual violação do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, na dimensão do direito à honra, por não ter adotado os procedimentos necessários em ordem a punir adequadamente a Arguida pela injúria cometida. No primeiro caso, a ingerência ilegítima na liberdade de expressão decorreria da condenação criminal da Arguida; e no segundo caso, a ingerência ilegítima no direito à honra decorreria do incumprimento, pelo Estado, de obrigações positivas de atuação que sobre si impenderiam em ordem a garantir que não houvesse ofensas, por particulares a particulares, a direitos previstos pela CEDH ou que, ocorrendo elas, o sistema de justiça lhes desse uma resposta adequada (cfr. Frédéric Sudre, Droit Européen et International des Droits de l’Homme, 7ª edição, PUF (2005), pgs. 241-244; cfr. ainda os Acs. do TEDH Dickson v. the United Kingdom, nº 44362/04, de 4/12/2007, § 70 e Codarcea v. Romania, nº 31675/04, de 2/06/2009, § 104).
Assim é que não pode, logo no plano abstrato, insista-se, conferir-se prevalência a um direito sobre o outro, e nomeadamente à liberdade de expressão sobre o direito à honra do visado; importa sempre atentar ao circunstancialismo da situação concreta (Acs. do TEDH Von Hannover v. Germany (no. 2) (GC), nºs. 40660/08 e 60641/08, de 7/12/2012, §§ 104-107, e Axel Springer AG v. Germany, nº 39954/08, de 7/02/2012, §§ 85-88), Couderc and Hachette Filipacchi Associés v. France (GC), nº 40454/07, de 10/11/2015, §§ 90-93, e Perinçek v. Switzerland (GC), nº 27510/08, de 15/10/2015, § 198).
Continuando a olhar para a jurisprudência de Estrasburgo, é patente com efeito a importância nela reconhecida à liberdade de expressão, mas importa perceber o contexto e os termos em que uma tal importância é afirmada com essa ordem de grandeza, a partir de alguns pontos de apoio:
- a liberdade de expressão é apontada como um dos fundamentos essenciais de qualquer sociedade democrática e uma das condições primordiais para a sua promoção e para o desenvolvimento de cada indivíduo, sendo que são marcas fulcrais de qualquer sociedade democrática as ideias de pluralismo, tolerância e espírito de abertura…;
- …e dentro da liberdade de expressão ganha particular realce o desempenho de quem observa, acompanha e vigia a coisa pública, os chamados «public watchdogs», como sejam a imprensa (Ac. do TEDH Barthold v. Germany, nº 8734/79, de 25/03/1985, § 58); os bloggers e outros utilizadores de redes sociais (Ac. do TEDH Falzon v. Malta, nº 45791/13, de 20/03/2018, § 57); e organizações não governamentais (Ac. do TEDH Association Burestop 55 and Others v. France, nºs 56176/18 e cinco outros, de 1/07/2021, § 88); ou o papel de quem participa no debate político ou de outros assuntos de interesse público (Ac. do TEDH Castells v. Spain, nº 11798/85, de 23/04/1992, §§ 42-43);
- dada a importância da liberdade de expressão, as limitações previstas no art.º 10º, nº 2 da CEDH devem ser interpretadas em termos estritos, devendo a «necessidade» de cada uma de tais limitações ser estabelecida de forma convincente (Acs. do TEDH Lingens v. Austria, nº 9815/82, de 8/07/1986, § 41, e Nilsen et Johnsen v. Norway (GC), no 23118/93, § 43).
- o adjetivo «(formalidades, condições, restrições ou sanções) necessárias», no quadro do art.º 10º, nº 2 da CEDH, implica a existência de uma «necessidade social imperiosa», gozando os Estados de uma certa margem de apreciação para a aferir (Janowski v. Pologne (GC), no 25716/94, § 30);
- o papel desempenhado pelo TEDH é o de definir, em última análise, se a restrição à liberdade de expressão se concilia com o art.º 10º da CEDH à luz de todas as circunstâncias do caso concreto (Ac. TEDH Karhuvaara and Iltalehti v. Finland, no 53678/00, de 16/11/2004, § 39), cabendo-lhe em particular apreciar se a ingerência é proporcionada ao fim visado e estribada em motivos pertinentes e suficientes (Ac. TEDH Steel et Morris v. the United Kingdom, no 68416/01, de 15/02/2005, § 87);
- a natureza e o peso das sanções aplicadas são elementos a considerar quando se trata de ponderar a proporcionalidade da restrição (Ac. TEDH Cumpănă and Mazăre v. Romania (GC), no 33348/96, de 17/12/2004, § 111).
Ora, no caso concreto, as palavras que se imputa à Arguida ter dirigido ao ofendido não têm associado qualquer substrato de facto e não se integram em qualquer debate de posições atendível num ambiente plural e tolerante de ideias; essas palavras mais não são que um puro juízo de valor desnecessariamente ofensivo, nessa medida não participando da razão de ser da proteção particular de que a liberdade de expressão goza no plano da CEDH.
A proteção que a Arguida poderia encontrar na liberdade de expressão encontra-se pois muito vulnerabilizada, e ao invés, reforçado o peso que no caso concreto terá o direito do ofendido ao respeito pelo seu bom nome e reputação (Acs. do TEDH Tammer v. Estonia, nº 41205/98, de 6/02/2001, § 67; e Constantinescu v. Romania, nº 28871/95, de 27/06/2000, § 74).
Em suma, à luz dos factos narrados na acusação – é esse o ponto em que nos achamos - não encontramos razões que nos possam levar a ter por atípica ou justificada a conduta da Arguida: tais factos consubstanciam aparentemente, na sua atual configuração, o crime imputado.
Não significa tudo quanto vimos de dizer que aquando da sentença final a proferir não tenha de novo que ser ponderada a CEDH e a jurisprudência do TEDH, desde logo em face da configuração global que os factos então apresentem, mas também e ainda no momento de escolher a espécie de pena que haja eventualmente de ser aplicada e de determinar a sua medida.
Isto porque existe hoje uma tendência internacional no sentido de recusar medidas privativas da liberdade em matéria de crimes desta natureza (cfr. Resolução nº 1577 (2007) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa) e, como atrás dissemos, a natureza e o peso das sanções aplicadas constituem um critério a atender quando nos aprestamos a aferir da proporcionalidade da ingerência na liberdade de expressão.
Em qualquer caso, neste momento, não pode sem mais dizer-se, à luz dos factos narrados na acusação, que os mesmos não constituem o crime imputado, não havendo consequentemente razão para rejeitar a acusação nos termos em que o fez a decisão recorrida.
*
3 – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e determinando a sua substituição por outro que, recebendo a acusação, determine o ulterior e correspondente andamento dos autos.
*
Não são devidas custas (arts. 513º, nº 1 e 515º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, a contrario sensu).
Notifique.
*
Lisboa, 7 de março de 2024
(assinaturas eletrónicas; processado pelo Relator e por todos revisto)
Jorge Rosas de Castro (Relator)
Recordemos a matéria de facto Ângela Reguengo da Luz (1ª Adjunta)
Paula Cristina C. Bizarro (2ª Adjunta)