Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4743/21.7T8OER.L1-8
Relator: AMÉLIA PUNA LOUPO
Descritores: COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS
CONTRATO
NULIDADE
ARGUIÇÃO POR INTERESSADO
INTERESSE SUBSTANTIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Quando a lei se refere a interessados não o faz no sentido linguístico comum, reportando-se, sim, àqueles que sejam titulares de um interesse juridicamente tutelado pela esfera de protecção da norma.
II - E assim é no artº 286º CCivil: ao referir-se a qualquer interessado não remete para toda e qualquer pessoa que possa extrair vantagens ou ganhos, sejam materiais, morais, intelectuais, lúdicos ou outros, da declaração de nulidade do negócio.
III - O interesse que atribui a alguém legitimidade para invocar o vício previsto no artº 286º CCivil é um interesse de direito substantivo: é a necessidade de tutela jurídica por via da declaração da nulidade que justifica a legitimidade do titular do direito ou interesse a tutelar, o que pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, porque o negócio nulo prejudica a consistência jurídica ou a consistência prática de um direito seu.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
J…, casado, contribuinte fiscal nº …, residente na Rua …, em …,
intentou a presente acção declarativa, sob a forma única de processo comum contra
P…, casada sob o regime de separação de bens, contribuinte fiscal nº …, residente na Rua …, em …, e
V…, solteiro, maior, contribuinte fiscal nº …, residente na Av. …, em …,
alegando, em síntese, que por força de testamento realizado em 19/10/2015 pelo seu tio JFS, falecido em 09/12/2018 no estado de solteiro, sem descendentes ou ascendentes vivos, o A. é o seu único herdeiro, tendo acontecido que por escritura de 19/04/2012 JFS vendeu à R. o usufruto vitalício e ao Réu a nua propriedade de uma fracção autónoma sita em …, concelho de …, que devidamente identifica, constando da respectiva escritura ter sido exibida certidão emitida pelo extinto 19º Cartório Notarial de Lisboa em 19/09/2005 de uma escritura ali outorgada em 26/05/1987, da qual consta que para o prédio urbano de que faz parte a fracção autónoma objecto daquela escritura de 19/04/2012 foi concedida pela Câmara Municipal de … em 15/02/1974 a licença de habitação número …, certo, porém, que para o aludido prédio urbano a Câmara Municipal de… não emitiu a citada licença de habitação …datada de 15/02/1974 ou qualquer outra, não tendo o mesmo licença de habitação, sendo falsa a referida certidão da Câmara Municipal de….
A fracção objecto daquela escritura de 19/04/2012 encontra-se registada a favor dos RR. na competente CRPredial pelas Aps. …e …ambas de 2019/04/19.
Ora, a falta de licença de habitação aludida, torna nulo e de nenhum efeito aquele contrato de compra e venda pelo qual JFS vendeu e a R. comprou o usufruto e o Réu a nua propriedade da fracção em causa, nulidade que pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado, sendo indubitável que o A. o é, dado ser único herdeiro do vendedor, e tendo a nulidade efeito retroactivo a mesma impõe a restituição da fracção ao A..
E com tais fundamentos, concluiu pedindo que (1) se declare nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda referido na petição, (2) condenando-se os RR. na entrega ao A. da fracção autónoma objecto do dito contrato, livre e desocupada de pessoas e bens, e (3) se ordene o cancelamento do registo a favor dos RR..
Os RR. contestaram e reconvieram, impugnando os factos em que o A. sustenta a sua pretensão, tendo referido que a Senhora Notária que realizou a escritura não colocou qualquer reserva á documentação que lhe foi apresentada e por isso ela foi agendada e outorgada nos moldes constantes do doc. nº 1 junto com a petição inicial, e entendem não ser sequer curial que um imóvel (onde se integra a fracção) constituído em propriedade horizontal não seja dotado de licença de utilização, e o certo é que em diligencia realizada junto da Camara Municipal de … foi apurado que, de facto, foi emitida licença de utilização para o prédio em causa, ainda que a mesma fosse condicionada á realização de determinados actos.
Mas mesmo que se verifique que o prédio onde se insere a fracção autónoma objecto da compra e venda não é dotado de licença de utilização, sempre terá de ser ponderado: serem os RR. completamente desconhecedores de qualquer anomalia no que aos elementos urbanísticos do prédio concerne e durante os cerca de dez anos em que são proprietários da fracção nunca tiveram qualquer motivo para assumir a falta de tal licença, nem tal lhes foi comunicado por ninguém, nomeadamente pelo A..
Por outro lado, decorre do doc. nº 3 junto com a petição que o vendedor era conhecedor da situação desde Setembro de 2005, portanto desde momento muito anterior ao da escritura de compra e venda que em 19/04/2012 celebrou com os ora RR., o que denota uma situação de evidente abuso de direito, na medida em que o A. vem suscitar em seu benefício uma questão que o seu antecessor gerou, deliberada e voluntariamente, pretendendo a declaração de nulidade e a entrega da fracção sem qualquer encargo e sem restituição do prestado, com a inerente actualização do valor da fracção em apreço. Tudo conduzindo á improcedência da acção.
A assim não se entender deduziram pedido reconvencional, com os seguintes fundamentos: considerando-se o negócio nulo terão de operar os efeitos do disposto no artº 289º do CCivil, com a restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, restituição que terá de ser recíproca; a fracção objecto dos autos tem hoje um valor não inferior a € 180.000,00, valor esse que, em contrapartida da peticionada declaração de nulidade do negócio, deve o A. ser condenado a pagar aos RR., sob pena de beneficiar indevidamente da valorização predial que a fracção teve desde o momento da sua aquisição pelos ora RR., os quais a adquiriram em péssimo estado de manutenção e conservação, daí o valor que por ela pagaram, e nela realizaram ao longo do resto do ano de 2012 todas as obras necessárias a tornarem-na habitável no que despenderam valor não inferior a € 40.000,00.
E assim concluíram (a) pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido, ou, quando assim se não entenda; (b) no caso de declaração da nulidade, a condenação do A. a pagar-lhes a quantia de € 180.000,00, acrescida de juros á taxa legal desde a data da notificação do A., ou, se assim se não considerar, a restituição dos valores afectos pelos RR. à aquisição e obras na fracção.
O A. replicou.
Quanto ao abuso de direito invocado pelos RR. argumentou que o mesmo não justifica a validade do contrato de compra e venda em apreço nem o converte em contrato válido, sendo que o A. tem legitimidade para suscitar a nulidade do contrato de compra e venda. Já quanto à reconvenção invocou que o direito dos RR. a serem indemnizados pelo valor das obras prescreveu, o que conduz à sua absolvição de tal pedido, além de que tais obras não são enquadráveis num dos tipos de benfeitorias referidos no artº 216º 2 CCivil o que obstaria a qualquer indemnização; e desde 01/05/2012 os RR. deram de arrendamento a fracção tendo percebido até ao presente a título de rendas € 41.300,00, pelo que, sendo eles qualificados como possuidores de má fé, terão de restituir ao A. esse valor e o das rendas vincendas até ao termo da sua posse, propondo-se o A. compensar as mesmas com o preço de aquisição pago pelos RR., de € 40.000,00 a que têm direito face ao disposto no artº 289º nº 1 CCivil.
Concluiu pela procedência das excepções opostas à reconvenção ou, caso assim não se julgue, pela improcedência do pedido reconvencional, absolvendo-se em qualquer caso o A. de tal pedido, no mais terminando como na petição.
Seguindo os autos a sua regular tramitação, foi a final proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os RR. dos pedidos contra eles formulados, e julgou prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional por o mesmo ter sido formulado no pressuposto da procedência dos pedidos do A..
Inconformado, veio o Autor interpor o presente recurso de apelação, com pedido de reapreciação da prova, sustentando que «(…) deve a presente apelação ser julgada procedente e, em consequência:
1 – Alterar-se os factos provados 8º, 15º e 16º constantes da sentença, no sentido apontado nas conclusões 1 a 5 desta alegação, 
2 – em consequência do que deve revogar-se a sentença recorrida, julgando-se procedente a apelação, declarando-se nulo o contrato de compra e venda a que os autos aludem e condenar‑se os Recorridos na entrega imediata da fracção autónoma objecto do mesmo, livre e desocupada de pessoas e bens
3 – e ainda, caso entenda, conhecer das excepções deduzidas ao pedido reconvencional e deste, nos termos do art. 665, 2 C.P.C.,
4 – ou, ordenar a baixa do processo à 1ª instância para seu conhecimento, tudo com as legais consequências.»
Para tanto, das suas alegações extraiu o Recorrente as seguintes
Conclusões
«1 - Com o presente recurso de apelação, propõe-se o Apelante impugnar a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença nos termos do art. 640 C.P.C.,
2 - pelo que nos termos e para os efeitos seu nº 1, alínea a) considera incorretamente julgados os pontos 8º, 15º e 16º da factualidade nela provada.
3 - Nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 1 do art. 640 C.P.C., os concretos meios probatórios constantes do processo, nomeadamente documentais - doc. 3 e 4 juntos com a petição e relatório de avaliação - e a gravação do depoimento de parte do R. V… e das testemunhas D…, A…, J… e P…, todos estes constantes do registo de gravação cujas passagens exactas dos excertos relevantes constam de I, 2 e 2.1., 2.2. e 2.3. desta alegação e que aqui se dão por integramente reproduzidos,
4 - e que impõem, no nosso entender, nos termos e para os efeitos da alínea c) do nº 1 do mesma disposição legal art. 640 do C.P.C., que os factos constantes dos pontos 8º e 16º da sentença devem ser julgados não provados,
5 - e que a redacção do facto provado sob o nº 15º deve ser alterada, no seguinte sentido: “Para tornar a fracção habitável os R.R. realizaram obras na mesma após a aquisição, tendo despendido com as mesmas montante não apurado“.
Por outro lado,
6 - a sentença recorrida conclui e bem que o contrato de compra e venda de prédio urbano a que os autos aludem é nulo nos termos do art. 294 C.C., face à falta de licença de utilização do mesmo, não declarando contudo tal nulidade dado concluir pela existência de abuso de direito por parte do A., o que paralisaria tal vício.
7 - Porém, o facto 8 que sustentava essencialmente tal conclusão - abuso de direito - não pode ser dado como provado face à absoluta inexistência de prova como se referiu em I desta alegação,
8 - bem como o investimento de confiança que qualquer conduta (?) do vendedor e (ou) do A. tivesse produzido nos Recorridos, que não foi alegado e muito menos provado, não se verificando qualquer abuso de direito.
9 - Igualmente, as normas que exigem a licença de utilização para a transmissão de prédios urbanos são “de interesse e ordem pública” e destinam-se “a obviar à construção clandestina e à transparência e segurança do mercado habitacional, evidenciadas no reforço legislativo daquelas proibições”,
10 - pelo que, a inexistência da mesma implica a nulidade da compra e venda dos autos, que não pode ser paralisada com eventual abuso de direito.
11 - Concluiu-se assim que o abuso de direito não justifica que se considere válido, subsistente e eficaz, um contrato de compra e venda de um prédio urbano, cuja licença de utilização seja falsa/inexistente.
12 - Violou a sentença recorrida por erro de interpretação o disposto nos artS. 294 e 334 C.C., devendo ser o acima apontado o sentido que devem ser interpretadas e aplicadas as normas jurídicas violadas.».
Os RR. recorridos contra-alegaram pugnando pela confirmação do julgado.
Colhidos os vistos, importa apreciar e decidir.
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É sabido que nos termos dos artºs 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil é pelas conclusões que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam, exercendo as mesmas função equivalente à do pedido (neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil” 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117), certo que esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica quanto à qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC),
Por outro lado, dentre as questões que lhe caiba conhecer, o Tribunal apenas apreciará aquelas cujo conhecimento não fique prejudicado por outras precedentemente conhecidas, o que importa que as questões suscitadas pelo recorrente sejam apreciadas de acordo com a sua ordem de precedência lógica.
No caso o Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, concretamente os pontos 8º, 15º e 16º dos factos provados – impugnação que os Recorridos entendem não ter satisfeito os ónus exigidos pelo artº 640º do CPC – e igualmente recorre da decisão jurídica dada ao litígio.
Atenta a ordem de precedência lógica das questões a apreciar, a impugnação da matéria de facto surgirá em primeiro plano sempre que dela possa resultar algum efeito útil para a decisão jurídica da causa.
Contudo, devemos ter presente que não haverá lugar à reapreciação da matéria de facto quando os concretos factos objecto da impugnação não forem susceptíveis de, face às circunstâncias próprias do caso sob apreciação, ter relevância jurídica para a decisão do litígio, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inconsequente o que, além de contrariar os princípios da celeridade e da economia processual, redundaria na prática de acto inútil o que se mostra vedado por lei (cfr. artº 130º CPC).
Na situação em presença, pelas razões que de seguida aduziremos, a utilidade/necessidade da apreciação da impugnação sobre a matéria de facto será revelada depois de analisados os contornos jurídicos do litígio.
Deste modo, as questões a decidir consistem em saber se a acção deve ser julgada procedente, o que passará por apreciar a qualidade de interessado do Autor; e, dependendo da resposta a essa questão, analisar a impugnação sobre a matéria de facto.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença sob recurso foi considerada a seguinte a factualidade:
«a) Factos provados:
1. No dia 26 de Maio de 1987, JFS, vendeu a B…, que lha comprou pelo preço de dois milhões e setecentos mil escudos, que já recebeu, a fracção autónoma designada pela letra “..”, que corresponde ao PRIMEIRO ANDAR esquerdo, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado Lote .., sito na …em …., concelho de…, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, da freguesia de…, achando-se o prédio inscrito na matriz da freguesia de … sob o art. ….
2. Consta da escritura pública de compra e venda que foi exibida: c) Certidão emitida em vinte e cinco de Maio corrente, na Câmara Municipal de …, donde consta que para o dito prédio foi concedida a licença de habitação número … pela Câmara Municipal de … em 15 de Fevereiro de 1974, (doc. 2 junto com a PI)
3. Por escritura notarial de 19/04/2012, celebrada no Cartório Notarial da Dra. …, JFS, vendeu à Ré P… que lho comprou pelo preço de € 12.000,00, o usufruto vitalício “da fracção autónoma designada pela letra “…”, que corresponde ao PRIMEIRO ANDAR DIREITO, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado Lote…, sito na …, em …, concelho de …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº…, da freguesia de …, (…..) achando-se o prédio inscrito na matriz da freguesia de… sob o art. …, com ( ….)” e ao R. V… que lha comprou pelo preço de €28.000,00, a nua propriedade da mesma fracção autónoma.
4. tendo ficado exarado no aludido contrato de compra e venda que: “EXIBIRAM: a)…. b) Certidão emitida pelo extinto Décimo Nono Cartório Notarial de Lisboa em 19 de Setembro de 2005, da escritura ali outorgada em 26 de Maio de 1987, exarada com início a folhas .., do livro de notas para escrituras diversas …, da qual consta que para o prédio urbano de que faz parte a fracção autónoma objecto de presente escritura, foi concedido pela Câmara Municipal de …em 15 de Fevereiro de 1974, a licença de habitação número …” (doc. 1 que se junta e dá por reproduzido bem como aos demais), constando da aludida escritura de compra e venda de 26/5/1987 que teve por objecto a fracção autónoma designada pela letra “…”, que corresponde ao 1º andar esquerdo do mesmo prédio, ter sido exibida: “Certidão emitida em vinte e cinco de Maio do corrente, na Câmara Municipal de …, donde consta que para o dito prédio foi concedida a licença de habitação número …, em quinze de Fevereiro de mil novecentos e setenta e quatro” (doc. 2 junto com a PI).
5. A aludida fracção autónoma designada pela letra “…” encontra-se registada a favor dos R.R. na 1ª Conservatória do Registo Predial de …pelas Aps. … e … ambas de 2012/04/19, respectivamente (doc. 4 junto com a PI).
6. No dia 23/09/2005 na sequencia de pedido de certidão de utilização do imóvel sito em …, n.ºs… a Câmara Municipal de … comunicou a E… na qualidade de mandatária que “… para aquelas moradias foi constituído o processo n.º …. Do ponto de vista processual nunca houve a possibilidade de emitir a L.U. pois do resultado da vistoria efectuada em 9.Mar.1972 ficaram registados condicionamentos que não foram cumpridos, dai que a C.M nunca tenha concedido a baixa de responsabilidade ao técnico que dirigiu a obra. Pese embora tenham sido entregues projectos de alterações na década de 80 os mesmos nunca foram concluídos. Na presente data existem três pedidos em apreciação em sede de DEU/DPGU (REq.º 16772/03-Legal. Marquise; Req.º 1379/05-Proj. de alterações Req.º 6506/05-Proj. de alterações)”.
7. Consta da informação da Divisão de Licenciamentos e Apoio Administrativo que a licença n.º …mencionada na escritura respeita a um edifício construído na … e a licença de utilização de 15/02/1974 respeita a uma moradia em …. (doc. 3 junto com a PI).
8. O vendedor JFS era conhecedor do referido em 6 e 7 desde pelo menos Setembro de 2005 (Cfr. documento nº 3 com a petição inicial).
9. A 9/12/2018 faleceu o JFS, no estado de solteiro, sem descendentes ou ascendentes vivos, tendo instituído por testamento de 19/10/2015 o A., seu sobrinho, seu único herdeiro, filho de seu irmão J (doc. 5 e 6 junto com a PI).
10. Os RR. à data da celebração da escritura pública de compra e venda, desconheciam que o prédio não tivesse licença de utilização, nem tal lhes foi comunicado pelo vendedor nem pelo A..
11. Imediatamente antes da outorga da escritura de compra e venda, o vendedor da fracção, JFS, havia concretizado o despejo de um inquilino da mesma fracção.
12. À data da aquisição da fracção pelos RR. a mesma tinha os seguintes danos– porta de entrada destruída, quadro eléctrico arrancado e instalação eléctrica destruídos, sem móveis de cozinha, louças sanitárias estragadas, azulejos da cozinha e da casa de banho estragados, sem escadas de acesso ao sótão, com a pintura das paredes e tectos e as portas interiores em toda a casa estragada com buracos e falta de tinta e o telhado danificado e com infiltrações.
13. Foi por causa dos danos que a fracção apresentava que JFS, para não gastar dinheiro em obras e ter a responsabilidade de as fazer, promoveu a venda imediata da fracção.
14. Tendo os RR. feito uma oferta pela casa de euros 40.000,00, considerando a necessidade de despender outros euros 40.000,00 na realização de obras, oferta essa que o JFS aceitou.
15. Para tornar a fracção habitável os RR. realizaram as obras após a aquisição da fracção, tendo despendido com as mesmas um valor não inferior a euros 40.000,00.
16. A fracção em causa tem um valor não inferior a euros 180.000,00.»
E foram considerados não provados os seguintes factos:
«a) Os R.R., há data do contrato de compra e venda ocorrido a 19/04/2012, sabiam que o prédio em causa não tinha licença de utilização e mesmo assim quiseram comprar.
b) A 1/5/2012 os R.R. arrendaram a JR o referenciado 1º andar direito, para habitação permanente deste, pela renda mensal de € 350,00, que desde aí têm vindo a receber, tendo percebido até ao presente, a tal título, E. 41.300,00 (118 meses X E. 350,00)».
*-*
O Autor pede que seja declarado nulo o contrato de compra e venda de uma fracção que o seu falecido tio, na qualidade de vendedor, celebrou com os RR., vendendo à Ré o usufruto vitalício e ao Réu a nua propriedade, sustentando tal nulidade na falta de licença de habitação, peticionando a condenação dos RR. a entregarem-lhe imediatamente essa fracção livre e desocupada de pessoas e bens, assim como o cancelamento do registo a favor dos RR., baseando-se em que a nulidade pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado, sendo indubitável que o A. o é, dado ser único herdeiro do vendedor, por força de testamento, e tendo a nulidade efeito retroactivo a mesma impõe a restituição da fracção ao A..
Acerca da nulidade dispõe o artº 286º CCivil, bastamente citado nos autos, que ela é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal.
Quando a lei se refere a interessados não o faz no sentido linguístico comum, reportando-se, sim, àqueles que sejam titulares de um interesse juridicamente tutelado pela esfera de protecção da norma.
E assim também ocorre relativamente ao artº 286º CCivil : ao referir-se a qualquer interessado não remete para toda e qualquer pessoa que possa extrair vantagens ou ganhos, sejam materiais, morais, intelectuais, lúdicos ou outros, da declaração de nulidade do negócio.
O direito de invocação da nulidade não é conferido a todos e a qualquer um, mas apenas aos que preencham os requisitos do conceito de interessado para efeitos do artigo 286º.
De acordo com a própria inserção sistemática do artº 286º CCivil, o interesse que atribui a alguém legitimidade para invocar o vício é um interesse de direito substantivo: é a necessidade de tutela jurídica por via da declaração da nulidade que justifica a legitimidade do titular do direito ou interesse a tutelar (e que de igual modo justifica a oficiosidade daquela declaração), o que pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, porque o negócio nulo prejudica a consistência jurídica ou a consistência prática de um direito seu (neste sentido cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, em anotação ao artº 286º).
Ana Prata, in Dicionário Jurídico, 3ª ed., pág 332, assinala que “são terceiros interessados não apenas aqueles que são titulares de um direito incompatível com o das partes, mas também aqueles que se encontram numa situação dependente da relação negocial.” E no Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Univ Católica, págs. 708 e 709) lê-se: “Legitimidade: Quanto à determinação das pessoas com legitimidade para arguir a nulidade, a lei usa o conceito “qualquer interessado”, querendo significar que pode invocar a nulidade o “sujeito de qualquer relação jurídica afetada pelos efeitos a que o negócio jurídico se dirigia” (Mota Pinto, 2005, 620). O direito de invocação da nulidade não é conferido a todos. Não é qualquer pessoa a quem dê jeito, de alguma maneira, a declaração de nulidade do negócio, que preenche os requisitos do conceito de interessado para efeito do artigo 286.º. O sujeito legitimado deve ter um interesse direto na nulidade e não apenas um interesse vago e indireto. O interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar a nulidade de um negócio jurídico segundo o artigo 286.º, é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio, porque o negócio nulo prejudica a consistência prática ou económica, de um direito seu (Lebre Freitas, 2007, 384). (…)”
Bom, no caso vertente, o negócio posto em crise foi celebrado pelo tio do Autor em 19/04/2012; esse tio, por testamento de 19/10/2015 (portanto, 3 anos e meio depois daquela venda), instituiu o Autor seu único herdeiro, certo que tal testamento poderia ser alterado ou revogado pelo testador; e o tio do Autor veio a falecer em 09/12/2018 (mais de 6 anos e meio depois de ter celebrado o negócio com os RR.), momento em que se abriu a sua sucessão (cfr. artº 2031º CCivil), a qual consiste no chamamento à titularidade das relações jurídicas patrimoniais da pessoa falecida e consequente devolução dos bens que lhe pertenciam (cfr. artº 2024º CCivil).
Significa quanto antecede que quando o Autor foi chamado à sucessão de seu tio já não integrava a esfera patrimonial deste a fracção em crise, que mais de 6 anos e meio antes o mesmo vendera aos RR. (usufruto vitalício á Ré e nua propriedade ao Réu), pelo que nenhuns direitos patrimoniais sobre esse bem se transmitiram ao Autor por via sucessória.
Portanto, a celebração do contrato de compra e venda efectuado pelo testador aos RR., antes mesmo da outorga do testamento a favor do Autor e que ademais nunca lhe conferiria se não uma expectativa de uma posição sucessória, não consubstanciou a violação de qualquer direito ou interesse legítimo juridicamente fundado do Autor, não tendo a presente acção por objecto a reposição ou defesa de qualquer direito ou interesse jurídico violado de que o Autor seja titular, isto é, não se verifica qualquer lesão ou iminência de lesão de qualquer direito ou situação de facto mediata ou reflexa  da titularidade do Autor que reclame tutela jurídica.
O que os autos exuberantemente revelam é que o interesse do Autor na anulação deste negócio jurídico é apenas a satisfação do seu pedido que é um fim em si mesmo, ou seja, o “interesse” do Apelante é a anulação da compra e venda com a inerente nulidade do subsequente registo do imóvel a favor dos RR., traduzido simplesmente em ver para si revertida a propriedade do imóvel que o seu falecido tio, no domínio dos plenos poderes de proprietário, entendeu vender mais de 6 anos e meio antes de o A. adquirir qualquer direito sobre o património de seu tio por via do testamento que este fez.
Portanto, o Autor não tem a qualidade de interessado exigida pelo artº 286º CCivil, podendo até dizer-se que não tem sequer objectivamente interesse em agir (enquanto pressuposto processual, e que não se confunde com o interesse subjectivo individual que o Autor tivesse na demanda).
[A propósito desta temática veja-se, por todos e a título de exemplo, na doutrina Lebre de Freitas, O conceito de interessado no artigo 286º do Código Civil e sua legitimidade processual, in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, 2007, e na jurisprudência, pela sua actualidade, Ac. Relação do Porto de 05/12/2023, proc. 2688/12.4T8VNG-J.P1].
Isto posto, é evidente concluir-se pela improcedência do recurso do domínio do Direito, pelo que se mostra inócua a apreciação da impugnação da matéria de facto.
Aqui chegados há, pois, que concluir pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida, embora com diferente fundamentação.

III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a sentença de 1ª instância com diversa fundamentação.
Custas a cargo do Recorrente.
Notifique.

Lisboa, 21/03/2024
Amélia Puna Loupo
Cristina Lourenço
Teresa Catrola