Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
243/23.9GEALM.L1-9
Relator: JOSÉ CASTRO
Descritores: CADUCIDADE DA CARTA DE CONDUÇÃO
CONTRAORDENAÇÃO
CRIME DE CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator):
- A caducidade da carta de condução pela prática de infrações durante o período probatório é causa de caducidade definitiva, a qual opera ope legis, visto que desapareceu a figura do “cancelamento” por força das alterações introduzidas ao art.º 130º do CE pelo DL nº 102-B/2020, de 09.12;
- A condução de veículo ligeiro de passageiros na via pública ou equiparada por alguém cuja carta de condução se encontra caducada pela prática de infrações rodoviárias durante o regime probatório, pode consubstanciar-se, para além de uma contraordenação p. e p. pelo art.º 130º, nº 7, do CE,, na prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, nºs 1 e 2, do DL nº 2/98, de 03.01.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
No âmbito do proc. sumário nº 243/23.9GEALM, que corre termos no Juízo Local Criminal de Almada – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em que é arguido AA, com sinais identificadores nos autos, efetuado o julgamento, a 02.06.2023 foi proferida sentença (refª 426367506) com o seguinte dispositivo (transcrição):
«NESTES TERMOS, decide-se:
a. Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01, de que vinha acusado;
b. Sem custas por não serem devidas;
c. Extrair certidão de todos os autos e remeter à ANSR para respectivo processamento de eventual contraordenação.»
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Inconformado com tal sentença, o MP dela interpôs recurso (refª 36483965), apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da motivação (transcrição):
«CONCLUSÕES
1. O Ministério Público discorda da qualificação jurídica efectuada pelo Tribunal recorrido quanto aos factos dados como provados, dado os mesmos integrarem a prática do crime de condução sem habilitação legal, impondo-se, dessa forma, a condenação do arguido pelo mesmo e não a sua absolvição.
2. A leitura do n.º 7 do artigo 130.º do C. da Estrada terá de levar em consideração o histórico do preceito, que sempre distinguiu a caducidade decorrente da não revalidação do título de condução da caducidade decorrente da cassação ou do cometimento de crimes de natureza rodoviária ou de contra-ordenações graves ou muito graves durante o regime probatório.
3. A interpretação levada a cabo pelo Tribunal (de que o disposto no artigo 130.º n.º 7 se refere a todas as situações do n.º 1), origina a que se penalize do mesmo modo uma pessoa que deixou passar o prazo para revalidar a sua carta de condução porque, por exemplo, atingiu a idade limite de 60 anos e uma pessoa que, pela prática de contra-ordenações graves ou muito graves ou de crimes de natureza estradal, viu a sua carta de condução ser cassada ou caducar por se encontrar durante o regime probatório, por se ter revelado inapta para o exercício da condução.
4. Esta interpretação revela-se também incongruente com as demais normas do Código da Estrada e do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir relativas à revalidação de título caducado pelo decurso do tempo e à obtenção de título de condução, nas situações de cassação ou de cometimento de infracções durante o regime probatório, que preveem um tratamento diferenciado para uma e outras situações.
5. Nas situações de revalidação, a lei não exige a submissão do seu titular às mesmas provas a que se submeteu de início quando lhe foi concedido pela primeira vez o título de condução, sendo-lhe impostas provas acrescidas à medida que o tempo vai passando até proceder à revalidação.
6. Nas situações de caducidade decorrente da cassação ou da prática de infracções durante o período probatório, a lei impõe que tenham de se submeter a prova teórica e a prova prática, tal como o fizeram aquando da obtenção inicial do seu título de condução, como também de frequentar, com aproveitamento, de curso específico de formação, conforme resulta do art.º 37º, nº 1, al. b) do RHLC.
7. Assim, para a obtenção de novo título, exige-se-lhes a realização de um procedimento a mais do que aqueles a que se sujeitaram de início aquando da obtenção do título entretanto caducado.
8. Assim, não poderá considerar-se que o exercício da condução por titular de carta caducada por cassação ou pela prática de infracções durante o período probatório consubstancia somente uma contra-ordenação e não o crime de condução sem habilitação legal, pois tal conduziria a uma solução incongruente com as demais normas do Código da Estrada e do RHLC.
9. Com a alteração legislativa introduzida pelo DL n.º 102-B/2020, de 9.12 ao art.º 130º do C. da Estrada, o legislador não expressou da melhor forma o seu pensamento, sendo que no nº 7, quando faz a remissão para o nº 1 da mesma norma, terá apenas querido referir-se às alíneas a) e b) e deixar de fora as alíneas b) e c), as quais caberão na previsão do nº 5, juntamente com as alíneas c) e d) do nº 3, impondo-se assim fazer uma interpretação restritiva deste preceito.
10. Assim, em face das razões expostas, entendemos que a conduta do arguido dada como provada na sentença recorrida integra a prática do crime de condução sem habilitação legal, pelo que deveria o arguido ter sido condenado pelo mesmo.
11. No mesmo sentido, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.12.2022 (processo n.º 87/21.2GBVVD.G1) e de Évora de 13.09.2022 (processo n.º 20/22.4GDPTM.E1), ainda que a respeito da caducidade decorrente de cassação.
Deste modo, impõe-se a revogação da sentença recorrido, devendo arguido AA ser condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01.
Decidindo nestes termos, farão V. Exas., como sempre, JUSTIÇA!».
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O recurso interposto pelo MP foi admitido a subir nos autos e com efeito devolutivo (cfr. despacho com a refª 427481309).
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O arguido, por seu turno, respondeu ao recurso interposto pelo MP, pugnando pela manutenção da sentença proferida (refª 36637768).
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Neste Tribunal da Relação de Lisboa, por sua vez, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de nada mais ter a aditar à argumentação da Exmª Magistrada do MP junto da 1ª instância (refª 20772136).
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Notificado nos ternos do disposto no nº 2 do art.º 417º do CPP, o arguido não apresentou resposta.
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Realizado o exame preliminar, foi proferido pelo relator deste acórdão (refª 20888496) o seguinte despacho (transcrição):
«Melhor compulsados os autos e tendo presente que:
i) a sentença recorrida foi de absolvição, sendo certo que em caso de condenação a questão da escolha e determinação concreta da sanção cabe a este tribunal por força do AFJ nº 4/2016 (publicado no DR Série I-A, nº 36, de 22.02.2016), segundo o qual «em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, nº 3, alínea b), 368º, 369º, 371º, 379º, nº 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424º, nº 2, e 425º, nº 4, todos do Código de Processo Penal»;
ii) mas, em ordem a tal, constatando-se que nos autos não se encontram presentes todos os elementos necessários com vista à tomada de decisão sobre essa questão e estando-nos vedado o reenvio nos termos do nº 1 do art.º 426º do CPP por esse motivo (cfr. a fundamentação do aludido AFJ, onde aborda essa temática, mas com declaração de voto em sentido contrário quanto a esse concreto segmento da fundamentação, em parte desatualizado pela redação dada à al. e) do nº 1 do art.º 400º do CPP pela Lei nº 94/2021, de 21.12):
iii) e que, além disso, de modo a não postergar os direitos de defesa do arguido e no sentido do processo penal ser equitativo (due processo of law), louvando-nos na fundamentação do AFJ nº 4/2016 (no segmento «Em recurso de decisão absolutória de 1.ª instância - e para além da defesa assegurada pela resposta ao recurso -, com a adopção de um procedimento similar (reporta-se a um procedimento similar ao que consta do nº 3 do art.º 424º do CPP), dando a possibilidade ao arguido de se pronunciar sobre concretos aspectos da determinação da espécie e medida da pena, não resultaria violada a proibição da indefesa, apresentando-se esse procedimento, ao invés, conforme às exigências de um processo equitativo»);
determinamos o seguinte:
- Notifique o arguido para, em 8 dias, querendo, em caso de condenação por este tribunal, se pronunciar quanto à questão da escolha e determinação concreta da pena;
- Notifique o arguido, para, no mesmo prazo, por documento pessoalmente assinado por si, vir expressar se, em caso de condenação em pena de prisão, consente em que a mesma seja substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade; ou, caso o tribunal entenda ser desadequada esta pena de substituição, se dá o seu consentimento ao cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, considerando-se que não dá o seu consentimento se nada vier dizer nesse prazo;
- Caso o arguido preste o seu consentimento ao cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, oficie à DGRSP – Equipa de Vigilância Eletrónica no sentido de apresentar relatório contendo as informações atinentes a saber se a habitação do arguido reúne as condições para a instalação dos equipamentos e de onde constem os consentimentos a que se reporta o art.º 4º, nº 4, da Lei nº 33/2010, de 02.09., se for caso disso.»
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Nessa sequência, veio o arguido juntar documento por si assinado prestando o seu consentimento, em caso de condenação em pena de prisão, à sua substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade ou, caso esta pena de substituição se afigurar desadequada, ao cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância (refª 669616).
Pronunciando-se quanto à escolha e determinação concreta da pena em caso de condenação, o arguido pugnou pela imposição de pena de multa ou, caso assim não se entenda, caso se opte pela imposição de pena de prisão, pugna pela sua substituição por trabalho a favor da comunidade, tendo em conta que é ele quem sustenta a sua família e que está familiar, económica e socialmente inserido (refª 669888).
Por sua vez, a DGRSP veio juntar o relatório solicitado (refª 676314), o qual foi notificado ao Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto e ao arguido.
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Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso interposto.
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FUNDAMENTAÇÃO
I - Questões a decidir em face do objeto do recurso
Tendo presente que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, n.º 2, do CPP (cfr. o Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, publicado no DR I Série de 28.12.1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum; a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito legal) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379º, n.º 2, do CPP)), as questões que se colocam reportam-se:
a. À qualificação jurídica dos factos dados como assentes;
b. Às consequências jurídicas da conduta observada pelo arguido no caso de se entender que constituem crime.
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II – Apreciação das questões acima enunciadas
a) Com vista à apreciação das questões acima enunciadas, aqui transcrevemos a matéria de facto dada como provada constante da sentença recorrida:
«II. Fundamentação
1.1. Dos factos provados Discutida a causa e com relevância para a presente decisão, julgam-se como provados os seguintes factos:
1. No dia ........2023, pelas 19h40, o arguido AA encontrava-se a conduzir o automóvel ligeiro de passageiros da marca “...”, modelo ..., com a matrícula ..-GN-.., na ..., na localidade de ..., concelho de Almada.
2. Na data supra referida, o arguido não era titular de carta de condução válida.
3. O arguido sabia que não lhe era permitido conduzir o mencionado veículo numa rua onde a circulação de veículos é livre, sem para tanto estar habilitado com carta de condução válida, mas, não obstante, não se absteve de adoptar a referida conduta.
4. O arguido agiu de forma voluntária, deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida.
E ainda:
5. O arguido foi titular da carta de condução n.º …, emitida a …2013, para as categorias B e B1, com início a …2013.
6. Em consequência do cometimento, durante o regime probatório, de contraordenação, sancionada no âmbito do processo de contraordenação n.º ..., a carta de condução n.º FA-... do arguido caducou na data de 14.06.2016.
7. O arguido não foi notificado para proceder a exame especial de condução.
8. O arguido é titular da licença de aprendizagem para a obtenção de carta de condução, emitida em 03.12.2021, válida até 22.10.2023, sendo o motivo da emissão “caducidade regime probatório”.
9. O arguido é ... de profissão.
10. Actualmente, está desempregado.
11. Presta, ocasionalmente, trabalhos na apanha do marisco, auferindo rendimentos, em média, à volta de € 800,00 a € 1.000,00.
12. Vive em casa de familiares.
13. A sua companheira está grávida.
14. Tem o 9.º ano de escolaridade.
15. Tem os seguintes antecedentes criminais averbados no seu certificado do registo criminal:
a. Por decisão transitada em julgado em 22.11.2012, no âmbito do processo n.º 523/11.6GTABF, foi condenado pela prática, em 06.06.2011, de crime de condução sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, extinta por pagamento em 22.08.2016;
b. Por decisão transitada em julgado em 01.11.2016, no âmbito do processo n.º 2/16.5PJCSC, foi condenado pela prática, em 08.01.2016, de crime de consumo de estupefacientes, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €5,00, extinta por pagamento em 25.10.2016;
c. Por decisão transitada em julgado em 16.10.2019, no âmbito do processo n.º 810/15.4PCCSC, foi condenado pela prática, em 28.06.2015, de crime de burla simples e um crime de passagem de moeda falsa, na pena de 10 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de €5,00, extinta por pagamento em 02.12.2019;
d. Por decisão transitada em julgado em 13.11.2020, no âmbito do processo n.º 110/20.8GELSB, foi condenado pela prática, em 13.06.2020, de crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 meses de prisão, suspensa por um ano, extinta por cumprimento em 13.11.2011.»
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b) Da qualificação jurídica dos factos dados como provados:
Entende o MP que a conduta perpetrada pelo arguido constitui o crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, nºs 1 e 2, do DL nº 2/98, de 03.01.
O tribunal a quo, por seu turno, entende que a conduta em apreço é apenas sancionada contraordenacionalmente.
Em ordem a tal entendimento, aduziu a seguinte argumentação (transcrição):
«Atenta a matéria de facto apurada, cabe agora proceder ao seu enquadramento jurídico-penal em ordem a determinar se a conduta do arguido preenche o tipo legal do crime de que vem acusado.
Ao arguido é imputada a prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01.
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Dispõe o artigo 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01, que “Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Acrescenta o n.º 2 do referido artigo que “Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até dois anos ou multa até 240 dias”.
Do exposto resulta que o tipo objectivo do referido crime é constituído pelo acto de condução de um veículo a motor (automóvel ou motociclo), na via pública ou equiparada, sem que o agente esteja legalmente habilitado para exercer tal actividade.
Está em causa um crime de perigo abstracto, cuja consumação se basta com o preenchimento do facto típico, não pressupondo a demonstração da existência de um perigo concreto para os bens jurídicos protegidos.
Por sua vez, o tipo subjectivo deste ilícito criminal pressupõe por parte do agente uma conduta dolosa, supondo assim o conhecimento dos elementos objectivos do tipo e a vontade de realização do facto pelo agente, sendo que o dolo pode revestir qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º do CP.
Estabelece o artigo 121.º, n.ºs 1 e 4 do Código da Estrada, respectivamente, que “só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver habilitado para o efeito” e “o documento que titula a habilitação para conduzir automóveis (…) designa-se carta de condução”.
O documento que titula a habilitação para conduzir automóveis e motociclos é, assim, a carta de condução, a qual é emitida pela entidade competente e válida para as categorias de veículos e períodos de tempo nela averbados.
A obtenção definitiva da carta de condução pressupõe, porém, a verificação de vários requisitos, entre os quais o não cometimento de certas infracções durante o período de provisoriedade do título.
Destarte, estabelece o artigo 122.º, n.º 1 do Código da Estrada que “A carta de condução emitida a favor de quem ainda não se encontrava legalmente habilitado a conduzir qualquer categoria de veículos fica sujeita a regime probatório durante os três primeiros anos da sua validade”.
Acrescentando o n.º 2 da mesma disposição normativa que “Se, no período referido no número anterior, for instaurado contra o titular da carta de condução procedimento do qual possa resultar a condenação pela prática de crime por violação de regras de circulação rodoviária, contraordenação muito grave ou segunda contraordenação grave, o regime probatório é prorrogado até que a respetiva decisão transite em julgado ou se torne definitiva” e o n.º 5 que “O regime probatório cessa uma vez findos os prazos previstos nos n.ºs 1 ou 2 sem que o titular seja condenado pela prática de crime, contraordenação muito grave ou por duas contraordenações graves”.
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Revertendo agora as considerações expandidas para o caso dos autos, verifica-se que o arguido foi titular da carta de condução n.º FA-..., emitida a 26.07.2013, para as categorias B e B1, com início a 17.06.2013.
Sucede que, em consequência do cometimento, durante o regime probatório, de contraordenação, sancionada no âmbito do processo de contraordenação n.º ..., a carta de condução n.º FA-... caducou em 14.06.2016
Pelo que, quando o arguido conduziu no dia ........2023, a sua carta de condução já havia caducado.
Importa, pois, apurar a forma como é sancionada tal conduta do arguido.
Ora, com interesse para a apreciação do caso dos autos, importa atender ao disposto no artigo 130.º do Código da Estrada.
Cumpre, porém, desde já, salientar que tal disposição normativa sofreu alterações recentes na sua redacção, introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 09.12, as quais entraram em vigor a partir do dia 08.01.2021.
À data da prática dos factos, estava, portanto, em vigor a nova redacção do artigo 130.º do Código da Estrada.
Refira-se, desde já, que, com as alterações introduzidas ao Código da Estrada e legislação complementar pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 09.12, o legislador baniu do Código da Estrada a menção ao “cancelamento” da carta de condução, passando exclusivamente a referir-se à sua “caducidade”, pese embora o artigo 2.º, n.º 1 do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 138/2012, de 05.07), continue a mencionar que “Os títulos de condução, com exceção dos títulos para a condução de veículos pertencentes às forças militares e de segurança, são emitidos, revogados e cancelados pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I. P. (IMT, I. P.), nos termos do Código da Estrada e do presente regulamento” (sublinhado nosso).
Assim, o actual artigo 130.º passou a ter a epígrafe de “Caducidade dos títulos de condução”, ao invés de “Caducidade e cancelamento dos títulos de condução”.
A actual redacção do artigo 130.º do Código da Estrada dispõe que:
“1– O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos nos 1 e 5 do artigo anterior;
c) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave; (sublinhados nossos)
d) For cassado nos termos do artigo 148º do presente Código ou do artigo 101º do Código Penal;
e) O condutor falecer.”
Diferentemente, previa o artigo 130.º do Código da Estrada, na redacção resultante do Decreto-Lei n.º 114/94, de 03.05:
“1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior.
(…)
3 - O título de condução é cancelado quando:
a) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
b) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
c) O titular reprove, pela segunda vez, no exame especial de condução a que for submetido nos termos do n.º 2;
d) Tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido”. (sublinhados nossos)
Confrontadas as versões, é manifesto que, à luz da anterior redacção, a situação em que o titular da carta de condução se encontrava em regime probatório e fosse condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave, constituía causa de “cancelamento” da carta de condução (cfr. o citado artigo 130.º, n.º 3, alínea a) do Código da Estrada, na redacção aprovada pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03.05), ao passo que, actualmente, constitui mais uma das causas de “caducidade” previstas no artigo 130.º, n.º 1 (cfr. alínea c) do artigo 130.º, n.º 1 do Código da Estrada, na redacção aprovada pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 09.12).
Previa-se ainda no artigo 130.º, n.º 5 do Código da Estrada, na redacção aprovada pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03.05, a consequência de um condutor conduzir com um título de condução “cancelado”, referindo-se expressamente que “Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido”, ao passo que estatuía o n.º 7 da mesma disposição normativa que “Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600”.
Assim, à luz do regime anterior, competia ao IMT cancelar as cartas de condução caducadas verificados os requisitos legais. Por conseguinte, quando a carta fosse cancelada e o respectivo titular conduzisse na via pública nessas condições incorria na prática de um crime de condução sem habilitação legal na previsão do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01. Ao passo que, caso a carta não tivesse sido objecto de cancelamento, estando apenas caducada, o titular incorria apenas na prática de uma contra-ordenação sancionada como uma coima.
Actualmente, eliminou-se a tal menção ao cancelamento no n.º 3 do artigo 130.º do Código da Estrada.
Porém, em sua substituição, prevê-se agora o seguinte:
“3 - O título de condução caducado não pode ser renovado quando:
a) (Revogada.)
b) (Revogada.)
c) O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido;
d) Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado”.
As citadas alíneas a) e b), actualmente revogadas, respeitavam precisamente à situação do regime probatório (alínea a)) e da cassação da carta de condução (alínea b)).
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 102.º-B/2020, o legislador explicou o alcance e sentido das alterações introduzidas nesta matéria, deixando consignado que “são introduzidas alterações ao regime de caducidade dos títulos de condução, não só quanto às regras que permitem que condutores que deixaram caducar os seus títulos possam reavê-los, ainda que condicionados à realização de provas de exame ou à frequência de ação de formação, como também à previsão da caducidade definitiva dos títulos de condução nas situações tipificadas na lei”.
Do exposto neste preâmbulo, parece resultar que o legislador pretendeu distinguir os casos de caducidade definitiva, em que o título de condução caducado já não mais pode ser renovado, e os casos de caducidade temporária, em que o título de condução, apesar de caducado, ainda pode ser renovado.
E previu especificamente a primeira situação no citado artigo 130.º, n.º 3 do Código da Estrada, aí englobando apenas as seguintes situações em que (i) o titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido; (ii) tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que o título deveria ter sido renovado. Delas excluindo, expressamente, por via da revogação das alíneas a) e b) do anterior 130.º, n.º 3 do Código da Estrada, a caducidade da carta no regime probatório e decorrente de cassação.
E tal compreende-se, porque, prevê o legislador que também nesta situação - os titulares de títulos de condução caducados no regime probatório e decorrente de cassação - são sujeitos a exame especial de condução (cfr. artigo 130.º, n.º 4, alínea a) que remete para o n.º 2 da mesma disposição normativa).
Sendo que, de acordo com a actual redacção do artigo 130.º, n.º 3, alínea c) do Código da Estrada, o título de condução caducado só não pode ser renovado quando “O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido”.
Por outro lado, prevê-se actualmente no artigo 130.º, n.º 5 do Código da Estrada que “Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução”.
Todavia, especifica o artigo 130.º, n.º 7 do Código da Estrada, na actual redacção, que “Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600”.
Estamos, pois, em crer que, de modo a fazer uma interpretação harmonizada destas duas normas, tendo presente as alterações introduzidas, nomeadamente a expressa revogação das anteriores alíneas a) e b) e a remessa em bloco no n.º 7 do artigo 130.º do Código da Estrada para o n.º 1 da mesma disposição normativa, sem excepcionar quaisquer das alíneas ali elencadas (pois, note-se, que o legislador não remeteu no n.º 7 do artigo 130.º do Código da Estrada apenas para a alínea a) – o que poderia ter sido uma opção legislativa - mas fez uma remissão em bloco, daí que, perante as regras de interpretação da lei que resultam do artigo 9.º do Código Civil, a regra é a de que onde a lei não distingue não pode o intérprete distinguir; mesmo que se possa entender que, onde a lei não distingue, deve o intérprete distinguir sempre que dela resultem ponderosas razões que o imponham, este não será manifestamente o caso, pois estamos no âmbito do direito penal e contraordenacional), com a actual redacção legal, salvo melhor entendimento, apenas será de considerar como verificada uma situação de efectiva inexistência de título de condução para conduzir, por seu turno, susceptível de ser subsumida ao tipo legal de crime do artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01, nas situações taxativamente consignadas no n.º 3, alíneas c) e d) do artigo 130.º do Código da Estrada (ou seja, “quando o titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido” e, quando “tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado”).
Nas demais situações, o sancionamento a título meramente contra-ordenacional constitui uma opção, por parte do legislador, de manter a punição de situações – como a que se encontra ora em análise – de perda de validade/caducidade dos títulos de condução decorrente das situações consignadas no artigo 130.º, n.º 1, alíneas a) a d), do Código da Estrada, a título de ilícito de mera ordenação social e, reservar a punição de cariz penal (decorrente do artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01) apenas e tão só para as já aludidas situações taxativamente consignadas no n.º 3, alíneas c) e d) do artigo 130.º do Código da Estrada, pois nos outros casos, o infractor já anteriormente se submeteu a exames escritos e práticos, alcançando a respectiva aprovação, que lhes permitiu obter um título de condução, e podem revalidar/ renovar o título, sujeitando-se a um exame especial de condução, tal como prevê o artigo 130.º, n.º 4 do Código de Estrada, à semelhança, aliás do que sucede nas situações de caducidade descorrentes da causa de caducidade previstas no artigo 130.º, n.º 1, alínea a) do Código da Estrada, tal como prevê o artigo 130.º, n.º 2 do mesmo normativo.
Assim, no regime actual, o agente só comete o crime de condução sem habilitação legal quando conduza com o título de condução, definitivamente caducado, ou seja, nas situações previstas no n.º 3, do artigo 130.º do Código de Estrada, caindo dessa forma na previsão típica contida no n.º 5 do mesmo preceito legal, com referência ao n.º 3, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01.
Pelo que, nas restantes situações, a conduta do agente que conduz com título de condução caducado, apenas, integra a contraordenação prevista no n.º 7 do artigo 130.º do Código de Estrada.
Afastamo-nos, assim, das posições vertidas nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 13.10.2021 (processo n.º 8/21.2GCPRT.P1), de 05.12.2022 (processo n.º 87/21.2GBVVD.G1) e de Évora de 13.09.2022 (processo n.º 20/22.4GDPTM.E1), ainda que a respeito da caducidade decorrente de cassação, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
E, salvo melhor entendimento, não parece resultar que ao prever o n.º 5 e 7 do artigo 130.º do Código da Estrada, o legislador quisesse punir, simultaneamente, o mesmo comportamento como crime e contraordenação, pois, nesse caso, também a situação de caducidade decorrente o artigo 130.º, n.º 1, alínea a) teria de ser punida necessariamente de ambas as formas, o que se mostra arredado (veja-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22.03.2022 (processo n.º 533/21.5PCLRS.L1-5) e de 07.12.2021 (processo n.º 340/19.5PTLRS.L1-5), ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Em face de tudo o exposto, no caso concreto, conclui-se que o arguido ao conduzir o veículo com o título de condução caducado no regime probatório, mas não ainda caducado definitivamente nos termos do artigo 130.º, n.º 3 do Código da Estrada, incorreu na prática um ilícito contraordenacional, p. e p. pelo artigo 130.º, n.º 1, alínea c) e 7 do Código da Estrada, e não no crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3.1.
De notar ainda que, o arguido não foi notificado para a realização do exame especial de condução, porquanto, segundo informação do IMT de fls. 65v, o mesmo não está a ser aplicado, por falta de regulamentação.
Todavia, é titular da licença de aprendizagem para a obtenção de carta de condução, emitida em 03.12.2021, válida até 22.10.2023, sendo o motivo da emissão “caducidade regime probatório”.
Posto isto, nos termos dos artigos 169.º, n.º 1 do Código da Estrada, para o processamento de contra-ordenações estradais é competente a ANSR, apenas cabendo competência para tanto aos tribunais quando a correspondente factualidade constituir simultaneamente crime e contraordenação. Destarte, só assim se compatibiliza o processo, desde logo, com a prerrogativa de pagamento voluntário da coima e respectivo formalismo, totalmente desadequado à fase de julgamento perante tribunal de 1ª instância, orientada para a audiência final e prolação de sentença (cfr. nestes sentidos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07.12.2021, processo n.º 340/19.5PTLRS.L1-5, disponível em www.dgsi.pt).
Em consequência, mais não resta do que absolver o arguido e ordenar extracção de certidão e remessa à autoridade competente para o respectivo processamento.»
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Quid Juris?
Dispõe o art.º 3º, nº 1, do DL nº 2/98, de 03.01, que «Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada1 sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada2 é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias».
Nos termos do nº 2 daquela disposição «Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel3 a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias».
Trata-se de um crime de perigo abstrato (que visa a antecipação da proteção de outros bens jurídicos, como a segurança rodoviária e, por via dela, a vida ou a integridade física dos demais utentes das vias públicas ou equiparadas) e que se consuma logo com o mero ato da condução nas circunstâncias descritas no preceito legal em causa.
Além disso, tendo em atenção a natureza do veículo conduzido, o crime pode ser qualificado, se se tratar de motociclo ou automóvel, atenta a maior perigosidade que representa a condução de tal tipo de viaturas na via pública ou equiparada.
Quanto ao tipo subjetivo, a conduta tem de ser dolosa, em qualquer uma das suas modalidades previstas no art.º 14º do Código Penal.
O corpo do artigo em análise, conforme vimos, remete para os preceitos do Código da Estrada quanto à habilitação legal para o exercício da condução.
O MP, nas suas alegações recursórias, entende que «Com a alteração legislativa introduzida pelo DL n.º 102-B/2020, de 9.12 ao art.º 130º do C. da Estrada, o legislador não expressou da melhor forma o seu pensamento, sendo que no nº 7, quando faz a remissão para o nº 1 da mesma norma, terá apenas querido referir-se às alíneas a) e b) e deixar de fora as alíneas b) e c), as quais caberão na previsão do nº 5, juntamente com as alíneas c) e d) do nº 3, impondo-se assim fazer uma interpretação restritiva deste preceito.»
Esta pugnada interpretação restritiva louva-se no facto de ser incongruente o mesmo tratamento dado àqueles que vêm caducada a sua carta de condução pelo simples decurso do tempo em relação àqueloutros em que a caducidade se dá por força da cassação ou pela prática de infrações durante o regime probatório, já que os requisitos de revalidação do título de condução são muito diversos, pois estes têm de se submeter a nova prova teórica e a nova prova prática, além de terem de frequentar com aproveitamento um curso específico de formação (art.º 37º, nº 1, al. b), do RHLC, aprovado pelo DL nº 138/2012, de 05.07).
Não discute assim o MP que na primeira situação apenas estaríamos perante uma contraordenação, nos termos do nº 7 do art.º 130º do CE (como assim foi decidido, por exemplo, no ac. do TRL de 22.03.2022, proc. nº 533/21.5PCLRS.L1-5, com texto integral em www.dgsi.pt), ao passo que nas demais situações referenciadas entende que o exercício da condução consubstancia-se na prática do crime previsto no art.º 3º do DL nº 2/98, de 03.01, por força do nº 5 do art.º 130º do CE.
Ao invocar a apontada incongruência no tratamento, caso vingue o posicionamento expresso na sentença recorrida, o MP, no fundo, sem o referir expressamente, invoca a violação do princípio da igualdade, na modalidade de tratamento igual em situações muito diversas (dispõe o art.º 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.»).
De todo o modo, vejamos, antes de mais, em cotejo, as duas versões do art.º 130º do CE, a atual e a anterior às alterações introduzidas pelo DL nº 120-B/2020, de 09.12.
Dispõe atualmente o art.º 130º do CE sob a epígrafe «caducidade dos títulos de condução», que:
«1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior;
c) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
d) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
e) O condutor falecer.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos e há menos de cinco anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior;
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução caducado não pode ser renovado quando:
a) (Revogada.)
b) (Revogada.)
c) O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido;
d) Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2:
a) Os titulares de títulos de condução caducados ao abrigo das alíneas c) e d) do n.º 1;
b) Os titulares do título caducado há mais de cinco anos.
5 - Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução.
6 - (Revogado.)
7 - Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.»
(Negritos e sublinhados nossos).
Anteriormente às ditas alterações introduzidas pelo D.L. 102-B/2020, de 09/12, era o seguinte o teor deste mesmo preceito legal:
«1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior.
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução é cancelado quando:
a) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
b) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
c) O titular reprove, pela segunda vez, no exame especial de condução a que for submetido nos termos do n.º 2;
d) Tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2 os titulares de títulos de condução cancelados ao abrigo das alíneas a) e b) do número anterior que queiram obter novo título de condução.
5 - Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.
6 - Ao novo título de condução obtido após cancelamento de um anterior é aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º.
7 - Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.»
(Negrito e sublinhado nossos).
Salvo o devido respeito por opinião diversa, entendemos que a sentença recorrida funda-se em dois equívocos:
1º - o de que a caducidade da carta de condução nos termos da al. c), do nº 1, do art.º 130º do CE é provisória; e
2º - que a remissão em bloco do nº 7, para o nº 1, do art.º 130º do CE significa que o legislador entendeu que as condutas como a dos autos são apenas puníveis a título de contraordenação.
Podemos assentar que das alterações introduzidas ao art.º 130º do CE pelo DL nº 120-B/2020, de 09.12, resulta que, nas situações de caducidade temporária (seja qual for a sua razão, pois o legislador não as distingue) - isto é, em que o título pode ser revalidado (trata-se de revalidação e não de novo título) -, o exercício da condução com a respetiva carta caducada é apenas sancionado como contraordenação, nos termos do nº 7 do art.º 130º do CE («Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600»); ao passo que nas situações em que a caducidade é definitiva (e que na anterior versão do art.º 130º do CE correspondia ao “cancelamento”) o exercício da condução integra-se na previsão legal do art.º 3º, nº 1, do DL nº 2/98, de 03.01, na medida em que «Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução» (nº 5 do art.º 130º do CE).
O nº 5 daquele preceito reporta-se às situações de caducidade definitiva, daí a parte final do preceito em causa, que mais não fez do que incorporar a anterior redação do nº 6 do art.º 130º, também ele revogado pelo DL nº 120-B/2020, de 09.12.
Ora, a nosso ver, as situações de caducidade definitiva (equivalente às situações de “cancelamento”, figura que desapareceu com a alteração legislativa decorrente das alterações introduzidas ao nº 3 do art.º 130º pelo DL nº 120-B/2020, de 09.12), reportam-se não só às als. c) e d) do nº 3 do art.º 130º do CE (nova redação), mas também às als. c) e d) do nº 1 do mesmo preceito legal.
Isto é, a revogação a que se reporta as als. a) e d) do nº 3 do art.º 130º do CE (correspondente também às hipóteses legais das als. c) e d) do nº 1) não consente a interpretação de que o legislador pretendeu que tais condutas caíssem apenas na alçada contraordenacional, porquanto teria considerado suficiente esta forma de tutela menos gravosa em obediência ao princípio da intervenção mínima ou de última ratio do direito penal (cfr. o art.º 18º, nº 2, da CRP, segundo a qual «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»).
Na verdade, tendo em conta a exposição de motivos constante DL nº 120-B/2020, de 09.12, em que, além do mais, assume-se como objetivo primordial potenciar a segurança rodoviária, daí se extrai um indicador de que a intenção do legislador não possa ter sido o de, por desnecessidade, deixar de punir criminalmente situações equivalentes a quem nunca se habilitou para conduzir, quando é certo que não diminuíram de todo as necessidades de prevenção rodoviária em face dos altos índices de sinistralidade estradal que se continuam a verificar ano após ano.
É por isso que a Lei da Política Criminal anterior (Lei n.º 55/2020, de 27.08) consignava no seu anexo que «Releva-se, ainda, que a segurança rodoviária é uma prioridade que exige continuado planeamento, coordenação, empenhamento de meios e capacidade administrativa. De acordo com os dados do RASI de 2019, verificaram-se, face a 2018, mais 3738 acidentes rodoviários (+ 2 /prct.). Os resultados demonstram a existência de mais 2 vítimas mortais (+ 0,2 /prct.)».
No mesmo sentido, na nova Lei da Política Criminal (Lei n.º 51/2023, de 28.08), no respetivo anexo, a dado passo, consta que «São de notar também os objetivos específicos que se relacionam com o incêndio florestal, os crimes contra a natureza e o ambiente e a criminalidade rodoviária, cuja incidência estatística permanece, sendo por isso objeto de específicas orientações de política criminal. (…) Quanto aos crimes rodoviários, genericamente, apresentaram um aumento de 12 /prct. em 2021 e de 21,5 /prct. em 2022, onde se incluem os crimes que integram o direito penal de justiça. São, por isso, de prevenção prioritária. Reflexamente, quando de tais crimes resultar a morte ou ofensas à integridade física graves, a investigação será prioritária.»
Ademais, nesse contexto, não faria qualquer sentido diminuir o grau de proteção do bem jurídico protegido (segurança rodoviária e, indiretamente, a vida, a integridade física e mesmo o direito de propriedade dos demais utentes das vias públicas ou equiparadas) nas situações do exercício de condução por alguém que, com o seu passado estradal, provou não estar apto ao exercício da condução, de modo tal que, para obter nova carta de condução, terá se habilitar com exame especial (teórico e prático, além de frequência com aproveitamento de ação de formação), nos termos do art.º 37º do RHLC, mais exigente até em relação a quem se propõe encartar pela primeira vez.
Para além disso, da conjugação do disposto nos arts. 16º e 17º do RHLC (que, respetivamente, definem as condições de validade dos títulos de condução e da sua revalidação) e do preceituado no art.º 129º, nºs 1 e 5, do CE, emerge que a caducidade da carta de condução seja por não se ter ultrapassado com sucesso o regime probatório (al. c) do nº 1 do art.º 130º) seja por cassação (al. d) do nº 1 do art.º 130º) não se integra na previsão legal respeitante à revalidação de títulos.
É por isso que, nessas circunstâncias, só é emitido novo título uma vez cumpridos pelo candidato os pressupostos do novo exame especial e ação de formação impostos pelo art.º 37º, nº 1, al. b), do RHLC.
Isto é, nas hipóteses das als. c) e d) do nº 1 do art.º 130º do CE, tem-se a carta de condução por definitivamente caducada e, caso se pretenda a obtenção de novo título, em face do seu passado estradal, o legislador prevê que o candidato se submeta a um exame especial teórico e prático e a frequência com aproveitamento ação de formação com vista à obtenção de nova carta de condução. Não se trata de revalidação do anterior título, mas da obtenção de um novo título, sinal de que a caducidade do anterior título é definitiva.
Estamos, pois, na hipótese legal do nº 5 do art.º 130º do CE quando alguém exerce a condução com a carta caducada nos termos das als. c) e d) do nº 1.
Com efeito, os títulos que em certas situações de caducidade careciam de cancelamento por banda da ANSR para que a caducidade fosse definitiva (art.º 130º, nºs 1, als. c) e d), e 3, als. a) e b), do art.º 130º na anterior redação), com a alteração legislativa vinda de referir – desaparecida que está a figura do “cancelamento” – a mesma tornou-se definitiva, ope legis, daí que a manutenção das als. a) e b) do nº 3 do mesmo artigo segundo a redação anterior fosse redundante (ocorrendo por esse motivo, ao que cremos, a sua revogação pelo DL nº 120-B/2020, de 09.12).
Por todo o exposto, s.m.o., esta é a única interpretação que se deve extrair em face das alterações legais introduzidas pelo DL nº 120-B/2020, de 09.12, se, na tarefa de perscrutar a intenção do legislador, temos de partir do pressuposto que este consagrou a solução mais acertada e que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9º, nº 3, do Código Civil), quando é certo que «A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (nº 1 do art.º 9º), ainda que se conceda que os elementos teleológico e histórico na interpretação de normas penais devam ser tidos em conta com cautela, por força do princípio da tipicidade e sem esquecer que, como adverte o nº 2 do art.º 9º do Código Civil «Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso».
Acresce que o nosso entendimento em nada contende com a remissão em bloco efetuada pelo legislador no nº 7 do art.º 130º do CE para o nº 1 do mesmo preceito.
Uma conduta pode simultaneamente integrar uma contraordenação e um crime.
É o caso dos autos.
O exercício da condução nas hipóteses das als. c) e d) do nº 1 do art.º 130º não exclui necessariamente a sua punição a título de crime, prevalecendo a punição da conduta observada pelo agente a título criminal, cujo processo deve ser processado tendo em atenção o disposto nos artgs 38º e 39º do Regime Jurídico das Contraordenações e Coimas (aprovado pelo DL nº 433/82, de 27.10).
Daí a desnecessidade de qualquer interpretação restritiva do nº 7 do art.º 130º do CE.
Se valesse o argumento da sentença recorrida, que dizer da remissão em bloco para o nº 1 incluir a caducidade por morte do titular da carta de condução (al. e) do nº 1), caducidade que é definitivíssima, como só a causa por morte pode ser.
Isto é, a remissão em bloco vinda de referir não é critério orientador na interpretação da intenção do legislador.
Ademais, para além do referido, a interpretação pugnada na sentença recorrida (de que a situação dos autos reporta-se a uma caducidade provisória e que por isso só é punível a título de contraordenação) levaria a situações absolutamente incongruentes, pondo mesmo em causa a unidade de todo o sistema punitivo ligado à circulação rodoviária, como por exemplo, quem, estando encartado, mas estando inibido de conduzir, exerce a condução e por isso comete um crime (de violação de proibições, p. e p. pelo art.º 353º do Código Penal); mas quem exerce a condução conforme resulta dos autos poderia fazê-lo indefinidamente sem qualquer sanção criminal (apenas contraordenacional e, naturalmente, sem qualquer sanção acessória de proibição associada, por não prevista, como não tinha de estar, visto que o agente não está sequer habilitado a conduzir nos termos do CE).
No limite, o infrator, nessas circunstâncias, com título caducado (provisoriamente na tese do tribunal a quo), poderia não ter interesse em renová-lo e preferir arriscar o exercício da condução se esta apenas se consubstanciar numa infração contraordenacional apenas sancionada com coima.
Infrator esse que não reúne as condições legalmente impostas para o exercício da condução, tomando em consideração que «Só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito» (art.º 121º, nº 1, do CE) e que, atento o seu passado como condutor, provou não reunir as condições necessárias para o exercício daquela atividade perigosa em segurança, colocando em risco direitos essenciais dos demais utentes das vias públicas ou equiparadas.
Em suma, para efeitos de criminalização do exercício da condução “sem habilitação legal”, apenas se integra no tipo legal do nº 1 do art.º 3º do DL nº 2/98, de 03.01, o exercício da condução por quem nunca se habilitou com a respetiva carta de condução ou, tendo-se habilitado com a mesma, esta estiver definitivamente caducada, pois só tais situações são equivalentes, justificando-se assim o tratamento igual em termos de criminalização.
Como é o caso dos autos.
Veja-se ainda que, pese embora reportadas à caducidade da carta de condução por cassação, no sentido de que o agente comete o crime aqui em causa, assim se pronunciaram os acs da RE de 13.09.2022, proc. nº 20/22.4GDPTM.E1; e da RG, proc. nº 87/21.2GBVVD.G1, ambos acessíveis e www.dgsi.pt.
Por conseguinte, ainda que tendo em conta argumentação diversa do recorrente, deve ser assim o arguido condenado pela prática, a título de autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, nºs 1 e 2, do DL nº 2/98, de 03.01.
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c) Das consequências jurídicas da conduta observada pelo arguido:
Tendo presente a jurisprudência uniformizada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2016 (publicado no DR, Série I-A, nº 36, de 22.02.2016), no sentido de que «em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, nº 3, alínea b), 368º, 369º, 371º, 379º, nº 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424º, nº 2, e 425º, nº 4, todos do Código de Processo Penal», efetuado o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido nos moldes em que acima vimos, caberá agora, neste acórdão, escolher e determinar a medida concreta da pena a aplicar, de acordo com o disposto nos artigos 70º e 71º do Código Penal, tendo presente que «as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Assim, a medida da pena há-de ser dada pela medida da tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, que se traduz na tutela das expectactivas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada» (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, p. 227) – cfr. ainda o disposto no art.º 40º, nºs 1 e 2, do Código Penal.
Dispõe então o art.º 71º, do Código Penal, sob a epígrafe «Determinação da medida da pena» o seguinte:
«1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.»
Toda a pena deve ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, como, desde logo, se depreende do art.º 13º Código Penal ao dispor que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
A culpa não constitui, assim, apenas o pressuposto e fundamento da validade da pena, mas traduz-se no seu limite máximo, o que significa não só que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena como seu limite máximo.
De facto, aqui ao referirmo-nos a culpa fazemo-lo atendendo à personalidade do agente revelada no facto (neste sentido vide Figueiredo Dias, ob cit., pág. 219). É, pois, correto afirmar que a culpa em sede de determinação da medida da pena se traduz numa atitude interna sempre atualizada no facto.
De acordo com a teoria da margem de liberdade, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo já adequado à culpa e um limite máximo ainda adequado à culpa, devendo intervir os outros fins das penas, atualmente referidos de forma expressa no art.º 40º Código Penal (cfr. Claus Roxin Culpabilidade y Prevencion en Derecho Penal, tradução F. Munõz Conde, Bosch, 1981, pág. 94).
Por seu turno, a escolha do tipo de pena depende apenas de considerações de prevenção geral e especial, nada tendo a ver com a determinação da sua medida, a qual depende fundamentalmente da culpa do agente.
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve evitar a quebra da inserção social do agente e servir para a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia de proteção dos bens jurídicos.
O ilícito deve ser assim valorado em função da gravidade do ataque ao objeto em particular, nomeadamente os danos ocasionados, a extensão e gravidade dos efeitos produzidos - o efeito externo -, sem esquecer o próprio desvalor do comportamento delituoso.
Em síntese, para a determinação concreta da pena, balizada pela moldura penal abstrata, importa apreciar três fatores: a culpa manifestada pelo arguido na prática do crime em causa, como limite máximo da pena concreta; as necessidades de prevenção geral, como limite mínimo necessário para tutelar o ordenamento jurídico, de modo a repor a confiança no efeito tutelar das normas violadas em relação aos valores e bens jurídicos que lhes subjazem; e as necessidades de prevenção especial manifestadas pelo arguido, que vão determinar, dentro daqueles limites, qual o quantum da pena necessário para o reintegrar socialmente, se for caso disso, e/ou ter sobre ele um efeito preventivo no cometimento de novos crimes.
Nessa conformidade, nos termos do nº 2, do art.º 71º, do Código Penal, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (na medida em que já foram valoradas pelo legislador ao fixar os limites abstratos da moldura legal), funcionem como atenuantes ou agravantes, circunstâncias essas que estão elencadas exemplificativamente no nº 2 do referido preceito legal.
No caso dos autos, tendo o arguido agido com dolo direto e dado o elevado grau de perigosidade abstrato patenteado pelo facto de exercer a condução no concreto local descrito na factualidade dada como provada (zona urbana), entendemos que o grau de censurabilidade da sua conduta é relevante.
No que tange às necessidades de prevenção geral, é elevada a necessidade de reafirmação da norma violada – antecipatória da proteção de bens jurídicos relevantes, nomeadamente dos demais utentes das vias públicas e equiparadas -, atentos os seguintes fatores:
i. Os elevados índices de sinistralidade automóvel que se registam no nosso país ano após ano, com consequências pessoais e materiais devastadoras (segundo o relatório de Junho de 2022 da ANSR, entre janeiro e junho de 2022 registaram-se 15.457 acidentes com vítimas, das quais 210 vítimas mortais, 1.120 feridos graves e 18.006 feridos leves, havendo um aumento da sinistralidade em todos os indicadores em comparação com o período homólogo de 2021, mas numa altura em que a circulação rodoviária observou uma quebra significativa devido às restrições impostas pela pandemia do COVID-19, podendo-se concluir que o aumento da sinistralidade acompanhou de perto o aumento da circulação rodoviária. Para além disso, o número de detenções por crime rodoviário aumentou 37,1% no período considerado – cfr. o respetivo relatório no sítio www.ansr.pt);
ii. Esta tipologia de crime é de prática frequente no meio.
Por conseguinte, são elevadas as necessidades de prevenção geral positiva e negativa, isto é, as necessidades de defesa do ordenamento jurídico.
O arguido é de modesta condição socioeconómica (tem o 9º ano de escolaridade e regista instabilidade laboral), estando social e familiarmente inserido.
A sua carta de condução havia caducado a 14.06.2016 pela prática, durante o regime probatório, de contraordenação, tendo sido emitida, entretanto uma licença de aprendizagem que estava válida à data dos factos.
A seu desfavor milita claramente o seu passado criminal:
- Por decisão transitada em julgado em 22.11.2012, no âmbito do processo n.º 523/11.6GTABF, foi condenado pela prática, em 06.06.2011, de crime de condução sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €6,00, extinta por pagamento em 22.08.2016;
- Por decisão transitada em julgado em 01.11.2016, no âmbito do processo n.º 2/16.5PJCSC, foi condenado pela prática, em 08.01.2016, de crime de consumo de estupefacientes, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €5,00, extinta por pagamento em 25.10.2016;
- Por decisão transitada em julgado em 16.10.2019, no âmbito do processo n.º 810/15.4PCCSC, foi condenado pela prática, em 28.06.2015, de crime de burla simples e um crime de passagem de moeda falsa, na pena de 10 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, extinta por pagamento em 02.12.2019;
- Por decisão transitada em julgado em 13.11.2020, no âmbito do processo n.º 110/20.8GELSB, foi condenado pela prática, em 13.06.2020, de crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 meses de prisão, suspensa por um ano, extinta por cumprimento em 13.11.2021.
Isto é, o arguido, não obstante já ter sido condenado duas vezes pela prática do mesmo crime, por decisões transitadas em julgado a 22.11.2012 e 13.11.2020, sendo que na última das quais foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, voltou a praticar o mesmo crime, sinal de que as anteriores condenações não surtiram o desejado efeito dissuasor.
São assim muito elevadas as necessidades de prevenção especial.
Ademais, dispõe o art.º 70º, do Código Penal, que «se ao crime foram aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», as quais estão enunciadas no art.º 40º, nº 1, do mesmo código.
Tendo presente sobretudo o que já se referiu a propósito das necessidades de prevenção especial – mas sem olvidar as relevantes necessidades de prevenção geral -, parece-nos claro que a opção pela pena de multa não se mostra de todo suficiente e adequada em ordem a salvaguardar as finalidades da punição tal como enunciadas no art.º 40º, nº 1, do Código Penal.
Opta-se assim pela imposição da pena de prisão.
Nessa conformidade, variando a moldura penal abstrata entre 1 mês e 2 anos de prisão, entendemos que é adequada a condenação do arguido na pena de 7 (sete) meses de prisão.
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Segundo M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, in Código Penal, Parte Geral e Especial, Almedina, 2014, págs. 298 a 300:
«1. A pena de prisão é aceite, como aliás decorre do Projecto, como pena principal para os casos mais graves, a que se recorrerá quando não se mostrarem adequadas as reacções penais não detentivas, devendo reduzir-se ao mínimo necessário, e havendo que harmonizar o mais possível a sua estrutura e regime com a recuperação dos delinquentes a que venha a ser aplicada.
Alude-se com frequência à necessidade da não dessocialização (“Vermeidung einer Entsozialisierung”), tendo em vista a vida futura dos condenados que não necessitam ou mesmo recusam as medidas de socialização (GERHARD SCHÄFER, 2001, p. 188). Quando a privação da liberdade for evitável, terá de se configurar a sua execução de tal forma que evite os possíveis efeitos dessocializadores (…).
2. As chamadas penas de substituição, isto é, as que o tribunal aplica em vez de uma pena principal – de prisão ou de multa – são tidas como mais favoráveis no capítulo da prevenção especial desde que não ponham em causa considerações preventivas gerais (de defesa do ordenamento jurídico).
3. As penas de substituição da pena de prisão de curta duração são uma consequência do princípio da humanidade das penas, no seio de uma política criminal orientada para os princípios do Estado de Direito. “Optando nítida e preferencialmente por censuras criminais que não impliquem a privação da liberdade, o legislador foi ao ponto de impor a regra de que a pena de prisão aplicada deve, em certas circunstâncias, ser substituída por outra reação criminal menos gravosa”, SIMAS SANTOS/LEAL-HENRIQUES, 2011, p. 182. Existe, aliás, “algum consenso quanto à inconveniência das penas curtas de prisão, inúteis para fins de reeducação (podendo, no entanto, em certas circunstâncias, ter interesse para os delinquentes que reajam bem a um efeito de choque, v.g., na delinquência económica e ecológica e nos estádios preliminares de consumo de droga), bem como das penas muito longas, que conduzem a estados de degenerescência psíquica e comportamental irreversível, JOSÉ ANTÓNIO VELOSO, 1999, P. 529; considerando-se um passo importante reagir contra elas, com a ressalva de razões imperiosas de prevenção geral, as ACTAS, 1995, P. 37 s.
(…)
4. No preâmbulo do DL 48/95, de 15-03, que aprovou o CP revisto, destaca-se, entre os propósitos da revisão, o de reorganizar o sistema global de penas para a pequena e média criminalidade com vista a permitir, por um lado, um adequado recurso às medidas alternativas às penas curtas de prisão, cujos efeitos criminógenos são pacificamente reconhecidos e, por outro, centrar esforços no combate à grande criminalidade. Afirma-se ainda que a pena de prisão, reação criminal por excelência, apenas deve lograr aplicação quando todas as restantes medidas se revelem inadequadas, face às necessidades de reprovação e prevenção. (…) O tribunal não é livre de aplicar ou deixar de aplicar a pena de substituição, pois não detém uma faculdade de substituir; antes, o que está consagrado na lei é um poder/dever ou um poder vinculado, tal como sucede com a suspensão da execução da pena, pelo que, uma vez verificados os respectivos pressupostos, o tribunal não pode deixar de aplicar a pena de substituição. (…)
Mais exatamente: o tribunal só poderá, fundadamente, ordenar a execução da prisão ou por razões preventivas, nomeadamente de socialização (estritamente ligadas à prevenção da reincidência: FIGUEIREDO DIAS, 1993, p. 363); ou na base em que a execução é imposta por exigências irrenunciáveis de tutela do ordenamento jurídico».
É o caso dos autos, razão pela qual se entende não ser adequada a imposição de pena de substituição não privativa da liberdade.
Senão vejamos.
i) Dispõe o art.º 45º, nº 1, do Código Penal, que «A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47º.»
Na imposição da pena de substituição a que alude o art.º 45º do Código Penal, evitando-se a execução de uma pena curta de prisão, não superior a 1 ano (pressuposto formal), exige-se um juízo de prognose favorável à sua aplicação, isto é, à reinserção do agente na sociedade de molde a que não cometa mais crimes (pressuposto material).
Note-se que a imposição desta pena de substituição não é contraditória com a opção ab initio pela pena de prisão, ao abrigo do disposto no art.º 70º do Código Penal, pois como muito nem assinalam M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, ob cit, pág. 300, «o juiz, que em termos gerais deve dar preferência à pena não privativa da liberdade (art.º 70º), pode ter, por considerações de adequação e suficiência das finalidades preventivas, que optar, em primeira linha, pela pena de prisão. Se esta não for, em concreto, fixada judicialmente em medida superior a um ano, pode, no momento seguinte, substituí-la por multa por multa nos termos do art.º 43/14(FIGUEREDO DIAS, 1993, p. 364). Parece paradoxal; deve, no entanto, entender-se que o art.º 70º reage contra as penas de prisão independentemente da sua duração, enquanto o art.º 43º visa reagir contra as penas de prisão não superiores a um ano, JORGE GONÇALVES, 2008, P. 5. Esta pena de multa passa a ser tratada como uma pena substitutiva de uma pena principal.»
Ora, no caso dos autos, cremos que não estão reunidos os pressupostos materiais conducentes à aplicação da pena de substituição em causa na medida que o arguido tem um relevante passado criminal pela mesma tipologia de crime, conforme acima enfatizamos, num contexto de relevantes necessidades de prevenção rodoviária, pelo que a reafirmação da norma violada e dos valores que lhe subjazem é premente.
Neste caso, verifica-se a necessidade da execução da pena de prisão, na medida que a sua execução é exigida pena necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes por banda do arguido.
ii) Por sua vez, dispõe o art.º 58º, nº 1, do Código Penal, que «Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição», ou seja, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Centra-se o conteúdo punitivo na perda, para o condenado, de parte substancial dos seus tempos livres, sem por isso o privar da liberdade e permitindo-lhe a manutenção do contacto com o seu ambiente e integração social.
Evita-se desse modo o cumprimento de penas curtas de prisão e promove a assimilação a censura do ato ilícito mediante a construção de um trabalho socialmente positivo, a favor da comunidade, assente na adesão do próprio arguido.
Assim, tem como pressuposto formal a imposição de pena de prisão não superior a 2 anos e a aceitação pelo condenado, tendo como pressuposto material um juízo de prognose que terá de ser favorável (acautelando-se as exigências mínimas de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico).
Não é de todo o caso dos autos, em face das necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir, por tudo quanto acima já se referiu e para o qual remetemos.
iii) Dispõe ainda o artigo 50º, n.º 1, do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, que «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», ou seja, conforme já referimos, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (cfr. art.º 40º, nº 1, do Código Penal).
Este preceito consagra um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá de decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos, configurando a mesma uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico.
Para este efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao momento da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a censura do facto e a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.
No caso em apreço, verifica-se que o pressuposto formal estabelecido por aquela disposição se encontra preenchido, dado que a pena imposta não é superior a 5 anos de prisão (é de 7 meses).
Todavia, salvo melhor opinião, não nos parece que estejam preenchidos os inerentes pressupostos materiais.
Com efeito, não temos qualquer razão para fundadamente acreditar que, desta vez, o arguido interiorizou solenemente o desvalor da conduta criminal pelo qual é condenado e que, no futuro, irá pautar o seu comportamento de modo diverso, não exercendo, designadamente, a condução de veículo rodoviário sem estar legalmente habilitado para o efeito (no presente, o arguido ainda não está habilitado para o exercício da condução).
Na verdade, nada de especial milita a favor do arguido, pois o contexto de vida à data dos factos é aquele que grosso modo se mantém na atualidade e o seu passado criminal, sobretudo pela mesma tipologia de crime, não milita a seu favor.
Acresce que, conforme já vimos, são relevantes as necessidades de prevenção geral, na vertente de reafirmação da norma jurídica violada e da reafirmação dos valores que lhe subjazem.
Destarte, entendemos que a pena de prisão deverá ser efetiva.
iv) Aqui chegados, cabe saber se essa pena imposta deverá ser cumprida pelo arguido em regime de permanência na habitação.
Dispõe o art.º 43º do Código Penal o seguinte:
«1. Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:
a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;
b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80º a 82º;
c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no nº 2 do artigo 45º.
2. O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas.
3. O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado.
4. O tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente:
a) Frequentar certos programas ou atividades;
b) Cumprir determinadas obrigações;
c) Sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido consentimento prévio do condenado;
d) Não exercer determinadas profissões;
e) Não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas;
f) Não ter em seu poder objetos especialmente aptos à prática de crimes.
5. Não se aplica a liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação.»
O regime de permanência na habitação é simultaneamente uma pena de substituição (porquanto pode ser imposta na sentença condenatória) e uma forma de execução da pena de prisão efetiva (porquanto pode ser aplicada na fase de execução da pena em consequência da revogação de pena não privativa da liberdade, nos termos da al. c), do nº 1 do art.º 43º do Código Penal) , introduzida no Código Penal pela Lei nº 59/2007, de 04.09, tendo tido como fonte a Lei de Reforma do Código Italiano de 05.12.2005.
Tem como pressupostos formais, no que para o caso interessa, a imposição de pena não superior a 2 anos de prisão, o consentimento do condenado e o consentimento das pessoas maiores de 16 anos que coabitem com aquele (cfr. o art.º 4º da Lei nº 33/2010, de 02.09).
Tem como pressuposto material a sua adequação às finalidades da execução da pena de prisão, cuja escolha é determinada exclusivamente por considerações de natureza preventiva especial, de forma a favorecer a reintegração social do condenado.
No caso dos autos todos os pressupostos formais suprarreferidos mostram-se preenchidos.
Por outro lado, salvo melhor opinião, parece-nos que os inerentes pressupostos materiais se mostram preenchidos na medida em que tal regime é adequado ao caso dos autos porquanto, se por um lado permite a reafirmação da norma violada e dos valores que lhe subjazem, por outro, o não cumprimento da pena no EP desta pena de curta duração não teria o efeito pernicioso e dissocializador que muitas vezes lhe está associado, permitindo-se assim ao arguido manter a sua inserção familiar e também continuar a frequência das aulas no âmbito da licença de aprendizagem que possui.
Nesta conformidade, ao abrigo do disposto no art.º 43º, nºs 1, al. a), 2 e 3, do Código Penal, determina-se que o arguido cumpra a pena de prisão imposta em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, a executar de acordo com o estatuído na Lei nº 33/2010, de 02.09., concedendo-se autorização para se ausentar da habitação em ordem a, se for caso disso, continuar frequentar a formação no âmbito da licença de aprendizagem que possui.
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III – Das custas
Dispõe o art.º 513º do CPP o seguinte:
«1. Só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1ª instância e decaimento total em qualquer recurso.
2. O arguido é condenado em uma só taxa de justiça, ainda que responda por vários crimes, desde que sejam julgados em um só processo.
3. A condenação em taxa de justiça é sempre individual e o respetivo quantitativo é fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais.
4. (…)».
Assim, tendo o arguido decaído totalmente no presente recurso interposto pelo MP (a que respondeu), deverá ser condenado no pagamento de taxa de justiça nos termos do art.º 8º, nº 9, do RCP e Tabela III a ele anexa.
Nessa conformidade, uma vez que as questões suscitadas não são especialmente complexas, variando a taxa de justiça entre 3 e 6 UC, entendemos adequado fixá-la em 3 (três) UC.
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DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes desembargadores desta 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, pelo que, consequentemente:
a. Revogam a sentença recorrida;
b. Condenam o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, nºs 1 e 2, do DL nº 2/98, de 03.01, na pena de 7 (sete) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, autorizando-se a sua ausência da habitação no âmbito das atividades formativas respeitantes à licença de aprendizagem para obtenção de carta de condução (art.º 43º, nºs 1, al. a), 2 e 3, do Código Penal, e Lei nº 33/2010, de 02.09).
*
Custas pelo arguido, com 3 (três) UC de taxa de justiça (cfr. o art.º 513º, nºs 1 e 3, do CPP, e o art.º 8º, nº 9, do RCP, em conjugação com a tabela III anexa).
*
Registe e notifique (art.º 425º, nºs 3 e 6, do CPP).
*
Lisboa, 07 de março de 2024.
(Texto processado por computador, composto e revisto pelo 1º signatário)
Os Juízes Desembargadores,
José Castro (relator)
Nuno Matos (1º adjunto)
Maria Ângela Reguengo da Luz (2ª adjunta)
_______________________________________________________
1. Cfr. o art.º 1º, als. v) e x), do Código da Estrada.
2. Cfr. os artgs. 121º, e ss. do Código da Estrada.
3. Cfr. os artgs 105º e 106º, do Código da Estrada.
4. Atual art.º 45º, nº 1.