Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1003/24.5YRLSB-6
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: ESCUSA
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CÔNJUGE
JUIZ
EMPRESA
PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/03/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ESCUSA
Decisão: INDEFERIMENTO
Sumário: 1) A circunstância de o marido da Sra. Juíza exercer funções – e deter mesmo mandato – junto de sociedade (para onde não labora, mas onde, por intermédio de outra sociedade, presta serviços) participada pela requerida do processo distribuído à Sra. Juíza, não traduz postergação ou colocação em risco da imparcialidade devida ao julgador, não evidenciando alguma motivação ponderosa que justifique o afastamento da Sra. Juíza.
2) Também não justifica a escusa, a mera circunstância de estar em causa um processo de insolvência (“processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores” – cfr. artigo 1.º, n.º 1, do CIRE) e a relação de participação entre as sociedades referidas, relação essa que, de facto, não se encontra com a sociedade onde o cônjuge da Sra. Juíza exerce funções.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: A Sra. Juíza de Direito “A”, a exercer funções – desde 01-09-2023 -no Juízo de Comércio de Sintra – Juiz “X” veio, ao abrigo do disposto nos artigos 119.º e seguintes do Código de Processo Civil, apresentar pedido de escusa de intervenção no processo nº (…)/19.5T8SNT, invocando, em suma, que:
- No referido processo, que deu entrada em 05 04-2019 - e que se encontra suspenso desde 09-04-2019 por se encontrarem a correr outras ações de insolvência contra a requerida (nos termos do art.º 8.º, n.º 2 do CIRE) - é requerente “B” e requerida “C”, S.A.;
- Corre termos no juiz “Y”, o Processo Especial de Revitalização com o n.º (…)/22.6T8BJA, apresentado por “D”, SGPS, S.A., onde consta como credora reclamante a sociedade “E”, S.A.;
- Tem a signatária conhecimento que a sociedade “D”, SGPS, S.A. e a sociedade “C”, S.A.. são accionistas da sociedade “E”, S.A..
- O seu cônjuge exerce funções de director financeiro na Sociedade “F”, S.A., que presta serviços de apoio à gestão à sociedade “E”, S.A., e na qual o seu cônjuge presta serviços de assessoria/direcção financeira desde 2014, na sede da sociedade;
- O seu cônjuge é procurador da sociedade “E”, S.A., com poderes para facturar créditos movimentar contas, receber correspondência, celebrar contratos de trabalho, efectuar actos de registo, representar a sociedade junto de repartições públicas e entidades oficiais, representar em processos judiciais, entre outros poderes e participa também em reuniões; e
- Encontram-se pendentes no Juiz “X” onde a signatária exerce funções outros processos de insolvência em que é requerida a sociedade “C”, S.A., que se encontram suspensos por pendência de processos anteriores de insolvência, não tendo, ainda, sido tramitados pela signatária, no entanto, poderá o desfecho dos processos de insolvência anteriores condicionar a utilidade do seu pedido de escusa em outros processos.
Considera a Sra. Juíza que, a natureza do processo de insolvência, a relação de participação entre todas as sociedades referidas e o facto de o seu cônjuge prestar serviços de gestão/direcção financeira numa sociedade participada pela requerida, constituem circunstâncias que podem gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, que justificam a sua não intervenção no processo.
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Vejamos:
Pretende a requerente ser dispensada de intervir nos autos identificados, através do presente pedido de escusa.
Nos termos plasmados no n.º. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
Conforme salienta Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I, 1974, p. 320), “pertence pois a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera [de pura objectividade e de incondicional juridicidade] não (…) enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possam criar nos outros a convicção de que ele a perdeu”.
O artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República proclama que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”. Assim se consagra, como uma das garantias do processo, o princípio do juiz natural ou legal, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e justa.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
Para afastar o juiz natural não é suficiente um qualquer motivo que alguém possa considerar como gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. É preciso que o motivo seja sério e grave, pois o juiz natural só pode ser arredado se isso for exigido pela salvaguarda dos valores que a sua consagração visou garantir: imparcialidade e isenção. Por isso é excepcional o deferimento de um pedido de escusa (cfr., Acórdão do STJ de 11-11-2010, Pº 49/00.3JABRG.G1, rel. MANUEL BRAZ; no mesmo sentido, vd. Ac. do STJ de 05-04-2000, in CJ, 2000, p. 244).
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efetivamente, não se discute se o juiz irá ou não manter a sua imparcialidade, mas, visa-se, antes, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo. O ponto de vista subjetivo visa apurar se o juiz deu mostra de interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. O ponto de vista objetivo procura determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade. Ao aplicar o teste subjetivo, a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objetivos evidentes devem afastar essa presunção (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-02-2018, Proc. 166/18.3YRLSB, 5.ª Secção, Des.Anabela Simões e Cid Geraldo, em: https://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?nid=5385&codarea=57).
No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.
Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC).
Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
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A Sra. Juíza vem referir que, no processo em questão a requerida é a sociedade “C”, S.A. e que tal sociedade, assim como a sociedade “D”, SGPS, S.A., são accionistas da sociedade “E”, S.A., onde o seu cônjuge presta serviços de assessoria/direção financeira desde 2014 (sendo o mesmo diretor financeiro da Sociedade “F”, S.A. que presta serviços de apoio à gestão da referida “E”, S.A.), sendo procurador desta sociedade (com poderes para facturar créditos movimentar contas, receber correspondência, celebrar contratos de trabalho, efectuar actos de registo, representar a sociedade junto de repartições públicas e entidades oficiais, representar em processos judiciais, entre outros poderes e participa também em reuniões).
Não se verifica situação de impedimento, nos termos do disposto no artigo 115.º, n.º 1, al. d) do CPC, sendo que, tal situação só ocorreria caso o cônjuge tivesse intervenção no processo como mandatário judicial, o que não sucede.
Por outro lado, o artigo 120.º do CPC - aplicável às situações de escusa – por remissão do artigo 119.º do CPC – salvaguarda diversas situações – tipificadas nas várias alíneas do n.º 1 – em que existe circunstância ponderosa relacional que determina que possa suspeitar-se da imparcialidade do julgador.
E, relativamente à cláusula geral, estabelecida no n.º 1, do artigo 119.º do CPC – “quando por outras circunstâncias [além das enunciadas no artigo 120.º do CPC] ponderosas” possa suspeitar-se da imparcialidade do julgador, tal aferição da aparência “visa o processo concreto, o mesmo é dizer, é sobre o objecto do processo, sobre o mérito da decisão, da factualidade em que assenta e sobre os respectivos sujeitos processuais envolvidos, que há-de ser apreciada e aferida a suspeição do julgador. O motivo, sério e grave, gerador da desconfiança para que aponta aquele dispositivo legal, tem de ser concreto e concretizado face à matéria da causa e não ser aferido a partir de generalidades e abstracções” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-11-2019, Pº 186/17.5GCTVD.L1-A.S1, rel. FRANCISCO CAETANO).
Ora, no caso, nenhuma das alíneas do artigo 120.º do CPC consagra a situação invocada pela Sra. Juíza como suspeita, não se aferindo, pela mera relação de o cônjuge da Sra. Juíza exercer funções para empresa que, por sua vez, presta serviços para uma outra, que é participada pela requerida dos autos distribuídos à Sra. Juíza, situação ponderosa que permita suspeita sobre a imparcialidade do julgador.
O mandato que terá sido conferido pela sociedade de que o cônjuge da Sra. Juíza será procurador não releva para configurar circunstância ponderosa de suspeita, pois, de facto, será na esfera jurídica da sociedade mandatada – e, não, na da requerida nos autos – que se repercutirão os atos inerentes ao mandato em questão.
Do mesmo modo, a mera circunstância de o marido da Sra. Juíza exercer funções – e deter mesmo mandato – junto de sociedade (para onde não labora, mas onde, por intermédio de outra sociedade, presta serviços) participada pela requerida do processo distribuído à Sra. Juíza, não traduz, igualmente, alguma postergação ou colocação em risco da imparcialidade devida ao julgador, não evidenciando alguma motivação ponderosa que justifique o afastamento da Sra. Juíza.
Finalmente, também não se alcança justificar a escusa, a mera circunstância de estar em causa um processo de insolvência (“processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores” – cfr. artigo 1.º, n.º 1, do CIRE) e a relação de participação entre as sociedades referidas, relação essa que, de facto, não se encontra com a sociedade onde o cônjuge da Sra. Juíza exerce funções.
A factualidade aduzida pela Sra. Juíza não determina, nem objetiva, nem subjetivamente, a existência de circunstância, muito menos ponderosa ou relevante, que induza a que se possa suspeitar do comportamento do julgador.
Os pedidos de escusa pressupõem situações excecionais em que pode questionar-se sobre a imparcialidade devida ao julgador, o que, em face do referido, entendemos não se patentear no caso.
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Pelo exposto, desatende-se a pretensão de escusa formulada pela Sra. Juíza de Direito “A”.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 03-04-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente, com poderes delegados).