Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4237/17.5T8VFX.1.L1-4
Relator: MARIA LUZIA CARVALHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
REVISÃO DA INCAPACIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
IPATH
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: 1 – Num incidente de revisão da incapacidade o que se impõe ao tribunal decidir é se se verificou o agravamento das sequelas anteriormente fixadas na sentença e em caso afirmativo determinar qual o grau e natureza da incapacidade resultante de tal agravamento e fixar as prestações devidas a partir do agravamento.
2 – O tribunal só terá de fundamentar o motivo pelo qual entende não ser de modificar a natureza da incapacidade fixada na sentença, nomeadamente de IPP para IPATH, se alguma das partes suscitar a questão, se, não tendo a questão sido suscitada pelas partes, algum dos srs. peritos médicos considerar ser de atribuir IPATH e o tribunal discordar, ou se houver outros elementos nos autos dos quais resulte estar o sinistrado afetado de IPATH e o tribunal discordar.
3 – Não se verificando qualquer uma das situações referidas, não há nulidade da decisão final do incidente por omissão de pronúncia se o tribunal, de forma sustentada nos elementos clínicos e nos laudos periciais, sendo estes fundamentados, decidir sobre a existência de agravamento das sequelas que foram causa da IPP anteriormente fixada na sentença e, em caso afirmativo, determinar qual o coeficiente da incapacidade resultante de tal agravamento, fixando as prestações devidas a partir do agravamento.

(sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 4.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
AA deduziu incidente de revisão da incapacidade em 26/10/2020 nos autos de acidente de trabalho, em que é sinistrado, sendo entidades responsáveis Liberty Seguros, Compañia de Seguros e Reaseguros, SA – Sucursal em Portugal e B- Transportes de Mercadorias, Lda, invocando que o seu estado de saúde se agravou e diminuiu a sua capacidade para o trabalho.
Por sentença de 03/06/2020, havia sido reconhecida ao sinistrado uma IPP de 4,5% (3% x 1,5) desde 09/04/2019, por sequelas emergentes de acidente de trabalho ocorrido em 24/03/2017.
Foi realizado exame singular, no qual o sr. Perito médico concluiu que o sinistrado se encontrava afetado de IPP de 6% desde 26/10/2020, com enquadramento no Cap. 2.2.b) da TNI, tendo igualmente fixado períodos de incapacidade temporária.
A seguradora requereu a realização de junta médica formulando quesitos, com vista a determinação das sequelas de que o sinistrado se encontra afetado, do grau de desvalorização que lhes corresponde e dos períodos de incapacidade temporária.
Iniciada a junta médica em 08/11/2021, os srs. peritos médicos que intervieram em representação do tribunal e do sinistrado, com a discordância do perito que interveio em representação da seguradora, consideraram que devia ser solicitado exame pericial de cardiologia para estabelecer o eventual nexo de causalidade com as “queixas cardiorrespiratórias” e o acidente com encadeamento clínico evolutivo pós-operatório e avaliar ou não a existência de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH).
Foi determinada a realização de exame de cardiologia para a finalidade indicada pela junta médica e para resposta aos seguintes quesitos apresentados pelo sinistrado:
«1- Quais as lesões/sequelas resultantes do acidente de trabalho ocorrido em 24.03.2017, nomeadamente no âmbito do traumatismo torácico?
2- Existiram complicações no pós-operatório e necessidade de nova intervenção cirúrgica?
Em caso positivo, quais?
3- Estas complicações resultaram no desenvolvimento/agravamento da função cardiorrespiratória?
4- Antes do acidente o Sinistrado tinha algum histórico e/ou queixa referente à função cardiorrespiratória?
5- As consequências derivadas do acidente de trabalho revelaram compromisso da Função Sistólica global do ventrículo direito por hipocinésia da parede livre?
6- Os sintomas/queixas sofridos pelo Sinistrado têm impacto na sua actividade profissional, nomeadamente na condução de veículos e transporte manual de mercadorias, uma vez que demandam grandes esforços pelo Sinistrado?
7- Há nexo causal entre o acidente de trabalho sofrido pelo Sinistrado e as sequelas da função cardiorrespiratória?
8- Das lesões sofridas pelo Sinistrado há limitação no exercício de sua actividade profissional?
9- De tais sequelas determinam a incapacidade permanente para o trabalho habitual?».
Por despacho de 23/06/2022, a Mm.ª Juiz fixou o objeto do exame, reiterando o que já havia anteriormente decidido e reproduzindo os quesitos formulados pelo sinistrado.
Foi realizado o exame de cardiologia, no âmbito do qual o sinistrado realizou os seguintes exames complementares: ECG, Ecocardiograma e Doppler cardíaco, na sequência do que o sr. Perito médico concluiu o seguinte:
«1. Ausência, atualmente, de patologia cardíaca que seja responsável pelas queixas apresentadas pelo sinistrado.
2. O derrame pericárdico, com tamponamento cardíaco, diagnosticado nos dias seguintes ao acidente de trabalho poderá ser, provavelmente, consequência do traumatismo torácico e/ou da cirurgia torácica realizada. No entanto, esta complicação foi devidamente resolvida e não deixou sequelas a nível do coração. Os exames complementares efetuados no dia da consulta, estão dentro dos parâmetros normais e no Ecocardiograma não existem sinais sugestivos de recorrência de derrame pericárdico, nem de compromisso da função cardíaca.
3. As queixas de dor torácica referidas pelo sinistrado, não estão relacionadas com patologia cardíaca, devendo ser investigadas outras causas para a sua génese.
4. Atendendo à história de traumatismo torácico prévio que obrigou a cirurgia corretiva com colocação de próteses, às caraterísticas da dor torácica, à sua relação com o esforço e com a atividade profissional (com levantar ou carregar pesos), não se pode excluir uma relação entre o acidente ocorrido e as queixas atuais. Contudo, o esclarecimento de tal relação ultrapassa o âmbito deste exame médico-pericial de cardiologia.»
O mesmo perito, após solicitação do tribunal, respondeu aos quesitos formulados para exame de cardiologia nos seguintes termos:
«1º O acidente de trabalho ocorrido em 24/03/2017, com traumatismo torácico, provocou no lesado fratura do esterno, o que obrigou a cirurgia torácica (que não foi realizada na nossa Instituição), com implantação de próteses.
2º No pós-operatório, há a referir o aparecimento de derrame pericárdico (provavelmente relacionado com o traumatismo e/ou com a cirurgia torácica), acompanhado de compromisso hemodinâmico e que motivou o internamento do lesado no Serviço de Urgência do Hospital de X.
3º A situação, acima referida, foi pronta e eficazmente resolvida através de uma drenagem pericárdica percutânea, sob anestesia local, realizada no Serviço de Cardiologia, pelo médico cardiologista de urgência.
4º Na avaliação clínica efetuada na consulta de cardiologia, e de acordo com as respostas do lesado, não havia, previamente, história de patologia cardíaca.
5º Os exames complementares, nomeadamente o eletrocardiograma e o ecocardiograma, realizados na altura da consulta de avaliação, não revelaram alterações. No ecocardiograma não foram encontradas alterações segmentares e a função ventricular esquerda estava dentro da normalidade.
6ºAs estruturas anatómicas que fazem parte do tórax são várias: músculo, ossos, nervos, coração, pulmões, entre outras. Lesões em qualquer umas destas estruturas podem estar associadas a vários sintomas, nomeadamente dor, desconforto, dispneia, cansaço e incapacidade funcional. Estes sintomas não são exclusivos da doença cardíaca. A ausência de patologia cardíaca, não significa que o lesado não possa ter as queixas referidas. Como referido anteriormente, a decisão da incapacidade para a atividade profissional do Senhor AA carece de avaliação multidisciplinar e ultrapassa o âmbito da cardiologia.
7º A relação temporal entre o traumatismo torácico, a cirurgia efetuada e o aparecimento das queixas referidas pelo lesado, permite estabelecer, provavelmente, uma relação causa-efeito entre o acidente e as queixas.
8º No que diz respeito à pronúncia relativa à limitação para a atividade profissional e à determinação da incapacidade para o trabalho, julgo ter respondido na alínea 6º.».
Concluída a junta médica, em 17/04/2023, os srs. peritos, pronunciaram-se nos seguintes termos:
«Em continuação de junta médica de fls. 279 dos autos, na qual foi solicitado exame pericial de cardiologia que consta de fls. 287 e 310 dos mesmos, em particular na descrição do ponto 4, os subjectivos dolorosos que são referidos como queixas são consequência de dor a nível external.
Resposta aos quesitos de fls. 262
1 - Dor a nível torácico na região external. 
2 - Segundo os peritos do tribunal e do sinistrado vide o quadro anexo. Verifica-se agravamento da dor, que justifica o aumento da IPP. Segundo o perito da companhia seguradora uma vez que não se encontram razões objectivas para alterar a IPP proposta em junta médica anterior pela mesma sequela, que tem cartácter subjectivo, mantemos a IPP ali proposta de 3 x 1,5.
3, 4 e 5 - Por unanimidade a resposta aos quesitos 3,4 e 5 a resposta é não.
Por maioria, o agravamento sintomatológico é expectável atendendo à lesão, ao tratamento cirúrgico, ao segmento anatómico e ao desgaste fisiopatológico da faixa etária, não implicando, contudo, I.T.A.»
Por maioria (com discordância do perito que interveio em representação da seguradora), foi considerado existir agravamento e que é de 6% (4% x 1,5), com enquadramento no Cap. I, 2.2., b) a Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de que o sinistrado está afetado. Por unanimidade foi considerado não haver lugar à fixação de qualquer período de Incapacidade Temporária Absoluta (ITA).
Notificado do resultado da junta médica, o sinistrado requereu que os peritos respondessem aos quesitos que apresentou para o exame de cardiologia, o que foi indeferido por despacho de 27/07/2023, o qual transitou em julgado.
Foi proferida decisão final que concluiu pela procedência do incidente, fixando ao sinistrado uma IPP de 6% desde 26/10/2020, condenando as responsáveis, seguradora e empregadora, no pagamento do capital de remição do valor correspondente à pensão resultante do agravamento deduzido da pensão anteriormente fixada.
O sinistrado interpôs o presente recurso, arguindo a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, pretendendo que seja ordenada a reabertura da Junta Médica, a fim de serem respondidos os quesitos do tribunal e do Sinistrado pelos Senhores Peritos.
Formulou as seguintes conclusões:
«A) Foi instaurado o incidente de revisão da incapacidade no dia 29 de outubro de 2020 em razão do agravamento do estado de saúde do Recorrente, resultando no decréscimo de sua capacidade para o trabalho;
B) Entendeu o tribunal de 1.ª instância julgar procedente o referido incidente, sendo determinada a fixação da incapacidade permanente parcial de 6%, desde 26-10-2020, e, condenado as RR. ao pagamento do capital de remição acrescido de juros de mora calculados à taxa legal desde a data de vencimento e até integral pagamento;
C) Não obstante, entende o Recorrente, salvo o devido respeito, que a douta sentença está inquinada de vícios, por omissão de pronúncia, razão pela qual deverá ser declarada a sua nulidade;
D) Isso porque no dia 05 de janeiro de 2021 realizou-se o exame médico singular, sendo atribuído ao Sinistrado a data da consolidação médico-legal em 26-10-2020, IPP de 3% e os períodos de incapacidade temporária absoluta desde 08-01-2020 a 06-02-2020, 08-03-2020 a 06-04-2020, 04-10-2020 a 02-11-2020;
E) Inconformada com as conclusões da perícia singular, a Seguradora requereu a realização de exame por junta médica, tendo apresentado os seus quesitos;
F) Foi designada a realização de Junta Médica, contudo não pode ser realizado o exame em razão da ausência do Ilustre Médico Perito da Seguradora;
G) No dia 08 de novembro de 2021 pelas 10:30 horas foi elaborado o Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito do Trabalho, sendo solicitado, por maioria dos Médicos Peritos, a realização de exame pericial de cardiologia para aferir a existência de nexo de causalidade entre as queixas apresentadas pelo Sinistrado e o acidente de trabalho, bem como avaliar possível (ou não) IPATH;
H) Notificado do resultado do exame por junta médica, a 22 de dezembro de 2021, o Recorrente requereu a junção da documentação médica e apresentou novo quesitos, face a realização de novo exame pericial de cardiologia particularmente “(...) 7- Há nexo causal entre o acidente de trabalho sofrido pelo Sinistrado e as sequelas da função cardiorrespiratória? 8- Das lesões sofridas pelo Sinistrado há limitação no exercício de sua actividade profissional? 9- De tais sequelas determinam a incapacidade permanente para o trabalho habitual?
I) O tribunal a quo proferiu despacho a determinar a realização do exame pericial e ordenou que fossem dadas respostas às finalidades indicadas pela Junta Médica e aos quesitos do Sinistrado (fl. 282) de 22-12-2021;
J) Todavia, pese embora a insistência a solicitar a marcação do exame médico em referência, somente no dia 15-06-2022 foi rececionada resposta do Hospital de X a informar que foi realizada a consulta médica e realizado exames complementares a 03-06-2022;
K) Não obstante, foi determinado pelo tribunal recorrido que o Hospital de X procedesse esclarecimentos acerca do exame pericial de cardiologia, nomeadamente com resposta às questões colocadas pela Junta Médica e Sinistrado, devendo ainda comunicar ao tribunal a nomeação do perito médico e data da realização do exame;
 L) No mesmo despacho, ordenou que fossem respondidos pelo Ilustre Médico Perito os quesitos descritos no despacho, idênticos aos formulados pelo Recorrente;
M) No dia 28 de junho de 2022 foi realizado o exame médico de cardiologia e elaborado o respetivo relatório, sem indicação do nexo de causalidade, existência do IPATH ou resposta aos quesitos apresentados pelo Sinistrado e tribunal;
N) Neste sentido, o Sinistrado apresentou requerimento a solicitar esclarecimentos pelo Ilustre Médico Perito, uma vez que não foram respondidos nenhum dos quesitos formulados e tão-pouco respondida a solicitação enviada pela Junta Médica, tendo o tribunal a quo ordenado que fossem respondidos os quesitos formulados no despacho de 23-06-2022;
O) Face a determinação do tribunal, foi elaborado novo relatório pericial, contendo as respostas aos quesitos do tribunal e do Sinistrado, salvo no que toca às questões formulados sobre o IPATH, designadamente os quesitos n.ºs 8 e 9;
P) Sucede que entendeu o Ilustre Perito que a resposta aos quesitos n.ºs 8 e 9 ultrapassa o âmbito da cardiologia, sendo necessária uma avaliação multidisciplinar;
Q) Porquanto não houve pronúncia da Junta Médica acerca do IPAHT;
R) De facto, o exame por junta médica realizado a 17-04-2023 respondeu aos quesitos formulados pela Seguradora, não tendo se pronunciado sobre os apresentados pelo Sinistrado e tribunal, tão-pouco avaliado o que solicitou no exame realizado no dia 08-112021, ou seja, “(.■■) avaliar da possível ou não IPATH-,
S) Nesta perspectiva, o Recorrente solicitou esclarecimentos pela Junta Médica, designadamente que respondessem aos quesitos formulados pelo mesmo, uma vez que não foram respondidos nenhum dos quesitos formulados e tão-pouco respondida a solicitação enviada pela Junta Médica, sendo proferido despacho a 28 de junho de 2023 a indeferir o pedido, sob o argumento que todas as respostas foram consideradas pela Junta Médica, o que de facto não corresponde com o ocorrido;
T) A Junta Médica não se pronunciou sobre o Sinistrado ter ou não um possível IPATH, questão esta suscitada na primeira Junta Médica realizada no dia 08 de novembro de 2021 e expressamente descrita no primeiro Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito do Trabalho;
 U) Portanto, o exame de cardiologia não respondeu sobre a existência (ou não) do IPATH, tão-pouco o tribunal recorrido conheceu desta questão;
V) A incapacidade para o exercício da actividade habitual é uma questão que foi suscitada pelo Sinistrado e pela Junta Médica no seu primeiro relatório, razão pela qual, salvo melhor opinião, o tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questão que deveria apreciar
W) Portanto, sempre com o devido respeito, deverá ser declarada nula a decisão em crise, face a violação da alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, uma vez que não foi considerado pelo tribunal a quo a questão concretamente colocada, qual seja, a existência de IPATH;
X) Adicionalmente, é importante referir que a omissão da sentença resulta na afronta ao dever assinalado no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, designadamente o referente à resolução por parte do juiz de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras;
Y) Assim, deve ser julgada procedente a nulidade arguida, e que se ordene a reabertura da Junta Médica, a fim de serem respondidos os quesitos do tribunal e do Sinistrado pelos Senhores Peritos.»
Nem a seguradora, nem a empregadora apresentaram contra-alegações.
Recebidos os autos neste tribunal, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de que «o recurso do sinistrado merece provimento devendo a sentença ser revogada e substituída por Acórdão que determine a continuação do exame por Junta Médica para respostas aos quesitos relacionados com a questão da eventual IPATH do sinistrado.»
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Delimitação do objeto do recurso
Resulta das disposições conjugadas dos arts. 639.º, n.º 1, 635.º e 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC), aplicáveis por força do disposto pelo art.º 1.º, n.ºs 1 e 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho (doravante CPT), que as conclusões delimitam objetivamente o âmbito do recurso, no sentido de que o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões  suscitadas pelas partes (delimitação positiva) e, com exceção das questões do conhecimento oficioso, apenas sobre essas questões (delimitação negativa).
Assim, são as seguintes as questões a decidir:
1 – nulidade da decisão final por omissão de pronúncia.
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Fundamentação de facto
Na decisão final do incidente foram considerados provados os seguintes factos:
«1. No dia 24/03/2017, pelas 11h00, em Lisboa, o sinistrado, quando prestava o seu trabalho de motorista de pesados para B-TRANSPORTES DE MERCADORIAS, LDA., sofreu uma queda, de uma altura de 1,80 metros, do cimo de uma plataforma elevatória, do que lhe resultou traumatismo crânio-encefálico e traumatismo torácico.
2. Com referência a essa data, o sinistrado auferia a retribuição global anual de €11.692,50.
3. À data referida em 1, a empregadora tinha a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a então designada “Liberty Seguros, SA”, actual LIBERTY SEGUROS, COMPANIA DE SEGUROS E REASEGUROS, SA-SUCURSAL EM PORTUGAL, mediante contrato de seguro, pela retribuição anual de €10.050,00.
4. Em consequência do referido em 1 a 3, por sentença de 03/06/2020 foi fixada ao sinistrado uma IPP de 4,50% (3% x 1,5) desde 09/04/2019 e as entidades responsáveis a pagar o capital de remição de uma pensão anual de €368,31, sendo a seguradora responsável pela quota-parte de €316,57 e a empregadora pela quota- parte de €51,74, tudo acrescido de juros, valores que foram pagos.
5. O sinistrado nasceu em 20/01/1963.
6. Actualmente o sinistrado apresenta, como sequelas, dor a nível toráxico na região external.»
Relevam ainda os factos resultantes do relatório supra, em particular, o teor dos quesitos formulados pelas partes, o teor dos relatórios de exame singular e da especialidade de cardiologia, dos autos de junta médica, o requerimento apresentado pelo sinistrado na sequência da notificação do auto da conclusão da junta médica e do despacho que sobre ele recaiu.
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Apreciação
Como decorre do supra exposto a única questão colocada a este tribunal é se a decisão final do incidente de revisão proferida nos autos é nula por omissão de pronúncia, devendo ser determinada a reabertura da junta médica para resposta aos quesitos apresentados pelo sinistrado.
Nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d) a sentença é nula quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.
Sobre esta questão refere Lebre de Freitas  (Código de Processo Civil Anotado, volume II): «Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe estão submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe caiba conhecer (art.º 660º/2), o não conhecimento do pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade (…)”.
Com efeito, decorre do art.º 608º, n.º 2 do Código de Processo Civil que na sentença o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se senão dessas questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras questões.
Sendo assim, importa ter em atenção que o dever de decidir se impõe apenas quanto a questões suscitadas e quanto a questões do conhecimento oficioso, logo a omissão de pronúncia, geradora de nulidade da sentença, consubstancia-se no incumprimento do dever de decidir aquelas questões.
Nessa medida, no  caso dos autos, o que se impunha ao tribunal era decidir se se verificou o agravamento das sequelas que haviam sido causa da IPP anteriormente fixada na sentença, em caso afirmativo determinar qual o grau e natureza da incapacidade resultante de tal agravamento e fixar as prestações devidas a partir do agravamento.
O sinistrado assenta a sua pretensão recursória no facto de o exame de cardiologia e a junta médica não se terem pronunciado sobre se o mesmo estava ou não afetado de IPATH, em decorrência do que a sentença não conheceu de tal questão.
Do nosso ponto de vista não existe qualquer motivo para a procedência de tal pretensão.
De facto, o sinistrado no requerimento inicial do incidente não invocou que o agravamento das sequelas determinava que estivesse afetado de IPATH. Notificado do exame de revisão que considerou que a IPP devia ser modificada em consequência do agravamento, conformou-se com o mesmo, não tendo requerido a realização de junta médica ao abrigo do disposto pelo art.º 145.º, n.º 5 do CPT.
Foi a seguradora que requereu a realização de junta médica ao abrigo daquela disposição legal e também não suscitou tal questão.
A dúvida sobre se haveria lugar ou não à fixação de IPATH foi suscitada na primeira reunião da junta médica, na qual os peritos que intervieram em representação do sinistrado e do tribunal, entenderam que, a conclusão da junta médica dependeria do esclarecimento pela especialidade de cardiologia sobre a existência de sequelas desse foro eventualmente condicionantes de IPATH.
Realizado o exame pericial de cardiologia, ao contrário do alegado pelo sinistrado como pressuposto do recurso, o sr. Perito médico concluiu pela ausência de patologia cardíaca causal das queixas dolorosas do sinistrado e pela inexistência de sequelas causadas pelo derrame pericárdico, concluindo, em consonância, que não havendo sequelas, a questão da incapacidade para a atividade profissional do sinistrado (a colocar-se) ultrapassava o âmbito da cardiologia. Assim, do ponto de vista de cardiologia, a questão da IPATH ficou prejudicada pela ausência de sequelas. E era apenas do ponto de vista de cardiologia que a questão da IPATH se colocava.
Estas conclusões foram devidamente valoradas pela junta médica que, face ao esclarecimento obtido, considerou, por unanimidade que o sinistrado estava afetado de IPP, ainda que o perito que representou a seguradora tenha considerado não existir agravamento.
De facto, o que resulta dos autos é que, no entendimento dos srs. peritos médicos que intervieram na junta médica em representação do sinistrado e do tribunal, só haveria lugar à atribuição de IPATH se houvesse sequelas do foro cardiológico que o justificassem, o que não veio a ser confirmado pelo exame da especialidade.
Conclui ainda a junta médica, por maioria, que ocorreu agravamento das sequelas anteriormente consideradas e que o coeficiente da IPP era de 6%.
O mesmo fez o tribunal “a quo”, ao referir na fundamentação da sentença que «(…) face aos elementos constantes dos autos, aos factos considerados provados e, em especial, ao parecer maioritário emitido em junta médica, com base no exame pericial de cardiologia e demais elementos dos autos, que se encontra fundamentado em moldes que não são concretamente postos em causa pelo parecer minoritário (o perito não emitiu parecer no sentido da inexistência de agravamento dos subjectivos dolorosos), o tribunal entende aderir ao parecer maioritário, reconhecendo o agravamento da situação clínica do sinistrado nos termos considerados pela junta médica, aderindo igualmente ao enquadramento na TNI e à IPP concretamente atribuída dentro do Intervalo ali previsto.» - sublinhados nossos.
Assim, o tribunal concluiu ter havido agravamento e fixou a natureza e o coeficiente da incapacidade dele resultante, pelo que nenhuma questão ficou por resolver, de entre as suscitadas pelas partes ou que fosse do seu conhecimento oficioso.
Diga-se que, ao contrário do que parece entender o sinistrado o tribunal, na decisão final, não tinha que se pronunciar sobre o motivo pelo qual entendeu fixar uma IPP e não IPATH, já que nem o laudo pericial maioritário, considerou que se verificasse uma incapacidade dessa natureza, depois de realizadas as diligências consideradas necessárias, nem qualquer outro dos elementos constantes dos autos, nomeadamente o exame de revisão singular realizado no INML apontou nesse sentido.
Na situação em apreço, não tendo qualquer das partes invocado que o sinistrado, em consequência do agravamento das sequelas, se encontrava afetado de IPATH, tal obrigação de fundamentação (que de resto nem se confunde com a obrigação de pronúncia) só se imporia ao tribunal se algum dos srs. peritos médicos, tivesse considerado ser de atribuir IPATH e o tribunal discordasse (como não deixou de fazer relativamente à posição dissonante do perito que interveio em representação da seguradora que considerou não existir agravamento das sequelas) ou se houvesse outros elementos nos autos dos quais resultasse estar o sinistrado afetado de IPATH e o tribunal deles discordasse, o que não se verificou.
Acresce, com particular relevo, que a junta médica se pronunciou sobre todas as questões que lhe foram colocadas e que se consubstanciavam nos quesitos formulados pela seguradora quando requereu a realização da junta médica de revisão e não, como pretende o sinistrado, também nos quesitos pelo mesmo formulados para o exame da especialidade de cardiologia.
Na verdade, o sinistrado, notificado do auto da junta médica, apresentou reclamação, requerendo que os peritos respondessem aos quesitos que apresentou para o exame de cardiologia.
Tal requerimento foi, contudo, indeferido por despacho de 27/07/2023, pelo que, não só o tribunal se pronunciou sobre a questão do objeto da junta médica, que o sinistrado agora vem invocar como fundamento do recurso, como nesse despacho se esgotou o poder jurisdicional do tribunal relativamente à questão, nos termos do art.º 613.º, n.º 1 e 3 do CPC.
De resto, desse despacho não foi apresentada reclamação ou interposto recurso, pelo que o mesmo já havia transitado em julgado à data da prolação de decisão final do incidente, não podendo o sinistrado fazer, agora, nesta sede, tábua rasa da decisão já proferida e das implicações resultantes do facto de a mesma se ter tornado definitiva, muito menos invocar que o tribunal omitiu pronúncia causal da nulidade da decisão.
Conclui-se, pois, que, face aos elementos constantes dos autos, designadamente face ao relatório do exame da especialidade de cardiologia e ao auto de junta médica, nos quais os srs. peritos médicos responderam a todas as questões que lhe foram colocadas de forma devidamente fundamentada, não suscitando quaisquer dúvidas, o tribunal tinha todas as condições para decidir de forma cabal e igualmente fundamentada sobre o agravamento, a natureza e grau da incapacidade, tendo-se pronunciado sobre todas as questões que se lhe impunha decidir.
Não se existe, pois, fundamento para a procedência do recurso.
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Decisão
Por todo o exposto acorda-se julgar o recurso totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra a decisão do tribunal “a quo”.
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Custas pelo sinistrado, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.
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Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão.
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Notifique.
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Lisboa, 20/03/2024
Maria Luzia Carvalho
Paula Pott
Maria José Costa Pinto