Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5568/23.0T8FNC.L1-7
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL
TRÂNSITO EM JULGADO
DECISÕES CONTRADITÓRIAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: RESOLVIDO
Sumário: Tendo ocorrido o trânsito em julgado das duas decisões em conflito sobre a competência em razão do território, prevalecerá a que primeiro tiver transitado em julgado, nos termos do disposto no artigo 625.º do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. O Juízo de Família e Menores de Lisboa – Juiz “X” suscita a resolução de conflito negativo de competência entre ele próprio e o Juízo de Família e Menores do Funchal – Juiz 1 para a tramitação do presente processo de regulação das responsabilidades parentais, com fundamento em que ambos se declararam incompetentes para dele conhecer.
O Juízo de Família e Menores do Funchal – Juiz “Y” declarou-se incompetente, em razão do território, com fundamento, em síntese, em que ambos os requeridos (progenitores) têm a sua residência fixada no estrangeiro e o jovem em Portugal, pelo que, será competente para a apreciação da causa a secção da instância central de família e menores de Lisboa, na Comarca de Lisboa, nos termos do disposto no artigo 9º n.º 8 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela lei n.º 141/2015 de 8 de setembro.
Por sua vez, o Juízo de Família e Menores de Lisboa – Juiz “X” declarou-se incompetente para a tramitação do presente processo, com fundamento, em síntese, em que os princípios estruturantes da interpretação das normas constantes do artigo 9º do CC levam a inferir que o nº 8 do artigo 9.º do RGPTC parte do princípio que a criança não resida em Portugal (residindo em Portugal não há necessidade de se aferir da competência internacional, como referido supra) e, por outro lado, no caso dos autos o Requerente, Ministério Público, que propôs a ação ao abrigo do artigo 17º do RGPTC não reside no estrangeiro, nem quem de facto exerce as responsabilidades parentais, pelo que, considera que a competência radica no Juízo de Família e Menores do Funchal - Juiz 1.
O processo foi continuado com vista ao Ministério Público, nos termos do artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que – em 10-04-2024 – se pronunciou no sentido de que a decisão que prevalece é a do Juízo de Família e Menores do Funchal – Juiz “Y”, e consequentemente é competente para tramitar e conhecer da regulação das responsabilidades parentais o Juízo de Família de Menores de Lisboa – Juiz “X”.
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II. Mostra-se apurado, com pertinência para a resolução do conflito, o seguinte:
1) Em 20-11-2023, o Ministério Público instaurou ação para regulação das responsabilidades parentais, relativamente a “A”, nascido a 30.07.2018, filho de “B” e de “C”;
2) Na petição inicial foi alegado, nomeadamente, que:
- A criança “A”, nascido a 30.07.2018, é filho dos requeridos;
-Os progenitores residem ambos fora da RAM, em (…), Jersey;
- A criança reside atualmente com tios paternos “D” e “E”, na Rua (…), 9100-100 Santa Cruz;
3) Em 14-12-2023, o Juízo de Família e Menores do Funchal – Juiz “Y” proferiu decisão em que se declarou incompetente em razão do território, dela constando, nomeadamente, escrito o seguinte:
“(…) Fixada assim a competência internacional do tribunal importará aferir da territorial.
Verifica-se que ambos os requeridos (progenitores) têm a sua residência fixada no estrangeiro e o jovem em Portugal pelo que não podem existir dúvidas que será competente para a apreciação da causa secção da instância central de família e menores de Lisboa, na Comarca de Lisboa, nos termos do disposto no artigo 9º n.º 8 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) aprovado pela lei n.º 141/2015 de 08 de setembro.
Nestes termos, ao abrigo do disposto nos artigos 9º n.º 1 e 8, 10º e 33º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) aprovado pela lei n.º 141/2015 de 08 de setembro com referência aos artigos 102º, 105º, n.º 3, 576º, n.º 2 in fine, 578º e 579º todos do Código de Processo Civil exceciono a competência territorial deste juízo determinando, após trânsito, a remessa dos autos à secção da instância central de família e menores de Lisboa, na Comarca de Lisboa (…).”.
4) A decisão referida em 3) foi notificada e transitou em julgado;
5) Remetidos os autos ao Juízo de Família e Menores de Lisboa – Juiz “X”, em 24-02-2024, foi excecionada a incompetência desse tribunal, por se considerar competente o Juízo de Família e Menores do Funchal – Juiz “Y”, tendo a referida decisão sido notificada e transitado em julgado.
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III. Conhecendo:
Nos termos do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n.º 3, do CPC).
Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir (cfr. artigo 111.º, n.º 1, do CPC).
Os tribunais divergem, quanto à aplicação à situação dos autos, do disposto no artigo 9.º, n.º 8, do RGPTC.
Dispõe o artigo 9.º do RGPTC – com a epígrafe “Competência territorial” – que:
“1 - Para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado.
2 - Sendo desconhecida a residência da criança, é competente o tribunal da residência dos titulares das responsabilidades parentais.
3 - Se os titulares das responsabilidades parentais tiverem residências diferentes, é competente o tribunal da residência daquele que exercer as responsabilidades parentais.
4 - No caso de exercício conjunto das responsabilidades parentais, é competente o tribunal da residência daquele com quem residir a criança ou, em situações de igualdade de circunstâncias, o tribunal em que a providência tiver sido requerida em primeiro lugar.
5 - Se alguma das providências disser respeito a duas crianças, filhos dos mesmos progenitores e residentes em comarcas diferentes, é competente o tribunal em que a providência tiver sido requerida em primeiro lugar.
6 - Se alguma das providências disser respeito a mais do que duas crianças, filhos dos mesmos progenitores e residentes em comarcas diferentes, é competente o tribunal da residência do maior número delas.
7 - Se no momento da instauração do processo a criança residir no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente, é competente para apreciar e decidir a causa o tribunal da residência do requerente ou do requerido.
8 - Quando o requerente e o requerido residam no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente, o conhecimento da causa pertence à secção da instância central de família e menores de Lisboa, na Comarca de Lisboa.
9 - Sem prejuízo das regras de conexão e do previsto em lei especial, são irrelevantes as modificações de facto que ocorram após a instauração do processo”.
Nos termos do disposto no n.º. 1 do artigo 85.º do Código Civil, o menor tem domicílio no lugar da residência da família; se ela não existir, tem por domicílio, o do progenitor a cuja guarda estiver.
“Para efeitos de se saber qual a residência habitual, haverá que atender-se à factualidade alegada no requerimento inicial. Não especificando a lei o que se deve entender por residência habitual, tal conceito deve ser interpretado no sentido da residência do local onde o menor tiver maior permanência, no sentido de facilitar a reunião dos elementos necessários à defesa dos seus interesses, enquanto residência estável e duradoura” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30-01-2020, Pº 205/09.9TBABT-H.E1, rel. RUI MACHADO E MOURA).
Como explica António José Fialho (Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado, Almedina, 2021, p. 136), “a residência é o lugar onde a criança reside habitualmente, ou seja, o local onde tem organizada a sua vida, com maior estabilidade, frequência, permanência e continuidade, onde desenvolve habitualmente a sua vida e se encontra radicada”, mais referindo (ob. cit., p. 137) que, “o critério da atribuição da competência em função da residência, com carácter de estabilidade, permanência e frequência, é também aquele que adequa as disposições de direito interno às disposições de direito convencional ou europeu que regulam a competência internacional (art.º 5º da Convenção da Haia de 1996 e 8º do Regulamento Bruxelas II bis)”.
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IV. No caso, não é controvertido que a residência da criança se situa em Santa Cruz, Madeira, sendo aí que tem organizada a sua vida quotidiana, pelo que, situando-se em Portugal, o tribunal português detém competência internacional, atento o disposto no artigo 9.º n.º 1 do RGPTC, em conjugação com o disposto no artigo 62.º, al. a), do CPC, para o conhecimento do litígio em apreço.
O dissídio cinge-se à determinação da competência territorial.
Ora, de acordo com o disposto no n.º 2, do artigo 105.º, do CPC, a decisão sobre a competência relativa, transitada em julgado, resolve definitivamente a questão, mesmo que tenha sido suscitada oficiosamente, como foi o caso.
Conforme salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 135), “[o] que for decidido resolve definitivamente a questão, sendo vedado ao tribunal para onde for remetido o processo recusar a competência que lhe tenha sido atribuída ou endossá-la a um terceiro tribunal, com ou sem invocação de outro fundamento (cf. o Ac. do Trib. Const. de 26-5-09, DR, II Série, de 7-7-09, decidindo que não era inconstitucional o art. 111º, n.º 2, do CPC de 1961, segundo o qual a decisão transitada em julgado resolvia definitivamente a questão da competência territorial)”.
Referem os mesmos Autores (ob. cit., pp. 135-136) que, “[s]e, contrariando o regime legal que prescreve a definitividade da decisão transitada em julgado, for proferida decisão de teor inverso sobre a competência relativa, a situação resolver-se-á segundo os parâmetros gerais: a segunda decisão fere o caso julgado formal previsto no art. 620.º; mesmo que porventura dela não seja interposto recurso (o qual é sempre admissível, de acordo com o art. 629.º, n.º 2, al. a) – caso julgado formal), deve prevalecer a competência definida na primeira decisão (art. 625.º)”.
O sentido normativo orientador tem sido, reiteradamente, sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente nas decisões de 20-11-2019 (Pº 2027/11.8TBPNF.S1), de 29-05-2020 (Pº 4165/20.7T8LSB-B.S1), de 30-12-2020 (pº 159/20.0T8BRR.S1), de 03-02-2021 (Pº 3918/19.3T8STS.S1) e de 19-05-2021 (Pº 1718/21.0T8GMR.G1.S1).
Tendo ocorrido o trânsito em julgado das duas decisões em conflito sobre a competência em razão do território, prevalecerá a que primeiro tiver transitado em julgado, nos termos do disposto no artigo 625.º do CPC.
Assim, tendo a decisão proferida sobre a competência territorial, emitida em 14-12-2023, pelo Juízo de Família e Menores do Funchal – Juiz “Y”, bem ou mal, transitado em julgado em primeiro lugar, tal é a decisão que prevalece.
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V. Pelo exposto, decido este conflito, declarando competente para apreciação e prosseguimento do presente processo, o Juízo de Família e Menores de Lisboa – Juiz “X”.
Sem custas.
Notifique-se (cfr. artigo 113.º, n.º 3, do CPC).
Baixem os autos.

Lisboa, 11-04-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente, com poderes delegados).