Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6730/19.6T9LSB-A.L1-9
Relator: SIMONE DE ALMEIDA PEREIRA
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
TRIBUNAL TERRITORIALMENTE COMPETENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/20/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊN
Decisão: DIRIMIDO O CONFLITO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. É com base nos factos descritos na acusação – que fixa em primeira linha o objecto do processo – que deve ser decidida a questão da competência [Ac. do STJ, de 4 de Julho de 2007, proc. 1502/07 – 3ª Secção].
II. O crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205º consuma-se quando o agente, que recebe a coisa móvel por título não translativo de propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir “animo domini”;
III. Constituindo a apropriação um dos elementos típicos do crime de abuso de confiança [crime que assenta numa conduta bifásica, seguindo-se a uma actuação licita – a detenção – que precede a apropriação], a mesma terá que resultar de actos objectivamente idóneos e concludentes que conduzam à conclusão de que o agente inverteu a posse e passou a comportar-se perante a coisa como se fosse “proprietário”;
IV. Para efeitos de competência do Tribunal releva o contexto espácio-temporal do qual a acusação conclui pela prática do crime [local e tempo em que ocorre a inversão da posse].
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO:
No âmbito do processo 6730/19.6T9LSB, o Ministério Público deduziu acusação para julgamento, em processo comum, perante tribunal singular, contra AA, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º, nºs 1 e 4, al. a) do Código Penal [com base na factualidade descrita nos pontos 1 a 54 da acusação].
Os autos foram remetidos à distribuição para julgamento ao Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 4), que se declarou incompetente, por despacho de 27.03.2023, e ordenou a remessa dos mesmos ao Juízo Local Criminal de Loures, sendo aí distribuídos ao Juiz 1, que igualmente se declarou incompetente, por despacho de 20.06.2023, considerando competente o Juízo Local Criminal de Lisboa e suscitando o conflito negativo de competência junto deste Tribunal da Relação de Lisboa.
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Os despachos de declaração de incompetência transitaram em julgado, daí decorrendo um conflito negativo de competência (artigo 34º, nº 1 do CPP).
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Neste Tribunal foi cumprido o disposto no artigo 36º, nº 1 do CPP, tendo os sujeitos processuais tomado a posição expressa nas peças processuais juntas, pugnando a assistente e o Ministério Público, no seu parecer, pela atribuição da competência ao Juízo Local Criminal de Lisboa, por da acusação não constar o local onde a arguida inverteu o título de posse, devendo, por isso, ser aplicado o critério da área onde primeiro tiver havido notícia do crime.
II. Apreciação:
Nos termos da regra geral constante do art.º 19.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que "É competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação".
É com base nos factos descritos na acusação – que fixa em primeira linha o objecto do processo – que deve ser decidida a questão da competência [Ac. do STJ, de 4 de Julho de 2007, proc. 1502/07 – 3ª Secção].
A arguida mostra-se acusada de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º, nºs 1 e 4, al. a) do Código Penal [com base na factualidade descrita nos pontos 1 a 54 da acusação].
É consensual que o crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205º consuma-se quando o agente, que recebe a coisa móvel por título não translativo de propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir “animo domini”.
É igualmente incontroverso que constituindo a apropriação um dos elementos típicos do crime de abuso de confiança [crime que assenta numa conduta bifásica, seguindo-se a uma actuação licita – a detenção – que precede a apropriação], a mesma terá que resultar de actos objectivamente idóneos e concludentes que conduzam à conclusão de que o agente inverteu a posse e passou a comportar-se perante a coisa como se fosse “proprietário” [neste sentido, V. entre outros, Acórdão do TRL, processo nº 1251/15.9SKLSB.L1-5, relatado por Jorge Gonçalves, publicado in www.dgsi.pt].
No caso em apreciação, contrariamente ao sustentado pelo Juízo Local Criminal de Loures e correctamente salientado pelo Juízo Local Criminal de Lisboa, o texto acusatório permite localizar no espaço o momento em que, nos termos da acusação, a arguida inverteu a posse.
Com efeito, resulta do artigo 2º da acusação que “Assim, no final de cada dia de trabalho, a arguida, após regressar às referidas instalações [sitas no ..., nos termos do artigo 1º da acusação], deveria entregar junto da sua entidade patronal os recibos e facturas emitidas naquele dia, os respectivos registos contabilísticos (…) e a totalidade dos valores recebidos dos clientes, em numerário, cheque, transferência bancária ou pagamento através de referência multibanco”.
Ainda nos termos da acusação, vários dos recebimentos das quantias, que a arguida posteriormente se veio a apropriar, tiveram lugar em ... e .... Todavia é da falta de registo e entrega nas instalações em ... que a acusação retira a inversão da posse e consequentemente a consumação do crime. É nesse contexto espácio-temporal que a acusação conclui pela prática do crime, ou seja, é essa falta de registo e entrega em ... que se imputa como acto objectivamente idóneo e concludente que conduz, nos termos da acusação, à conclusão de que a arguida inverteu a posse e passou a comportar-se perante a coisa como se fosse “proprietário”.
A competência deverá, pois, por via da regra geral do artigo 19º do CPP, ser deferida ao Juízo Local Criminal de Loures.
IV. Decisão:
Pelo exposto, decide-se dirimir o conflito negativo de competência, atribuindo a competência para julgamento da causa ao Juízo Local Criminal de Loures [Juiz 1].
Sem tributação.
Cumpra o artigo 36º, nº 3 CPP.
Lisboa, 20 de Abril de 2024.
Consigna-se que a presente decisão foi elaborada e revista pela signatária.
Simone de Almeida Pereira