Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1019/19.3TELSB.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: LEITURA PERMITIDA
DECLARAÇÕES PERANTE JUIZ
DECLARAÇÕES PERANTE O MINISTÉRIO PÚBLICO
VALOR PROBATÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: - O regime contido no artigo 141º/4-b) é exclusivamente aplicável às declarações prestadas perante um Juiz, em primeiro interrogatório de detido. Não tem aplicação às declarações prestadas durante o inquérito ao Ministério Público.
- Não tendo sido solicitada, no decurso da audiência, a reprodução ou leitura das referidas declarações, fica prejudicada a possibilidade de elas serem consideradas para fixação do provado, face ao princípio da plenitude de produção de prova a que se refere o artigo 355º/CPP, e sob pena de valoração de prova proibida.
- Caso o arguido entendesse que estavam a ser omitidas diligências essenciais para a descoberta da verdade, cabia-lhe requerer a leitura das declarações, ao abrigo do disposto no artigo 357º/1-a), do CPP, no próprio acto, o que não fez, pelo que mesmo que se pudesse considerar a omissão como comissão de nulidade, nos termos do artigo 120º/2-d), final, do CPP, a nulidade estaria sanada nos termos do nº 3-a) do mesmo dispositivo.
- Tendo o Tribunal considerado verdadeiros os factos directamente adquiridos, por via da prova produzida em audiência, não tem fundamento a alegação feita pelo arguido, de que o provado se ancorou em alegadas presunções, pois que o julgador se limitou a considerar provados os factos descritos em audiência, sendo que presunções são «ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido» - artigo 349.º do Código Civil (CC) - e não o resultado de prova directa sobre determinada ocorrência.
- O princípio processual do in dubio pro reo tem apenas por reporte a forma como a prova foi adquirida, num concreto procedimento, pelo Tribunal. Isto, porque é uma regra de apreciação de prova pelo Tribunal, e só do Tribunal, que funciona exclusivamente na falta de uma convicção para além da dúvida razoável, sobre os factos a cuja apreciação está adstrito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
I – Relatório:
Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, CC, nascido a 23.06.1980, natural da Arábia Saudita, portador de passaporte emitido pelo ..., foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217º/1, 218º/2, alínea a) e 202.º, alínea b), do Código Penal (CP), na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, ficando tal suspensão subordinada ao pagamento, por parte do arguido, de 50,000€ a abater na indemnização fixada, a pagar ao demandante BB, no valor de 190.475,00€, a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora à taxa legal em vigor de 4%, contados desde a data da notificação do arguido para apresentação de contestação, até integral pagamento, e de 2.000,00€, a título de danos não patrimoniais.
Mais foi determinada a entrega ao demandante do valor total apreendido nos autos, inferior em 11.704,87€ do valor total da indemnização fixada, sem contabilizar os juros devidos.
O arguido não apresentou contestação nem rol de testemunhas.
Veio o arguido recorrer da sentença.
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II- Fundamentação de facto:
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:
1. BB é um cidadão natural do Estado do Kuwait, onde reside e tem domicílio fiscal, sendo empresário.
2. O arguido CC é um empresário saudita, que reside na Arábia Saudita, desenvolvendo ainda atividade empresarial em Portugal.
3. O arguido CC é titular da conta bancária de depósitos à ordem sobre o ActivoBank a que corresponde o n.º ..., a qual se encontra domiciliada junto do balcão do ... e que foi aberta a ........2018 (“Conta do ActivoBank”).
4. O arguido CC é ainda titular da conta bancária de depósitos à ordem sobre o Banco Millennium BCP a que corresponde o n.º ..., a qual se encontra domiciliada junto do balcão da ..., em Lisboa e que foi aberta a 01.07.2019 (“Conta do BCP”).
5. Por seu turno, BB é titular da conta bancária n.º ..., domiciliada junto do Warba Bank (“Conta do Kuwait”).
6. Em data não concretamente apurada, no final do ano de 2018, BB decidiu adquirir um imóvel de férias, na área de Lisboa, em Portugal.
7. Após realizar pesquisas na internet, BB encontrou um anúncio na internet em que o arguido CC anunciava investimentos na área imobiliária em Portugal e entrou em contracto com aquele.
8. Nesse momento, o arguido CC formulou um plano que lhe permitiria obter proveitos económicos, a que sabia não ter direito, à custa de BB, e que passava por aproveitar-se do facto de ser um empresário com ligações a Portugal,
9. E, bem assim, do facto de BB não conhecer Portugal, os respetivos usos e costumes, não falando a língua portuguesa, encontrando-se limitado, face à sua nacionalidade e local onde se encontrava, de contestar o que lhe fosse dito, bem como de solicitar ajuda a terceiros.
10. Fez BB crer que seria conhecedor do mercado imobiliário em Portugal e que teria conhecimento de oportunidades de investimento imobiliário, com uma boa relação qualidade-preço.
11. Na execução do referido plano, o arguido CC decidiu que iria solicitar a BB a entrega de quantias monetárias avultadas por conta da aquisição de um imóvel, tendo em vista o pagamento do sinal relativo à aquisição do mesmo, das quais se apoderaria.
12. Assim, em data não apurada, mas, seguramente, anterior e próxima do dia 23.07.2019, o arguido CC apresentou a BB proposta de investimento para a aquisição de um imóvel na cidade de Lisboa.
13. Nessa sequência, o arguido CC transmitiu a BB que este deveria proceder à entrega de EUR 190.000,00 por transferência bancária para a conta do ActivoBank de que o arguido era titular,
14. A fim de que o arguido a entregasse a título de sinal ao respetivo vendedor.
15. Convicto de que o arguido CC iria diligenciar pela entrega do montante respeitante ao sinal ao vendedor, no dia 23.07.2019, BB ordenou a transferência internacional de EUR 190.475,00 da Conta do Kuwait para a conta do ActivoBank.
16. Sendo EUR 190.000,00 pedidos directamente pelo arguido e EUR 475,00 entregues por BB para fazer faze a alguma despesa burocrática necessária na sequência do pagamento do sinal.
17. No dia 23.07.2019, o arguido CC recebeu na conta do ActivoBank a transferência de BB.
18. No dia ........2019 BB viajou para Lisboa, onde se encontrou com o arguido CC tendo em vista a visita ao imóvel que pretendia comprar.
19. Todavia, durante a estadia de BB em Portugal, o arguido CC sempre negou, apesar das sucessivas insistências por parte de BB, mostrar o imóvel que teria proposto a BB comprar.
20. Por esse motivo, BB exigiu a CC que lhe devolvesse o dinheiro que lhe transferiu o que ele se recusou a fazer, não o tendo restituído total ou parcialmente.
21. Ao invés, no dia ........2019, CC efetuou uma transferência no valor de EUR 95.000,00 da Conta do ActivoBank para a Conta do BCP.
22. No dia 26.07.2019 CC efetuou uma transferência no valor de EUR 95.000,00 da Conta do ActivoBank para a Conta do BCP.
23. Apoderando-se integralmente do dinheiro que lhe foi transferido por BB, o que quis e conseguiu,
24. O arguido CC nunca pretendeu intermediar a compra de uma casa por parte de BB em Portugal.
25. Ao invés, o arguido CC agiu da forma descrita, seguindo um plano que previamente delineou, com o propósito concretizado de convencer BB a proceder ao pagamento do sinal / princípio de pagamento de uma habitação para uma conta bancária de que fosse titular, do qual se pretendia apoderar, assim obtendo um incremento monetário à custa de BB, o que quis e conseguiu.
26. BB apenas transferiu dinheiro para o arguido CC por ter acreditado sem ter razões para duvidar que o arguido tinha acesso privilegiado ao mercado imobiliário em Portugal.
27. Agindo da forma descrita, o arguido logrou convencer BB a entregar-lhe EUR 190.475,00, que fez seus, desse modo auferindo um benefício que sabia ser ilegítimo e causando um prejuízo patrimonial de igual valor.
28. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente,
29. Bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
30. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
31. Os factos praticados pelo arguido criaram no assistente uma perturbação do seu equilíbrio psíquico e emocional.
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Factos não provados:
Não se provou que:
A. Que o imóvel que BB decidiu adquirir fosse da tipologia T3.
B. O arguido CC transmitiu a BB que este deveria proceder à entrega de EUR 190.500,00.
C. BB transferiu dinheiro para o arguido CC por ter acreditado que este conseguiria assegurar preços inferiores aos de mercado e que para tal era necessário o pagamento de um sinal.
D. Todavia, o arguido nunca lhe mostrou qualquer casa para venda, nunca tendo aliás pretendido fazê-lo.
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III- Fundamentação da aquisição probatória:
O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:
«Em termos genéricos, o Tribunal fundou a sua convicção considerando o depoimento do assistente e a prova documental constante dos autos, analisando todos os elementos probatórios em confronto entre si e de acordo com as regras da experiência e o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do CPP.
O arguido autorizou a realização da audiência de julgamento na sua ausência pelo que não foi possível ao Tribunal conhecer a sua versão dos factos.
Por outro lado, o assistente prestou um depoimento claro, circunstanciado e objectivo que mereceu a credibilidade do Tribunal. Embora a Defesa tenha argumentado que o assistente foi alterando o seu depoimento conforme as circunstâncias não foi de todo este o entendimento do Tribunal. Na verdade, o assistente descreveu a situação, demonstrando lembrança forte dos factos, e foi esclarecendo as dúvidas suscitadas, não alterando o teor do seu depoimento ou o sentido do mesmo. Assim, não ficou o Tribunal com dúvidas face ao descrito pelo assistente. Este explicou todo o contexto em que os contactos com o arguido se iniciaram e como se desenvolveram. Querendo fazer um investimento imobiliário em Portugal começou a procurar online e surgiu-lhe um anúncio do arguido que por falar a sua língua e conhecer os costumes e hábitos da sua cultura foi muito mais fácil de falarem e de se entenderem o que permitiu haver mais proximidade e entendimento. Foi o arguido quem lhe explicou o que sabia do mercado imobiliário português e que lhe transmitiu uma confiança tal que lhe pareceu ser a pessoa ideal para intermediar o negócio que pretendia realizar. Acertaram então o valor dos honorário que lhe deveria pagar, e esse dinheiro transferiu directamente para a conta do arguido, que este lhe deu, na Arábia Saudita, no valor de 17.000,00€ e qualquer coisa euros. Por outro lado, tendo o arguido enviado ao assistente um anúncio de uma casa que lhe interessava e que decidira comprar transferiu-lhe o dinheiro pedido pelo arguido (190.000,00€) para dar de sinal pela compra da casa, e ainda decidiu transferir perto de 500,00€ para as despesas que sempre há com o pagamento do sinal ou burocracias iniciais com a compra da casa. Uma vez que queria de facto avançar com a compra do imóvel e estava a confiar na conversa do arguido deslocou-se a Portugal, tendo conhecido pessoalmente o arguido na chegada ao aeroporto. Foi alojado numa casa arrendada pelo arguido e ficou totalmente dependente deste por não conhecer mais ninguém no nosso país, nem os costumes nem a língua. Ficou sempre à espera que o arguido chegasse e o levasse a todo o lado. O único sítio que confirma que o arguido o levou foi às Finanças para tratar de uma “qualquer” formalidade necessária, segundo o arguido, à aquisição de um imóvel em Portugal, e à Junta de Freguesia, para o mesmo fim. Numa fase inicial não questionava o arguido, apenas seguiu os passos que este lhe indicou. No entanto, a certa altura, porque o arguido nunca mais lhe mostrava o imóvel que tinha visto online e para o qual tinha transferido o valor para pagar de sinal, começou a questionar o arguido, que sempre tentava “fugir” à questão. Foi insistindo e sempre sem resposta. Até que começou a pedir ao arguido que lhe devolvesse então o dinheiro, o que o arguido negou, tendo chegado a ameaçá-lo com a presença de outras pessoas e proferindo expressões directas nesse sentido. Quando começou mesmo a ter medo e percebendo que o arguido não só não lhe mostrava a casa que tinha visto online como não lhe devolvia o anúncio foi à embaixada pedir ajuda, apresentou queixa na polícia e não mais viu o arguido. Refere sempre o assistente e sublinha, no decurso do julgamento, que apenas lhe transferiu o dinheiro referido porque confiou verdadeiramente nele e que iria fazer negócio com a sua ajuda. O seu discurso convenceu-o de que conhecia realmente o mercado português e que o facto de aqui ter conhecimentos o ajudaria muitíssimo a ele, assistente, a fazer negócio, o que desacompanhado, atendendo à diferença de língua e de cultura, não conseguiria. Não celebraram qualquer contrato e por isso também se sentiu mais desprotegido, mas quis vir pessoalmente a Portugal não só para ver a casa como para fechar o negócio.
Mais nenhuma prova testemunhal foi produzida, mas a prova documental existente nos autos corroborou por completo o depoimento do ofendido, nomeadamente: o Comprovativo de transferência, de fls. 18; a Informação cadastral do Arguido, de fls. 24 a 27; a Informação bancária relativa à conta N.º ..., titulada por CC: Extrato de fls. 43 a 45 e 105 a 109, 149 a 152; Ficha de assinaturas, de fls. 46, 148; Elementos de identificação do titular, de fls. 47 a 56, 143. A informação bancária relativa à conta N.º ..., titulada por BB: o Extrato de fls. 58; Ficha de assinaturas, de fls. 59, 243; a Ficha de informação, de fls. 242, 247 a 258; a informação bancária relativa à conta N.º ..., titulada por BB: Extrato de fls. 62; Ficha de assinaturas, de fls. 63; Elementos de identificação do titular, de fls. 64 a 72. A informação bancária relativa à conta N.º ..., titulada por BB: Extrato de fls. 74; Ficha de assinaturas, de fls. 75; Elementos de identificação do titular, de fls. 76 a 79.
As declarações prestadas pelo assistente foram claras, pormenorizadas e contextualizadas e mereceram por isso a credibilidade do Tribunal. Mais do que fazer passar a imagem de “coitadinho” o assistente explicou, de forma clara e cabal que confiou plenamente no arguido e por isso ficou deste dependente no que dizia respeito ao negócio que queria realizar em Portugal e durante o tempo em que esteve no nosso país.
Mais, a lógica dos acontecimentos está em consonância com a versão apresentada pelo assistente, no sentido de que a transferência visava a compra de uma casa que lhe interessava, apresentada pelo arguido por meios virtuais, imóvel que, afinal, o arguido nunca mostrou quando o ofendido esteve com ele em território nacional. Pelo que não teve dúvidas o Tribunal em considerar provados os factos constantes tal como supra expostos.
De tudo quanto se disse, a única conclusão passível de retirar é que o arguido, plenamente ciente que o assistente depositava grande confiança em si, sabia que este não teria razões para duvidar das falsas expectativas que lhe criara sobre a existência de uma casa para comprar por seu intermédio, mentira que sabia ser mais do que suficiente para dele conseguir obter a quantia de €190,475 para o pagamento do sinal pela aquisição da casa, que nunca pretendeu adquirir, com o que lograria obter uma vantagem patrimonial indevida de valor correspondente, já que também nunca teve qualquer intenção de o reembolsar pelo montante que despendeu.
Quanto à inexistência de antecedentes criminais do arguido, o Tribunal valorou o teor do certificado do registo criminal junto aos autos.»
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IV- Recurso:
O arguido recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
«a) A douta Sentença recorrido fundamenta a condenação do Arguido em duas ordens de conclusões: (i) Por um lado, fundou a sua convicção considerando apenas o depoimento do Assistente e a prova documental constante dos autos; e que o (ii) Assistente prestou um depoimento claro, circunstanciado e objectivo que mereceu a credibilidade do Tribunal.
b) Considerando a prova constante dos autos, o Arguido não devia ter sido condenado na pena aplicada, porquanto não se logrou provar a prática do crime de que vinha acusado.
c) O Arguido está classificado, pelo Ministério do Comércio e Investimento da Arabia Saudita, como empresário (fls. 147); dos diversos extratos bancários juntos aos autos (fls. 148 e seguintes) é possível verificar e constatar movimentações bancárias dentro da normalidade; que o mesmo está fixado em Portugal bem, como detém uma sociedade em Portugal, da qual é o único sócio e gerente, conforme aliás decorre da certidão permanente junta aos autos a fls. 244, cujo objeto social é “promoção imobiliária. Compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim (…)”.
d) O Arguido, em 16.09.2020, fls. 340, prestou perante Magistrado do Ministério Público declarações.
e) No entanto, em sede de audiência de julgamento, entendeu o Tribunal a quo que «[o] arguido autorizou a realização da audiência de julgamento na sua ausência pelo que não foi possível ao Tribunal conhecer a sua versão dos factos.»
f) Até porque, o Tribunal a quo vai mais além aquando refere que nada pôde apurar quanto à versão dos factos do Arguido pelo facto de este não ter estado presente, espelhando-se tal fundamentação numa clara violação do princípio do contraditório, bem como dos direitos, liberdades e garantias que lhe assistem, contemplados no disposto do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
g) As declarações do Arguido (ainda que prestadas perante magistrado do MP em sede de inquérito), como meio de prova que constituem, conforme dispõe o artigo 341.º do CPP, deverão também em primeira linha servir para, devidamente valoradas pelo tribunal, sustentar a sua devida decisão sobre aqueles temas probandos.
h) O artigo 375.º, n.ºs 1 a 3 do CPP, é claro quando refere que a valoração das declarações prestadas por Arguido (devidamente informado nos termos do artigo 141.º, n.º 4, al. b) do CPP) exigem a possibilidade da sua reprodução ou leitura em sede de audiência de julgamento, para cumprimento do contraditório e embora de algum modo limitado, dos princípios da imediação e da oralidade, o que não ocorreu no caso em apreço.
i) A audiência e julgamento foi realizada na ausência do Arguido, sendo certo que o mesmo declarou expressamente a sua realização na sua ausência, conforme requerimento junto aos autos, datado de 20.03.2023, bem como ali se reiterou o teor das declarações prestadas em sede de interrogatório complementar datado de 16.09.2020, autorizando e requerendo expressamente a sua reprodução em sede de audiência de julgamento, facto este que o Tribunal a quo fez tábua rasa.
j) Andou mal o Tribunal a quo por não valorar as declarações prestadas pelo Arguido, bem como fundamentar a sua decisão apenas e só atendendo às alegações/declarações prestadas pelo ali Assistente.
k) Andou mal o Tribunal a quo por igualmente descartar por completo os depoimentos de todas as testemunhas arroladas.
l) Atento o teor dos anteriores depoimentos das testemunhas, prestados perante Magistrado do MP, andou mal o Tribunal a quo quando decidiu pela dispensa das mesmas em sede de audiência de julgamento, apesar de requeridas pela defesa em sede de audiência, pelo facto de as mesmas serem essenciais e imprescindíveis à descoberta da verdade material.
m) Na verdade, as testemunhas indicadas na douta Acusação foram igualmente dispensadas pelo MP em clara violação do Estatuto dos Magistrados Judicias, mormente artigo 3.º do Estatuto Dos Magistrados Judiciais.
n) Ao abrigo do disposto no artigo 340.º do CPP, o Arguido requereu que as mesmas fossem ouvidas em sede de audiência de julgamento, desde logo pasme-se com a oposição do MP (que apenas de compreende perante o desconhecimento dos autos) e do Assistente (pois o mesmo não pretendia a verdade material), requerimento que veio a ser indeferido pelo Tribunal a quo em clara violação do princípio do contraditório e defesa do ora Arguido, sendo estas essenciais para a descoberta da verdade matéria.
o) Em 23.11.2020, a testemunha FF foi inquirida perante o Sr. Procurador da República, Dr. GG, fls. 391 e 392.
p) Em 23.11.2020, a testemunha HH foi inquirida perante o Sr. Procurador da República, Dr. GG, fls. 393 e 394.
q) Em 23.11.2020, a testemunha II foi inquirida perante o Sr. Procurador da República, Dr. GG, fls. 395 a 396.
r) Em 23.11.2020, a testemunha JJ foi inquirida perante o Sr. Procurador da República, Dr. GG, fls. 397 a 400.
s) Todas as testemunhas inquiridas perante o Sr. Magistrado do Ministério Público conheciam, de alguma forma, o Arguido e o Assistente.
t) As informações prestadas pelas Testemunhas contradizem no essencial, todos os depoimentos e declarações do Assistente.
u) A sua dispensa é manifestamente desprovida de fundamentação legal e lógica, uma vez que os seus depoimentos eram admissíveis como essenciais para a descoberta da verdade dos factos.
v) Não resultou qualquer prova evidente, rigorosa e suficiente, por forma a que o Tribunal a quo pudesse concluir no sentido vertido na douta Sentença.
w) A título meramente exemplificativo, entende o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no âmbito do processo n.º 314/17.0GBGMR.G1, datado de 14.11.2023, disponível em www.dgsi.pt, «[que] se mostra violado o princípio da investigação ou da verdade material ínsito no supra analisado Art.º 340º, nº 1, do C.P.Penal, afigurando-se-nos que o Mmº Juiz a quo deveria ter deferido a inquirição da testemunha em causa, quiçá no local onde ocorrem os factos imputados aos arguidos, ou seja, na altura da inspecção ao local, conforme aliás o recorrente DD havia solicitado naquele seu requerimento de 22/03/2022. Aqui chegados, resta extrair as consequências desta vicissitude processual, que passam, em consonância com as disposições conjugadas dos Artºs. 120º, nºs. 1 e 2, al. d), e 122º, nºs. 1 e 2, do C.P.Penal, pela anulação da sentença recorrida, e pela reabertura da audiência de discussão e julgamento para inquirição, como testemunha, da pessoa indicada pelo arguido DD no seu requerimento de 22/03/2022 acerca da matéria ali alegada [sem prejuízo da realização de outras diligências que se entenda necessárias à descoberta da verdade e boa decisão da causa], e pela posterior prolação de nova decisão. Sendo certo que, em face desta conclusão, fica prejudicado o conhecimento de todas as questões suscitadas por ambos os arguidos/recorrentes em relação à decisão final, supra enunciadas (cfr. Artº 608º, nº 2, 1ª parte, do C.P.Civil, ex-vi Art.º 4º do C.P.Penal).» (sublinhados nossos).
x) Mas mais grave e claramente demonstrativo que o Tribunal a quo não analisou toda a documentação constante dos autos, com a ponderação que o processo merecia, está o facto de ter condenado o Arguido no pagamento de danos não patrimoniais, quando tais danos não foram sequer requeridos pelo Assistente em sede de PIC e tão-pouco demonstrados em sede de Audiência e Julgamento.
y) Por todo o exposto é clarividente a violação de todas as normas acima elencadas pelo Tribunal a quo, tendo como consequência a nulidade da Sentença recorrida, mormente pela clara violação do princípio mais básico de um estado de direito (do contraditório), pelo que devem V. Exas., Senhores Juízes Desembargadores, ordenar a reabertura da audiência de julgamento de modo a serem inquiridas todas as testemunhas à matéria dos factos, sem prejuízo da realização de outras diligências que se venham a entender úteis e necessárias à descoberta da verdade material para boa decisão da causa, tudo conforme disposições conjugadas dos Artºs. 120º, nºs. 1 e 2, al. d), e 122º, nºs. 1 e 2, do CPP e cfr. art.º 608º, nº 2, 1ª parte, do CPC, ex-vi art.º 4º do CPP.
z) Ao longo de todo o processado, as várias declarações do Assistente foram objetivamente contraditórias.
aa) Conforme decorre de fls. 7 a 9, em sede de auto de notícia no dia 29.08.2019 o Assistente prestou declarações.
bb) Já em sede de auto de inquirição (vídeo chamada), datado de 22.06.2021, o Assistente prestou declarações junto do Sr. Procurador da República, Dr. GG.
cc) Das muitas contradições subjacentes, cumpre referir que:
a. O Assistente é arquiteto, possui 7 (sete) contas bancárias em diversos países e, tal como o Arguido, está no ramo da compra e venda de imóveis e investimentos internacionais;
b. O Assistente, contrariamente ao que quer fazer valer, não é de todo um indivíduo com poucos rendimentos;
c. Por força da sua atividade laboral, o Assistente quis efetivamente comprar imóveis para arrendar em Portugal, como aliás faz no resto do mundo;
d. Pelo que, por conta desses mesmos investimentos e cooperação internacional, assinou uma declaração, a fls. 346, onde refere expressamente essa mesma parceira com o ora Arguido, mesmo antes de vir para Portugal;
e. Na verdade, e contrariamente ao alegado pelo Assistente, o documento junto a fls. 16, jamais é ou foi do conhecimento do ora Arguido, note-se que o mesmo apenas está assinado pelo Assistente pelo que é uma mera declaração deste em como pretende investir em Portugal;
f. De todo modo, e contrariamente ao que refere nos seus depoimentos/declarações, o Assistente pretendia arrendar imóveis em Portugal. Tanto assim o é que visitou diversos apartamentos com as testemunhas, tendo as mesmas referenciado as visitas realizadas a diversos imóveis, em sede de declarações prestadas perante magistrado do MP.
g. Na verdade, as transferências ali alegadas em virtude do arrendamento foram efetuadas pelo Arguido (no valor de 7.200,00€) ao Assistente e não de 4.800,00€, conforme decorre de fls. 347.
h. Também a fls. 348 é possível verificar e constatar, porque devidamente traduzida perante magistrado do MP, que o Assistente recebeu do Arguido 1.600,00€ sendo certo que 1.200,00€ cabiam à testemunha HH por força dos serviços prestados para visitar imóveis.
i. Desta feita, jamais se pode aceitar que o Assistente refira não ter estabelecido contactos com mais ninguém, sequer que existiu algum intermediário!
j. Tanto as testemunhas como o Assistente se conhecem e estabeleceram relações comerciais entre ambos, tudo conforme depoimentos e documentação junta aos autos.
k. Importa ainda referir que, inicialmente (em sede do auto de notícia) o Assistente refere que o arrendamento foi realizado pelo Arguido, sucede, porém, que em sede de auto de inquirição (perante magistrado do MP) refere que o arrendamento foi efetuado por sim. Por esta contradição nada mais se pode aferir a não ser pelo conhecimento cabal das testemunhas, bem como da outorga do contrato de arrendamento por este.
l. Na verdade, conforme referem as testemunhas, o contrato foi assinado por este, tendo sido decisão unilateral do mesmo o seu abandono, pelo que o Arguido nada teve que ver com esta situação, uma vez, que bem próxima da data da sua saída de território nacional estavam agendadas diversas visitas a imóveis, conforme referem as testemunhas (a fls. 393, 396 e 398) e o próprio Arguido.
m. Igualmente conforme consta de fls. 346 a 356 dos autos, a pessoa que apresentou o Assistente ao Arguido, enviou um email a este a dar nota que tinha descoberto e apurado que o BB era uma pessoa pouco séria e que o Arguido deveria ter muito cuidado nas relações comerciais com o mesmo.
dd) Andou mal o Tribunal a quo por valorar apenas e só as declarações do Assistente, ainda que divergentes, bem como considerar factos como provados que jamais poderia suceder, dando apenas relevância a 2 horas de depoimento vs 4 anos de intensa investigação que deu origem a toda a documentação constante dos autos.
ee) Igualmente, não pode o Tribunal a quo considerar provados parte dos factos que sustentavam a acusação, quando, na realidade, não foi produzida prova, ainda que considerando apenas o depoimento do Assistente, para além da dúvida razoável, da prática dos mesmos por parte do Arguido.
ff) Do facto n.º 6 da matéria de facto provada, o Tribunal a quo considerou provado que “em data não concretamente apurada, no final do ano de 2018, BB decidiu adquirir um imóvel de férias, na área de Lisboa, em Portugal”.
gg) No entanto, o Assistente referiu, em sede de auto de notícia, no dia 29.08.2019, que no ano de 2018, por ser investidor no ramo imobiliário e outros procedeu ao contacto com o Arguido.
hh) Ora, por conta desses mesmos investimentos e cooperação internacional, assinou uma declaração, a fls. 346, onde refere expressamente essa mesma parceira com o Arguido, mesmo antes de vir para Portugal.
ii) O Arguido, por sua vez, referiu em 16.09.2020, fls. 340, que a intenção inicial do Assistente era arrendar casas para colocar no mercado, mas não sabia como iniciar o negócio.
jj) Dos factos n.º 8, 10 e 11 da matéria de facto provada, à exceção da fábula criada pelo Assistente, nada mais decorre dos autos quanto há intenção do Arguido em ludibriar o Assistente
kk) Reitera-se que o que decorre dos autos são factos e provas contrárias, mormente a fls. 147 o Arguido está classificado, pelo Ministério do Comércio e Investimento da Arabia Saudita, como empresário; dos diversos extratos bancários juntos aos autos (fls. 148 e seguintes) é possível verificar e constatar movimentações bancárias dentro da normalidade; que o mesmo está fixado em Portugal bem, como detém uma empresa em seu nome, conforme aliás decorre da certidão permanente junta aos autos a fls. 244, cujo objeto social é “promoção imobiliária. Compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim (…)”.
ll) Igualmente decorre dos autos que o Assistente pagaria 175.000€ pelos serviços, mais despesas, para a concretização do negócio que se esperaria implicar um trabalho de cerca de anos.
mm) E que, o Assistente transferiu, em 26.05.2019, para a conta do Arguido, o equivalente a 20.000€, por conta das despesas.
nn) Ademais, o Arguido quando veio para Portugal (em 27.06.2019) iniciou contactos com agências imobiliárias em cumprimento do acordado com o Assistente, conforme aliás se prova pelos depoimentos de todas as Testemunhas (a fls. 391 a 400), que se reitera, foram dispensadas sem qualquer lógica pelo Tribunal a quo, por solicitação do MP, que por reorganização do juiz 13 do juízo local criminal de Lisboa, tinha recentemente sido colocado neste processo e desconhecia o seu teor.
oo) Do facto n.º 9 da matéria de facto provada, entendeu o Tribunal a quo dar como provado que, “(…) BB não conhecer Portugal, os respetivos usos e costumes, não falando a língua portuguesa, encontrando-se limitado face à sua nacionalidade e local onde se encontrava de contestar o que lhe fosse dito, bem como de solicitar ajuda a terceiros.”
pp) Este facto é completamente antagónico face à prova (não valorada, reitere-se).
qq) O Assistente não estava sozinho em Portugal, tinha uma equipa de agentes imobiliários a colaborar com ele, sendo certo que até o próprio Arguido se deslocou ao aeroporto de Lisboa para o receber, juntamente com outros colaboradores deste, conforme decorre de todos os depoimentos das Testemunhas, bem como do Arguido.
rr) Conforme resulta claro dos autos, os profissionais colocados ao serviço do Assistente, foram profissionais do ramo imobiliário que desenvolvem a sua actividade profissional em reputadas agências imobiliárias internacionais (REMAX e EASYGEST, entre outros) e não farsantes, no sentido de tentar ludibriar o Assistente.
ss) Mais uma vez, apenas o Assistente sustentou esta tese, aliás, em sede de audiência e julgamento, nas suas declarações referiu conhecer tais testemunhas, até porque, na verdade, outorgou um contrato de arrendamento juntamente com uma agente imobiliária, a saber a Sra. JJ.
tt) Dos factos n.º s 19 e 20, 23 a 26 da matéria de facto provada, importa esclarecer que inexiste qualquer prova que o sustentem.
uu) Todos os depoimentos esbarram contra o alegado pelo Assistente e dado como provado pelo Tribunal a quo, sem mais.
vv) O Assistente visitou diversos apartamentos com as testemunhas, tendo as mesmas referenciado as visitas realizadas a diversos imóveis, em sede de declarações prestadas perante magistrado do MP.
ww) Igualmente há montantes entregues pelo Arguido ao Assistente, conforme consta dos documentos a fls. 348 dos autos (devidamente traduzidos e assinados pela intérprete perante magistrado do MP), factos estes que o Tribunal a quo, simplesmente desvaloriza e certamente só poderia ter levado a uma decisão diferente, que passaria por uma Sentença absolutória.
xx) Pois certamente é ilógico que o alegado Arguido burlão faça liberalidades ao Assistente e aqui burlado.
yy) O princípio "in dubio pro reo" estabelece que, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o Arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 6 de Janeiro de 2010, proferido no âmbito do P. n.º 583/07, disponível em www.dgsi.pt).
zz) In casu, a dúvida gerada pelos depoimentos contraditórios do Assistente em sede de audiência de julgamento por comparação com depoimentos anteriores é muito superior à dúvida razoável.
aaa) Encontrando-se o Tribunal perante um estado de dúvida insanável, não poderia ter escolhido a tese desfavorável ao Arguido, mas, deveria o tribunal a quo ter-se socorrido do princípio "in dubio pro reo" e, assim, ter absolvido integralmente o Arguido.
bbb) A douta Sentença recorrida fundamentou a condenação do Arguido essencialmente por considerar o depoimento do Assistente, alegando-o “claro, circunstanciado e objectivo que mereceu a credibilidade do Tribunal.”
ccc) O que, salvo melhor opinião, não ser de todo verídico, mormente por comparação com toda a prova constante dos autos e resultante de cerca de 4 anos de investigação.
ddd) Ora, estabelece o artigo 349.º do CC que “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.”
eee) Como se sabe, o recurso a presunções judiciais pelos Tribunais não pode ser feito de forma injustificada e sem limites sob pena de constituir fundamento autónomo de recurso nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. a) e c) do CPP.
fff) Esta limitação legal é, tão só, um corolário do princípio do in dubio pro reo.
ggg) A prova produzida em Audiência de Julgamento é manifestamente insuficiente para as presunções operadas pelo Tribunal a quo.
hhh) O Tribunal a quo presume sem mais que o Arguido praticou os factos ilícitos em causa apenas com o depoimento do Assistente em sede de audiência e julgamento (contraditado pelo próprio nos seus depoimentos anteriores).
iii) Assim e ao contrário da presunção judicial sustentada na Decisão a quo, seria mais natural inferir que pelo menos existe a dúvida razoável se o arguido praticou ou não o crime de burla.
jjj) Com efeito, age de forma incorrecta o Tribunal a quo ao determinar a condenação do Arguido quanto à prática do crime em causa.
kkk) Pelo que estamos perante uma clamorosa violação do princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência, constitucionalmente protegido pelo artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
lll) Com efeito no que ao Recorrente diz respeito, deverá a Sentença recorrida ser totalmente revogada e substituída por outra que, no estrito cumprimento dos limites que se impõem à livre e apreciação da prova pelo julgador e em obediência ao princípio do in dubio pro reo, determine a absolvição do Recorrente quanto ao crime pelo qual foi condenado.
mmm) Os elementos objectivos do crime de Burla são, (i) a utilização de astúcia pelo agente; (ii) causando erro ou engano a outrem, (iii) determinando-lhe a prática de actos, e(iv) que esses actos provoquem a essa ou a outra pessoa prejuízo patrimonial.
nnn) O conceito de astúcia implica que o erro tenha sido criado pelo agente de forma sagaz, com inteligência ou pelo uso de agudeza psicológica, o que pode ocorrer pela manipulação de outra pessoa.
ooo) No caso vertente, tanto a prova documental como a prova testemunhal produzida nos autos demonstram que todo o circunstancialismo que envolveu o Arguido, não constituem elementos suficientes para que se conclua pelo cometimento do crime Burla por parte do mesmo.
ppp) O Arguido e o Assistente iam trabalhar em conjunto, na verdade pode dizer-se que o Arguido ia iniciar (de alguma forma) os investimentos do Assistente em Portugal, porquanto o Arguido labora em Portugal, possui uma empresa em Portugal, compra e vende imóveis – é investidor em Portugal.
qqq) É que, caso houvesse burla não tinha sentido nenhum, após a transferência do dinheiro pelo Assistente (conseguido o objectivo da Burla), o Arguido ter recebido em Portugal o Assistente, ter levado o mesmo a um serviço de finanças para obter NIF (fls. 69), ter tido uma equipa de mediadores imobiliários com quem o Assistente visitou inúmeros imóveis (fls. 340 a 348) e ainda o Arguido arrendou e pagou uma casa para o Assistente (fls. 346 e 348) mediada pela testemunha JJ (fls. 397 a 400).
rrr) Obviamente que após o recebimento dos cerca de €190.000,00 por parte do Arguido, o que seria normal, a existir Burla, era o Arguido ter cessado todos os contactos com o Assistente, não ter recebido o mesmo em Portugal, tão-pouco ter uma equipa de profissionais ao serviço do Assistente e desenvolver actos tendentes ao Assistente iniciar a sua actividade em Portugal, como seja obtenção de NIF, abertura de sociedade, tudo devidamente demonstrado nos autos através de prova documental bastante.
sss) Na verdade, conforme declarou o Assistente, foi este que cessou todos os contactos com o Arguido, apesar das diversas tentativas de contacto do Arguido ao Assistente.
ttt) Salvo melhor opinião, estamos apenas perante uma questão meramente civil em que alguém (Arguido ou Assistente) terá incumprido o acordo que tinham e tudo indica que foi o Assistente, pois o mesmo literalmente desapareceu ao fim de 5 (cinco) dias e deixou de atender o telefone ao Arguido que o tentou contactar diversas vezes (este facto é também confessado pelo Assistente no seu depoimento).
uuu) Deste modo, errou o Tribunal a quo na aplicação que fez do Direito, concluindo-se forçosamente pela Absolvição do Arguido pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1 com referência ao artigo 26.º, todos do CP.
vvv) Em consequência, inexistindo prática de qualquer facto ilícito deverá também o Arguido/Demandante ser absolvido no pedido de indemnização civil, para os devidos e legais efeitos.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, cujo douto suprimento de V. Exas. se invoca, considerando-se violadas as normas legais acima identificadas, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:
a) Ser declarada nula a Sentença recorrida, por violação do princípio mais básico que deve nortear o direito processual penal que é o do contraditório que tem corolário na Constituição da República Portuguesa.
b) Ser revogada a Sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que absolva o Arguido da prática de um crime de burla qualificado, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1 com referência ao artigo 26.º, todos do CP, em consequência
c) Deverá o Arguido/Demandado ser absolvido no pedido de indemnização civil respectivo.
Pois, só assim é de direito e só assim se fará a habitual JUSTIÇA!».
***
Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
«1 - O arguido AA foi condenado pela prática como coautor de um de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, alínea a) e 202.º, alínea b), todos do Código Penal, além do mais, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, ficando tal suspensão subordinada ao pagamento, por parte do arguido, de parte da indemnização fixada a favor do demandante, num valor de 50,000€.
2- Como fundamentos do seu recurso aponta a nulidade da sentença (art.º 374º, nº 2 e 379, nº1/a do CPPenal) por não valoração das declarações do arguido e das testemunhas prestadas em inquérito; o erro de julgamento quanto aos factos provados sob os números 6, 8 a 11, 19 e 20 e 23 a 26; a violação do princípio in dubio pro reo; a violação do princípio da liberdade de apreciação da prova/presunções judiciais/ vícios do art.º 410º, nº 2, al.s a) e c) do CPPenal e impugna ainda a matéria de direito, por não considerar desde logo preenchidos os elementos do crime de burla.
3– Quanto á leitura das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas (estas com depoimento prescindido em audiência de julgamento) prestadas em inquérito, há que salientar que o arguido foi julgado na ausência e considerando os direitos do arguido de presença, de audiência, de defesa e do contraditório, as declarações do arguido prestadas em inquérito, não foram lidas (nem o defensor do arguido isso requereu).
4- Assim, não tendo sido lidas em audiência de julgamento as declarações prestadas pelo arguido no inquérito, a valoração das suas declarações constitui valoração proibida de prova, nos termos do art.355.º do C.P.Penal – neste sentido Ac. do Tribunal Constitucional 770/2020 (acórdão de 21 de Dezembro de 2020, Processo n.º 739/2020) e Acs. do Tribunal da Relação do Porto (acórdão de 14 de setembro de 2016, Processo n.º 2087/14.0JAPRT.P1), do Tribunal da Relação de Évora (acórdão de 07 de fevereiro de 2017, Processo n.º 341/15.2JAFAR.E1) e Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa (de 20 de novembro de 2019, Processo n.º 658/17.1PZLSB.L1-3).
5– Ainda que esta falta de leitura pudesse traduzir-se numa omissão, em fase de julgamento, de uma diligência reputada como essencial para a descoberta da verdade, prevista no art.º 120º, nº 2, al. d), 2.a parte, a mesma depende de arguição pelos interessados, no prazo referido no nº 3 al. a), do mesmo artigo, no caso, até ao final do ato a que assista. O que o arguido também não arguiu.
6– No que respeita à impugnação da matéria de facto, o arguido não deu cumprimento ao nº 3, als. b) e c) do art.º 412º do CPPenal.
7- A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados e ainda assim decidiu de forma desfavorável ao arguido.
8- O que manifestamente não sucedeu no caso concreto pois que na fundamentação da sentença o Tribunal a quo não invocou qualquer dúvida insanável, antes constando da motivação da matéria de facto uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a sua convicção, pelo que inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo, estando por isso afastada a sua violação.
9- A decisão de facto está fundamentada de forma coerente (art.º 127º do CPPenal), explicando nomeadamente que as declarações do assistente foram credíveis porquanto claras, circunstanciadas e objetivas, razão pela qual o Tribunal se convenceu da prática dos factos pelo arguido. Isto nada tem que ver com presunções, antes os factos relatados pelo assistente, alguns deles corroborados por documentos, tornaram visível aquela que foi a conduta do arguido.
10- Considerando os factos dados por provados pelo Tribunal, a conduta do arguido preenche todos os elementos constitutivos do crime pelo qual se mostra acusado e pelo qual foi condenado, como bem se demonstra na fundamentação da matéria de direito da douta sentença recorrida, razão pela qual deve improceder também esta questão e, consequentemente, o recurso.
Concluindo, dir-se-á não assistir razão ao arguido, motivo pelo qual deve ser julgado o presente recurso totalmente improcedente com o que V. Exas farão a costumada e habitual Justiça.».
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Mais contra-alegou o assistente, concluindo nos seguintes termos:
«1. O arguido condenado, pela prática de I (um) crime em autoria material, na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, alínea a) e 202.º, alínea b), todos do Código Penal;
2. Condenar o demandado/arguido AA a pagar ao demandante BB uma indemnização, no valor de 190.475,00€, a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora à taxa legal em vigor de 4%, contados desde a data da notificação do arguido para apresentação de contestação, referente ao pedido de indemnização civil, até integral pagamento, e de 2.000,00€, a título de danos não patrimoniais;
3. Determinar a entrega ao assistente/demandante do valor total apreendido nos autos;
4. Condenar o arguido nas custas criminais e cíveis.;
5. Tudo conforme decisão proferida e que deve ser integralmente mantida.»
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Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta aderiu à contra-motivação.
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V- Questões a decidir:
Do artigo 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso (1), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (2).
As questões colocadas pelo recorrente, arguido, são:
- Nulidade de sentença, por desconsideração das declarações que prestou junto do Ministério Público, em inquérito;
- Ilegalidade do despacho que, em audiência indeferiu o pedido de inquirição de testemunhas apresentadas e prescindidas pelo Ministério Público;
- Condenação em danos não peticionados;
- Violação do princípio «in dubio pro reo»;
- Inexistência de factos que constituam crime de burla;
- Revogação da indemnização civil.
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VI- Fundamentos de direito:
1- Da nulidade de sentença, por desconsideração das declarações que prestou junto do Ministério Público, em inquérito:
O fundamento do recurso foi construído a partir da consideração de que as declarações prestadas pelo arguido ao Ministério Público, a 16.09.2020, deviam ter sido valoradas em audiência, pelo que, não tendo sido, a sentença é nula por violar o disposto no artigo 379º/1-a) e c), do Código de Processo Penal (CPP).
Para chegar a essa conclusão, o arguido aplica a tais declarações o regime das declarações prestadas em primeiro interrogatório de arguido detido, contido no artigo 141º/4-b), do CPP e defende que, conjugada tal norma com o conteúdo do requerimento que deu entrada a 20.03.2023, pelo qual «reiterou o teor das declarações prestadas em sede de interrogatório complementar datado de 16.09.2020, autorizando e requerendo a sua reprodução em sede de audiência de julgamento», se impunha a reprodução e leitura das suas declarações e a sua valoração probatória, sob pena de violação do princípio do contraditório.
O referido documento contem esta declaração: «Mais sem forma que o Arguido, mantém e reitera o teor das declarações prestadas em sede de interrogatório complementar no dia 16. 09.20, perante o Digníssimo Procurador da República que foi titular deste processo em fase de Inquérito, e que caso este douto tribunal o entende, requer-se desde já que as mesmas possam vir a ser lidas em sede de audiência de julgamento».
Ora, a construção formulada lavra em equívocos inaceitáveis.
Em primeiro lugar, o regime contido no artigo 141º/4-b) é exclusivamente aplicável às declarações prestadas perante um Juiz, em primeiro interrogatório de detido. Não tem aplicação às declarações prestadas durante o inquérito ao Ministério Público e, muito menos, perante funcionário judicial, ainda que a determinação do Ministério Público, como foi o caso.
Acrescente-se, que o requerimento agora invocado como fundamento para a obrigatoriedade de leitura das declarações prestadas em inquérito, não tem o sentido pretendido. O que aí se disse foi que «caso este douto tribunal o entende, requer-se desde já que as mesmas possam vir a ser lidas em sede de audiência de julgamento».
Ora, o arguido foi devidamente representado por Advogado, em audiência, e nada requereu na oportunidade, sendo que o Tribunal também não se pronunciou sobre o pedido formulado. Não se pronunciou, diga-se, nem tinha que se pronunciar, porque o pedido formulado foi condicional: apenas se pretendia a leitura «para o caso de o Tribunal entender» que ela era necessária para o apuramento da verdade.
Caso o arguido, representado pelo seu Mandatário, entendesse que estavam a ser omitidas diligências essenciais para a descoberta da verdade, cabia-lhe requerer a leitura das declarações, ao abrigo do disposto no artigo 357º/1-a), do CPP, no próprio acto, o que não fez, pelo que mesmo que se pudesse considerar a omissão como comissão de nulidade, nos termos do artigo 120º/2-d), final, do CPP, a nulidade estaria sanada nos termos do nº 3-a) do mesmo dispositivo.
Desfeitos os equívocos e, repete-se, não tendo sido requerida, no decurso da audiência a reprodução ou leitura das declarações, ao abrigo do disposto no artigo 357º/1-a), do CPP, fica prejudicada a construção sobre a possibilidade de tais declarações serem consideradas para fixação do provado ou não provado, face ao princípio da plenitude de produção de prova a que se refere o artigo 355º/CPP, e sob pena de valoração de prova proibida.
Como refere o Ministério Público: «Não tendo sido lidas em audiência de julgamento, a valoração das declarações do arguido constitui valoração proibida de prova, nos termos do art.355.º do C.P.Penal – neste sentido Ac. do Tribunal Constitucional 770/2020 (acórdão de 21 de Dezembro de 2020, Processo n.º 739/2020) e Acs. do Tribunal da Relação do Porto (acórdão de 14 de setembro de 2016, Processo n.º 2087/14.0JAPRT.P1), do Tribunal da Relação de Évora (acórdão de 07 de fevereiro de 2017, Processo n.º 341/15.2JAFAR.E1) e Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa (de 20 de novembro de 2019, Processo n.º 658/17.1PZLSB.L1-3)».
Resta, portanto, declarar a improcedência das invocadas nulidades.
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2- Da ilegalidade do despacho que, em audiência, indeferiu o pedido de inquirição de testemunhas apresentadas e prescindidas pelo Ministério Público;
Entende o recorrente que o despacho que, em audiência, indeferiu o seu pedido de inquirição de testemunhas apresentadas e, em julgamento, prescindidas pelo Ministério Público, viola o princípio da descoberta da verdade e o artigo 3.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
A história está reflectida na segunda acta de audiência e resume-se a que, depois do depoimento do assistente, o Ministério Público declarou prescindir da inquirição das testemunhas que tinha arrolado. O arguido declarou não prescindir da inquirição, por entender que as testemunhas eram comuns. Mas, não tendo ele apresentado rol, as testemunhas tinham sido apenas apresentadas pelo Ministério Público, motivo pelo qual a oposição foi desconsiderada. Depois, o arguido requereu a inquirição das mesmas testemunhas, ao abrigo do artigo 340º/CPP, o que lhe foi também indeferido, mediante um despacho resumido em acta nos seguintes termos: «Logo, pela Meritíssima Juiz foi preferido deu-te despacho de indeferimento uma vez que quando questionado o assistente sobre se conhecia as testemunhas o mesmo disso só ter visto a testemunha HH, que era quem acompanhava o arguido das vezes que se encontraram. O Ministério prescindiu da inquisição das mesmas. Razão pela qual o Tribunal indeferiu por entender não ser relevante para a boa decisão da causa».
Ora, o recurso apresentado pelo arguido reporta-se, única e exclusivamente, à sentença recorrida. O despacho proferido é perfeitamente autónomo relativamente à peça recorrida, pelo que este Tribunal está impedido de se pronunciar sobre a questão colocada, uma vez que não foi objecto de recurso.
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3- Da condenação em danos não peticionados:
Entende o recorrente que o Tribunal recorrido foi tão desatento que o condenou em danos não patrimoniais que não tinham sido pedidos.
Seguramente que o recorrido não leu o pedido de indemnização civil, porque mesmo muito desatento que estivesse, teria tido oportunidade de ver lá o pedido, expressamente formulado sob o ponto II do petitório, e fundamentado nos pontos 4 e 5 da fundamentação.
Não tendo sido caso de desatenção, será litigância indevida.
O pedido de danos não patrimoniais não foi quantificado pelo assistente, mas, como o recorrente sabe, não carece de o ser. Sobre o assunto dispões o artigo 569º do Código Civil (CC) nestes termos: «Quem exigir a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia os danos, nem o facto de ter pedido determinado quantitativo o impede, no decurso da acção, de reclamar quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos».
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4- Da violação do princípio «in dubio pro reo»;
Entende o recorrente que o Tribunal recorrido violou o referido princípio, em face da existência de depoimentos prestados pelo assistente ao longo de todo o processo. alegadamente contraditórios, o que deveria ter determinado a falta de credibilidade no seu depoimento, prestado em julgamento. Transcreve excertos do auto de notícia e bem assim do auto de inquirição junto do Ministério Público (em vídeo chamada), de 22.06.2021 e defende, ao longo de catorze pontos, que os depoimentos do mesmo são inverosímeis, e que a versão dos factos que foi aceite é uma fábula, criada pelo assistente, desprovida de sentido.
Depois, sob a invocação da violação do dito princípio (e não sob qualquer pedido de reapreciação da prova, ao abrigo do artigo 412º/CPP) impugna cada um dos pontos 6, 8 a 11, 19 e 20 e 23 a 26 do provado, argumentando com a sua versão dos factos. E, continuando a argumentar com a mesma versão dos factos, desenvolve o entendimento de que o Tribunal violou o princípio porque presumiu a sua intervenção «na autoria material e na forma consumada do crime de burla qualificada, partindo apenas e só da presunção do depoimento do Assistente, bem como da existência de contas e transferências bancárias entre estes. Todavia, esta sequência de presunções é legalmente inadmissível e parte de factos que não resultaram minimamente demonstrados nos autos, sequer em sede de audiência de julgamento».
Toda a argumentação em referência está inquinada porquanto parte do pressuposto, manifestamente errado, de que o Tribunal recorrido deveria ter considerado prova que tem a natureza de proibida (porquanto não produzida nem lida em audiência) para a fixação da matéria de facto. Como consequência, é manifesta a inviabilidade de qualquer pretensão modificativa da matéria de facto provada com fundamento nessa tese.
Mas a improcedência não fica por aqui.
Apreciada a pretensão numa perspectiva puramente jurídica, temos que considerar que não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha partido de quaisquer presunções para considerar os factos provados.
Partiu, claramente, da consideração da prova efectivamente produzida em audiência e da avaliação crítica da mesma - no caso, das declarações do assistente, que considerou credíveis e concordantes com os factos documentados nos autos, segundo critérios de experiência comum.
Tendo o Tribunal considerado verdadeiros os factos directamente adquiridos por via da prova produzida em audiência, não há lugar para a construção jurídica feita pelo arguido, baseada em alegadas presunções, pois que o julgador se limitou a considerar provados os factos descritos em audiência, sendo que presunções são «ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido» - artigo 349.º do Código Civil (CC) - e não o resultado de prova directa sobre determinada ocorrência.
Por outro lado, o princípio processual do in dubio pro reo tem apenas por reporte a forma como a prova foi adquirida, num concreto procedimento, pelo Tribunal. Isto, porque é uma regra de apreciação de prova por parte do Tribunal, e só do Tribunal, que funciona, única e exclusivamente, na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre a ocorrência dos factos relevantes para a decisão da causa.
«Ao pedir-se ao juiz, para prova dos factos, uma convicção objectivável e motivável, está-se a impedi-lo de decidir quando não tenha chegado a esse convencimento; ou seja: quando possa objectivar e motivar uma dúvida. Espera-se deste modo que a decisão convença. Convença o juiz no seu íntimo, mas contenha em si igualmente a virtualidade de convencer o arguido e, nele, a inteira comunidade jurídica (…). O princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, como tensão de objectividade, encontra assim no “in dubio pro reo” o seu limite normativo: ao mesmo tempo que transmite o carácter objectivo à dúvida que acciona este último. Livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva.» (3).
O princípio decorre da estruturação do processo penal a partir da presunção de inocência (4).
A sua aplicação desdobra-se em dois momentos: (i) no da avaliação probatória directa, imediata, em primeira instância ou (ii) na fase de recurso, em sede de efectiva reapreciação de prova de apreciação do processo de aquisição processual da prova fixada, na vertente da avaliação sobre a existência ou não de vício de erro na sua apreciação.
Numa primeira fase «o universo fáctico – de acordo com o «pro reo» passar a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para prova dos segundos se exige certeza» (5).
Numa segunda fase, funciona aquando da sua aplicação em Tribunal de recurso: sempre que resulta do texto da decisão recorrida a existência de dúvida sobre factos desfavoráveis ao arguido, ou ainda que não constando, ocorra que a dúvida se instala, quando apreciado o iter cognitivo do julgador. «Entendidos, assim, objectivamente, os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, sempre será de considerar este princípio violado quando o tribunal dá como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que o tribunal não tenha manifestado ou sentido a dúvida que, porém, resulta de uma análise e apreciação objectiva da prova produzida à luz das regras da experiência e/ou de regras legais ou princípios válidos em matéria de direito probatório (cfr art.º 127º do CPP)» (6).
A invocação do in dubio pelo arguido, não tem, no caso, reflexos alguns, porque se fundamenta unicamente numa avaliação sua, pessoal, diferente da prova produzida, estruturada em pressupostos factos que não foram sequer apreciados em audiência, porque não podiam ser.
Da fundamentação da aquisição probatória não resulta o mínimo indício de que o Tribunal recorrido tenha decidido o provado ignorando a mínima dúvida sobre a ocorrência dos factos aí mencionados, nem este Tribunal de recurso vislumbra dúvida sobre a adequação do provado à prova produzida.
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5- Da inexistência de factos que constituam crime de burla:
Entende o recorrente que o crime de burla não se verifica porque não agiu com astúcia, uma vez que se a sua intenção fosse burlar o assistente o «que seria lógico, e é comum em verdadeiros casos de burla, era que após o recebimento do valor, o Arguido simplesmente deixasse de ter qualquer contacto com o Assistente e nem sequer recebesse o mesmo em Portugal».
Esquece o arguido que o que descreve foi precisamente o que se provou que aconteceu quando o assistente se encontrava em Portugal. O dinheiro em causa foi transferido para a conta do arguido em 23.07.2019, apenas dois dias antes da viagem do assistente para Lisboa. Tendo aquele chegado a 25.07.2019, no mesmo dia o arguido tratou de transferir parte do dinheiro para conta diferente da que o tinha recebido do assistente e no dia seguinte transferiu o resto – num procedimento cuidadoso, que demonstra precisamente a intenção de fazer desaparecer o dinheiro da possível (ainda que pouco provável) esfera de influência do assistente.
A partir daí desenrolou-se toda a actuação descrita, que culminou com a queixa apresentada sendo que, segundo o próprio arguido refere no seu recurso, o assistente deixou de contactar o arguido, de quem queria a devolução do dinheiro, por instruções do seu advogado – o que joga, claramente, com a existência de ameaças que o tenham colocado num estado de receio tal, em que a devolução do dinheiro se apresentava como um mal menor face à continuidade da insistência na devolução.
Como o arguido refere «2- É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou são referidos pelo burlão, factos falsos ou este altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro.
3- Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, podendo o burlão utilizar expedientes constituídos ou integrados também por contratos civis».
A isto mesmo se resumiu a actuação do arguido, descrita no provado. O arguido fez crer ao assistente que com aquela transferência de dinheiro estava assegurada a aquisição do imóvel, mas quando, dois dias depois, este chegou a Portugal para se inteirar do estado do negócio, já o dinheiro tinha desaparecido da conta para onde tinha sido transferido e ele acabou por perceber que não havia negócio nenhum que justificasse a transferência, tendo-se o arguido recusado veementemente a devolver o dinheiro.
Ora, fosse outro o negócio, como o arguido pretende, segundo regras de experiência comum, não havia coincidência de despesas, sendo que, pelo menos a diferença deveria ter sido devolvida.
Em face do exposto, é manifesta a existência de astúcia na determinação do assistente à transferência do dinheiro, que sendo seguida da recepção do mesmo em Portugal, dois dias depois, pelo arguido, para compleição do negócio, o deixou convencido de que havia mesmo um negócio em curso e que o dinheiro seria aplicado em seu benefício. O ardil consistiu no convencimento de que o negócio existia e que o fundamento para a transferência era tão genuíno que, em acto imediato, o assistente seria recebido em Portugal pelo arguido para o concluir.
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6- Da revogação da indemnização civil:
O recorrente, com fundamento na revogação da condenação crime peticiona a revogação da indemnização civil em que foi condenado.
Contudo, verificada a improcedência do recurso na parte penal, com a manutenção da factualidade provada, não há fundamento para revogar a condenação em indemnização civil, pelo que também nesta parte se declara a improcedência do recurso.
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Sumariando:
- O regime contido no artigo 141º/4-b) é exclusivamente aplicável às declarações prestadas perante um Juiz, em primeiro interrogatório de detido. Não tem aplicação às declarações prestadas durante o inquérito ao Ministério Público.
- Não tendo sido solicitada, no decurso da audiência, a reprodução ou leitura das referidas declarações, fica prejudicada a possibilidade de elas serem consideradas para fixação do provado, face ao princípio da plenitude de produção de prova a que se refere o artigo 355º/CPP, e sob pena de valoração de prova proibida.
- Caso o arguido entendesse que estavam a ser omitidas diligências essenciais para a descoberta da verdade, cabia-lhe requerer a leitura das declarações, ao abrigo do disposto no artigo 357º/1-a), do CPP, no próprio acto, o que não fez, pelo que mesmo que se pudesse considerar a omissão como comissão de nulidade, nos termos do artigo 120º/2-d), final, do CPP, a nulidade estaria sanada nos termos do nº 3-a) do mesmo dispositivo.
- Tendo o Tribunal considerado verdadeiros os factos directamente adquiridos, por via da prova produzida em audiência, não tem fundamento a alegação feita pelo arguido, de que o provado se ancorou em alegadas presunções, pois que o julgador se limitou a considerar provados os factos descritos em audiência, sendo que presunções são «ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido» - artigo 349.º do Código Civil (CC) - e não o resultado de prova directa sobre determinada ocorrência.
- O princípio processual do in dubio pro reo tem apenas por reporte a forma como a prova foi adquirida, num concreto procedimento, pelo Tribunal. Isto, porque é uma regra de apreciação de prova pelo Tribunal, e só do Tribunal, que funciona exclusivamente na falta de uma convicção para além da dúvida razoável, sobre os factos a cuja apreciação está adstrito.
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VII- Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas criminais pelo recorrente, com taxa de justiça de 5 ucs.
Custas relativas à indemnização civil pelo recorrente, considerando decaimento total.
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Lisboa, 20/03/2024
Maria da Graça dos Santos Silva
Rosa Vasconcelos
Maria Antónia Dias Rodrigues Andrade
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1. Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998, em B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477º-271.
2. Cf. Art.ºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série.
3. 11 Cf. Cristina Líbano Monteiro, em «Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo» Coimbra Editora, 1997, 51-53.
4. Cf. Acs do TC, nº 429/95, 39/2004, 44/2004, 159/2004 e 722/2004.
5. Cf. Cristina Líbano Monteiro, obra citada, 53.
6. CF. Ac. da RE., nº 2457/06-1, em www.dgsi.pt.